Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
79204/20.0YIPRT.E1
Relator: EMÍLIA RAMOS COSTA
Descritores: CONTRATO DE COMPRA E VENDA
PAGAMENTO DO PREÇO
COISA DEFEITUOSA
Data do Acordão: 02/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I – Estando em causa um contrato de compra e venda de contraplacado de bétula, no qual a Autora transmitiu a propriedade à Ré, em troca do preço acordado, das quantidades mencionadas nas referidas faturas, entregando-lhe efetivamente tais quantidades, competia à Ré proceder ao pagamento do preço acordado
II – Não o tendo feito, recaía sobre si uma presunção de culpa na falta do cumprimento da obrigação que lhe era devida (artigo 798.º do Código Civil).
III – Desse modo, pretendendo a Ré invocar uma situação de não cumprimento integral do contrato por parte da Autora, designadamente nos termos do artigo 913.º do Código Civil, era sobre si que recaía o ónus da prova.
IV – Não tendo resultado provado que o material que veio a dar problemas de descolamentos e levantamentos de pisos tenha sido o material que a Autora vendeu à Ré relativo às faturas que não foram pagas por esta, não se mostra verificada a exceção de não cumprimento do contrato por parte da Autora, por venda de material defeituoso.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 79204/20.0YIPRT.E1
2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora[1]
Acordam os Juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:
I – Relatório
A Autora “(…), Unipessoal, Lda.” instaurou requerimento injuntivo contra a Ré “(…) – Pavimentos e Revestimentos, Lda.”, requerendo o pagamento da quantia de € 25.017,39, sendo € 23.436,79 a título de capital, e € 1.330,60, a título de juros de mora vencidos e € 250,00 a título de outras quantias.
Alegou, em síntese, que celebrou com a Ré um contrato de compra e venda de contraplacado de bétula para aplicação em pavimentos, mediante pagamento do respetivo preço, sendo que a Ré, apesar de se ter obrigado a proceder ao seu pagamento, não o fez, ainda que sucessivamente interpelada para o fazer.
Citada a Ré, veio a mesma deduzir oposição, alegando, em síntese, que efetivamente não procedera a tais pagamentos por se verificar uma exceção de não cumprimento do contrato, em virtude da existência de defeitos no material fornecido pela Autora.
Em resposta a esta exceção, veio a Autora impugnar tais defeitos, solicitando a improcedência da exceção invocada.
Procedeu-se à convolação do processo para ação especial para cumprimento de obrigação pecuniária emergente de contrato.
Realizado o julgamento, em 25-09-2023 foi proferida sentença, que fixou o valor da ação em €25.017,39, com o seguinte teor decisório:
Pelo exposto, e ao abrigo das disposições legais supra mencionadas, julgo a acção totalmente procedente por provada e, em consequência, decido condenar a Ré (…), Unipessoal, Lda. no pagamento à Autora da quantia de € 23.436,79 (vinte e três mil e quatrocentos e trinta e seis euros e setenta a nove cêntimos) a título de capital, € 1.330,60 (mil e trezentos e trinta euros e sessenta cêntimos) a título de juros de mora vencidos, acrescida de juros de mora vincendos até efectivo e integral pagamento.
Custas a cargo da Ré – artigo 527.º, n.º 1, do CPC.
Registe.
Notifique.
A requerimento da Autora a solicitar a retificação do lapso de escrita da parte decisória da sentença, visto ter ficado a constar no nome da Ré o nome da Autora, foi proferido despacho judicial em 09-10-2023 a determinar tal retificação.
Inconformada com a sentença, veio a Ré “(…) – Pavimentos e Revestimentos, Lda.” interpor recurso, apresentando as seguintes conclusões:
1.- A Ré tendo adquirido à Autora o contraplacado de madeira para instalar em pisos, só tomou conhecimento dos defeitos que parte daquele material padecia quando foi disso informada, em reclamação pelos seus clientes;
2.- De imediato, reclamou, por todos os meios à sua disposição, perante a Autora dos defeitos que parte do material apresentava;
3.- Levantou e apresentou o material defeituoso à Autora que de tudo isso teve, também, imediato conhecimento;
4.- A Ré substituiu a suas expensas o material defeituoso e comunicou tal facto e os respectivos custos à Autora.
5.- Perante tais factos a Meritíssima Juiz “a quo” deveria ter julgado procedente a excepção invocada pela Ré, absolvendo-a do pedido;
6.- Não o fazendo e salvo o devido respeito, violou o disposto pelos artigos 914.º, 916.º, n.º 1 e n.º 2, 918.º, 921.º, n.º 1, bem como o artigo 342.º, todos do Código Civil
Nestes termos e nos mais de direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve a Sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que julgue procedente a excepção invocada pela Ré e, em consequência, julgue improcedente a acção, absolvendo a Ré do pedido, fazendo assim e uma vez mais a necessária, JUSTIÇA!
A Autora “(…), Unipessoal, Lda.” apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.
