Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
111/22.1T8VVC-B.E1
Relator: CRISTINA DÁ MESQUITA
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RENDIMENTO DISPONÍVEL
CÁLCULO
Data do Acordão: 02/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: O cálculo do rendimento disponível para efeitos de objeto de cessão no âmbito do incidente de exoneração do passivo restante deve ser feito por referência aos rendimentos auferidos pelo insolvente em cada mês e não por referência ao rendimento global anual.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 111/22.1T8VVC-B.E1
(2.ª Secção)

Relatora: Cristina Dá Mesquita

Adjuntas: Ana Margarida Pinheiro Leite

Isabel Peixoto Imaginário

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora:

I. RELATÓRIO

I.1.

(…), insolvente, interpôs recurso do despacho proferido pelo Juízo de Competência Genérica de Vila Viçosa, do Tribunal Judicial da Comarca de Évora, o qual ordenou ao sr. Fiduciário que calculasse o rendimento disponível da insolvente para efeitos de cessão segundo um critério mensal.

O despacho sob recurso tem o seguinte teor:

«Relatório a que alude o artigo 240.º, n.º 2, do CIRE (de 18-10-2023):

Como resulta da informação junta existem meses em que a devedora auferiu valores superiores ao rendimento indisponível fixado que foi em 1,2 (uma vírgula duas) vezes o RMMG, 12 (doze) meses por ano. Assim, e uma vez que o apuramento da existência de rendimento a ceder é efetuado mensalmente, não existindo qualquer compensação nos meses em que os rendimentos da devedora não atingiram o valor fixado como rendimento indisponível, notifique o Sr. Fiduciário para reformular o seu mapa em conformidade, no prazo de 10 dias».

I.2.

A recorrente formula alegações que culminam com as seguintes conclusões:

«I - A Recorrente não concorda com o douto despacho que decidiu que o apuramento do rendimento a ceder é efetuado mensalmente, por discordar a Recorrente de parte da matéria de direito, com o que não se conforma. O presente recurso versa sobre matéria de direito.

II - A Recorrente foi declarada insolvente por sentença no dia 01-06-2022.

III - A Recorrente requereu o procedimento de exoneração do passivo restante.

IV - Por decisão datada de 05/10/20123 o Tribunal a quo admitiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante deduzido e, consignou que o montante mínimo necessário à subsistência da Insolvente se fixou em 1,2 (uma vírgula duas) vezes o RMMG, 12 (doze) meses por ano.

V - Em 18-10-2023 a Fiduciária veio apresentar o 1º relatório anual, tendo apurado que a insolvente deveria entregar o valor de € 456,10.

VI- Em 26-10-2023, a Insolvente veio a requerer que o montante que tinha sido apurado no Relatório fosse pago em prestações mensais.

VII - Em 25-11-2023 a Meritíssima Juiz do Tribunal a quo veio determinar a reformulação do relatório anual, no sentido de que o rendimento a ceder fosse apurado mensalmente, não havendo compensação nos meses em que esse rendimento não atingiu o valor fixado como rendimento indisponível, despacho do qual se recorre.

VIII- A Senhora Fiduciária em 04-12-2023 veio apresentar informação complementar ao 1º relatório anual, apresentando o mapa reformulado nos moldes determinados pela Meritíssima Juiz, em que foi apurado que o valor a ceder pela insolvente passaria para o montante de € 1.532,23.

IX – A Senhora Fiduciária notificou em 04-12-2023 a Insolvente desse requerimento.

X - A Recorrente não se conformando com a decisão que determinou a alteração do cálculo do apuramento do montante disponível, vem dela interpor o competente recurso.

XI – A aqui Recorrente entende que o cálculo do rendimento a entregar pelo devedor, deve ser efetuado com base no rendimento anual, por ser o que permite uma maior equidade.

XII - À insolvente foi fixado 1,2 do salário mínimo nacional como rendimento indisponível, que no ano em apreço correspondeu à quantia mensal de € 846,00, nos três primeiros meses e € 912,00 nos restantes, o que perfez a quantia de € 10.746,00 no 1º ano.

XIII – O computo dos rendimentos da Insolvente no ano de 2023, faz no seu total a quantia de € 11.202,10.

