Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
232/11.6GDCTX-A.E1
Relator: CARLOS BERGUETE COELHO
Descritores: DESPACHO DE MERO EXPEDIENTE
CÚMULO JURÍDICO DE PENAS
Data do Acordão: 07/02/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário:
I - No corrente entendimento jurisprudencial, constitui despacho de mero expediente aquele que, proferido pelo juiz, não decidindo qualquer questão de forma ou de fundo, se destina principalmente a regular o andamento do processo. Caracteriza-se, assim, pela sua natureza de se limitar a dar cumprimento aos legais trâmites que devem nortear esse andamento do processo, sem envolver uma apreciação concreta que se projecte nos direitos dos intervenientes.

II – Não constitui despacho de mero expediente aquele que, não obstante consubstanciar uma informação ao arguido, toma posição acerca do que era proposto, ou seja, a realização de um novo cúmulo jurídico que viesse a incluir a pena aplicada noutro processo, denegando essa pretensão.

III - Se o momento temporal decisivo para o estabelecimento da relação de concurso ou da sua exclusão é o trânsito em julgado de qualquer das decisões condenatórias, com destaque para aquela que foi primeiramente proferida, pois é esta que delimita o conhecimento superveniente, estabelecendo a fronteira até onde se pode formar a unificação das respectivas penas, isso obsta a que se cumulem com infracções que venham a ser praticadas em momento posterior a esse trânsito.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

1. RELATÓRIO

Nos autos em referência, correndo termos no Juízo Central Criminal de Santarém do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, realizada audiência para os efeitos do art. 472.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (CPP) e por acórdão cumulatório de penas, o arguido CC foi condenado, a cumprir de forma autónoma e sucessiva, num 1.º cúmulo (penas aplicadas nos processos n.º --/11.3SXLSB e n.º ---/11.0PATNV), na pena de 240 (duzentos e quarenta) dias de multa à razão diária de € 5,00 (cinco euros), extinta pelo cumprimento, e na pena de 18 (dezoito) meses de prisão e, num 2.º cúmulo (penas aplicadas nos processos n.º ---/11.1PBCTB, n.º ---/11.0S4LSB, n.º ---/11.1GBGDL e nos autos - n.º ---/11.6GDCTX -, na pena única de 11 (onze) anos de prisão, posteriormente alterado por acórdão do STJ de 13.07.2017, que lhe aplicou a pena única de 11 (onze) anos e 3 (três) meses de prisão.

Na sequência de requerimento que veio a ser junto aos autos, que havia anteriormente sido dirigido ao processo n.º ---/14.7TACTX, proferiu-se despacho segundo o qual se determinou: «Cumpra-se nos termos promovidos pela D. Procuradora da República».

Remeteu, assim, para anterior promoção do seguinte teor: «Fls. 1584: Promovo se informe o arguido CC que, atenta a data da prática dos factos pelos quais veio a ser condenado no âmbito do processo n.º --/14.7TACTX o mesmo não reúne os requisitos para que venha ser efectuado novo cúmulo jurídico de penas no âmbito destes autos, face ao cúmulo já efectuado».

Inconformado, o arguido interpôs recurso, formulando as conclusões:
I-Vem o presente recurso, oportunamente interposto, perante esse Venerando Tribunal, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo, interposto do despacho proferido pelo Tribunal “a quo”, com referência citius n.º 79040980 em 18 de Setembro de 2018, de não realização do cúmulo jurídico, no processo em epígrafe com o processo n.º --/14.7 TACTX.

II- A inconformidade do Recorrente face ao Acórdão recorrido consiste essencialmente nos seguintes pontos:

A) O Tribunal “ a quo” violou o disposto nos artigos art.º 374.º, n.º 2, do CPP, do art.º 97.º, n.º 5, do CPP e do art.º 205.º, n.º 1, do C.R.P., por falta de fundamentação do despacho recorrido, o que determina a nulidade da decisão recorrida.

B) O Tribunal “ a quo”, ao não realizar o cúmulo jurídico do processo em epígrafe com o processo n.º--/14.7TACTX, violou o disposto nos artigos 77 n.º 1 e 78.º n.º1 e 2.

