Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
522/17.4BELLE.E1
Relator: ISABEL DE MATOS PEIXOTO IMAGINÁRIO
Descritores: CAMINHO PÚBLICO
USO COMUNITÁRIO
DOMINIALIDADE
Data do Acordão: 02/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: - são públicos os caminhos que, desde tempos imemoriais, estão no uso direto e imediato do público;
- no entanto, para que um caminho de uso imemorial se possa considerar integrado no domínio público, há de afirmar-se a sua afetação a utilidade pública, ou seja, a sua utilização tendo por objeto a satisfação de interesses coletivos de certo grau e relevância;
- o que não se impõe no caso de passagem ou caminho que não se integra em nenhuma propriedade privada, em que o reconhecimento da dominialidade pública não envolve a compressão de um qualquer direito particular;
- não se excluem outras vias de aquisição da dominialidade, designadamente em decorrência de normativo legal que integre a passagem ou caminho no âmbito do domínio público, ou da afetação à utilidade pública por pessoa coletiva de direito público que os tenha construído, produzido ou deles se apropriado.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Évora


I – As Partes e o Litígio

Recorrente / Autor: Município de Vila Real de Santo António
Recorridos / Réus: AA e esposa BB

Trata-se de uma ação declarativa de condenação no âmbito da qual o A formulou os seguintes pedidos:
a) que o Autor seja declarado como dono e legítimo possuidor de uma faixa de terreno vulgarmente designada por Travessa ..., que é um arruamento público com a largura de 1,35m do lado poente, com cerca de 3,5m numa extensão de 15m e liga os caminhos públicos que fazem a ligação entre o ... e as Estradas Municipais ...36 e ...45;
b) a condenação dos Réus a reconhecerem que tal caminho e consequentemente a Travessa ... assume natureza de utilidade pública, por estar afetado ao uso do público em geral e como tal é propriedade do Autor Município de Vila Real de Santo António;
c) a condenação dos Réus a repor o caminho na sua configuração anterior à construção da referida rede e portão;
d) a condenação dos Réus a absterem-se de praticar quaisquer atos que impeçam a livre circulação de pessoas nesse arruamento;
e) que se ordene o cancelamento do registo efetuado pelos Réus com Ap. de 28/09/2013, na qual foi solicitada a alteração da área do prédio inscrito na matriz sob o artigo ...10 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...80, da freguesia ....
Para tanto e em resumo, alegou que a sul do prédio dos RR existe um caminho público que faz ligação do núcleo habitacional denominado ... com diversas casas, entre as quais a dos RR, e as Estradas Municipais ...45 e ...36, o qual tem uma extensão de 130 metros e serve várias casas e o público em geral, que se desloca das casas e lugares vizinhos para a Estrada ...; que, desde tempos imemoriais, a dita rua (caminho público) serve o público em geral para se deslocar da Estrada ...36 para a Estrada ...45 e vice-versa e para os habitantes das casas desse núcleo que se deslocam por essas estradas; que tal parcela de terreno é dotada de rede de saneamento público, de infraestruturas para abastecimento de água potável para consumo doméstico, luz de iluminação pública e placas de indicação da designação toponímica. Invocando que se trata de caminho público há, pelo menos, mais de 80 anos, sustenta que não podem os Réus construir a vedação que construíram, nem colocar o portão que colocaram, impedindo a livre circulação de pessoas e veículos.
Em sede de contestação, os RR pugnaram pela improcedência da ação, impugnando a factualidade alegada na petição inicial.

II – O Objeto do Recurso
Decorridos os trâmites processuais documentados nos autos, foi proferida sentença julgando a ação totalmente improcedente, absolvendo os RR dos pedidos.

Inconformado, o A apresentou-se a recorrer, pugnando pela revogação da decisão recorrida, a substituir por outra que condene os RR no pedido. As conclusões da alegação do recurso são as seguintes:
«1. Na presente ação, o Autor pretende ver como reconhecido como zona de utilização pública uma faixa de terreno anexa à casa dos Réus com a área de 1,35m de largura do lado Poente e 3,5m do lado Nascente numa extensão de 15m;
2. A razão de solicitar esse reconhecimento resulta da pretensão de apropriação por parte dos Réus dessa faixa de terreno;
3. Dos Autos resultou provado que o prédio dos Réus sofreu ao longo dos anos (a maior parte no ano de 1993), várias alterações no que se refere ao tamanho da área descoberta;
4. Tais alterações foram efetuadas por via de declarações dos próprios Réus perante autoridade fiscal que posteriormente serviram para alteração do registo predial, sem que fosse demonstrada qualquer alteração física do imóvel;
5. No nosso entendimento fez o Tribunal a quo uma errada interpretação e aplicação da Lei nomeadamente dos artigos 7.º e 8.º do Código de Registo Predial e 202.º, n.º 2, do Código Civil face à matéria que foi dada como provada, devendo assim ser alterada a decisão de mérito proferida, nomeadamente que estamos perante um caminho público e não atravessadouro.»
Os Recorridos apresentaram contra-alegações sustentando que o recurso deverá ser julgado improcedente, mantendo-se a decisão recorrida, que não merece qualquer censura.
O Tribunal de 1.ª Instância apreciou a alegação dos Recorridos no sentido da rejeição do recurso por falta de cumprimento dos ónus versados no artigo 640.º do CPC, decidindo ter sido observado tal regime.

