Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
35/22.2GBMRA-A.E1
Relator: NUNO GARCIA
Descritores: LEI DA AMNISTIA
CÚMULO JURÍDICO
PERDÃO DE PENAS
Data do Acordão: 02/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Se alguns dos crimes podem beneficiar do perdão das respectivas penas aplicadas e outros não (porque abrangidos pelo artº 7º da Lei da amnistia), então há que desfazer o cúmulo, aplicar o perdão devido, e de seguida reformular o cúmulo quanto às penas dos crimes que não puderam beneficiar do perdão ( se estiveram em causa penas de multa, como é o caso, não há pena remanescente depois da aplicação do perdão).
E tal resultará do que dispõe o nº 3 do artº 7º da Lei da amnistia:

“A exclusão do perdão e da amnistia previstos nos números anteriores não prejudica a aplicação do perdão previsto no artigo 3.º e da amnistia prevista no artigo 4.º relativamente a outros crimes cometidos.”

Decisão Texto Integral:
ACORDAM OS JUÍZES QUE INTEGRAM A SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

RELATÓRIO

No âmbito do processo 35/22.2GBMRA o Ministério Público promoveu nos seguintes termos:

“II. Da aplicação da Lei n.º 38-A/2023 de 2 de agosto, e quanto ao crime de condução sem habilitação legal.

Nos presentes autos, o arguido, nascido em ……..2001 (menor de 30 anos de idade) foi condenado por sentença transitada em julgado, pela prática, em 21.02.2022, de um crime de resistência e coação, 1 crime de condução perigosa de veículo rodoviário e um crime de condução sem habilitação legal, a uma pena única de 180 dias de multa.

Afigura-se, assim, que o regime previsto neste dispositivo legal se aplica ao arguido, quanto ao crime de condução sem habilitação legal (tendo sido condenado na pena de multa de 50 dias) a que foi condenado, nos termos e para os efeitos do n.º 4. al. a) do artigo 2.º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, pelo que promovo o seu perdão, perdão este a descontar na pena aplicada em cúmulo de penas.

Já quanto à pena acessória de proibição de condução de veículo motorizado, a que o arguido foi condenado, previsto e punido pelo art.º 69º, n.º 1, al. a) do Código Penal, por um período de 6 meses, entendendo que se encontra excluído de qualquer perdão, pois que tal pena acessória adveio do crime de condução perigosa de veiculo rodoviário, p. e p. pelo artigo 291.º - Condução perigosa de veículo rodoviário (pena esta excluída da lei do perdão e amnistia, atendo à natureza do crime)- e não de uma qualquer infração contraordenacional, nem tão pouco por conta do crime de condução sem habilitação legal a que foi condenado, pelo que nada há a promover.”

Sobre a referida promoção recaiu o seguinte despacho:

“Por sentença já transitada em julgado foram os arguidos condenados pela prática, em coautoria e em concurso efetivo, de um crime de condução sem habilitação legal, um crime de resistência e coação e um crime de e condução perigosa, praticados a 20/02/2022, na pena única de 180 dias de multa à taxa única de € 6 e na pena acessória de proibição de condução de veículo motorizado por 6 meses.

Com a entrada em vigor da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, estabeleceu-se um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude, aplicável a ilícitos cometidos até 19/06/2023 por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos – cfr. artigos 1.º e 2.º, al. a), do referido diploma legal.

Assim, pese embora a idade do arguido à data da prática dos factos – 20 anos –, resulta do disposto no artigo 3.º, n.º 3, al. a), do referido diploma legal, que, quanto às penas de multa, são perdoadas as até 120 dias a título principal ou em substituição de penas de prisão.

Tendo em consideração que o perdão incide sobre a pena única – veja-se o n.º 4 do mesmo preceito – e que esta no caso é superior a 120 dias – 180 dias –, não é aplicável ao arguido o regime estabelecido na Lei n.º 38-A/2023, nada havendo a descontar.

O mesmo se diz quanto à pena acessória aplicada ao arguido uma vez que, como promovido, a mesma deveu-se à condenação pela prática do crime de condução perigosa de veículo rodoviário pelo que o perdão da mesma não encontra base legal naquele diploma legal que se limita a prevê-lo para as sanções acessórias relativas a contraordenações.”

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Inconformado com a referida decisão, dela recorreu o Ministério Público, tendo terminado a motivação com as seguintes conclusões:

“I. O Ministério Público não se conforma com o despacho proferido nos autos que decidiu não aplicar o perdão de pena aplicada pelo crime de condução sem habilitação legal (pena parcelar de 50 dias) ainda que em cúmulo de penas tenha sido o arguido condenado em 180 dias de multa.