III- Nos presentes autos, foi requerido pelo recorrente, a fls.1584, referência Citius n.º7223022, a realização do cúmulo jurídico do Processo n.º --/14.7TACTX, ao abrigo do disposto nos artigos 77.º e 78.º do C.P.

IV- Por despacho, datado, de 18 de Setembro de 2018, com referência Citius n.º79040980, foi o mesmo recusado, por remissão à Promoção D. Procuradora da República, datada de 05.9.18.

V- Despacho recorrido, que aqui se transcreve: ”Cumpra-se nos termos promovidos pela D. Procuradora da República”.

VI- Entende o recorrente que no despacho recorrido não estão patentes, as razões específicas que levaram a decisão recorrida, de não realização do cúmulo jurídico, estamos, assim perante uma omissão da fundamentação.

VII- Tem sido entendimento quer da doutrina e quer da jurisprudência, a necessidade da fundamentação mínima das decisões e despachos que contendam com a compressão de direitos fundamentais dos arguidos.

VIII- A decisão recorrida padece de falta de fundamentação pois não indica qualquer norma jurídica que sustente a mencionada impossibilidade de realização de cúmulo, motivo pelo qual foram violados os artigos 374.º, n.º 2, do CPP, do art.º 97.º, n.º 5, do CPP e do art.º 205.º, n.º 1, do C.R.P.

IX- Assim, o douto despacho recorrido deve ser declarado nulo por falta de fundamentação, por violação do art.º 374.º, n.º 2, do CPP, do art.º 97.º, n.º 5, do CPP e do art.º 205.º, n.º 1, do C.R.P.

X- Caso assim não se entenda, por mera cautela de patrocínio, entende o recorrente que a decisão recorrida violou o disposto nos artigos 77 e 78.º do C. Penal.

XI- Senão vejamos,

XII- Entende o recorrente que o Tribunal “a quo”, ao não realizar o cúmulo jurídico do processo em epígrafe com o processo n.º--/14.7TACTX, violou o disposto nos artigos 77 n.º 1 e 78.º n.º1 e 2.

XIII- Da consulta do CRC, fls…. do recorrente/arguido, podemos constatar que, a data da prática dos factos, no processo n.º--/14.7 TACTX foi em data anterior ao trânsito em julgado do processo em epígrafe, ou seja, a data da prática dos factos é de 08/10/2013.

XIV- Enquanto o processo dos presentes autos- transitou em julgado em 11/07/2014 e o respectivo cúmulo jurídico efectuado pelo STJ, transitou em 11/09/2017.

XV- Está em causa a realização de um cúmulo jurídico que, como decorre do n.º1 do artigo 77.º do C.P. é imperativamente efectuado quando «alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa pena única.”.

XVI- Vide por exemplo Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, Processo n.º 781/10.3JACBR.C1, em www.dgsi.pt.

XVII- Consequentemente, atenta a data da prática dos factos, deveria ter sido agendada audiência, ao abrigo no artigo 472 do C.P.P., para realização do cúmulo jurídico do processo n.º--/14.7 TACTX, no processo em epígrafe.

TERMOS EM QUE E SEMPRE,

Invocando-se o DOUTO SUPRIMENTO DESSE VENERANDO TRIBUNAL deverá ser dado provimento ao presente recurso, e, em consequência, julgar-se verificada a invocada nulidade, com as demais consequências daí decorrentes, revogando-se a decisão recorrida, e ordenando-se que o Tribunal recorrido realize nova audiência para realização do cúmulo jurídico entre os presentes autos e o processo n.º--/14.7 TACTX nos termos supra explicitados, tudo com as demais consequências legais.

O recurso foi admitido.

O Ministério Público apresentou resposta, concluindo:

1. Recorre o arguido Carlos Manuel Dias Santos do despacho proferido no dia 18.09.2018, no âmbito dos presentes autos, no qual a Mma Juíz determinou que fosse o recorrente informado que, atenta a data da prática dos factos pelos quais foi condenado no âmbito do processo n.º --/74.7TACTX, o mesmo não reunia os requisitos para que viesse a ser efectuado, nestes autos, novo cúmulo jurídico de penas, face ao cúmulo já efectuado e cujo teor é o seguinte “Cumpra-se nos termos promovidos pela D. Procuradora da República”.

