Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2246/21.9T8PTM.E1
Relator: VÍTOR SEQUINHO DOS SANTOS
Descritores: IRS
NÃO RESIDENTE
PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
RESPONSABILIDADE CIVIL
Data do Acordão: 02/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Sendo os assuntos de natureza fiscal relativos à pessoa de cada um dos recorridos tratados, ao longo de oito anos, por uma sociedade que se dedica a essa actividade, através de colaboradores seus, é de concluir que isso acontecia em execução de um contrato de prestação de serviços celebrado entre a recorrente sociedade e os recorridos.
Decisão Texto Integral: Processo n.º 2246/21.9T8PTM.E1

Autores: - AA; - BB.

Réus: - S..., Lda.; - CC; - DD; - Companhia de Seguros (…) Portugal, S.A..

Pedidos:

A) Condenação dos réus a pagarem aos autores € 77.424,06 por danos causados pelo incumprimento das obrigações assumidas e € 1.855,00 como consequência da violação das obrigações dos réus, no âmbito da responsabilidade civil contratual;

B) Caso assim não se entenda, condenação dos réus a pagarem aos autores € 77.424,06 pelos danos causados pelo incumprimento das obrigações assumidas e € 1.855,00 como consequência da violação das obrigações dos réus no âmbito da responsabilidade civil extracontratual;

C) Em todo o caso, condenação dos réus a pagarem uma indemnização por danos não patrimoniais no valor mínimo de € 10.000,00.

Sentença:

- Acção julgada parcialmente procedente;

- Condenação dos réus S..., Lda. e DD a, solidariamente, indemnizarem os autores dos prejuízos que estes sofreram em virtude de os respectivos rendimentos do ano de 2021 terem sido tributados como de residentes habituais, em vez de residentes não habituais, em montante a liquidar e correspondente à respectiva diferença (imposto pago como residente habitual/imposto a pagar como residente não habitual);

- Absolvição dos réus S..., Lda., e DD do restante pedido;

- Absolvição do réu CC do pedido;

- Absolvição da ré Companhia de Seguros (…) Portugal, S.A., da instância.


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Os réus S..., Lda. e DD interpuseram recurso de apelação da sentença, tendo formulado as seguintes conclusões:

1 – A Mma. Juíza, a fls. 18 da sentença recorrida, assume a existência, entre os autores e os recorrentes, de uma relação próxima da existente com a empresa daqueles, para depois, a fls. 19, afirmar que vigorou, entre os autores e S..., Lda., um contrato de prestação de serviços! Afinal, em que ficamos?

2 – O fundamento dessa conclusão, aliás conclusões (aparência de contrato e contrato), foi a intervenção de DD em relação à AT, relativamente aos autores, aqui recorridos.

3 – Todavia e como foi provado no ponto 12 da factualidade provada, tal intervenção ocorria a pedido dos autores e não como obrigação contratualmente assumida.

4 – Dos pontos 15, 21 e 25 dos factos provados resulta que os autores, em Novembro de 2018, quando já tinham residência permanente em Portugal, pediram a DD que tratasse do estatuto de residente não habitual, mas não o dotaram de qualquer procuração para o efeito, sendo certo que era obrigatória a intervenção pessoal dos autores, não havendo qualquer prova de que DD tenha aceite essa incumbência.

5 – De resto, a Mma. Juíza a quo manifesta dúvidas quanto à eventual existência de um contrato de prestação de serviços relativo ao tratamento do processo de residente não habitual, já que, a fls. 14 da sentença, refere que DD teria ficado de tratar do processo de residentes não habituais dos autores, quando estes já eram residentes permanente em Portugal.

6 – A expressão “teria ficado de tratar” (e não, ficou de tratar) traduz uma conjugação verbal no condicional, o que significa que esse tratamento estava na dependência de uma condição necessária para a sua realização, algo em relação ao qual nada foi provado.

7 – Daí não ter sido feita qualquer prova quanto à existência de um contrato, ou aparência de contrato (?), relativamente ao tratamento do processo de residente não habitual dos autores por DD, o que é assumido na sentença.

8 – Assim, a invocação do artigo 799.º do Código Civil carece de fundamento, já que se refere ao incumprimento do devedor e, para haver devedor, é necessário que a dívida tenha sido contratualizada, o que não está provado.

9 – Não se percebe a condenação referente ao IRS de 2021, porquanto se o processo tivesse sido tratado (pelos autores) aplicava-se ao IRS de 2019 e o IRS referido no ponto 41 dos factos provados refere-se a 2019, nada tendo a ver com o de 2021.