Pois que,

II. Nos presentes autos, o arguido, (com idade inferior a 30 anos de idade) foi condenado por sentença transitada em julgado, pela prática, em 20.02.2022, por 1 um crime de resistência e coação, na pena de 120 dias de multa, 1 crime de condução perigosa de veículo rodoviário, na pena de 80 dias de multa, e 1 crime de condução sem habilitação legal, na pena de 50 dias de multa, e por isso, condenado na pena única de 180 dias de multa.

III. Tendo o tribuna a quo entendido que não era de aplicar a Lei 38-A/2023 de 2 de Agosto, pois que “Tendo em consideração que o perdão incide sobre a pena única – veja-se o n.º 4 do mesmo preceito – e que esta no caso é superior a 120 dias – 180 dias –, não é aplicável ao arguido o regime estabelecido na Lei n.º 38-A/2023, nada havendo a descontar.”.

IV. O tribunal a quo entendeu assim que a pena aplicada em cúmulo seria a determinante, independentemente das penas parcelares aplicadas por outros crimes excluídos da lei da amnistia,

V. Como se de uma pena unitária se tratasse, e não uma pena única, conforme optou o legislador português, contrariando assim as já sobejamente conhecidas palavras do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido no processo sob o n.º 790/10.2JAPRT.S1, de 16-05-2019, disponível em www.dgsi.pt quando diz que“Optou o legislador penal, na punição do concurso de crimes, por um sistema de pena conjunta, e não de pena unitária, uma vez que impôs a fixação das penas correspondentes a cada um dos crimes em concurso, e é das penas parcelares que se parte para a fixação da moldura penal do concurso (enquanto que, segundo o sistema de pena unitária, seria aplicável uma única pena ao agente, sem determinação prévia das penas referentes a cada infração)”.

VI. Uma vez que entrou em vigor legislação que procedeu a “alteração das circunstâncias que determinaram a condenação do arguido”, importaria, antes “anular (ou “desfazer”) o(s) cúmulo(s) anterior(es), e considerar somente, para a elaboração do novo cúmulo, o conjunto das penas parcelares, que readquirem autonomia”.

VII. Diga-se ainda, que, a proceder o despacho recorrido, seria o convite ao não pagamento da pena única de 180 dias de multa, e mercê da não existência de bens penhoráveis, ser esta substituída por pena de prisão, reduzida em 2/3, agora para 120 dias, e ali beneficiar o arguido do perdão da pena, por conta do crime de condução sem habilitação legal,

VIII. Não fazendo jus ao princípio basilar do direito penal, quanto ao princípio do conteúdo mais favorável ao arguido, nos termos e para os efeitos do n.º 4 do artigo 2.º do Código Penal.

Assim,

Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente, sendo o despacho recorrido revogado e o arguido beneficiado no perdão da pena pelo crime de condução sem habilitação legal a que foi condenado - na pena parcelar de 50 dias de multa - nos termos e para os efeitos dos artigos para os efeitos do n.º 1, do artigo 2.º; al. a), do n.º 2 do artigo 3.º e artigo 7.º, à contrário, da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, só assim se fazendo a já acostumada justiça!!!”

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O arguido respondeu ao recurso, tendo terminado a resposta com as seguintes conclusões:

“1ª- O Tribunal a quo entendeu erradamente que não é aplicável ao arguido o regime estabelecido pela Lei nº 38-A/2023 porquanto foi condenado, em cúmulo jurídico na pena única de 180 dias de multa.

2ª Porém, o arguido foi condenado na pena parcelar de 50 dias de multa pela prática de um crime de condução sem habilitação legal.

3ª Tendo sido alteradas as circunstâncias do cúmulo jurídico, deve o mesmo ser refeito, sendo atendidas as penas parcelares de cada um dos crimes pelos quais o arguido foi condenado, sob pena de violação do princípio do tratamento mais favorável ao arguido.

4ª O arguido reúne os requisitos legais para beneficiar da aplicação da Lei da Amnistia.

5ª Assiste por isso total razão à Digna Magistrada do Ministério Público, aderindo o arguido, na generalidade, ao entendimento e à fundamentação de direito constantes das suas motivações de recurso.

6ª Nestes termos, deverá o recurso interposto pelo Ministério Público ser julgado procedente.

