Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2613/22.0GBABF. E1
Relator: MARGARIDA BACELAR
Descritores: ABERTURA DE INSTRUÇÃO
REQUERIMENTO
ESTRUTURA ACUSATÓRIA
Data do Acordão: 03/05/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: -A Assistente não se limitou a descrever as razões pelas quais discordava dos fundamentos do despacho de arquivamento, apresentando uma acusação onde se pode constatar um enquadramento no espaço, tempo e modo de como os factos foram praticados e de quem é o autor material dos mesmos;
- A Assistente, no RAI, narrou devidamente os factos que, em sua opinião, constituem indícios da prática do crime de maus-tratos ao menor, identificou também qual o autor material dos factos praticados, fazendo o devido enquadramento destes no espaço e no tempo.

- No RAI foram descritos os factos integradores dos elementos constitutivos do crime em apreço e que a Assistente pretende ver imputados à Arguida, estando assim devidamente asseguradas as garantias de defesa da Arguida, quanto aos factos que lhe são imputados; pelo que, não deveria o Tribunal a quo ter rejeitado a instrução por inadmissibilidade.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
No termo do inquérito instaurado na Delegação da Procuradoria da República junto do Tribunal Judicial de …, o Ministério Público determinou o arquivamento dos autos por considerar que, perante a prova recolhida ao longo do inquérito, não se mostrava preenchido pela arguida o ilícito oportunamente denunciado por AA, – CRIME DE MAUS TRATOS.

Notificada de tal despacho, a denunciante AA requereu a abertura da instrução, assacando à denunciante/arguida BB a Autoria do crime de maus tratos.

Porém, o Mmo. Juiz de Instrução rejeitou, por inadmissível o requerimento de abertura da instrução formulado pela Assistente.

No referido despacho, sustentou-se a rejeição do requerimento de abertura da instrução com os seguintes fundamentos: “…. Concretizando, analisando o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente AA verifica-se que a mesma avança as razões da sua discordância com o despacho final de arquivamento proferido pelo Ministério Público, contudo, parece olvidar a referida estrutura acusatória. Lidos todos os factos, o que se verifica é que a assistente veio trazer novamente todos os fundamentos que deram origem à denúncia, mas não individualizou e explanou quais os factos que se subsumem aos tipos criminais em causa e que devem ser sujeitos ao crivo judicial. Repare-se que a assistente não faz referência material aprofundada à forma como se terão desenvolvido os factos denunciados, impondo ao juiz de instrução, dada a forma como alegou, a busca nos elementos constantes dos autos dos factos que poderão consubstanciar a prática dos imputados crimes. Isto é, estamos perante uma alegação genérica de factos, sendo que é ao Juiz de Instrução que compete “escolher” os factos que posteriormente serão sujeitos a debate. Tal situação, à luz dos preceitos citados, não é admissível.

Note-se ainda que não se mostram individualizados os factos que correspondem aos elementos dos tipos criminais. Em especial e tal é o motivo da prolacção do presente despacho, o elemento subjectivo é quase omisso no RAI. A assistente elenca os factos que seria o objecto do processo, no art. 34.º do RAI, mas quanto ao elemento subjectivo coloca um singelo facto referindo que a arguida agiu livre, deliberada e conscientemente. Olvidou todas demais dimensões do dolo, nomeadamente que a arguida quis praticar os factos contra o menor, sabendo da sua ilicitude e ainda assim não se coibiu de agir, sabendo que o fazia perante menor e que tinha perante este especial dever de cuidado.

Em termos práticos, o segmento do RAI semelhante à acusação é omisso quanto ao elemento subjectivo. E não há no RAI qualquer referência aos elementos em falta. Não existindo dolo, não há crime, logo, do RAI nunca poderia resultar uma correcta fixação do objecto dos autos.

É pacífico o entendimento jurisprudencial segundo o qual não pode o Tribunal completar os elementos relevantes em falta.

Constatamos, assim, que, e ao contrário daquilo a que estava obrigada, a assistente não fez no requerimento de abertura da instrução a necessária inventariação factual equivalente a uma acusação pública, porquanto não enumerou de forma cabal, precisa, concreta e determinada os factos que pretende estarem indiciados, susceptíveis de integrarem a prática por um concreto indivíduo de um ilícito típico que permita a aplicação de uma pena, em especial quanto ao elemento subjectivo. Ou seja, a assistente não elaborou um requerimento de abertura da instrução onde desse cumprimento às imposições legais supra referidas, nomeadamente no sentido de que se possa afirmar estarmos perante uma verdadeira acusação.

Sublinhe-se novamente que não é ao Juiz de instrução criminal que incumbe seleccionar na alegação que constitui a denúncia aqueles factos que concretamente, a terem-se por suficientemente indiciados, poderiam permitir a imputação ao denunciado na fase da instrução de um qualquer ilícito penal, nomeadamente os crimes de violação de domicílio ou perturbação da vida privada e de falsificação de documento.

Relembra-se o que já foi dito sobre a exigência que, in casu, devia conter o requerimento da assistente não só para que a denunciada possa, eventualmente, ser pronunciada pelos factos nele descritos, mas também para que fiquem definitivamente assegurados os seus direitos de defesa e lhe seja possível carrear para o processo os elementos de prova que entender úteis (cfr. Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal, Anotado, 9.ª edição, pág. 541).

Assim se respeitarão, então, os princípios basilares que subjazem ao processo penal: estrutura acusatória e delimitação ou vinculação temática do tribunal, em ordem a assegurar as garantias de defesa do(s) arguido(s) contra qualquer arbitrário alargamento do objecto do processo e a possibilitar-lhe(s) a preparação da defesa, no respeito pelo princípio do contraditório.