XIV - O vencimento da Insolvente, originou que, em alguns meses, o valor ultrapassasse o concedido pelo Douto Tribunal, não só pelo recebimento dos subsídios de férias e natal, bem como foram contabilizados retroativos que lhe foram pagos neste ano, referente a anos anteriores.

XV - Se o apuramento for mês a mês, no caso em apreço, resulta que a insolvente tenha de ceder a quantia de € 1.532,23.

XVI – A aplicação desta fórmula prejudica a Insolvente, pois tais incrementos, muitas vezes foram e são utilizados para colmatar e suprimir despesas essenciais feitas ao longo do ano e, que não seriam possíveis de outra forma.

XVII – A insolvente ao longo do ano, tem meses em que recebeu muito abaixo do valor que lhe tinha sido concedido pelo Tribunal a quo.

XVIII- Nomeadamente nos meses de outubro de 2022 (€ 623,16), janeiro (€ 745,45], fevereiro (€ 687,90), abril (€ 756,40), maio (€ 891,51), agosto (€ 776,76) e setembro de 2023 (€ 757,68).

XIX - Assim, nos meses acima descriminados, atendendo ao valor das despesas correntes da insolvente, não lhe foi possível suportá-las na integra.

XX - A Insolvente com os incrementos auferidos nos restantes meses faz face a essas despesas pendentes.

XXI - A insolvente entende que a fórmula justa a aplicar, passará pelo apuramento do valor anual auferido por aquela, deduzido do valor concedido pelo Tribunal para seu sustento.

XXII - Tal como havia feito a Ilustre Fiduciária quando apresentou o 1º relatório anual em 18-10-2023.

XXIII - Tendo em conta que a insolvente no 1º ano de cessão auferiu a quantia total de € 11.202,10 e a esta quantia for deduzido o valor deferido pelo Tribunal atendendo ao salário mínimo nacional em vigor, o montante de € 10.746,00, o resultado seria o valor de € 456,10.

XXIV- Este é o entendimento que está de acordo com a jurisprudência mais recente, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22/09/2020, proc. 6074/13.7TBVFX-L1-1, in www.dgsi.pt.

XXV - E tem sido a posição tomada por diversos Tribunais quanto à fórmula do cálculo do rendimento disponível, dado que, é a melhor que garante a equidade.

XXVI – O Tribunal a quo decidiu erradamente ao alterar o modo de cálculo do rendimento disponível a entregar pelo insolvente ao Fiduciário.

XXVII – A decisão recorrida ser substituída por outra que fixe que o apuramento do montante disponível far-se-á anualmente, em função do rendimento médio auferido pela insolvente.

XXVIII- Em consequência deve ser alterado o relatório anual apresentado após o despacho que se coloca ora em crise.

Nestes termos e nos mais de Direito, sempre com Mui Douto suprimento desse Venerando Tribunal, deverá o presente recurso ter provimento e, em consequência, deverá a decisão recorrida ser substituída por uma outra que fixe que o apuramento do montante disponível far-se-á anualmente, em função do rendimento médio auferido pela insolvente.

Assim decidindo farão, como sempre, Vossas Excelências a costumada e almejada JUSTIÇA!».

I.3

Não foi apresentada resposta ao recurso.

O recurso foi admitido pelo tribunal recorrido.

Corridos os vistos, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO

II.1.

As conclusões das alegações de recurso (cfr. supra I.2) delimitam o respetivo objeto de acordo com o disposto nas disposições conjugadas dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do CPC, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2 e artigo 663.º, n.º 2, ambos do CPC), não havendo lugar à apreciação de questões cuja análise se torne irrelevante por força do tratamento empreendido no acórdão (artigos 608.º, n.º 2, e 663.º, n.º 2, do CPC).

II.2.

A única questão que cumpre decidir consiste em saber se o rendimento disponível para efeitos de objeto de cessão no âmbito do incidente de exoneração do passivo restante de ser determinado por referência aos rendimentos auferidos em cada mês ou por referência ao rendimento global auferido em cada ano do período de cessão.

II.3.

II.3.1.