10 – Por outro lado, o artigo 16.º do CIRS considera como residentes não habituais em Portugal os sujeitos passivos que não tenham sido residentes em território português em qualquer dos cinco anos anteriores, sendo certo que os autores, desde o dia 07.11.2018 (ponto 25 dos factos provados), passaram a ter residência permanente em Portugal.

11 – Assim, em 2019, os autores estavam já legalmente impedidos de obter o estatuto de residentes não habituais, independentemente de o processo ser ou não tratado e por quem, inexistindo, por isso, fundamento para a condenação dos aqui recorrentes pelo incumprimento de uma obrigação que não assumiram, muito menos em relação ao IRS de 2021.

Os recorridos apresentaram contra-alegações, com as seguintes conclusões:

A. A alegada impugnação da matéria de facto, aparentemente feita pelos recorrentes, não cumpre com as exigências legais impostas pelo artigo 640.º do Código de Processo Civil considerando a falta de indicação dos factos incorrectamente julgados e os meios probatórios que impunham decisão distinta.

B. Os recorrentes apontam contradições de forma vaga e genérica sem qualquer indicação dos factos provados ou não provados e dos meios de prova relevantes, pelo que o recurso deve ser imediatamente rejeitado nesta parte.

Sem conceder,

C. A apreciação da prova assenta na livre convicção do julgador, nas regras da experiência comum e no princípio da imediação. O tribunal a quo fundamentou exaustivamente a sua convicção, analisando criticamente o conjunto da prova, elaborando uma decisão inatacável.

D. Da produção de prova em audiência de julgamento o tribunal constatou existir uma relação contratual de prestação de serviços, geradora de obrigações, com a especificidade de os recorrentes terem optado, por sua iniciativa, por não cobrar honorários pelos serviços que se obrigaram a prestar. Existindo, portanto, uma prestação de serviços sem retribuição admitida pelo artigo 1154.º do Código Civil.

E. Os pontos provados 12 e 13 indicam claramente que, a partir de 2013, os recorrentes iniciaram a prestação de serviços relativamente à contabilidade pessoal dos recorridos, ficando incumbidos de diligenciar junto da Autoridade Tributária para efeitos fiscais, logo entregar um resultado através do seu trabalho.

F. A douta sentença também esclarece, e bem, que a gratuitidade do serviço foi unilateralmente estabelecida pelos réus e, assim, constituindo obrigações geradoras de resultado sob pena de produzirem prejuízos para os clientes, aqui recorridos.

G. A escolha dos recorrentes em não cobrarem honorários quanto à contabilidade pessoal dos autores, aqui recorridos, jamais poderá ser imputada a estes últimos como aqueles pretendem.

H. Os inúmeros emails juntos aos autos com a petição inicial demonstram, de forma clara e inequívoca, a existência de uma prestação de serviços dos recorrentes que, anualmente, a pedido e também por sua livre iniciativa, faziam diligências junto das autoridades fiscais relativamente à contabilidade pessoal dos recorridos.

I. Em momento algum o tribunal a quo demonstrou incerteza na existência do contrato, tendo descrito, em inúmeras vezes, a apreciação da prova produzida em audiência de julgamento que permitiu concluir pela existência de uma relação de prestação de serviços entre recorrentes e recorridos.

J. Por conseguinte, a impugnação da matéria de facto deverá ser totalmente improcedente e, consequentemente, a factualidade dada como provada deve ser mantida na íntegra por resultar da apreciação da prova produzida e analisada pelo tribunal a quo.

K. Os recorrentes equivocam-se quanto à condenação respeitante ao IRS de 2021, confundindo o ano em que os recorridos foram informados da não submissão do formulário para obtenção do estatuto de residente não habitual, em 2019, com o petitório feito nos presentes autos.

L. Inexiste qualquer erro no processo de formação da convicção do julgador a quo, estando perante uma decisão proferida que não merece qualquer censura ou reparo.

M. Na petição inicial os recorridos solicitaram a condenação dos réus no pagamento dos danos patrimoniais que consistiam nos impostos que teriam de suportar nos dez anos seguintes enquanto residentes habituais em Portugal, ou seja: foram peticionados danos relativos aos IRS de 2019 a 2029.

N. Pelo que o douto tribunal a quo estava obrigado a pronunciar-se sobre todos esses anos, o que fez de forma fundamentada.