2. O despacho recorrido foi proferido apenas no sentido de informar o arguido que não era no âmbito destes autos que haveria lugar à realização de novo cúmulo jurídico de penas de modo a englobar a pena que aquele pretendia ver incluída no mesmo.

3. E foi proferido após ter sido remetido a estes autos “requerimento” entrado e dirigido ao processo n.º --/74.7TACTX.

4. Dado que a Mma Juiz titular daquele processo, face ao “requerido” se limitou a determinar o seu desentranhamento e remessa a estes autos, “para os fins tidos por convenientes”

5. Pelo que se trata de um despacho de “mero expediente”.

Assim não se entendendo,
6. O caso de cúmulo jurídico por conhecimento superveniente de concurso de crimes tem lugar, quando posteriormente à condenação no processo de que se trata - o da última condenação transitada em julgado - se vem a verificar que o agente, anteriormente a tal condenação, praticou outro ou outros crimes.

7. O trânsito em julgado obstará a que com a infracção a que respeita ou outras cometidas até esse trânsito, se cumulem infracções que venham a ser praticadas em momento posterior a esse mesmo trânsito, que funcionará assim como barreira excludente, não permitindo o ingresso no círculo dos crimes em concurso, dos crimes cometidos após aquele limite.

8. A primeira decisão transitada será assim o elemento aglutinador de todos os crimes que estejam em relação de concurso, englobando as respectivas penas em cúmulo, demarcando as fronteiras do círculo de condenações objecto de unificação.

9. Nos presentes autos foi efectuado cúmulo jurídico de penas, por acórdão proferido em 15.07.2016 (cfr. fls. 1176 a 1199), alterado por acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 13.07.2017 (cfr. fls. 1353 a 1377), tendo o arguido sido condenado na pena única de 11 (onze) anos e 3 (três) meses de prisão.

10. Tal cúmulo englobou as penas aplicadas nos processos nsº ---/11.1PBCTB, no qual o arguido foi condenado, por acórdão transitado em julgado em 7.01.2013, por factos praticados em 17.05.2011; ---/11.0S4LSB, no qual foi condenado por acórdão transitado em julgado em 10.09.2013, por factos praticados no decorre do ano de 2011, até ao dia 20.10.2011; ---/11.1GBGDL, por sentença transitada em julgado em 7.10.2013, por factos praticados em 5.09.2011 e nestes autos, por sentença transitada em julgado em 11.07.2014, por factos praticados em 17.10.2011.

11. O arguido foi condenado, no âmbito do processo n.º --/14.7TACTX, por sentença transitada em julgado em 17.05.2017, por factos praticados em 8.10.2013 (cfr. fls. 1530 a 1581).

12. No presente caso, o elemento separador impeditivo de um efectivo concurso que englobe a pena aplicada no processo n.º ---/14.7TACTX, é a primeira condenação que transitou em primeiro lugar, ou seja, a condenação ocorrida no processo n.º 307/11.1PBCTB, transitada em julgado no dia 7.01.2013, logo, antes da prática dos factos pelos quais o arguido veio a ser condenado naquele processo (--/14.7TACTX), os quais ocorreram em 8.10.2013.

13. De salientar, ainda, a que a condenação do ora recorrente no processo n.º --/14.7TACTX foi a última - sendo igualmente a derradeira a transitar em julgado - de uma série de condenações por si sofridas.

14. Razão pela qual não haverá lugar, no âmbito dos presentes autos, à realização de novo cúmulo jurídico de penas que englobe a pena que lhe foi aplicada no âmbito do processo n.º ---/14.7TACTX.

Face ao exposto, deve o despacho recorrido ser confirmado e não ser ordenada a realização de nova audiência, no âmbito dos presentes autos, para a realização de novo cúmulo jurídico que englobe a pena aplicada ao recorrente no processo n.º ---/14.7TACTX.

Neste Tribunal da Relação, o Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, manifestando concordar com o entendimento constante da referida resposta e no sentido que o despacho recorrido deve ser mantido.

Observado o disposto no n.º 2 do art. 417.º do CPP, o arguido nada acrescentou.