FACTOS

Extrai-se dos autos a seguinte factualidade:

1 – Mediante sentença proferida em 05/10/2023, transitada em julgado, o tribunal de primeira instância admitiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pela Requerente/insolvente e fixou como «montante mínimo necessário à sobrevivência condigna daquela, a quantia correspondente a 1,2 vezes o RMMG, 12 (doze) meses por ano», valor que teve em atenção «a composição do agregado familiar da devedora e os encargos mensais que esta necessariamente tem de suportar – a que acresce a necessidade de realizar um tratamento intensivo oral e comprar uns óculos» (sic).

2 – Na sentença acima referida o tribunal de primeira instância julgou provada a seguinte factualidade: a Requerente nasceu em 14-12-1965; trabalha como assistente técnica, auferindo um rendimento líquido mensal de € 701,09; vive sozinha, em casa arrendada; título de despesas fixas mensais, despende quantia não inferior a € 833,99, correspondente a: € 65,00 com eletricidade, € 22,00 com água; € 35,00 com gás; € 250,00 com alimentação; € 70,00 com farmácia; € 101,99 a título de prestação mensal relativo a uma aquisição de bens; € 180,00 com renda; € 40,00 referente a um acordo de pagamento firmado com a NOS; € 70,00 com pacote de telecomunicações.

3 – Consta do dispositivo da sentença acima referida o seguinte:

«Em face do exposto, admite-se liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante deduzido e, em consequência, decide-se:

a) Nomear, para desempenhar as funções de Fiduciária, cfr. artigos 240.º a 242.º do CIRE, a Ilustre Administradora da Insolvência já designada nos presentes autos.

b) Declarar, para os efeitos do artigo 241.º, n.º 1, alínea c), do CIRE, que a remuneração da Fiduciária corresponde a 10% das quantias que venham a ser objeto de cessão ou, não havendo lugar a cessão de rendimentos, a quantia equivalente a 1 (uma) e ½ (meia) UC por ano, mediante apresentação do relatório correspondente, cfr. artigos 60.º, n.º 1 e 240.º, n.º 1 e 2, do CIRE e 28.º da Lei n.º 22/2013, de 26 de Fevereiro).

c) Consignar que o montante mínimo necessário à subsistência da Requerente se fixa em 1,2 (uma vírgula duas) vezes o RMMG, 12 (doze) meses por ano.

d) Determinar que, durante os três anos subsequentes ao encerramento deste processo de insolvência, o rendimento disponível que a devedora venha a auferir se considera cedido à Fiduciária supra designada, cfr. artigo 239.º, n.º 2, do CIRE.

e) Declarar que, durante o período da cessão referido em d), a devedora fica obrigada, nos termos do artigo 239.º, n.º 4, do CIRE, a:

− Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado;

− Exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregado, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja apto;

− Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objeto de cessão;

− Informar o Tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respetiva ocorrência, bem como, quando solicitado e dentro de igual prazo, sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego;

− Não fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar qualquer vantagem especial para algum desses credores».

4 – Na mesma data de 5 de outubro de 2022, foi declarado encerrado o processo de insolvência.

5 - Mediante requerimento apresentado em 18/10/2023 a sra. Fiduciária apresentou o primeiro relatório previsto no artigo 240.º/2, do CIRE, informando que a insolvente tem a ceder à conta da Fidúcia a quantia de € 456,10, tendo considerado para o cômputo daquele valor o montante global anual dos rendimentos auferidos pela insolvente (€ 11.202,10) ao qual subtraiu o montante anual do valor fixado para o sustento da insolvente (€ 10.746,00).

II.3.2.

Apreciação do mérito do recurso

No presente recurso está em causa a decisão do tribunal recorrido que ordenou à sra. fiduciária que procedesse ao (re)cálculo do valor dos rendimentos da insolvente objeto de cessão tendo por referência os rendimentos por aquela auferidos em cada mês.

Insurge-se a recorrente contra tal decisão, defendendo que o apuramento do valor dos rendimentos que são objeto de cessão deve ser efetuado com base no (seu) rendimento anual, por ser o que permite uma maior equidade, aduzindo que é esse o entendimento da jurisprudência mais recente.

Vejamos se lhe assiste razão.