O. Quanto à concessão do estatuto de residente não habitual, a douta sentença também esclarece, uma vez mais, que o facto relevante relativo à residência em território português se preenche com a residência fiscal nos termos do artigo 16.º, n.º 1, do Código de IRS. E, nesse sentido, encontra-se demonstrado nos autos que a residência fiscal dos autores se iniciou em Janeiro de 2019, por instrução dada pelo recorrente DD.

P. A intenção de obter o estatuto de residente não habitual iniciou-se por conselho do recorrente DD, que orientou todo o procedimento e a quem foi delegada a função de dar entrada do pedido na página pessoal da Autoridade Tributária dos recorridos, que tinha acesso ilimitado e sem controlo desde 2013 conforme factos provados 12 e 13.

Q. Pelo que, se encontravam preenchidos os requisitos para a obtenção do estatuto de residente não habitual conforme sugerido e tratado pelo recorrente, e inclusive assumido pelo sócio-gerente da 1.ª recorrente por email junto aos autos.

R. Desta facie, o recurso nesta parte também deverá improceder atendendo que o tribunal procedeu à análise dos factos, decidindo bem pela procedência do pedido quanto ao prejuízo relativo à tributação dos rendimentos do ano de 2021.

S. Em suma, jamais poderia ser acolhida a pretensão dos recorrentes resultando de toda a prova produzida que a decisão proferida quer quanto à matéria de facto quer de direito desmerece qualquer censura, pelo que deverá manter-se integralmente a douta e lúcida decisão.

O recurso foi admitido.


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Questões a decidir:

1 – Existência de um contrato de prestação de serviços entre os recorrentes e os recorridos;

2 – Danos sofridos pelos recorridos.


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Na sentença recorrida, foram julgados provados os seguintes factos:

1. Por volta do ano de 2003/2004, os autores decidiram vir a Portugal e aproveitar para investir em alguns negócios imobiliários, tendo criado uma sociedade comercial juntamente com outro sócio holandês denominada “K... - Compra e Venda de Imóveis, Lda., com o NIPC ...87, com vista à prossecução do seu objecto social.

2. Os autores residiam habitualmente nos ..., de onde são naturais, e regressavam a Portugal esporadicamente ao longo do ano para controlo dos seus negócios, repartindo assim o seu tempo entre os dois países.

3. Necessitando de ajuda especializada ao nível da contabilidade e fiscalidade, decidiram contratar os serviços da empresa S..., Lda., para que tratasse de todas as questões respeitantes à empresa desde o ano de 2006.

4. Com o apoio dos serviços prestados pela 1.ª ré que, inclusivamente, auxiliou contabilisticamente os autores para a concretização de uma alteração societária no ano de 2011, altura em que foi celebrado um contrato-promessa de cessão de quotas entre os autores e o sócio EE, no qual adquiriram a quota deste. O contrato definitivo de cessão de quotas foi celebrado a 14.07.2011 e, seguidamente, inscrito no registo comercial conforme anotação do depósito 143/2011-07-27 e 144/2011-07-21.

5. Para a suprarreferida alteração societária, os autores foram aconselhados ao nível contabilístico pela 1ª Ré, na pessoa do seu responsável técnico CC, então técnico oficial de contas e hoje designado por contabilista certificado, tendo também sido trocadas algumas impressões entre este e o advogado dos autores, FF, na altura e posteriormente.

6. Em 2012 e nos anos seguintes, era também DD, que não era técnico oficial de contas ou contabilista certificado, mas técnico colaborador a trabalhar para S..., Lda., quem trocava emails e telefonemas com os autores sobre os assuntos contabilísticos e fiscais da empresa, desde o envio das guias para pagamento das prestações de impostos até ao pedido de documentos de suporte da contabilidade.

7. Após tais alterações societárias em que adquiriram a quota do seu anterior sócio, foi igualmente alterado o nome da firma para “F..., Lda.”, conforme Ap. ...4/...01.

8. A sede social da empresa foi até 2021 nos escritórios da sociedade ré.

9. Os autores tinham na altura a técnica oficial de contas (TOC/CC) GG, com número de inscrição na OCC n.º ...63, para tratamento de todas as questões respeitantes à sua fiscalidade pessoal, desde apresentação das declarações fiscais, pagamento de impostos até à representação fiscal.

10. A autora teve como representantes fiscais:

- HH (2004 a 2007), tendo depois sido alterada a morada fiscal da autora para ..., em ...;

- GG (30/11/2008 a 2/1/2019), depois de ter sido alterada a morada fiscal para a ... e em 2019 para ....