Termos são os expostos em que, com o douto e sempre desejável suprimento de V. Excia. deverá dar-se provimento ao recurso, com a consequente revogação do despacho recorrido, declarando-se o perdão da pena de 50 dias de multa em que o arguido foi condenado pela prática do crime de condução sem habilitação legal, por aplicação da Lei nº 38-A/2023 de 2 de agosto, com o que se fará justiça.”

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Neste tribunal da relação, o Exmº P.G.A. emitiu parecer no sentido da procedência do recurso e, cumprido que foi o disposto no artº 417º, nº 2, do C.P.P., o arguido ofereceu resposta, concordando com o parecer.

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APRECIAÇÃO

Importa apreciar no presente recurso se deve, ou não ser aplicado o perdão da pena aplicada relativamente ao crime de condução sob o efeito do álcool e, em caso afirmativo, em que termos.

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O arguido nasceu em …/…/2001 e, relativamente a factos ocorridos em 22/2/2022, foi condenado nos seguintes termos (dispositivo da sentença, na parte que interessa):

“Nestes termos, e pelo exposto, julgo a acusação procedente por provada e, em consequência, decide-se:

a) Condenar o arguido AA, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de 1 (um) crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelos art.º 3º, n.º 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de janeiro, na pena de 50 dias de multa.

b) Condenar o arguido AA, pela prática em autoria material, na forma consumada, de 1 (um) crime resistência e coação, p. e p. pelo art.º 347º, n.º 2 do Código Penal, na pena de 10 meses de prisão, substituída por 120 dias de multa.

c) Absolver o arguido AA, pela prática em autoria material, na forma consumada, de 1 (um) crime resistência e coação.

d) Condenar o arguido AA, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de 1 (um) crime de e condução perigosa, previsto e punido, pelo artigo 291.º, n.º 1 alínea b) do Código Penal, na pena de 80 dias de multa.

e) Em cúmulo jurídico, condenar o arguido AA na pena única de 180 (cento e oitenta) dias de multa, à taxa diária de 6,00 (seis euros), o que perfaz um total de 1 (mil e oitenta euros).

f) Condenar o arguido AA na pena acessória de proibição de condução de veículo motorizado, previsto e punido pelo art.º 69º, n.º 1, al. a) do Código Penal, por um período de 6 meses.”

Dispõe o artº 3º da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto:

“Artigo 3.º

Perdão de penas

1 - Sem prejuízo do disposto no artigo 4.º, é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos.

2 - São ainda perdoadas:

a) As penas de multa até 120 dias a título principal ou em substituição de penas de prisão;

b) A prisão subsidiária resultante da conversão da pena de multa;

c) A pena de prisão por não cumprimento da pena de multa de substituição; e

d) As demais penas de substituição, exceto a suspensão da execução da pena de prisão subordinada ao cumprimento de deveres ou de regras de conduta ou acompanhada de regime de prova.

3 - O perdão previsto no n.º 1 pode ter lugar sendo revogada a suspensão da execução da pena.

4 - Em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única.

5 - O disposto no n.º 1 abrange a execução da pena em regime de permanência na habitação.

6 - O perdão previsto no presente artigo é materialmente adicionável a perdões anteriores.”

No despacho recorrido entendeu-se não aplicar o perdão da pena de 50 dias de multa relativamente ao crime de condução sem habilitação legal porque tal perdão deve incidir sobre a pena única e esta foi superior a 120 dias de multa.

Entende o recorrente que o referido nº 4 do artº 3º, não impede que se aplique o perdão relativamente ao indicado crime, pois que o mesmo tem por referência o nº 1 (penas de prisão) e não o nº 2 (penas de multa).

O recorrente tem razão ao pretender a aplicação do perdão relativamente à pena em causa, mas não exacta e completamente pelos fundamentos invocados.

A alegação de que o nº 4 do referido preceito legal tem que ver apenas com o nº 1 (perdão da pena de prisão) e não também com o nº 2, por força da utilização naquele nº 1 da expressão “sem prejuízo do disposto no artº 4º” não tem cabimento.

Ao que se supõe, leu-se “nº 4” onde consta “artº 4º”, sendo certo que o que se pretende significar é que a aplicação do perdão não prejudica a prévia aplicação da amnistia propriamente dita, se for caso disso. Isto é: se um crime pode beneficiar de amnistia e de perdão da pena aplicada, deve ser declarado amnistiado, ficando sem efeito útil (e possível) a aplicação de qualquer perdão.

A questão é outra: o nº 4 referido pressupõe que todos os crimes englobados no cúmulo podem beneficiar do perdão. Nesse caso aplica-se o perdão à pena única e não às várias penas parcelares, mesmo que estas sejam inferiores a 8 anos de prisão.