No artigo 235.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo D/L n.º 53/2004, de 18 de março, na redação que lhe foi dada pelo artigo 2.º da Lei n.º 9/2022, de 11.01, doravante designado por CIRE, dispõe-se que «se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao encerramento deste, nos termos das disposições do presente capítulo».

De acordo com aquele normativo, o devedor, que seja uma pessoa singular, fica exonerado do pagamento dos créditos sobre a insolvência que não fiquem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao seu encerramento. A exoneração do passivo restante pode ser solicitada pelo insolvente quando se apresenta à insolvência (como sucedeu in casu). Quando solicitada, e após audição dos credores e do administrador da insolvência (artigo 238.º/2, do CIRE), o juiz deverá emitir despacho inicial de exoneração (artigo 239.º/1, do CIRE), desde que não haja motivo para indeferimento liminar daquele requerimento. Neste despacho inicial o julgador determina que durante os três anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência[1] – o chamado período de cessão – o rendimento disponível que o devedor venha a auferir considera-se cedido a um fiduciário, impondo ao insolvente um conjunto de obrigações.

O “rendimento disponível” – que deverá ser entregue ao fiduciário e que o afetará em harmonia com o disposto no artigo 241.º/1, do CIRE – é integrado por todos os rendimentos que o devedor aufira, a qualquer título, dele se excetuando:

(i) os créditos previstos no artigo 15.º que tenham sido cedidos a terceiros durante o período de eficácia da cessão [artigo 239.º/3, alínea a)]; e

(ii) o que seja razoavelmente necessário para:

- o sustento minimamente digno do devedor e seu agregado familiar (com o limite máximo, salvo decisão fundamentada do juiz, do triplo do salário mínimo nacional) [artigo 239.º/3/alínea b/i), do CIRE];

- o exercício da sua atividade profissional [artigo 239.º, n.º 3, alínea b), ii)];;

- outras despesas que, a requerimento do devedor, venham a ser consideradas pelo juiz no próprio despacho inicial ou mas tarde [artigo 239.º, n.º 3, alínea b), iii)].

Destarte, durante a pendência do período da cessão coexistem duas massas patrimoniais distintas: o chamado rendimento indisponível que é constituído por todos os rendimentos auferidos pelo devedor durante o período de cessão que se encontram tipificado no n.º 3 do artigo 239.º do CIRE, do qual este último poderá dispor sem qualquer restrição resultante do processo de insolvência ou do período da cessão e a fidúcia que é o conjunto de bens, direitos e rendimentos afetos à satisfação dos credores durante o período da cessão, desdobrando-se em duas subcategorias: o rendimento disponível (ou seja, os rendimentos adquiridos pelo insolvente durante o período de cessão (artigo 239.º/2) e os bens e direitos suscetíveis de alienação que tenham sido adquiridos pelo devedor durante o período da cessão (artigo 241.º-A)[2].

A exoneração do passivo restante é uma solução que permite conciliar os interesses dos credores na satisfação dos respetivos créditos – interesses que têm também garantia constitucional – e o interesse do devedor em começar uma nova etapa da sua vida, sem as dívidas que sobre si impendiam. Por isso, o facto de os credores apenas poderem exigir a satisfação dos seus créditos durante um prazo de três anos subsequente ao encerramento do processo de insolvência exige, em contraponto, que também o insolvente tenha de fazer sacrifícios para conseguir pagar o máximo de rendimento disponível aos primeiros, recaindo sobre ele um feixe de deveres que se mostram previstos no artigo 239.º do CIRE. Dito de outra forma, o insolvente/devedor terá de prescindir do acessório e supérfluo, libertando-se (e ao respetivo agregado familiar) de despesas que não sejam absolutamente necessárias a uma vida condigna.