11. E o autor teve como representantes fiscais:

- II (2003 a 2006), com alteração de morada em 2006 para ..., em ...;

- GG (2008 a 2014), altura em que foi anulada a representação fiscal.

Em 02/01/2019 foi efetuada a alteração de morada para ....

12. A partir de 2013, DD, a pedido dos autores, passou a realizar algumas interacções com a Autoridade Tributária, designadamente, através do portal na “área reservada”, como a apresentação das declarações anuais de rendimentos, pagamento de impostos IRS, IMI, IUC, IS, IMT e a prestar informações solicitadas pelos autores ou pelo seu contabilista na ....

13. Os autores confiavam que DD tinha acesso a todas as informações e documentos necessários à realização das tarefas que lhe solicitavam.

14. Os autores sempre pagaram todos os honorários devidos pela empresa e despesas pedidas cada vez que DD o solicitava.

15. DD sugeriu aos autores a obtenção do estatuto de residentes não habituais caso quisessem residir em Portugal, evitando assim a tributação nos ....

16. No dia 18 de julho de 2018, DD enviou um email ao 2.º autor com o assunto RNH (sigla de “residência não habitual”).

17. No dia 18 de Setembro, DD respondeu a JJ, assegurando que a residência não habitual significava que o 2.º autor teria de declarar todos os seus rendimentos sendo que alguns estariam isentos de acordo com o anexo. Uma das isenções está relacionada com as pensões (categoria H). Resumindo, essas pensões não seriam tributadas na fonte por ser não residente e também ficariam isentas de impostos aqui devido à condição de RNH.

18. A 20 de Setembro de 2018, o contabilista holandês dos autores JJ enviou novo email a DD, alertando que o tratado tributário bilateral entre os ... e Portugal estatui que o primeiro poderá taxar a pensão se Portugal não o fizer e questionava se o 3.º réu tem outros clientes com essa situação e se teria conhecimento se a pensão seria taxada quando o país de residência fosse Portugal.

19. Nesse mesmo dia DD respondeu a JJ esclarecendo que as pensões são taxadas em Portugal para depois internamente darem isenções, todavia refere que deveriam verificar diretamente com as autoridades holandesas porque seria esse o país a interpretar a regra.

20. Ainda em 2018, os autores ficaram convencidos da vantagem do regime da residência não habitual, tendo solicitado verbalmente a DD que tratasse desse assunto.

21. No dia 7 de Novembro de 2018 a 1.ª autora questiona expressamente DD por email, se aquele poderia ir à Câmara Municipal na semana seguinte para tratar da documentação necessária, sob o assunto “residência”, e informando de que tinham vendido a casa na ....

22. DD responde, no dia seguinte, só ser possível tratar desse assunto após a chegada dos autores a Portugal considerando que estava a tratar das declarações de ... durante aquela semana.

23. Após regressarem a Portugal, a 1.ª autora enviou um email ao 3.º réu a perguntar se poderiam ir tratar do assunto naquela semana, conforme email de 24.11.2018.

24. O 3.º réu responde afirmativamente, tendo a 1.ª autora questionado se seria necessário fazer uma marcação, ao que aquele responde negativamente. Assim, DD acompanhou os autores à Câmara Municipal ..., onde eles obtiveram e lhes foi entregue para obtenção do seu certificado de registo de cidadão da União Europeia, já procedimento com vista ao estatuto de residente não habitual a que se iriam candidatar.

25. No dia 7 de Dezembro de 2018, os autores venderam a sua casa nos ... sita em ..., e deixaram de ter seguro naquele país (elemento obrigatório para a tributação como residentes nos ...) e passaram a residir apenas em Portugal.

26. A 27.12.2018 a 1.ª autora volta a questionar o 3.º réu sobre o procedimento de residência não habitual mormente se necessitariam de ir ao serviço de finanças, tendo aquele respondido que um colega seu poderia acompanhá-los ao serviço de finanças de ..., caso quisessem, ou poderiam deslocar-se sozinhos devendo apresentar o documento de residência obtido na Câmara Municipal para actualizarem a morada fiscal desde 1 de Janeiro.

27. A 1.ª autora questionou se tal teria de ser feito de imediato ou se poderiam aguardar pelo regresso de DD de modo a que fosse este a tratar do assunto, tendo este esclarecido que, se esperassem pelo seu regresso o início dos efeitos começaria apenas a 2 de Janeiro, conforme email de 27.12.2018.

28. No dia 9 de Dezembro de 2019, DD informou que iria deixar de trabalhar na empresa da 1.ª ré e que seria a sua colega KK que ficaria encarregue das suas contas.