As conclusões da alegação do recurso é que definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso.[1] Assim e em face delas, cumpre apreciar se existe fundamento para declarar a parcela de terreno versada nos autos como caminho público.


III – Fundamentos
A – Os factos provados em 1.ª Instância
1. Pela Ap. ... de 31.03.1999, foi registada a aquisição, por compra, a favor dos Réus AA e BB, casados no regime de comunhão de bens adquiridos, do prédio urbano, sito em ..., freguesia ..., concelho ..., composto por edifício térreo, com arrecadação e quintal, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...10 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... com o n.º ...04.
2. Segundo a referida descrição predial, o prédio urbano referido em 1) tinha à data do seu registo, uma área total de 84 m2, sendo 55 m2 de área coberta e 29 m2 de área descoberta.
3. E tinha as seguintes confrontações: de Norte com CC, de Sul e Poente com DD e de Nascente com Rua.
4. Em 2007, foram apresentadas reclamações em nome de EE, sobre a construção de um murete pelo Réu marido, no ..., localidade de ..., freguesia ..., deste concelho, invocando este que a mesma obra estava a ser efetuada em espaço público.
5. Em resposta a uma dessas reclamações apresentadas pelo Sr. EE, foi elaborada, por FF, funcionária do Autor, em 06.05.2008, a seguinte informação: “(…)Em deslocação ao local na passada sexta feira, 2 de maio, para falar com o Sr. EE e para perceber o teor da sua reclamação, constatei que se trata de uma passagem, caminho público de serventia aos Munícipes residentes nesse local, e que por sua vez permite estabelecer a ligação entre a Estrada Municipal ...36 e a estrada Municipal ...45. Parte do caminho foi alcatroado no que diz respeito ao acesso pela EM ...45, onde existem infra-estruturas – caixa de água, terminando a poucos metros da casa do reclamante. Verifica-se também a existência de saneamento básico, no acesso ao mesmo caminho público pela EM ...36.(…)”.
6. Em 27.10.2008, na sequência da construção pelo Réu marido de um murete, foi elaborada por GG, funcionário do Autor, a seguinte informação: “Atenta a configuração do prédio descrita na CRP parece-nos que o murete foi efetivamente construído em terreno propriedade do Reclamado. No entanto, volta-se a frisar que o dito prédio está no encalhe de um caminho público, pelo que será difícil avaliar se parte desse caminho está inserido na área do quintal ou se pelo contrário, caminho e quintal apenas estão separados porque entre eles não existe qualquer muro. Cremos, no entanto, que o murete foi efetivamente construído em propriedade privada e só não obteve a comunicação da obra”.
7. Em 02 de Agosto de 2013, o Réu marido comunicou previamente ao Sr. Presidente da Câmara Municipal ..., que o reenviou à Equipa Multidisciplinar de Gestão Territorial e Urbanística, que iria proceder à delimitação do seu prédio urbano, melhor descrito em 1) a 3), que deu origem ao processo administrativo de obras n.º 4/2013.
8. Sobre essa comunicação foi proferida apreciação técnica, a qual entre outros considerandos, referia o seguinte: “(…) 2 – Atendendo ao facto de que o prédio urbano insere-se em zona agrícola, deverá o requerente apresentar planta de implantação desenhada sobre levantamento topográfico, com indicação da área total da propriedade e limites da propriedade, conforme previsto na alínea a) do n.º 3 do artigo 11.º da Portaria 232/2008 de 11 de março, para que estes serviços técnicos melhor se possam pronunciar sobre a pretensão; 3 – Deverá o serviço de fiscalização municipal efetuar registo fotográfico do prédio, bem como apurar se a vedação pretendida irá eliminar acesso a propriedades vizinhas”.
9. O Réu marido foi notificado do conteúdo desta apreciação técnica conforme ofício n.º ...13, que lhe foi remetido em 12.08.2013.
10. Em 14.08.2013, o serviço de fiscalização procedeu ao registo fotográfico do prédio onde se pretendia levar a efeito a delimitação, bem como da zona envolvente.
11. Que em 19.08.2013, após apreciação pela técnica responsável pelo processo, a mesma proferiu a seguinte apreciação: “Através das fotografias verificou-se que irá ser eliminado o acesso pedonal que dá acesso a um caminho que por sua vez liga à Estrada Municipal ...45”.
12. Em 18.10.2013, o Réu marido apresentou um requerimento junto do Presidente da Câmara Municipal ..., requerendo a junção dos documentos que lhe tinham sido solicitados por esta entidade, nomeadamente, uma planta de implantação desenhada sobre levantamento topográfico e ainda uma certidão permanente do registo predial do prédio urbano referido em 1) a 3), com atualização de áreas.
13. Da análise dessa documentação, o Autor verificou que, em data não concretamente apurada, mas entre 26.07.2013 e 20.09.2013, os Réus procederam a uma atualização da área do prédio urbano referido em 1) a 3), ficando o mesmo com a seguinte descrição: “Edifício térreo, com a área coberta de 56,80 m2, arrecadação com 8,60 m2 e quintal – norte; CC; sul e poente: DD; e nascente: Rua”.
14. Na descrição de áreas, o prédio urbano referido em 1) a 3) passou a ter a área total de 156 m2, sendo a área coberta de 65,40 m2 e descoberta de 90,60 m2, aumentando quer a área coberta, quer a área do quintal face à data do registo aludida em 2).
15. Atendendo ao conflito existente com alguns vizinhos, o Autor solicitou um parecer técnico a uma assessora externa, de nome HH, sobre a caracterização do caminho e terreno em causa, o que foi feito com a data de 14.11.2013.
16. Segundo informação fornecida por esse parecer técnico, o prédio urbano referido em 1), que atualmente se encontra inscrito sob o artigo matricial ...10, anteriormente estava inscrito sob o artigo urbano ...64, sendo o seu registo anterior a 1954, apresentando na sua descrição uma área coberta de 35 m2 e inexistência de área descoberta, com confrontação a Sul e a Poente com Rua.