Embora a lei tenha fixado um limite máximo para o rendimento indisponível (três vezes o salário mínimo nacional) não fixou um limite mínimo; recorre, ao invés, a um conceito indeterminado – montante razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar – o qual terá de ser casuisticamente preenchido pelo julgador, ou seja, interpretado e quantificado em função de cada caso concreto, tendo em conta, nomeadamente o número de elementos que constituem o agregado familiar, os rendimentos e as despesas desse agregado, a idade, o estado de saúde dos seus elementos e a situação profissional do devedor, sem nunca perder de vista direitos e princípios constitucionalmente consagrados como o princípio da dignidade da pessoa humana e a garantia do direito a uma sobrevivência minimamente condigna e a um mínimo de sobrevivência. A jurisprudência tem-se inclinado para fazer equivaler o «limite mínimo não abrangido pela cessão do rendimento disponível» ao salário mínimo nacional.

De acordo com o disposto no artigo 239.º/4, alínea c), do CIRE, durante o período de cessão, o devedor fica obrigado a entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objeto de cessão, que serão afetos pelo fiduciário nos termos previstos no artigo 241.º/1, do CIRE. Não o fazendo, correrá o risco de cessação antecipada da exoneração (artigo 243.º do CRE) ou de recusa da exoneração (artigo 244.º do CIRE).

Feitas estas considerações gerais e voltando ao caso concreto, está em causa a forma de apuramento dos rendimentos objeto da cessão, isto é, saber se o seu cálculo/apuramento deve ser feito por referência aos rendimentos auferidos em cada mês de cada ano do período de cessão – como entendeu o julgador a quo – ou com base no rendimento anual – como defende a apelante.

A questão da periodicidade do cálculo dos rendimentos excluídos da cessão divide a jurisprudência: no sentido de que essa periodicidade deve ser anual, veja-se, entre outros, Ac. RL de 22.09.2020, processo n.º 6074/13.7 e Ac. RE de 17.01.2019, processo n.º 344/16.0T8OLH.E1[3], e decidindo pela periodicidade mensal, Ac. RC de 28.03.2017, processo n.º 178710.5TBNZR.C1, Ac. RL de 06.09.2022, processo n.º 3612/20.2T8FNC.C.L1-1, Ac. RE de 12.05.2022, processo n.º 2955/20.0TBSTB.E1[4], todos consultáveis em www.dgsi.pt.

Começar-se-á por fazer notar que no despacho inicial de deferimento da exoneração do passivo restante e de fixação do valor do valor do rendimento mensal excluído da sessão não se vislumbra que o julgador a quo tenha expressamente optado por um qualquer critério temporal de cálculo/apuramento, fosse ele mensal ou anual. Se o tivesse feito, impunha-se o que ali tivesse sido decidido, por efeito do caso julgado formal.

Quanto a nós o rendimento disponível para efeitos de objeto de cessão no âmbito do incidente de exoneração do passivo restante de ser determinado por referência aos rendimentos auferidos em cada mês, acompanhando a argumentação do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28-03-2017, processo n.º 178/10.5TBNZR.C1[5], com a qual concordamos inteiramente e que passamos a transcrever: «(…) O n.º 2 do artigo 239.º do CIRE estabelece que o despacho inicial determina que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência (período da cessão), o rendimento disponível que o devedor venha a auferir considera-se cedido ao fiduciário. O n.º 3 do artigo 239.º do CIRE complementa a norma antecedente, traçando o perímetro do rendimento disponível. Tal perímetro é o resultado da combinação do corpo do n.º 3 com as suas alíneas a) e b) e subalíneas i), ii), iii). Para o caso interessa-nos o perímetro que resulta da combinação do corpo do n.º 3, com a alínea b), subalínea i), do citado preceito. Desta combinação resulta o seguinte: dentro do perímetro do rendimento disponível cabem todos os rendimentos que advierem ao devedor, com exclusão “do que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional”. Vê-se, assim, que a norma da alínea b), subalínea i), concorre para a definição do rendimento disponível. E concorre pela “via da exclusão”, embora não seja uma norma de exclusão de rendimentos, no sentido de que afasta do rendimento disponível certa categoria de rendimentos do devedor [como sucede por exemplo com a norma de exclusão da alínea a), do n.º 3]. O que ela exclui do rendimento disponível – qualquer que seja a sua proveniência – é uma parcela dos rendimentos que advenham ao devedor. E fá-lo por respeito à dignidade dos devedores, enquanto pessoas humanas [artigo 1.º da Constituição da República Portuguesa]. Socorrendo-nos das palavras de Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Juris, página 788, tal exclusão decorre “da chamada função interna do património, enquanto suporte de vida económica do seu titular”. O contributo que tal norma dá para a definição do rendimento disponível não vai, no entanto, no sentido pretendido pelos recorrentes, ou seja, no sentido de que tal rendimento - que o n.º 2 do artigo 239.º do CIRE considera cedido ao fiduciário - é o que se apurar no fim de cada ano do período da cessão. Vejamos.