Colhidos os vistos legais e tendo os autos ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.

2. FUNDAMENTAÇÃO

O objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da sua motivação, como decorre do art. 412.º, n.º 1, do CPP, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como sejam, a nulidade do acórdão (art. 379.º, n.º 1, do CPP) e os vícios da decisão e outras nulidades que não se considerem sanadas (art. 410.º, n.ºs 2 e 3, do CPP), designadamente conforme jurisprudência fixada pelo acórdão do Plenário da Secção Criminal do STJ n.º 7/95, de 19.10, in DR I-A Série de 28.12.1995.

Delimitando-o, reside em apreciar:

A) - da nulidade do despacho recorrido;
B) - da violação dos arts. 77.º e 78.º do Código Penal.

Questão prévia:
Na resposta ao recurso, o Ministério Público suscitou a questão da não recorribilidade do despacho, invocando que o despacho proferido pela Mma Juiz titular do processo terá de ser visto como um despacho de “mero expediente”, tendo em consideração que não decidiu – no sentido de deferir ou indeferir – sobre o “requerimento” apresentado pelo recorrente, o qual foi dirigido ao processo n.º --/14.7TACTX e onde deveria ter sido apreciado e apenas no sentido de informar o arguido que não era no âmbito destes autos que haveria lugar à realização de novo cúmulo jurídico de penas de modo a englobar a pena que aquele pretendia ver incluída no mesmo.

Traz, pois, à colação que o despacho, na sua perspectiva, se reconduza a despacho de mero expediente e, por isso, nos termos do art. 400, n.º 1, alínea a), do CPP, não admita recurso.

Ora, o despacho de mero expediente é aquele que se destina a regular, de harmonia com a lei, os termos do processo e que, por isso, não é susceptível de ofender direitos processuais das partes ou de terceiros (Alberto dos Reis, in “Código de Processo Civil Anotado”, Coimbra Editora, 1984, volume V, pág. 250).

Ou como o Ministério Público salienta, nessa resposta, «é “aquele que se destina a prover ao andamento regular do processo sem interferir no conflito de interesses entre as partes”, de acordo com o disposto no n.º 4 do art.º 156.º do Código Processo Civil, aqui aplicável por força do art.º 4.º do Código de Processo Penal (neste sentido, vd. Lebre de Freitas, Código Processo Civil Anotado, p. 277, Decisão de reclamação no TRG de 14.11.2003 e Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 3ª edição, p. 111), ou no corrente entendimento jurisprudencial, aquele que, proferido pelo juiz, não decidindo qualquer questão de forma ou de fundo, se destina principalmente a regular o andamento do processo».

Caracteriza-se, assim, pela sua natureza de se limitar a dar cumprimento aos legais trâmites que devem nortear esse andamento do processo, sem envolver uma apreciação concreta que se projecte nos direitos dos intervenientes.

No caso vertente, a alegada circunstância de que o requerimento, sobre o qual o despacho recorrido incidiu, tivesse sido apresentado, inicialmente, no processo n.º --/14.7TACTX e, aí, eventualmente, merecesse ter sido apreciado, o que não sucedeu, não serve para afastar, no que ora interessa, a relevância do que efectivamente do despacho resultou, uma vez que é dele que vem interposto o recurso.

E se assim é, afigura-se que, não obstante o teor do despacho, por mera remissão do que foi promovido, consubstancie uma informação ao arguido, não se pode afirmar que tivesse deixado de tomar posição acerca do que era proposto, ou seja, a realização de um novo cúmulo jurídico que viesse a incluir a pena aplicada naquele processo n.º --/14.7TACTX.

Ao ter feito menção à ausência de requisitos para o efeito pretendido pelo arguido, indeferiu o requerimento em matéria que, sendo pertinente à temática das penas, assume importância na vertente dos direitos daquele, enquanto subjacente à sua privação da liberdade.

Como tal, entende-se que o despacho não é de mero expediente e, por isso, é legalmente recorrível (art. 399.º do CPP).