17. Em março de 1993, o prédio urbano referido em 1) sofreu alterações na sua descrição, tendo sido alterada a sua área e confrontações passando então a ter a área coberta de 55 m2 e descoberta de 29 m2 e confrontando a Norte e Poente com DD.
18. Em 28.04.1993, o então proprietário do prédio urbano referido em 1) alterou novamente as confrontações do mesmo, as quais passaram a ser as seguintes: Norte com servidão pública; Sul com DD; Nascente com Rua e Poente com DD.
19. Em maio de 1993, o então proprietário do prédio urbano referido em 1) requereu novamente a alteração das confrontações do mesmo, passando a ser as seguintes: Norte com CC; Sul com DD; Nascente com Rua; Poente com DD.
20. Retira-se, também, das conclusões do referido parecer técnico que: “A análise da documentação dos serviços de finanças permite constatar que parece ter havido, por parte do proprietário particular do prédio artigo matricial ...10, apropriação ou apossamento, dos terrenos junto à habitação. Parte daqueles terrenos provavelmente constituíam o caminho público a Sul que faz a ligação entre a Estrada de ... e a Estrada Municipal ...45. (…). Embora a área do caminho referido nos pontos 7 e 8, seja reclamada pelo proprietário do prédio urbano artigo matricial ...10, considero que o facto do prédio de sua propriedade apresentar atualmente uma área maior e confrontação a Sul diferente de caminho público, não estará provada que tal área coincida com a área do caminho a Sul que faz a ligação entre a Estrada de ... e a Estrada Municipal ...45 e a posse da mesma. Considero que perante as informações existentes poder-se-á questionar a legitimidade de propriedade de tal área de caminho por parte do proprietário AA. Considero, ainda, que aquela área, provada a sua natureza primordial de “caminho público”, deverá integrar o Domínio Público Municipal”.
21. Conclui a assessora responsável por aquele Parecer Técnico que “dada a complexidade da situação descrita, sugere-se ainda que a mesma seja também analisada pelo gabinete jurídico de forma a indicar qual o procedimento a tomar relativamente às questões levantadas”.
22. Em Apreciação Técnica e Jurídica solicitada pelo Autor realizada em 04.04.2014 foi considerado que “tendo em conta a documentação apresentada pelo requerente, não vemos inconveniente na colocação da vedação pretendida, desde que se dê cumprimento às questões apontadas na Apreciação Técnica e desde que fique salvaguardada a passagem pedonal existente”.
23. Por despacho datado de 07.04.2014, do Sr. Vereador II, no uso de competência delegada por despacho do Sr. Presidente da Câmara Municipal de 18.10.2013, foi deferido o pedido do Réu marido para delimitar o prédio urbano descrito em 1), com a condição de que ficasse “…salvaguardada a passagem pedonal existente”.
24. Desse despacho, foi o Réu marido notificado por oficio com o n.º ...07, de 23.04.2014.
25. Por oficio com o n.º ...24, datado de 27.06.2014, remetido pelo Chefe da Divisão de Urbanismo e Espaço Público do Autor ao Réu marido e por este recebido, foi este notificado do seguinte: “…conforme despacho datado de 25.06.2014 do Sr. Vereador JJ, no uso de competência delegada, por despacho do Sr. Presidente da Câmara Municipal datado de 18.10.2013, para informar estes serviços, de que forma vai garantir a servidão de passagem, uma vez que pretende proceder à colocação dos referidos portões, tal como vêm indicados na planta apresentada nestes serviços”.
26. Em Parecer Jurídico solicitado pelo Autor realizado em 17.07.2014, foi concluído que “…uma vez garantida a servidão pedonal, não vemos inconveniente no deferimento do pedido, com a ressalva que nunca poderá colocar quaisquer artefactos nas portinhas que impeçam a referida passagem, sob pena de ser ordenada a respetiva retirada”.
27. Por despacho datado de 21.07.2014, do Sr. Vereador II, no uso de competência delegada por despacho do Sr. Presidente da Câmara Municipal de 18.10.2013, foi deferido o pedido do Réu marido para colocação da vedação no prédio urbano referido em 1), com a condição de que ficasse “…garantida a servidão pedonal existente”.
28. Desse despacho, foi o Réu marido notificado por oficio com o n.º ...44, de 23.07.2014, por correio registado com aviso de receção.
29. Na sequência, os Réus colocaram uma vedação e um portão delimitando toda a área descoberta do prédio referido em 1) constante do registo predial, conforme planta/desenho 01, junto com o relatório pericial.
30. Entre 31.08.2016 e 10.06.2017, foram apresentadas junto da então Presidente da Câmara Municipal ... reclamações em nome de EE e KK, sobre a construção da vedação e do portão por parte dos Réus.
31. Mediante oficio com o n.º ...16, datado de 26.04.2017, o Sr. Vereador do Pelouro do Urbanismo do Autor, notificou o Réu marido da “(…) intenção de declarar a caducidade do processo, conforme Informação do Núcleo de Fiscalização do Território que se anexa”.
32. Mediante oficio com o n.º de saída ...78, datado de 20.07.2017, o Sr. Vereador do Pelouro do Urbanismo do Autor, notificou o Réu marido de que “(…) Subsistindo dúvidas quanto à dominialidade do caminho de ligação da EM ...45 com a EM ...36, que por ora se encontra delimitado com vedação, no pressuposto de integrar a propriedade de V. Exa, fica pelo presente notificado no sentido de, pelo prazo máximo de 10 dias a contar da receção deste, vir esclarecer as alterações introduzidas na descrição do prédio (designadamente alteração das áreas) sob pena de, fundamentado em fundado receio de esbulho de domínio público, ser interposta a correspondente ação judicial e de responsabilidade criminal (…)”.
33. Por atestado datado de 25.07.2017, LL, Presidente da Junta de Freguesia ..., em funções e no uso da competência que lhe foi delegada pela Junta de Freguesia em reunião de 17.10.2023, atestou que o Réu marido, AA, e a sua esposa, são legítimos proprietários do prédio urbano referido em 1), e “mais atestou que as áreas indicadas no registo da Conservatória em relação ao mesmo, são as que efetivamente foram adquiridas aquando da compra aos antigos possuidores, apenas existindo o dever de deixar passar livremente no sentido Nascente – Poente os moradores que necessitem, bem como todos os outros que utilizem aquela passagem”.