29. A 13 de Abril de 2020 a 1.ª autora indagou KK como estava a situação do IRS de 2019, tendo aquela no mesmo dia respondido que iriam proceder à apresentação da declaração que antes era feita pelo réu DD.

30. A 30 de Junho de 2020 foi reencaminhado um email para os autores que continha uma conversa entre DD e KK sobre a verificação feita à declaração de IRS daqueles, confirmando que o IRS foi aceite como não residente sem divergência e que o pedido de residente não habitual com início em 2020 tinha sido indeferido mas estavam a aguardar justificação.

31. O réu DD mais indicava que deveriam efectuar a reclamação do indeferimento do pedido com base no facto de o IRS de 2019 ter sido aceite como não residente e apresentar justificação para o facto de terem vindo viver para Portugal somente em 2020.

32. No mesmo dia, KK responde ao 3.º réu explanando que seria necessário entregar a declaração de rendimentos de 2019 nos ... e só com os comprovativos das declarações dos últimos cinco anos poderiam fazer a reclamação sugerida.

33. No dia 7 de Julho de 2020, DD enviou novamente um email a KK, o qual foi posteriormente reencaminhado por esta para a 1.ª autora, explicando que a residência não habitual não tinha sido aceite por ter sido ultrapassado o prazo para submeter os últimos formulários, pelo que desde 01.01.2019 os autores eram considerados residentes habituais em Portugal.

34. DD sugeriu procedimento com vista a que os autores ainda viessem a obter o estatuto pretendido (provando que foram residentes nos ... nos últimos cinco anos, pelo que a consequência era que o período de 10 anos com um regime fiscal mais vantajoso começaria somente em 2020, ao que o autor lhe comunicou que não seria possível já pagar impostos nos ....

35. No dia 15 de Julho de 2020, DD respondeu, assumindo que os formulários deveriam ter sido submetidos até 31.03.2020 porém, após a sua saída do escritório e passagem dos processos para a sua colega KK, todos os assuntos pessoais dos autores ficaram esquecidos devido ao facto de apenas a empresa F... estar na lista de clientes da 1.ª ré.

36. A 20 de Julho de 2020, KK enviou um email a JJ questionando se poderia fazer uma declaração de substituição de 2019 com estatuto de residente nos ....

37. A 28, JJ responde negativamente por email, por os autores não estarem inscritos como residentes e não terem seguro de saúde lá desde 2019 (condição essencial e obrigatória nos ... quando se detém um imóvel e para ser considerado residente fiscal).

38. Alguns dias depois, a 24.08.2020 KK envia novo email a JJ questionando a possibilidade de os autores entregaram o IRS nos ....

39. No dia seguinte, KK informa os autores que dada a resposta negativa de JJ iria submeter declaração substitutiva de IRS e iriam receber nova notificação para pagar a diferença.

40. Assim, a 28.08.2020 a 1.ª autora volta a questionar se já tinha sido apresentado o IRS de 2019 e qual o montante total.

41. No mesmo dia, KK esclarece que apresentaram o IRS dos autores como não residente e que o valor a pagar seria de € 1.800, correspondente ao rendimento recebido apenas em território nacional, sendo a única opção face à informação prestada pelo contabilista holandês. Todavia para regularizar a situação de 2019 seria necessário substituir a declaração de IRS e incluindo os rendimentos obtidos nos ..., alterando o estatuto para residentes habituais, tudo por email.

42. Nesse mesmo dia, o gerente da 1.ª ré intervém pela primeira vez neste processo, remetendo um email de fls. 92.

43. No dia 2 de Junho de 2021 procedeu-se à interpelação extra-judicial dos 1.º e 3.º réus conforme cartas registadas com aviso de receção, cartas que foram recebidas no dia 4.

44. DD não respondeu e S..., Lda. respondeu, mas nada acrescentando.

45. Os autores têm o estatuto de residentes e pagaram impostos nessa qualidade.

46. Os autores computaram os danos em € 77.424,06, resultantes da diferença de impostos que pagariam como residentes e residentes não habituais, nos próximos dez anos.

47. Os autores solicitaram os serviços contabilísticos do contabilista JJ, nos ..., para aconselhamento fiscal e também com vista a auxiliar os réus com todos os elementos para a obtenção do estatuto fiscal de residente não habitual, tendo o contabilista declarado ter recebido a quantia de € 1.855,00.

48. Os autores ficaram muito zangados com a perspectiva de terem de pagar impostos em Portugal, e que contavam não pagar perante a perspectiva de obter o estatuto de residentes não habituais.