Sobre a natureza da cessão prevista no n.º 2 do artigo 239.º, seguimos o entendimento de que se trata de uma cessão de bens futuros ao fiduciário, que tem a sua fonte na lei, embora concretizada por decisão judicial [Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, na obra supra citada, página 789, Assunção Cristas, Exoneração do Passivo Restante, Themis, 2005, Edição Especial, páginas 176 e 177]. Segue-se daqui que todos os rendimentos que advierem ao insolvente consideram-se cedidos, no momento da sua aquisição, ao fiduciário, com exceção – além de outros sem relevância para o caso – da parcela dos que são necessários à satisfação da exigência prevista na alínea b), subalínea i), do n.º 3 do artigo 239.º do CIRE. Deste modo, sempre que há entradas de rendimentos no património do devedor (periódicas, esporádicas ou ocasionais), coloca-se necessariamente a questão do apuramento do rendimento disponível a ceder ao fiduciário. E a resposta a tal questão, quando o apuramento se fizer por força da combinação do corpo do n.º 3 com a alínea b), i), do artigo 239.º, não pode deixar de ter por referência o rendimento disponível de um determinado período. No caso, o período de referência é o de um mês. Com efeito, apesar de a letra do artigo 239.º, n.º 3, alínea b), i), do CIRE, não dizer expressamente que, ao fixar o que seja razoavelmente necessário para assegurar o sustento minimamente digno do devedor e da sua família, o juiz tomará, por referência, o que é razoavelmente necessário no período de um mês, é o este o pensamento legislativo. Daí que, embora nem o despacho inicial (que fixou, em dois salários mínimos nacionais, o montante que considerava razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno dos devedores e do seu agregado familiar) nem o despacho posterior (que alterou tal montante para € 1.335,00), tenham afirmado expressamente que tais montantes eram mensais, é com este sentido que devem ser interpretadas tais decisões. De resto, assim as interpretaram os recorrentes e o fiduciário.

Cabe perguntar, no entanto, o que resulta de tais normas [as normas dos artigos 239.º, n.º 2, e 239.º, n.º 3, alínea b), i, ambos do CIRE], nos meses em que não advierem rendimentos ao devedor ou advierem rendimentos inferiores ao que foi considerado necessário para o sustento minimamente digno dele e da sua família? A resposta é a seguinte: Em primeiro lugar, em tais hipóteses, não há rendimento disponível, logo não há cessão de rendimentos. Em segundo lugar, não nasce, a favor do devedor, o direito de compensar ou de deduzir, nos rendimentos futuros, a ausência de rendimentos ou rendimentos inferiores ao que foi estabelecido como o razoavelmente necessário para o sustento dele e da família. Com efeito, só se compreenderia tal direito de compensação ou de dedução se se configurasse a subalínea i) da alínea b) do n.º 3 do artigo 239.º do CIRE como uma “garantia de rendimento” a favor do devedor ao longo do período da cessão. Sucede que não é este o sentido da garantia de tal norma. Ela não garante rendimentos ao devedor. O que ela garante é que uma parcela dos seus rendimentos, havendo-os, não será atingida pela cedência ao fiduciário. Garante-se uma “exclusão” se houver rendimentos. Daí que não tenha amparo no artigo 239.º, n.º 2, e no artigo 239.º, n.º 3, alínea b), i), ambos do CIRE, a pretensão dos recorrentes no sentido de que o apuramento do seu rendimento disponível se faça no fim de cada ano do período de cessão e que tal rendimento seja constituído pela diferença entre os rendimentos totais obtidos em cada ano e o produto da soma, também em cada ano, do montante fixado pelo tribunal como sendo o razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno dos devedores e da sua família. De resto, se a interpretação dos recorrentes fosse válida, então o apuramento do rendimento disponível não deveria ser feito sequer anualmente; deveria ser feito ao fim do período da cessão, o que não tem qualquer amparo na lei. Contra a interpretação do n.º 2 do artigo 239.º, combinado com o n.º 3 alínea b), i), do artigo 239.º afirmada por este tribunal, não vale a circunstância de o n.º 2 do artigo 240.º do CIRE, conjugado o n.º 1 do artigo 61.º, impor ao fiduciário o dever de prestar anualmente informação a cada credor e ao juiz sobre a situação da exoneração do passivo restante nem a circunstância de, nos termos do n.º 1 do artigo 241.º do CIRE, ser dever do fiduciário afetar os montantes recebidos, no final de cada ano em que dure a cessão, ao pagamento das custas do processo de insolvência ainda em dívida (alínea a)), ao reembolso ao Cofre Geral dos Tribunais das remunerações e despesas do administrador da insolvência e do próprio fiduciário que por aquele tenham sido suportadas [alínea b)]; ao pagamento da sua própria remuneração já vencida e despesas efetuadas [alínea c)] e à distribuição do remanescente pelos credores da insolvência, nos termos prescritos para o pagamento aos credores no processo de insolvência. É que as normas em questão dizem respeito exclusivamente ao estatuto e às funções do fiduciário, não dando resposta à questão suscitada pelos recorrentes».