34. Desde há pelo menos 60 anos que os habitantes do denominado ..., onde se situam diversas casas, entre as quais a dos Réus, para acederem às mesmas, pretendendo fazê-lo acedendo do lado oposto onde esta se situa e mais recentemente para estacionarem os seus veículos automóveis e ocasionalmente alguns habitantes daquela localidade que pretendam encurtar distâncias, atravessam a pé e de bicicleta/motorizada, por uma faixa de terreno que vai desde a Estrada Municipal n.º ...45 até à Estrada Municipal n.º ...36 (conhecida como Estrada ...) e vice versa, pelo tracejado definido a vermelho no desenho/planta 4 junto com o Parecer Técnico referido em 15) a fls. 86 dos autos, cujo conteúdo se dá por reproduzido, o qual atravessa na zona cimentada em frente da casa dos Réus.
35. Os Réus desde 1993 e antes disso, os anteriores proprietários do prédio urbano referido em 1), sempre toleraram a passagem pela zona cimentada em frente da sua casa, tanto dos restantes moradores daquele ... que necessitavam aceder às suas casas, assim como de outros habitantes daquela localidade que pretendessem encurtar ou atalhar distâncias entre a Estrada Municipal n.º ...45 até à Estrada Municipal n.º ...36.
36. Na área descoberta registada do prédio dos Réus referido em 1), a passagem descreve uma curva apertada, em forma de “joelho”, contornando a totalidade das fachadas a Sul e Poente do mesmo.
37. A Nascente do prédio urbano dos Réus referido em 1) e a cerca de 55,18 metros da sua área descoberta registada, situa-se a Estrada Municipal ...45, conforme desenho/planta junta aos autos a fls. 154, cujo conteúdo se dá por reproduzido.
38. Em data não concretamente apurada, mas certamente há mais de vinte anos, o Autor alcatroou parte da faixa de terreno referida em 34) que entroncava com a EM ...45 e que corria de Nascente para Poente, numa extensão de cerca 28,99 metros, até ao ponto em que essa faixa de terreno atinge o primeiro edifício implantado nessa zona, onde a plataforma da via estreita de cerca de 3,17 metros (sua largura média) para cerca de 2,8 metros, conforme desenho/planta junta aos autos a fls. 154.
39. Atingindo esse primeiro edifício, o percurso da faixa de terreno descrita em 34) passa a ser em brita e prolonga-se por uma extensão de mais cerca de 23,00 metros, no sentido Nascente/Poente, estreitando para cerca de 1,93 metros, conforme desenho/planta junta aos autos a fls. 154.
40. Junto ao limite da área descoberta registada do prédio urbano referido em 1), a faixa de terreno descrita em 34) toma a direção Sul/Norte, formando um pequeno largo de forma retangular, com as dimensões de cerca d 12,21 metros x 5,09 metros, servindo de acesso aos prédios urbanos que com ela confina, conforme desenho/planta junta aos autos a fls. 154.
41. O trajeto da faixa de terreno descrito em 38), 39) e 40) não está dotado de valetas, de bermas ou passeios.
42. Mas foi dotada pelo Autor de rede de saneamento público, de infraestruturas para o abastecimento de água potável para o consumo doméstico, de contadores e de iluminação pública (um candeeiro chumbado num dos edifícios confinantes).
43. A Poente do limite da área descoberta registada do prédio urbano descrito em 1) a faixa de terreno da passagem segue o seu percurso no sentido de nascente para poente, com um cumprimento de cerca de 54,76 metros de largura irregular, variando entre 1,44 metros junto àquele limite, atingindo a largura de cerca de 1,79 metros a meio do percurso e de cerca de 2,53 metros de largura quando desemboca na EM ...36.
44. O percurso da faixa de terreno descrito em 43) encontra-se me terra batida, exceto na sua extremidade mais a poente, onde tem calçada portuguesa numa extensão de cerca de 2,0 metros.
45. O trajeto da faixa de terreno descrito em 43) não está dotado de valetas, de bermas ou de passeios, de rede de saneamento público, de infraestruturas para o abastecimento de água potável para o consumo doméstico ou de iluminação pública.
46. Em 2012, o Autor colocou placas com indicação de designação toponímica de Travessa ... no inicio de cada uma das extremas da passagem descrita em 34).
47. Em data não concretamente apurada, o Autor colocou à entrada da passagem descrita em 34) que se inicia junto à EM ...45, um sinal de trânsito informativo H4, de via pública sem saída.
48. A área descoberta registada do prédio urbano dos Réus referido em 1), foi por estes objeto de obras de melhoramentos, como seja a colocação de pavimento em cimento, de floreiras, de três luminárias e de uma fossa séptica.
49. À data em que os Réus adquiriram o prédio urbano referido em 1), existia na área descoberta registada do mesmo uma ramada, uma pocilga, galinheiros, uma nitreira, uma fossa séptica entretanto beneficiada, um poial usado para descanso dos moradores do prédio no seu exterior, um degrau de acesso à habitação, um tanque de lavar e uns arrumos em tijolo e madeira cobertos com chapas de zinco, já em ruínas. 50. Alguns meses depois de adquirirem o prédio urbano referido em 1), os Réus demoliram e retiraram as construções descritas em 49), com exceção da arrecadação que foi restaurada, o poial, o degrau de acesso à casa e a fossa séptica, que foi melhorada.
51. Desde que o adquiriram, que os Réus e antes deles, os seus antecessores, utilizam, limpam, cuidam, fazem a manutenção e obras de melhoramento do prédio urbano referido em 1), quer da sua área coberta, como da área descoberta registada, de forma ininterrupta.
52. A cerca de 200 metros mais a Norte do prédio urbano referido em 1) existe um caminho público que liga a EM ...45 e a EM ...36, que obriga a um percurso mais longo para quem pretende aceder entre estas vias, por comparação à distancia da passagem aludida em 34).
53. A passagem referida em 34) não consta do cadastro das vias municipais do concelho ....