49. Entre a Ordem dos Contabilistas Certificados e a Companhia de Seguros (…) Portugal, S.A. foi celebrado um contrato de seguro de grupo obrigatório de responsabilidade civil dos contabilistas certificados, titulado pela apólice n.º ...76 através do qual a ora contestante assumiu para si transferido, nos termos, com os limites e exclusões aí mencionados, o risco de «responsabilidade civil que, ao abrigo da legislação aplicável, seja imputável ao Segurado na sua qualidade de Contabilista Certificado.»

50. A responsabilidade – cfr. ponto 2 das condições particulares da apólice – está limitada a € 50.000,00 por contabilista certificado e por sinistro. Tal contrato ficou ainda sujeito a uma franquia, ou parte primeira de qualquer indemnização que seja devida sempre a cargo do segurado de € 5.000,00, por sinistro individualmente considerado.

51. O presente contrato garante, «até ao limite do capital fixado nas Condições Particulares, as indemnizações que legalmente sejam exigíveis ao Segurado, com fundamento em responsabilidade civil decorrente do exercício da sua atividade profissional de Contabilista Certificado» – cfr. artigo 3.º das condições gerais da apólice.

52. Para efeitos da presente apólice, entende-se por segurado «a pessoa singular, titular do interesse seguro na qualidade de Contabilista Certificado, que exerça efetivamente a profissão» – cfr. artigo 1.º, alínea d), das condições gerais da apólice.

53. Acrescentando a alínea e) do aludido artigo 1.º das condições gerais que é considerado contabilista certificado para efeitos do contrato de seguro ajuizado, «o profissional inscrito na Ordem dos Contabilistas Certificados, nos termos do respetivo Estatuto, sendo-lhe atribuído, em exclusividade, o uso desse título profissional».

54. O contrato de seguro de responsabilidade civil profissional, celebrado entre a OCC e a seguradora (…), tal como os demais seguros de responsabilidade civil profissional celebrados com outras ordens profissionais (médicos, advogados, engenheiros, etc.), garantindo a indemnização por prejuízos causados a terceiros pelos contabilistas certificados e com inscrição em vigor na referida Ordem dos Contabilistas Certificados, configura um contrato de seguro de grupo.

Na sentença recorrida, foram julgados não provados os seguintes factos:

- Que algum dos réus tenha assumido formalmente e perante a Autoridade Tributária a representação fiscal dos autores;

- Que os autores pagassem os honorários devidos pelos serviços prestados a cada um dos autores, a nível individual, ou que tais honorários tivessem sido solicitados;

- Que algum dos réus cobrasse dos autores individualmente pelos serviços pessoais que não diziam respeito à sociedade;

- Que DD, depois de sair da S..., Lda., tenha continuado a tratar dos assuntos relacionados com os autores, em específico a entrega da declaração de IRS e pedido de residência não habitual;

- Quais os montantes concretos em impostos que os autores estão obrigados a suportar nos próximos dez anos em virtude de não terem o estatuto de residente não habitual (diferença entre os impostos pagos/a pagar em função do estatuto de residente/residente não habitual);

- Que os autores tivessem contratado expressamente a prestação de serviços a título individual com a S..., Lda..


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1 – Existência de um contrato de prestação de serviços entre os recorrentes e os recorridos:

Os recorrentes afirmam que a conclusão, a que o tribunal a quo chegou, de que vigorou um contrato de prestação de serviços gratuito entre a recorrente “S...” e os recorridos, não encontra sustentação na matéria de facto provada.

Não têm razão. A matéria de facto provada inculca, sem margem para dúvidas, que aquele contrato foi celebrado e vigorou entre 2013 e 2020. Passamos a justificar esta afirmação.

Os recorridos, então residentes nos ..., criaram uma sociedade comercial em Portugal por volta de 2003/2004, aqui vindo esporadicamente. Em 2006, contrataram a recorrente “S...” para tratar da contabilidade e fiscalidade daquela sociedade. A partir de 2012, a recorrente “S...” passou a tratar da contabilidade e da fiscalidade da mesma sociedade através do recorrente DD, seu colaborador.