Apreciando:

A) - da nulidade do despacho recorrido:
O recorrente invoca que o despacho recorrido enferma de nulidade, segundo refere, por falta de fundamentação, por violação do art.º 374.º, n.º 2, do CPP, do art.º 97.º, n.º 5, do CPP e do art.º 205.º, n.º 1, da C.R.P..

Indica que, sendo limitador do direito fundamental à liberdade, pela não realização do cúmulo jurídico, não permite ter conhecimento dos fundamentos de facto e de direito que fundaram a prolação.

Desde já, note-se que, na situação, tão-só revela o disposto no art. 97.º, n.º 5, do CPP - “Os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão” -, bem como no art. 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP) - “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei” -, uma vez que o aludido art. 374.º só é aplicável à sentença, não a um despacho.

Por razões que se prendem com a manifesta diferença de relevância que existe entre a sentença e um despacho, o legislador apenas consagrou, quanto à falta/insuficiência de fundamentação, a nulidade da sentença, conforme ao art. 379.º, n.º 1, alínea a), do CPP, mas já não relativamente ao despacho, que, nessa circunstância, será irregular, como decorre do art. 118.º, n.ºs 1 e 2, do CPP.

De qualquer modo, a fundamentação desses actos insere-se em exigência do moderno processo penal, com dupla finalidade: extraprocessualmente, constituir condição de legitimação externa da decisão, pela possibilidade que permite de verificação dos pressupostos, critérios, juízos de racionalidade e de valor e motivos que a determinaram; intraprocessualmente, realizar o objectivo de reapreciação da decisão por via do sistema de recursos.

Conforme Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, Editorial Verbo, 1993, vol. II, págs. 16/17, A fundamentação dos actos tem finalidades várias. Permite o controlo da legalidade do acto, por uma parte, e serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correcção e justiça, por outra parte, mas é ainda um importante meio para obrigar a autoridade decidente a ponderar os motivos de facto e de direito da sua decisão, actuando por isso como meio de autocontrolo.

Concretiza o desiderato constitucional consagrado naquele art. 205.º, em sintonia e como parte integrante do conceito de Estado de direito democrático e da legitimação da decisão judicial e da garantia do direito ao recurso, por respeito às garantias de defesa do condenado (art. 32.º, n.º 1, da CRP) e de acesso à tutela jurisdicional efectiva (art. 20.º, n.º 4, da CRP).

Não, porém, no sentido de que tenha de revestir conteúdo para além daquele que cumpra, afinal, as finalidades em presença, o mesmo é dizer, que haja de consubstanciar, em qualquer caso, desenvolvida argumentação quanto ao decidido, desde que a fundamentação se apresente clara e inteligível em razão do objecto em análise.

A concreta densificação da fundamentação deverá, sempre, ser procurada, no caso, em razão da necessidade de se cumprirem as finalidades subjacentes, nada obstando a que, como sucede com o despacho recorrido, apele para os termos da promoção que o antecedeu, se esta, por suficientemente explícita, for de acatar.

Entende-se que a situação vertente se compadece com sucinta fundamentação, atento o preciso objecto em apreço, cingindo-se à questão da realização de um novo cúmulo de penas que incluísse a reportada ao aludido processo n.º ../14.7TACTX.

Suportou-se, no caso, na data da prática dos factos pelos quais o arguido veio a ser condenado no âmbito daquele processo, sendo certo que, para o efeito, nos termos legais, esse aspecto constitui parâmetro para a realização, ou não, de cúmulo, donde, apesar da ausência de indicação de disposição aplicável, se afigura inteligível, tanto mais considerando o requerimento que foi formulado pelo aqui recorrente, transcrito na resposta do Ministério Público, dando relevo a que naquele processo foi condenado em 1 (um) ano de prisão, por acórdão de 5.04.2017, do tribunal da Relação de Lisboa e no processo 232/11.6GDCTX - Tribunal Judicial de Santarém, foi condenado em cúmulo jurídico na pena de 11 (onze) anos e 3 (três) meses de prisão, por acórdão de 13.07.2017, do Supremo Tribunal de Justiça

Transparece, pois, tal como o recorrente quis sublinhar, através do seu requerimento, que a data da prática dos factos se constitui como base de fundamentação para o requerido, pelo que se aceita que o motivo explicitado pelo despacho recorrido seja suficiente para a integrar, uma vez que focou o que, na situação, era importante que aquele conhecesse, como, aliás, se veio a comprovar mediante o que aduziu em sede de recurso.