Se alguns dos crimes podem beneficiar do perdão das respectivas penas aplicadas e outros não (porque abrangidos pelo artº 7º da Lei da amnistia), então há que desfazer o cúmulo, aplicar o perdão devido, e de seguida reformular o cúmulo quanto às penas dos crimes que não puderam beneficiar do perdão ( se tiveram em causa penas de multa, como é o caso, não há pena remanescente depois da aplicação do perdão).

No nosso entendimento, tal resulta do que dispõe o nº 3 do artº 7º da lei da amnistia (realce nosso):

“A exclusão do perdão e da amnistia previstos nos números anteriores não prejudica a aplicação do perdão previsto no artigo 3.º e da amnistia prevista no artigo 4.º relativamente a outros crimes cometidos.”

É o que acontece no caso dos autos: desfaz-se o cúmulo, a pena de 50 dias de multa relativamente ao crime de condução sem habilitação legal é totalmente declarada perdoada e de seguida fixa-se nova pena única relativamente aos dois crimes restantes.

É como se existisse uma norma equivalente ao nº 4 do artº 9º da L. 15/94 de 11/5 (a Lei n.º 29/99, de 12 de Maio não previa perdão de penas de multa):

– “A exclusão de perdão prevista nos n.ºs 1 e 2 não prejudica a aplicação do perdão previsto no artigo anterior em relação a outros crimes cometidos, devendo, para o efeito, proceder-se a adequado cúmulo jurídico” –, sendo certo que aí também existia a norma do nº 4 do artº 8º - “Em caso de cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única e é materialmente adicionável a perdões anteriores, sem prejuízo do disposto no artigo 10.º”

É certo que a última expressão deste preceito legal – “devendo para o efeito, proceder-se a adequado cúmulo jurídico” – não consta do nº 3 do artº 7º da actual lei da

amnistia, mas não se vislumbra outra forma de tornar efectivo o perdão das penas relativamente aos crimes que não estão excluídos do mesmo.

Não acompanhamos o decidido no ac. da rel. de Lisboa de 23/1/2024 na interpretação “restritiva” que faz do referido nº 3 do artº 7º, ao referir que o mesmo serve apenas para não excluir os crimes que podem beneficiar do perdão, mas não em caso de pena única.

Com o devido respeito, nesse entendimento o nº 3 do artº 7º fica completamente esvaziado de conteúdo, pois se existem vários crimes, necessariamente terá que ocorrer uma pena única.

A lei da amnistia actual não tem uma norma idêntica à do artº, nº 6, da L. 9/2020 de 10/4, prevê expressamente que não poderão beneficiar de perdão, caso ocorram crimes excluídos do mesmo:

“Artigo 2.º

Perdão

1 - São perdoadas as penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração igual ou inferior a dois anos.

2 - São também perdoados os períodos remanescentes das penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração superior à referida no número anterior, se o tempo que faltar para o seu cumprimento integral for igual ou inferior a dois anos, e o recluso tiver cumprido, pelo menos, metade da pena.

3 - O perdão referido nos números anteriores abrange a prisão subsidiária resultante da conversão da pena de multa e a execução da pena de prisão por não cumprimento da pena de multa de substituição e, em caso de cúmulo jurídico, incide sobre a pena única.

4 - Em caso de condenação do mesmo recluso em penas sucessivas sem que haja cúmulo jurídico, o perdão incide apenas sobre o remanescente do somatório dessas penas, se o tempo que faltar para o seu cumprimento integral for igual ou inferior a dois anos.

5 - Relativamente a condenações em penas de substituição, o perdão a que se refere este artigo só deve ser aplicado se houver lugar à revogação ou suspensão.

6 - Ainda que também tenham sido condenados pela prática de outros crimes, não podem ser beneficiários do perdão referido nos n.ºs 1 e 2 os condenados pela prática:

(…)”

Significa isto que o legislador pretendeu que os condenados beneficiassem de perdão da pena relativamente a crimes não excluídos (repete-se: se assim não for, para que serve o nº 3 do artº 7º?).

Neste sentido: ac. da rel. do Porto de 11/10/2023 (embora com aplicação do perdão na pena única), em cujo texto se refere (com realce nosso): “Deste modo, nesses casos, o perdão não é afastado pela circunstância de no cúmulo jurídico estarem englobadas, para além de penas parcelares aplicadas por crimes dele não excluídos, pelo menos outra pena parcelar aplicada por crime dele excluído”.