B – As questões do Recurso
Questões prévias
i) Atento o despacho proferido em 1.ª Instância em sede de apreciação do requerimento de interposição do recurso, em consonância com o regime inserto no artigo 641.º, n.º 2, do CPC cumpre precisar que, ainda que não vinculando o Tribunal Superior (cfr. artigo 641.º, n.º 5, do CPC), tal requerimento apenas pode ser indeferido quando:
a) Se entenda que a decisão não admite recurso, que este foi interposto fora de prazo ou que o requerente não tem as condições necessárias para recorrer;
b) Não contenha ou junte a alegação do recorrente ou quando esta não tenha conclusões.
Donde, não cabe ao Tribunal de 1.ª Instância apreciar a existência de fundamento para rejeição do recurso por incumprimento dos ónus consagrados no artigo 640.º do CPC.

ii) Da motivação do recurso alcança-se que o Recorrente coloca em causa a decisão relativa à matéria de facto.
Contudo, como nas conclusões da alegação do recurso, que definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso, nenhuma referência é feita à pretensão de impugnar a decisão relativa à matéria de facto, não pode apreciar-se tal questão.
O Ac. do STJ 27/4/2023[2] salienta que “a não indicação nas conclusões das alegações do recurso de apelação dos concretos pontos da matéria de facto que se pretende impugnar permite a rejeição imediata do recurso nessa parte.”
No caso em apreço nem sequer se alude, nas conclusões, à pretensão de impugnar a decisão da matéria de facto. Por isso, não se trata da rejeição do recurso por falta de cumprimento dos ónus consagrados no artigo 640.º do CPC, pois antes se constata que o objeto do recurso não contempla a impugnação da decisão relativa à matéria de facto.