O despacho não padece de irregularidade.

Acresce que, mesmo que assim se não entendesse, a irregularidade sempre estaria já sanada, atendendo a que o despacho foi notificado ao recorrente, conforme este refere em 25.09.2018 e, assim, sem que no prazo a que alude o art. 123.º, n.º 1, do CPP, tivesse sido suscitada.

B)- da violação dos arts. 77.º e 78.º do Código Penal:
Discordando da posição por que o despacho recorrido enveredou, o recorrente invoca que a data da prática dos factos no processo n.º --/14.7TACTX é anterior ao trânsito em julgado do processo dos autos, concretizando que aquela data é 08/10/2013 e o trânsito deste em 11/07/2014., sendo que o respectivo cúmulo efectuado pelo STJ, transitou em 11/09/2017.

Conclui que, em razão dessa data ser anterior ao trânsito da condenação nos autos, deveria ter sido agendada audiência para realização do cúmulo jurídico, incluindo a pena daquele processo n.º --/14.7TACTX, por referência ao disposto nos arts. 77.º e 78.º do Código Penal (CP).

Vejamos.
Decorre do acórdão cumulatório respeitante aos autos, tal como explicitado pelo Ministério Público na sua resposta, no que aqui releva, que esse cúmulo englobou as penas aplicadas nos processos nsº ---/11.1PBCTB, no qual foi condenado, por acórdão transitado em julgado em 7.01.2013, por factos praticados em 17.05.2011; ---/11.0S4LSB, no qual foi condenado por acórdão transitado em julgado em 10.09.2013, por factos praticados no decurso do ano de 2011, até ao dia 20.10.2011; ---/11.1GBGDL, por sentença transitada em julgado em 7.10.2013, por factos praticados em 5.09.2011 e nestes autos, por sentença transitada em julgado em 11.07.2014, por factos praticados em 17.10.2011.

Por seu lado, naquele processo n.º --/14.7TACTX, o recorrente foi condenado por sentença transitada em julgado em 17.05.2017, por factos praticados em 08.10.2013.

Ora, tal como acentua Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, Editorial Notícias, 1993, pág. 293, pressuposto da formação da pena do concurso é que os crimes tenham sido praticados antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles, o que é aplicável à situação de conhecimento superveniente do concurso, prevista no art. 78.º do CP, sendo que, aludindo ao seu pressuposto temporal, É necessário (…) que o crime de que haja só agora conhecimento tenha sido praticado antes da condenação anteriormente proferida, de tal forma que esta deveria tê-lo tomado em conta, para o efeito da pena conjunta, se dele tivesse tido conhecimento.

E conforme sumário do acórdão do STJ de 04.03.2004, no proc. n.º 03P3293, in www.dgsi.pt, Resulta dos artº. 77º e 78º do C. Penal que, para a verificação de uma situação de concurso de infracções a punir por uma única pena, se exige, desde logo, que as várias infracções tenham, todas elas, sido cometidas antes de ter transitado em julgado a condenação imposta por qualquer uma delas, isto é, o trânsito em julgado da condenação imposta por uma dada infracção obsta a que, com essa infracções ou com outras cometidas até esse trânsito, se cumulem infracções que venham a ser praticadas em momento posterior a esse mesmo trânsito.

Bem como, segundo o acórdão do STJ de 24.02.2011, no proc. n.º 3/03.3JACBR.S2, in www.dgsi.pt, citando o acórdão do mesmo Tribunal de 21.05.2008, no proc. n.º 911/08-3:

«I - É entendimento uniforme deste STJ o de que os crimes cometidos posteriormente à 1.ª condenação transitada, a qual constitui uma solene advertência que o arguido não respeitou, não estão em relação de concurso, devendo ser punidos de forma autónoma, com cumprimento sucessivo das respectivas penas.
(…)
IV - As regras do concurso, estabelecidas nos arts. 77.º e 78.º do CP, têm como finalidade permitir apenas que em determinado momento se possa conhecer da responsabilidade quanto a factos do passado, no sentido em que, em termos processuais, todos os factos poderiam ter sido, se fossem conhecidos ou tivesse existido contemporaneidade processual, apreciados e avaliados, em conjunto, num dado momento. Na realização desta finalidade, o momento determinante só pode ser, no critério objectivado da lei, referido à primeira condenação que ocorrer, e que seja definitiva.».