O tribunal a quo admitiu o recurso como sendo de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, e, recebido neste tribunal nos seus exatos termos, foram os autos aos vistos, cumprindo agora apreciar e decidir.
II – Objeto do Recurso
Nos termos dos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da recorrente, ressalvada a matéria de conhecimento oficioso (artigo 662.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
No caso em apreço, a questão que importa decidir é:
1) Procedência da exceção de não cumprimento do contrato por parte da Autora, invocada pela Ré.
III – Matéria de Facto
A 1.ª instância deu como provados os seguintes factos:
1 – A Autora é uma sociedade comercial por quotas com o NIPC (…), que se dedica ao comércio de madeiras, folhas, placas e outros derivados de madeira.
2 – A Ré é uma sociedade comercial por quotas com o NIPC (…) que tem como actividade parqueteria.
3 – No âmbito da actividade supra mencionada, a Autora forneceu à Ré, a pedido desta, material – contraplacado de bétula 1525 x 1525 de 9, 12 e 15 mm de espessura e folha de carvalho Europeu A –, pelo valor total de € 35.983,21, conforme facturas n.º (…), de 27 de Fevereiro de 2019 e n.º (…), de 22 de Março de 2019.
4 – Por conta do valor supra mencionado, a Ré procedeu ao pagamento parcial da factura n.º (…) e foi emitida a seu favor nota de crédito n.º (…), no valor de € 11.099,88.
5 – A Autora interpelou a Ré sucessivamente para proceder ao pagamento da quantia de € 23.436,79 que até hoje nada pagou.
6 – O material melhor identificado em 3 dos factos provados destinava-se a produção de pavimentos e revestimentos de madeira que a Ré posteriormente fornecia a diversas obras/clientes finais.
7 – A Ré recebeu reclamações relativamente ao piso de madeira aplicado em obras realizadas em Paris, Vila Nova de Gaia e no Funchal, que apresentavam descolamentos e levantamentos.
8 – Mercê do supra exposto, a Ré procedeu à substituição dos pavimentos de madeira aplicados em obra e remeteu ao Autor diversos emails informando do sucedido, conforme documentos juntos com o articulado de oposição aperfeiçoado e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
E deu como não provados os seguintes factos:
A – Que a Autora tenha entregado à Ré o material melhor identificado em 3 dos factos provados com vício que impeça a sua utilização ou reduza o seu valor.
B – Que a Ré tenha recusado receber os materiais melhor identificados em 3 dos factos provados com fundamento em vício que impeça a sua utilização ou reduza o seu valor e que deles tenha reclamado junto da Autora no prazo de 8 dias após a sua recepção.
C – Que os custos de substituição do material aplicado em diversas obras pela Ré tenha ascendido a € 25.397,38.
D – Que o legal representante da Autora, (…), tenha reconhecido os defeitos do material fornecido e prometido acertar contas.
IV – Enquadramento jurídico
Conforme supra mencionámos, o que importa analisar no presente recurso é se (i) é procedente a exceção de não cumprimento do contrato por parte da Autora, invocada pela Ré.
Questão Prévia
Nas conclusões recursivas, a Ré refere que perante determinados factos, que indica, a sentença recorrida deveria ser revogada e reconhecer a existência da exceção de não cumprimento do contrato por parte da Autora.
Acontece, porém, que a Ré não só não indica que pretende impugnar a realidade factual vertida na sentença recorrida, como não indica a que se reportam tais factos por si indicados, isto é, se a factos dados como provados, se a factos dados como não provados ou se a outros factos (alegados ou não).
Acresce que parte dos factos que constam das conclusões recursivas 1.ª a 4.ª constam dos factos provados 7 e 8 e a parte que não consta desses factos provados também não consta dos factos não provados.
E, a ser assim, não é sequer claro que a Ré tenha pretendido impugnar a matéria de facto que consta da sentença recorrida.
De qualquer modo, sempre se dirá que não tendo expressamente feito constar, em sede de conclusões, tal pretensão de impugnação, bem como quais os factos provados e/ou não provados que pretendia impugnar, tal impugnação sempre seria rejeitada, nos termos do artigo 640.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil.[2]
1 – Procedência da exceção de não cumprimento do contrato por parte da Autora, invocada pela Ré
Entende a Réu que perante a factualidade provada a sentença recorrida deveria ter considerado procedente a exceção de não cumprimento do contrato por parte da Autora, conforme por si invocado.
Apreciemos.
Estando em causa um contrato de compra e venda de contraplacado de bétula (facto provado 3), no qual a Autora transmitiu a propriedade à Ré, em troca do preço acordado, das quantidades mencionadas nas referidas faturas de contraplacado de bétula,[3] entregando-lhe efetividade tais quantidades, competia à Ré proceder ao pagamento do preço acordado (artigo 874.º do Código Civil). Não o tendo feito,[4] recaía sobre si uma presunção de culpa na falta do cumprimento da obrigação que lhe era devida (artigo 798.º do Código Civil). Deste modo, pretendendo a Ré invocar uma situação de não cumprimento integral do contrato por parte da Autora, visto que o contrato deve ser pontualmente cumprido (artigo 406.º, n.º 1, do Código Civil), designadamente nos termos do artigo 913.º do Código Civil,[5] era sobre si que recaía o ónus da prova (artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil).