Assim, cumpre apreciar se existe fundamento para declarar a parcela de terreno versada nos autos como caminho público.
Seguindo de perto o Ac. TRC de 07/04/2014[3], começamos por salientar que “A questão da dominialidade de determinados acessos gerou acesa controvérsia, apenas serenada (mas não totalmente resolvida) com a prolação do Assento do STJ de 19 de Abril de 1989, publicado no DR I-A, de 2 de Junho de 1989, hoje com valor de acórdão uniformizador de jurisprudência, que fixou a seguinte doutrina: “são públicos os caminhos que, desde tempos imemoriais, estão no uso direto e imediato do público”. Consagrava-se assim, dentre as correntes em confronto, aquela que dispensava a exigência de que, a par do uso e cumulativamente com ele, os ditos caminhos fossem administrados pelo Estado ou outra pessoa de direito público. Ali se discorreu, em suporte da tese que fez vencimento: “(…) entende-se que, quando a dominialidade de certas coisas não está definida na lei, como sucede com as estradas municipais e os caminhos, essas coisas serão públicas se estiverem afetadas de forma direta e imediata ao fim de utilidade pública que lhes está inerente. É suficiente para que uma coisa seja pública o seu uso direto e imediato pelo público, não sendo necessária a sua apropriação, produção, administração ou jurisdição por pessoa coletiva de direito público.
Assim, um caminho é público desde que seja utilizado livremente por todas as pessoas, sendo irrelevante a qualidade da pessoa que o construiu e prove a sua manutenção.
(…) esta orientação é a que melhor se adapta às realidades da vida, visto ser com frequência impossível encontrar registos ou documentos comprovativos da construção, aquisição ou mesmo administração e conservação dos caminhos, e assim se obstar a apropriação de coisas públicas por particulares, com sobreposição do interesse público por interesses privados. Basta, portanto, para a qualificação de um caminho como caminho público o facto de certa faixa de terreno estar afeta ao trânsito de pessoas sem discriminação.
(…) suficiente para um caminho ser considerado público é o uso direto e imediato pelo público, não se tornando necessário que ele tenha sido apropriado ou produzido por pessoa coletiva de direito público e que esta haja praticado atos de administração, jurisdição ou conservação.”
Resultou, assim, afastada a orientação segundo a qual só devem considerar-se caminhos públicos aqueles que, além de se encontrarem no uso direto e imediato do público, tenham sido administrados pelo Estado ou outra pessoa de direito público e se encontrem sob a sua jurisdição.
Não obstante tal ampla formulação, ao pronunciar-se sobre a questão de saber como qualificar um caminho que, desde “tempos não alcançados pela memória das pessoas vivas, direta ou indiretamente, por tradição oral dos seus antecessores[4] é utilizado pelo público em geral, em regra para atalhar ou encurtar determinados trajetos ou distâncias – se caminho público, logo, integrado no domínio público, se atravessadouro, mantendo a sua natureza privada – o STJ foi defendendo, de forma persistente, uma interpretação restritiva do dito acórdão uniformizador, exigindo, para que um caminho de uso imemorial se possa considerar integrado no domínio público, a sua afetação a utilidade pública, ou seja, que a sua utilização tenha por objeto a satisfação de interesses coletivos de certo grau e relevância. E “nem outra coisa se compreenderia: é que o uso público relevante para o efeito é precisamente o que pressupõe uma finalidade comum desse uso. Isto é, se cada pessoa, isoladamente considerada, utiliza o caminho ou terreno apenas com vista a um fim exclusivamente pessoal ou egoístico, distinto dos demais utilizadores do mesmo caminho ou terreno, para satisfação apenas do seu próprio interesse sem atenção aos interesses dos demais, não é a soma de todas as utilizações e finalidades pessoais que faz surgir o interesse público necessário para integrar aquele uso público relevante. Por muitas que sejam as pessoas que utilizem um determinado caminho ou terreno, só se poderá sustentar a relevância desse uso por todos para conduzir à classificação de caminho ou terreno público se o fim visado pela utilização for comum à generalidade dos respetivos utilizadores, por o destino dessa utilização ser a satisfação da utilidade pública e não de uma soma de utilidades individuais.”[5]
A relevância do interesse coletivo do terreno deve ser apreciada casuisticamente no cotejo com as circunstâncias e o modus vivendi da localidade onde ele se situa. Assim, há que ter em conta, em primeira linha, por um lado, o número normal de utilizadores, que tem de ser uma generalidade de pessoas (v.g. uma percentagem elevada dos membros de uma povoação) e, por outro lado, a importância que o fim visado tem para estes à luz dos seus costumes coletivos e das suas tradições, e não de opiniões externas. Distinguindo-se tal utilização daqueloutra que se consubstancia como uma mera soma de utilidades individuais e que não tem força bastante para fazer emergir tal natureza pública.[6]
Posteriormente, por acórdão proferido a 28/05/2013[7], o STJ, secundando a jurisprudência plasmada no Ac. TRP de 19/12/2012[8], ressalvou que essa interpretação restritiva do Assento de 19/04/1989 pressupõe que os caminhos nele contemplados atravessam propriedades privadas pelo que, “no caso de passagem ou caminho, que não se integra em nenhuma propriedade privada, existente num lugar e que desde tempos imemoriais liga duas ruas desse lugar, a prova do seu uso imemorial pela população basta para se considerar tal caminho como caminho público, não se impondo nenhuma interpretação restritiva do assento.”
Jurisprudência que, desde então, vem sendo acolhida nos Tribunais Superiores.[9]
Ainda assim, segundo vem exarado no Ac. TRC de 07/03/2017[10] em decorrência dos ensinamentos de Marcello Caetano ali citados, “não pode é interpretar-se o Assento no sentido de excluir a dominialidade de um caminho que, tendo sido construído ou legitimamente apropriado, em data recente (portanto estando ausente o requisito da imemorialidade) por pessoa coletiva de direito público (por exemplo, pelo Município ou Junta de Freguesia), foi por ela afetado ao uso público, servindo o interesse coletivo que lhe é inerente.
(…)
A atribuição de carácter dominial depende de vários requisitos, designadamente (e é o que nos interessa) da afetação da coisa à utilidade pública, traduzida esta na aptidão da coisa para satisfazer necessidades coletivas. Tal afetação “pode resultar de um ato administrativo (decreto ou ordem que determina a abertura, utilização ou inauguração) ou traduzir-se num mero facto (a inauguração) ou mesmo numa prática consentida pela Administração em termos de manifestar a intenção de consagração ao uso público. Quer dizer que não há afetação, propriamente dita, mesmo tácita, senão onde se exerça a jurisdição administrativa e, portanto, se possa provar o destino ao uso público com o consentimento do poder.”
Portanto, “A afetação é o ato ou prática que consagra a coisa à produção efetiva de utilidade pública.”
Vê-se, assim, que não pode interpretar-se o Assento de 1989 no sentido de que apenas consente, como única via para caracterizar um caminho como público, o seu uso direto e imediato do público desde tempos imemoriais.
A suficiência de uso imemorial a que se refere o Assento de modo algum exclui outras vias de aquisição da dominialidade, como acontecerá quando a lei diretamente integra determinada coisa na categoria do domínio público, ou quando uma pessoa coletiva de direito público, depois de a construir, produzir ou dela se apropriar, a afeta à utilidade pública.
O uso direto e imediato pelo público é apenas um índice que evidencia a publicidade da coisa, no caso do caminho, e quando imemorial, faz presumir (presunção ilidível) a sua dominialidade, e por isso, a sua pertença a uma pessoa de direito público, uma vez que não se concebe sequer, a dominialidade em relação a coisas pertencentes a particulares.”