Também, de acordo com parte do sumário do acórdão do STJ de 09.06.2010, no proc. n.º 21/03.1JAFUN-B.L1.1, in www.dgsi.pt:

I - Sem discrepância, tem sido entendimento no STJ de que o concurso de infracções não dispensa que as várias infracções tenham sido praticadas antes de ter transitado em julgado a pena imposta por qualquer uma delas, representando o trânsito em julgado de uma condenação penal o limite temporal intransponível no âmbito do concurso de crimes, excluindo-se do âmbito da pena única os crimes praticados posteriormente; o trânsito em julgado de uma dada condenação obsta a que se fixe uma pena unitária que englobando as cometidas até essa data se cumulem infracções praticadas depois deste trânsito.

II - O limite determinante e intransponível da consideração da pluralidade de crimes para o efeito de aplicação de uma pena de concurso é o trânsito em julgado da condenação que primeiramente teve lugar por qualquer crime praticado anteriormente; no caso de conhecimento superveniente de infracções aplicam-se as mesmas regras, devendo a decisão que condene por um crime anterior ser considerada como se fosse tomada ao tempo do trânsito da primeira, como se, por ficção de contemporaneidade, todos os factos que posteriormente foram conhecidos tivessem sido julgados conjuntamente no momento da decisão primeiramente transitada.
(…)
IV - Orientação diversa, de ponderar todas as penas, sem dicotomizar aquela situação, é a que se acolhe no chamado “cúmulo por arrastamento”, hoje inteiramente rejeitada no STJ (…).

Ainda, conforme acórdão do STJ de 23.06.2010, no proc. n.º 124/05.8GEBNV.L1.S1, in www.dgsi.pt, A lei impede o chamado “cúmulo por arrastamento”, ou seja, a acumulação de todas as penas, quando existe uma “pena-charneira” entre dois concursos de penas. Na verdade, não só seria absurdo que a prática de mais um crime servisse de expediente para a fusão num único concurso de um conjunto de penas que, não fora essa nova condenação, deveriam ser punidas em termos de sucessão, como o art. 77.º, n.º 1, do CP, claramente determina a impossibilidade de proceder a um único cúmulo, já que, e esta é a razão de ser da regra, o trânsito da condenação deve servir como “solene advertência” para o condenado não cometer novos crimes, não podendo consequentemente o condenado beneficiar da violação dessa advertência.

Por mais recentes, citam-se, em parte, os sumários seguintes, in www.dgsi.pt:

- do acórdão do STJ de 12.07.2012, no proc. n.º 76/06.7JBLSB.S1 (relator, Raul Borges):

«V - Estamos perante uma pluralidade de crimes praticados pelo recorrente, sendo de unificar as penas aplicadas por tais crimes, desde que cometidos antes de transitar a condenação por qualquer deles, pois o trânsito em julgado estabelece a fronteira, o ponto de referência ad quem, até onde se pode formar um conjunto de infracções e em que seja possível unificar as respectivas penas. O momento temporal decisivo para o estabelecimento de relação de concurso (ou a sua exclusão) é o trânsito em julgado de qualquer das decisões, sendo esse o momento em que surge, de modo definitivo e seguro, a solene advertência ao arguido.

VI - A primeira decisão transitada será assim o elemento aglutinador de todos os crimes que estejam em relação de concurso, englobando as respectivas penas em cúmulo, demarcando as fronteiras do círculo de condenações objecto de unificação. A partir desta data, em função dessa condenação transitada, deixam de valer discursos desculpabilizantes das condutas posteriores, pois que o(a) arguido(a) tendo respondido e sido condenado(a) em pena de prisão por decisão passada em julgado, não pode invocar ignorância acerca do funcionamento da justiça penal, e porque lhe foi dirigida uma solene advertência, teria de agir em termos conformes com o direito, «cortando» com as anteriores condutas. Persistindo, se se mostrarem preenchidos os demais requisitos, o(a) arguido(a) poderá inclusive ser considerado(a) reincidente. Esta data marca o fim de um ciclo e o início de um novo período de consideração de relação de concurso para efeito de fixação de pena única.