A partir de 2013, o recorrente DD, a pedido dos recorridos, passou a realizar algumas interacções com a Autoridade Tributária, designadamente através da área reservada do portal desta, como a apresentação das declarações anuais de rendimentos, pagamento de impostos IRS, IMI, IUC, IS, IMT. Também a partir de 2013, o recorrente DD passou a prestar informações solicitadas pelos recorridos ou pelo seu contabilista na .... O recorrente DD actuava nos termos descritos na qualidade de colaborador da recorrente “S...”, como vinha fazendo no que respeitava aos assuntos da sociedade criada pelos recorridos. Tanto assim era que, quando o recorrente DD deixou de trabalhar para a recorrente “S...”, a situação tributária pessoal dos recorridos passou a ser acompanhada por outra colaboradora dessa mesma recorrente, KK.

Sendo os assuntos de natureza fiscal relativos à pessoa de cada um dos recorridos tratados, ao longo de oito anos, por uma sociedade que se dedica a essa actividade, através de colaboradores seus (o recorrente DD e, posteriormente, KK), é de concluir que isso acontecia em execução de um contrato de prestação de serviços celebrado entre a recorrente sociedade e os recorridos. A natureza gratuita desse contrato explica-se pela coexistência com um contrato de prestação de serviços oneroso que vigorava entre a recorrente sociedade e a sociedade criada pelos recorridos.

É neste sentido que, na sentença recorrida, se afirma que «Existiu uma relação contratual entre os autores e a “S...”[1], próxima da existente com a “...”». Próxima, não porque o contrato existente entre os recorridos (na qualidade de pessoas singulares e não de representantes de uma sociedade comercial) e a recorrente “S...” não existisse ou não merecesse a qualificação jurídica de prestação de serviços, mas sim porque esse contrato foi celebrado entre as mesmas pessoas, ainda que, do lado dos recorridos, em qualidade diversa, em circunstâncias tais que a existência do contrato de prestação de serviços que os recorridos celebraram em nome próprio se explica pela coexistência com o contrato de prestação de serviços que os recorridos celebraram em nome da sociedade. Podemos, sem esforço, concluir que nos encontramos perante uma união de contratos, na qual o contrato de que os recorridos são partes se encontra dependente da subsistência daquele em que estes outorgaram em nome da sociedade. Do ponto de vista económico, a recorrente “S...” obtinha a compensação pelo trabalho desenvolvido em execução dos dois contratos através da retribuição estipulada em apenas um deles. Prática esta que não é inédita, longe disso.

Não se verifica, portanto, a contradição que os recorrentes apontam à sentença recorrida. Em ponto algum desta o tribunal a quo vacila na conclusão de que, entre a recorrente “S...” e os recorridos, tenha sido celebrado um contrato de prestação de serviços de natureza gratuita.

Os recorrentes argumentam que, entre a recorrente “S...” e os recorridos, não foi celebrado um contrato de prestação de serviços escrito, e que os segundos não constituíram os primeiros como seus procuradores. É verdade que aquele contrato não foi reduzido a escrito e que os recorridos não constituíram qualquer dos recorrentes como seu procurador, mas nada disso obsta à sua existência e validade.

Os recorrentes também argumentam que o tribunal a quo demonstrou “claramente não ter a certeza da existência de qualquer contrato, ou sequer aparência de contrato, pois refere que DD teria ficado de tratar do procedimento para a obtenção do estatuto de residente não habitual”, e não que “o DD ficou de tratar”. Também este argumento não procede. A utilização do condicional explica-se pela circunstância de o tribunal a quo estar a resumir as declarações de parte dos autores e não a enunciar um facto julgado provado, sendo, por isso, justificada e não lhe podendo ser atribuído o significado que os recorrentes pretendem.

Pelo exposto, concluímos, como o tribunal a quo, que resulta da matéria de facto provada que vigorou um contrato de prestação de serviços gratuito entre a recorrente “S...” e os recorridos. As ilações que os recorrentes pretendem retirar da alegada falta de sustentação daquela conclusão na matéria de facto provada carecem, elas sim, de fundamento.

2 – Danos sofridos pelos recorridos:

2.1. Os recorrentes argumentam que, em 2019, não se verificavam os pressupostos legais da aquisição do estatuto de residente não habitual pelos recorridos, porquanto estes tinham residência permanente em Portugal desde o dia 07.11.2018 e o artigo 16.º do CIRS considerava como residentes não habituais em Portugal os sujeitos passivos que não tivessem sido residentes em território português em qualquer dos cinco anos anteriores. Daí que, segundo os recorrentes, em 2019, os recorridos já estivessem legalmente impedidos de obter o estatuto de residentes não habituais, independentemente de o processo ser ou não tratado e por quem. Concluem que, também por esta razão, inexiste fundamento para a sua condenação.

Não é assim.