No caso em apreço, trata-se de parcela de terreno que atravessa o prédio identificado no n.º 1 dos factos provados, conforme versado no n.º 34 dos factos provados e salientado no doc. de fls. 86. Envolve a compressão do direito de propriedade dos Recorridos sobre o referido prédio.
Note-se que, embora tenha sido alegado e demonstrado que os Recorridos promoveram, no registo predial, a alteração das áreas e das confrontações do prédio, não estão demonstrados factos dos quais resulte que o prédio dos AA não tem a configuração que decorre do teor do n.º 1 dos factos provados conjugado com o doc. de fls. 86, acolhido integralmente no n.º 34 dos factos provados. Antes está provado que os Réus, desde 1993 e, antes disso, os anteriores proprietários do prédio urbano, sempre toleraram a passagem pela zona cimentada em frente da sua casa, tanto dos restantes moradores daquele ... que necessitavam aceder às suas casas, assim como de outros habitantes daquela localidade que pretendessem encurtar ou atalhar distâncias (n.º 35), e que, desde que o adquiriram, que os Réus e antes deles, os seus antecessores, utilizam, limpam, cuidam, fazem a manutenção e obras de melhoramento do referido prédio urbano, quer da sua área coberta, como da área descoberta registada, de forma ininterrupta (n.º 51).
De todo o modo, constata-se que nem sequer foi peticionado se declarasse ter o prédio dos Autores configuração diversa daquela, de modo a sustentar o pedido formulado de cancelamento do registo de alterações da área do prédio.
Retomando, então, o que decorre do Ac. do STJ de 19/04/1989, considerando a interpretação restritiva que pressupõe o atravessamento de propriedade alheia, cumpre apreciar se a parcela que o Recorrente designou, em 2012, por Travessa ..., constitui caminho público, o que depende da circunstância de, desde tempos imemoriais, estar no uso direto e imediato do público, afirmada que seja a sua afetação a utilidade pública, ou seja, a utilização que tenha por objeto a satisfação de interesses coletivos de certo grau e relevância.
No que concerne à imemorialidade, tem vindo a entender-se estar em causa “período de tempo cujo início é tão antigo que as pessoas já não o recordam, por ter desaparecido da memória dos homens. Ou seja, o que conta para a classificação do tempo como imemorial é o facto de, em consequência da sua antiguidade, ter sido perdida pelos homens a recordação da sua origem, a ponto de os vivos não conseguirem já, pelo recurso à sua própria memória ou aos factos que lhes foram sendo narrados por antecessores, ter conhecimento do momento ou período em que determinados costumes, tradições, ou práticas repetidas ou continuadas, tiveram início.”[11] “O cariz imemorial do uso do caminho público corresponde a uma permanência uniforme que se prolongou por um espaço de tempo que excede a memória de todos os homens.”[12]
Resultou provado que a utilização da faixa de terreno ocorre desde há, pelo menos, 60 anos. O que não traduz a utilização desde tempos imemoriais, até onde já não alcança a memória das pessoas vivas.
Relativamente à questão atinente à afetação a utilidade pública afigura-se não ter resultado demonstrada a utilização tendo por objeto a satisfação de interesses coletivos de certo grau e relevância. Atente-se que:
- a utilização da faixa de terreno cimentada em frente da casa dos RR, a pé e de bicicleta e motorizada, é feita ocasionalmente por habitantes da localidade que pretendam encurtar distâncias entre duas estradas municipais;
- a utilização daquela faixa de terreno é utilizada por habitantes do ... onde se situam casas para aceder às mesmas, podendo fazê-lo do lado aposto, e recentemente para estacionarem os seus veículos automóveis.
Acompanhamos, assim, o que foi exarado em 1.ª Instância: “ao decidirem utilizar a área cimentada em frente à casa dos Réus, os habitantes daquele ... e alguns dos moradores da localidade de ... fazem-no apenas para satisfação de utilidades e interesses individuais e particulares, o que aproxima a situação dos autos a um simples atravessadouro.
Efetivamente, estamos perante a utilização de uma passagem por um pequeno e restrito número de pessoas e não de uma generalidade de pessoas ou membros da povoação, que como vimos não satisfazem qualquer interesse coletivo de significativo grau ou relevância. E mesmo no passado assim era, já que da prova produzida resultou que essencialmente as pessoas daquele ... e contados moradores da localidade de ... que pretendiam encurtar distancias entre a EM ...45 e a EM ...36 é que utilizavam aquela passagem, mesmo que se tratasse de um número mais elevado que nos dias de hoje.
Inexiste, pois, naquela passagem a essencial afetação à utilidade pública.”
Quanto aos atos de posse que o Recorrente invoca ter praticado sobre a faixa de terreno, os mesmos assumirão relevância desde que consubstanciem a apropriação, pelo Recorrente, da faixa de terreno com a simultânea afetação à utilidade pública, nos moldes expostos.
Ora, já concluímos não estar aquela faixa de terreno adstrita à utilização pública para satisfação de interesses coletivos de certo grau e relevância.
Acresce que se apurou que:
- o Município, há mais de 20 anos, alcatroou 28,99m da faixa de terreno desde a EM ...45 até ao ponto em que essa faixa de terreno atinge o primeiro edifício implantado nessa zona, onde a plataforma da via estreita de cerca de 3,17 metros (sua largura média) para cerca de 2,8 metros – cfr. fls. 154;
- o percurso passa a ser em brita e prolonga-se por uma extensão de mais cerca de 23,00 metros – cfr. fls. 154;
- junto ao limite da área descoberta registada do prédio dos Recorridos, a faixa de terreno toma a direção Sul/Norte, formando um pequeno largo de forma retangular, com as dimensões de cerca de 12,21 metros x 5,09 metros, servindo de acesso aos prédios urbanos que com ela confina – cfr. fls. 154;
- os troços da faixa de terreno acima referidos não estão dotados de valetas, de bermas ou passeios, mas antes de rede de saneamento público, de infraestruturas para o abastecimento de água potável para o consumo doméstico, de contadores e de iluminação pública (um candeeiro chumbado num dos edifícios confinantes);
- a poente do limite da área descoberta registada do prédio dos Recorridos, a faixa de terreno da passagem segue o seu percurso no sentido de nascente para poente, com cerca de 54,76m de cumprimento, desembocando na EM ...36;
- trata-se de percurso em terra batida, exceto na sua extremidade mais a poente, onde tem calçada portuguesa numa extensão de cerca de 2m, que não está dotado de valetas, bermas ou passeios, rede de saneamento público, infraestruturas para o abastecimento de água potável para o consumo doméstico ou de iluminação pública;
- em 2012, o Autor colocou placas com indicação de designação toponímica de Travessa ... no início de cada uma das extremas da passagem;
- em data não concretamente apurada, o Autor colocou à entrada da passagem descrita em 34) que se inicia junto à EM ...45, um sinal de trânsito informativo H4, de via pública sem saída.
Decorre do exposto que, relativamente ao troço de 15m que o Recorrente pretende seja declarado pertencer-lhe (cfr. alínea a) do pedido formulado), à parte do percurso que atravessa o prédio dos Recorridos (cfr. fls. 86 e 154), não foi demonstrado ter havido intervenção pelo Município. Na verdade, afirmada está tal intervenção na faixa de terreno que se inicia na estrema a nascente do prédio dos Recorridos e segue em direção à EM ...45; afirmado está que tal intervenção não teve lugar na faixa de terreno que se inicia na estrema poente do prédio dos Recorridos e segue em direção à EM ...36; nada está afirmado relativamente ao troço de 15m que atravessa o prédio dos Recorridos.
Por outro lado, em nada releva a colocação das placas com indicação de designação toponímica, compaginada até com a aposição de sinal indicativo de se tratar de via pública sem saída.
Nenhuma censura merece, pois, a sentença proferida em 1.ª Instância ao consignar não terem sido demonstrados atos de dominialidade sobre o troço objeto de litígio nos presentes autos.