VII - A partir do trânsito em julgado da primeira decisão condenatória, os crimes cometidos depois dessa data deixam de concorrer com os que os precedem, isto é, já não estão em concurso com os cometidos anteriormente à data do trânsito, havendo a separação nítida de uma primeira fase, em que o agente não é censurado, atempadamente, muitas vezes por deficiência do sistema de justiça, ganhando assim, confiança na possibilidade de outras prevaricações com êxito, sem intersecção da acção do sistema de justiça, de uma outra que se lhe segue, após advertência de condenação transitada em julgado, abrindo-se um ciclo novo, autónomo, em que o figurino não será já o de acumulação, mas de sucessão, em sentido amplo.»;

- do acórdão do STJ de 15.05.2013, no proc. n.º 125/07.1SAGRD.S1 (relator, Armindo Monteiro):

«II - Tem sido pacífico o entendimento do STJ de que o concurso superveniente de infracções não dispensa que as várias infracções tenham sido praticadas antes de ter transitado em julgado a pena imposta por qualquer uma delas, representando o trânsito em julgado uma «barreira excludente» e afastando-se do âmbito da pena única os crimes praticados posteriormente; o trânsito em julgado de uma dada condenação obsta a que se fixe uma pena unitária englobando as cometidas até essa data e se cumulem infracções praticadas depois deste trânsito.

III - Se os crimes conhecidos forem vários, tendo uns ocorrido antes de condenação anterior e outros depois dela, o tribunal proferirá duas penas conjuntas, uma a corrigir a condenação anterior e outra relativa aos factos praticados depois daquela condenação; a ideia de que o tribunal devia proferir uma só pena conjunta, contraria expressamente a lei e não se adequaria ao sistema legal da distinção entre punição do concurso de crimes e da reincidência, dando lugar a cúmulos separados e a pena executada separada e sucessivamente.».

O despacho sob censura não descurou os apontados parâmetros legais para sustentar a ausência de pressuposto para que a pena daquele processo n.º --/14.7TACTX devesse ser cumulada com as incluídas no operado cúmulo, fundado na data em que os factos desse processo foram praticados.

Na verdade, se estes factos reportam a 08.10.2013, são posteriores à data do trânsito da primeira condenação englobada no cúmulo, ou seja, à data de 07.01.2013 referente ao processo n.º ---/11.1PBCTB, motivo por que não se encontram em relação de concurso com os crimes considerados no mesmo cúmulo.

Com efeito, se o momento temporal decisivo para o estabelecimento da relação de concurso ou da sua exclusão é o trânsito em julgado de qualquer das decisões condenatórias, com destaque para aquela que foi primeiramente proferida, pois é esta que delimita o conhecimento superveniente, estabelecendo a fronteira até onde se pode formar a unificação das respectivas penas, isso obsta a que se cumulem com infracções que venham a ser praticadas em momento posterior a esse trânsito.

Assim o tem entendido a doutrina (Paulo Dá Mesquita, in “O Concurso de Penas”, Coimbra Editora, 1997, págs. 41, 45 e 67), bem como a jurisprudência que se tem firmado (Rodrigues da Costa, “O Cúmulo Jurídico Na Doutrina e na Jurisprudência do STJ”, in www.stj.pt/publicações), pelo que não se descortinam razões para diferente posição.

Tanto basta para que a perspectiva do recorrente, afinal apelando para o denominado cúmulo por arrastamento, que não tem apoio legal, não possa aceitar-se.

3. DECISÃO

Em face do exposto, decide-se:
- negar provimento ao recurso interposto pelo arguido e, assim,
- manter o despacho recorrido.

Custas pelo recorrente, com taxa de justiça de 3 UC (arts. 513.º, n.º 1, do CPP e 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais).

Processado e revisto pelo relator.

2.Julho.2019
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(Carlos Jorge Berguete)
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(João Gomes de Sousa)