O n.º 8 do artigo 16.º do CIRS, entretanto revogado, estabelecia que se consideravam residentes não habituais em território português os sujeitos passivos que, tornando-se fiscalmente residentes nos termos dos n.ºs 1 ou 2, não tivessem sido residentes em território português em qualquer dos cinco anos anteriores.

Os recorridos passaram a residir exclusivamente em Portugal em 07.12.2018 (e não 07.11.2018, como os recorrentes afirmam), mas, como se explica na sentença recorrida, só em 02.01.2019 passaram a ter residência fiscal em Portugal. Daí que, ao abrigo do disposto no referido n.º 8 do artigo 16.º do CIRS, estivessem em condições de adquirir o estatuto de residentes não habituais em Portugal.

2.2. Por outro lado, os recorrentes afirmam não perceberem “a condenação referente ao IRS de 2021, porquanto se o processo tivesse sido tratado (pelos autores) aplicava-se ao IRS de 2019 e o IRS referido no ponto 41 dos factos provados refere-se a 2019, nada tendo a ver com o de 2021”.

A incapacidade de percepção dos recorrentes não é imputável ao tribunal a quo, porquanto este explicitou as razões deste segmento da decisão. Assim, diz-se na sentença recorrida:

“(…) é possível concluir que os autores podem ter sofrido um prejuízo relativamente à tributação dos rendimentos de 2019, 2020 e 2021, mas já não relativamente aos futuros, quer tendo em conta a volatilidade da lei quer o desconhecimento dos concretos rendimentos futuros dos autores.

Os autores não demonstraram os efetivos danos decorrentes de terem os respetivos rendimentos sido tributados enquanto residentes habituais (e não, como esperavam, residentes não habituais) de 2019 a 2021. Para isso, deveriam ter alegado e demonstrado os rendimentos elegíveis e a diferença de aplicação de um e outro regime nos anos de 2020 (relativamente a rendimentos de 2019) e de 2021 (relativamente a rendimentos de 2020) – note-se que a ação entrou em juízo em outubro de 2021, data em que terão declarado já os rendimentos à Autoridade Tributária. Não o fizeram – a tabela junta com a petição não foi suficiente. Por essa razão, não deve o Tribunal remeter tal apuramento para liquidação.

Relativamente aos rendimentos de 2021, poderiam ter vindo com articulado superveniente, mas optaram por não o fazer até porque da sua perspetiva os danos estariam já apurados. O Tribunal poderá condenar os réus em montante a liquidar – artigo 609.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.”

Ou seja:

a) Não era possível demonstrar que os recorridos viessem a sofrer danos relativamente à tributação dos rendimentos que auferissem nos anos de 2022 e seguintes;

b) Era possível demonstrar os danos sofridos pelos recorridos relativamente à tributação dos rendimentos que auferissem nos anos de 2019 a 2021; porém, os recorridos não o fizeram;

c) Tendo em conta que a acção foi proposta em Outubro de 2021, a ausência de demonstração, pelos recorridos, dos concretos danos que sofreram relativamente à tributação dos rendimentos que auferiram nos anos de 2019 e 2020, impede que se relegue a sua liquidação para a execução da sentença;

d) Em relação aos danos decorrentes de os rendimentos auferidos pelos recorridos no ano de 2021 terem sido tributados ao abrigo do regime dos residentes habituais e não, como esperavam, do regime dos residentes não habituais, é admissível a condenação dos recorrentes em montante a liquidar em execução da sentença, nos termos do n.º 2 do artigo 609.º do CPC, porquanto se trata de danos supervenientes.

O entendimento do tribunal a quo descrito nas alíneas a) a c) é favorável aos recorrentes. Tanto assim foi, que determinou a sua absolvição relativamente a danos respeitantes aos anos de 2019, 2020 e 2022 e seguintes.

Só o entendimento descrito na alínea d) é desfavorável aos recorrentes. Ora, a argumentação que estes apresentam não se destina a refutá-lo. Os recorrentes apenas estranham a sua absolvição do pedido de condenação no ressarcimento dos danos sofridos pelos recorridos relativamente aos rendimentos por estes auferidos no ano de 2020. Porém, o fundamento dessa absolvição e de o mesmo não ter acontecido relativamente aos rendimentos auferidos pelos recorridos no ano de 2021 é explicitada na sentença recorrida e não merece crítica.


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Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas a cargo dos recorrentes.

Notifique.


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Évora, 08.02.2024

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

Eduarda Branquinho (1.ª adjunta)

Francisco Matos (2.º adjunto)


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[1] E não “S...”, como, por lapso, se escreveu na sentença recorrida.