Tudo está em saber como aplicar esse perdão.

A contrário do que parece resultar da motivação de recurso, tal perdão não deve incidir sobre a pena única, pois que se desconhece qual a “contribuição” da pena do crime beneficiário do perdão para a formação da pena única, podendo em abstracto estar a perdoar-se mais do que o limite previsto na lei.

No referido ac. da rel. do Porto de 11/10/2023 entendeu-se:

“Contudo, no caso de cúmulo jurídico de penas parcelares aplicadas por crimes não abrangidos pela amnistia, em que apenas um deles não está excluído do perdão, afigura-se que a conjugação dos arts. 3.º, n. 4, e 7.º n.º 3, da Lei em análise impõe que a medida do perdão a incidir sobre a pena única não pode ser superior à pena parcelar aplicada pelo crime que determina a aplicação do perdão. Vide acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 29-11-2000, processo n.º 10861, relator Manuel Braz, in www.datajuris.pt.

Por outro lado, ainda no caso de cúmulo jurídico de penas parcelares aplicadas por crimes não abrangidos pela amnistia, em que apenas um deles está excluído do perdão, afigura-se que a conjugação dos arts. 3.º, n.º 4, e 7.º, n.º 3, da Lei em apreço impõe que o remanescente da pena única resultante da aplicação àquela do perdão não pode ser inferior à pena parcelar aplicada pelo crime excluído do perdão. Vide acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 29-11-2000, processo n.º 10861, relator Manuel Braz, in www.datajuris.pt.

É certo que a pena única sobre a qual incide o perdão é uma nova e autónoma pena que se distingue das penas parcelares. Contudo, seria ilógico aplicar um perdão na pena única em medida superior à medida da pena parcelar aplicada pelo único crime que demanda a aplicação de tal benefício. Por outro lado, perante um único crime, caso o mesmo esteja excluído do perdão, entendeu o legislador que a respetiva pena não deveria ser reduzida. Desta forma, seria ilógico que, após a aplicação do perdão à pena única, o condenado tivesse que cumprir um remanescente inferior à medida da pena parcelar aplicada pelo único crime excluído de tal benefício.”

Ora, a declarar-se perdoada na pena única o período de 50 dias, está a partir-se do princípio de que a contribuição da pena parcelar beneficiária do perdão para a formação da pena única foi total.

Por outro lado, se assim se procedesse corria-se o risco de o arguido cumprir efectivamente uma pena com duração inferior à das penas excluídas do perdão.

Assim sendo, parece que o justo e adequado é proceder-se conforme acima já referido: é perdoada toda a pena parcelar relativamente ao crime beneficiário do perdão (nos casos de penas de multa opera o perdão de toda a pena até 120 dias, inexistindo, assim, pena de multa restante não perdoada), como afinal se refere) e efectuado novo cúmulo jurídico das restantes penas (se for só uma pena restante, obviamente permanecerá apenas esta).

Quer o referido acórdão da rel. de Lisboa de 23/1/2024, quer os artigos na revista julgar on line de Agosto de 2023 (Pedro Brito) e de Janeiro de 2024 (Pedro Brito e Ema Vasconcelos) referem-se a casos de penas de prisão e utilizam o argumento de que o legislador não pretendeu “beneficiar” quem é condenado em pena de prisão única superior a 8 anos, independentemente de existirem penas parcelares relativas a crime beneficiários do perdão.

Ora, tal tipo de argumentação não tem muito cabimento quando se trata de penas de multa como é o caso, embora, reconhece-se, não se poderá proceder de forma diversa conforme os tipos de penas.

Atente-se, no entanto, que relativamente às penas de prisão é perdoado um ano nas penas até oito anos (independentemente, portanto, da medida da mesma), enquanto que relativamente às penas de multa são perdoadas todas as penas até 120 dias. Ou seja: nas penas de prisão pode restar pena não perdoada; nas penas de multa é a mesma totalmente perdoada, desde que seja até 120 dias (não resta pena de multa não perdoada).

Assim sendo, embora por razões diferentes das alegadas, deverá o recurso ser julgado procedente.

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DECISÃO

Face ao exposto, acordam os Juízes em julgar o recurso procedente e, em consequência, declaram perdoada toda a pena parcelar de 50 dias de multa que foi aplicada relativamente ao crime de condução sem habilitação legal, devendo oportunamente efectuar-se o cúmulo jurídico relativamente às duas penas restantes.

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Sem tributação.

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Évora, 20 de Fevereiro de 2024

Nuno Garcia

Margarida Bacelar

Jorge Antunes