Por conseguinte, bem andou o julgador a quo ao ordenar, no despacho recorrido, que a sra. Fiduciária procedesse ao cálculo do rendimento disponível para efeitos de objeto de cessão no âmbito do incidente de exoneração do passivo restante por referência aos rendimentos auferidos pela insolvente em cada mês do 1.º ano do período de cessão.

Improcede, pois, a apelação.

Sumário: (…)

III. DECISÃO

Em face do exposto, acordam julgar improcedente a apelação, mantendo-se a decisão recorrida.

As custas na presente instância de recurso são da responsabilidade da apelante, mas nada é devido a esse título porquanto a apelante beneficia de apoio judiciário.

Notifique.

Évora, 20 de Fevereiro de 2024

Cristina Dá Mesquita (Relatora)

Ana Margarida Pinheiro Leite (1.ª Adjunta)

Isabel Peixoto Imaginário (2.ª Adjunta)

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[1] Este período de tempo – três anos – resultou da redação que foi dada ao artigo 239.º/1, pela Lei n.º 9/2022, de 11.01.

[2] Maria do Rosário Epifânio, A Exoneração do passivo restante – Algumas questões, Revista Julgar, n.º 48, págs. 39 e seguintes.

[3] Em cujo sumário se lê: «I. Nos casos em que o rendimento do insolvente, em determinados meses, não chega a alcançar o valor fixado como o mínimo de subsistência ou nem sequer há rendimento, terá necessariamente de ocorrer uma compensação relativamente aqueles em que o exceda, sob pena de aquela ficar comprometida. II. Para esse efeito, terá de apurar-se o montante mensal médio dos rendimentos auferidos pelo insolvente num determinado ano fiscal e cotejá-lo com valor mensal fixado pelo Tribunal. III. Se tal montante mensal médio não exceder o valor mensal fixado pelo Tribunal, a obrigação de entrega ao fiduciário a que alude a alínea c) do n.º 4 do artigo 239.º do CIRE é inexistente».

[4] Em cujo sumário se lê que «No apuramento do rendimento disponível o período de referência a ter em conta em tal afetação é o mensal, até porque, por norma estamos no domínio de relações laborais, o insolvente fica obrigado a entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objeto de cessão, ainda que se admita que, por razões de equidade, no plano concreto, de forma excecional, a correção do método de cálculo e de transferência possa acontecer quando ocorra uma grande oscilação de rendimentos de forma a garantir que o patamar mínimo de dignidade previsto constitucionalmente não é afetado pela cessão de rendimentos. 4 – A introdução de um mecanismo corretivo em que se decida que, nos meses em que os rendimentos sejam inferiores ao valor do ordenado mínimo nacional, a entrega do montante não é realizada é suficiente para garantir a equidade concreta normativamente exigida».

[5] Consultável em www.dgsi.pt.