Assim, competiria à Ré alegar e provar que a totalidade ou parte do contraplacado de bétula que adquiriu à Autora sofria de vício que o desvalorizava ou que o impedia do fim a que se destinava ou não tinha as qualidades asseguradas pela Autora ou necessárias para a realização daquele fim.
Mas para além da alegação e prova da existência de defeito nos termos previstos no referido artigo 913.º do Código Civil, compete ainda ao comprador, no exercício da sua atividade profissional, proceder à denúncia do defeito, junto do vendedor, em prazo fixado nos termos do artigo 471.º, § único, do Código Comercial, por estarmos perante uma atividade comercial (artigos 2.º, 13.º, n.º 2 e 463.º, n.º 1, todos do Código Comercial). O referido artigo 471.º estabelece que se o comprador não examinar a coisa no ato da entrega, pode delas reclamar no prazo de oito dias, sendo que tal prazo se conta “a partir do momento em que o comprador teve ou podia ter tido conhecimento do vício se agisse com a diligência devida, devendo a comunicação ser feita nos seis meses posteriores à entrega da coisa”,[6] nos termos do artigo 916.º, n.º 2, do Código Civil. Ou seja, ainda que o prazo de oito dias apenas se inicie quando o comprador teve conhecimento do vício da coisa ou dele devesse ter tido conhecimento, depois do decurso do prazo de seis meses após a data de entrega da coisa, o comprador já não pode exercer o seu direito de reclamação. Caso estes prazos sejam ultrapassados, verifica-se, então, uma situação de caducidade do direito de reclamar.[7] Efetuada a reclamação pelo comprador, compete ao vendedor alegar e provar que a mesma é intempestiva (artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil).
Atentemos, então, aos factos que foram dados como provados.
Na realidade, foi dado como provado que a Ré recebeu reclamações relativamente ao piso de madeira aplicado em obras realizadas em Paris, Vila Nova de Gaia e no Funchal, que apresentavam descolamentos e levantamentos e que, mercê dessa situação, a Ré procedeu à substituição dos pavimentos de madeira aplicados em obra e remeteu à Autora diversos emails informando do sucedido (factos provados 7 e 8). Porém, não resultou provado que o piso de madeira aplicado nas obras realizadas em Paris, Vila Nova de Gaia e no Funchal tenha sido efetuado com o material constante das faturas a que os autos fazem menção, nem que o descolamentos e levantamentos de tais pisos sejam consequência de defeitos ou vícios inerentes ao contraplacado de bétula fornecido pela Autora, podendo tais situações terem ocorrido em consequência, como refere a Autora, de defeitos na execução e aplicação de tais materiais na instalação do solo.
Salienta-se, uma vez mais, que a dúvida, nesta situação, sempre beneficiaria a Autora, por o ónus da prova incumbir à Ré.
Deste modo, não havendo prova do nexo causal entre a venda efetuada e os materiais que deram problemas nas obras realizadas em Paris, Vila Nova de Gaia e no Funchal, cai por terra a pretensão da Ré, sendo que a falta de prova de que tais problemas tivessem tido origem no próprio contraplacado fornecido e não no modo de aplicação e execução da obra, sempre determinaria igualmente a improcedência da pretensão da Ré.
Assim sendo, mostra-se irrelevante apurar, por um lado, se a reclamação dos defeitos se consubstanciou nos emails enviados, e, por outro, se tal reclamação foi tempestiva.
Pelo exposto, apenas nos resta confirmar a bem fundamentada sentença, improcedendo na íntegra o recurso interposto pela Ré.
Sumário elaborado pela relatora (artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil):
(…)
V – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso da Apelante totalmente improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.
As custas a cargo da Apelante (artigo 527.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
Notifique.
Évora, 20 de fevereiro de 2024
Emília Ramos Costa (relatora)
Anabela Luna de Carvalho
Ana Margarida Leite

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[1] Relatora: Emília Ramos Costa; 1.ª Adjunta: Anabela Luna de Carvalho; 2.ª Adjunta: Ana Margarida Leite.
[2] Veja-se o acórdão do STJ proferido em 03-03-2016, no âmbito do processo n.º 861/13.3TTVIS.C1.S1, consultável em www.dgsi.pt, que há muito seguíamos, cujo entendimento veio a ser acolhido pelo recente acórdão de uniformização de jurisprudência do STJ n.º 12/22023, publicado no DR n.º 220, 1.ª série, de 14-11-2023.
[3] Factos que ambas as partes concordam.
[4] Facto igualmente inquestionável pelas partes.
[5] Venda de coisa defeituosa.
[6] Vide acórdão do TRC proferido em 10-01-2011 no âmbito do processo n.º 1977/08.3TBAVR.C1, consultável em www.dgsi.pt.
[7] O mesmo acórdão do TRC.