Improcedem as conclusões da alegação do presente recurso, inexistindo fundamento para revogação da decisão recorrida.

As custas recaem sobre o Recorrente – artigo 527.º, n.º 1, do CPC.

Sumário: (…)

IV – DECISÃO
Nestes termos, decide-se pela total improcedência do recurso, em consequência do que se confirma a decisão recorrida.
Custas pelo Recorrente.

*

Évora, 20 de fevereiro de 2024
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
José Manuel Tomé de Carvalho
Mário João Canelas Brás
__________________________________________________
[1] Cfr. artigos 637.º, n.º 2 e 639.º, n.º 1, do CPC.
[2] Relatado por João Cura Mariano.
[3] Relatado por Maria Domingas Simões.
[4] Ac. STJ de 28/05/2009 (Maria dos Prazeres Beleza).
[5] Ac. STJ de 13/01/2004 (Silva Salazar).
[6] Acs. STJ de 13/03/2008 e de 18/09/2014.
[7] Relatado por Salazar Casanova.
[8] Relatado por Francisco Matos, com o seguinte sumário:
I – Na interpretação restritiva do Assento de 19/4/1989, publicado no DR, I Série, de 2/6/1989, hoje com valor de acórdão de uniformização de jurisprudência, serão púbicos os caminhos que, desde tempos imemoriais, estão no uso direto e imediato do público e tenham por objetivo a satisfação de interesses coletivos de certo grau de relevância. II – Se o reconhecimento da dominialidade pública de um caminho não envolve a compressão de um qualquer direito particular, não se justifica esta restrita interpretação do Assento.
[9] Cfr., entre outros, Ac. STJ de 18/10/2018 (Hélder Almeida).
[10] Relatado por Pires Robalo.
[11] Ac. STJ de 18/02/2003 (Silva Salazar).
[12] Ac. STJ de 14/05/2019 (Fátima Gomes).