Leia-se, a este propósito, o que se escreveu no Acórdão da Relação de Lisboa, de 20 de Maio de 1997 (in CJ, XXII, 3.º pág. 143), «o requerimento de abertura de instrução, no caso de arquivamento do processo pelo Ministério Público, é que define e limita o respectivo objecto do processo, a partir da sua formulação, constituindo, substancialmente, uma acusação alternativa. Assim, e além do mais, deverá dele constar a descrição dos factos que fundamentam a eventual aplicação de uma pena ao arguido e a indicação das disposições legais incriminadoras». Mais adiante ainda se anota: «não é ao juiz que compete compulsar os autos para fazer a enumeração e descrição dos factos que poderão indiciar o cometimento pelo arguido de um crime, pois, então, estar-se-ia a transferir para aquele o exercício da acção penal contra todos os princípios constitucionais e legais em vigor».

O não acatamento pelo assistente desta exigência torna-se depois insuprível: «face à indiscutível ausência no requerimento de abertura de instrução do necessário conteúdo fáctico», o despacho de pronúncia que, porventura, viesse a ser proferido na sua sequência «seria nulo» ou, até, «juridicamente inexistente» (cfr. neste sentido, Acórdão da Relação de Lisboa de 9 de Fevereiro de 2000, in CJ, XXV, 1.º, pág. 153).

Com efeito, não contendo o requerimento de abertura da instrução o indispensável conteúdo fáctico e não respeitando o constante das várias alíneas do n.º 3 do artigo 283.º, do Código de Processo Penal, «não só se torna inexequível a instrução, ficando o juiz sem saber quais os factos que o assistente gostaria de ver julgados indiciados – e também o arguido, ficando inviabilizada a sua defesa –, como também, caso mesmo assim se prosseguisse a instrução, qualquer despacho de pronúncia que se proferisse na sua sequência sempre seria nulo nos termos do artigo 309.º do Código de Processo Penal», e, por isso, «inútil e proibido, tal como os actos eventualmente subsequentes» (cfr. Acórdão da Relação de Lisboa, de 11 de Outubro de 2001, in CJ, XXVI, 4. º, pág. 141).

Também que se o assistente requerer a abertura de instrução sem a indicação e enunciação do constante naquelas alíneas «a instrução será a todos os títulos inexequível» (cfr. Maia Gonçalves, op. cit., pág. 541, e Souto de Moura, “Inquérito e Instrução” in “Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo Código de Processo Penal”, Ed. do C.E.J., Almedina, Coimbra, 1991, pág. 120).

Em síntese, a instrução é inadmissível, por falta de objecto (artigo 287.º, n. º 3), impondo-se, pois, a rejeição do requerimento de abertura de instrução.

De harmonia com o teor do Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 7/2005, publicado no D.R. I Série -A n.º 212, de 4 de Novembro de 2005, que fixou jurisprudência no sentido de não haver lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentando nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo, Penal, quando for omisso à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido, não se proferirá tal despacho.

Concluímos, assim, que o requerimento de abertura da instrução em apreço terá forçosamente de ser liminarmente rejeitado.

Decisão

Nestes termos, sem necessidade de ulteriores considerações e tendo em atenção o supra exposto, decido rejeitar, por inadmissível, o requerimento de abertura da instrução em apreço.”

É desse despacho que a Assistente AA ora recorre para esta Relação, formulando, no termo da sua motivação, as seguintes conclusões:

“O recurso tem como objeto o despacho que rejeitou o requerimento de abertura de instrução apresentado pela Assistente por entender que este é inadmissível;

2. A Recorrente não pode concordar com a posição adotada pelo Tribunal a quo quanto à admissibilidade do requerimento de abertura de instrução;

3. Nos termos do n.º 1 e 2 do artigo 286º do CPP, a instrução é uma fase facultativa que visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento;

4. Na sequência do despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público, o Assistente pode, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 287º do CPP, requerer a instrução se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente aos factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação;

5. O requerimento de abertura de instrução apresentado pelo Assistente tem de conter, ainda que de forma sintética, a indicação dos factos imputados ao Arguido e as normas legais aplicáveis, correspondendo a uma acusação, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 287º, e das alíneas b) e d) do artigo 283º, todos do CPP;

6. A acusação deduzida pelo Assistente tem de conter as razões de facto e de direito que fundamentam a discordância relativamente ao arquivamento, bem como a narração dos factos que integram os crimes pelos quais o Assistente pretende ver pronunciado o Arguido;

7. O Assistente requer ao Tribunal a submissão a julgamento do Arguido pela prática dos factos que descreve na acusação em conformidade com as disposições legais aplicáveis e que também indica;

8. Decorre do douto despacho que se recorre que, a Assistente olvida no requerimento de abertura de instrução de uma estrutura acusatória, que não individualizou quais os factos que subsumem aos tipos criminais em causa e que devem ser sujeitos ao crivo judicial;

9. Entende que a Assistente faz uma alegação genérica dos factos deixando ao Juiz de Instrução papel de escolher quais os factos que devem ser sujeitos a debate;

10. Entende, ainda, que o elemento subjetivo é omisso no RAI, e não existindo dolo não há crime;

11. Concluindo que a instrução é inadmissível por falta de objeto nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 287º do CPP;

12. A Assistente entende que requereu a abertura de instrução em conformidade com o disposto no n.º 1 e 2 do artigo 287º, e das alíneas b) e d) do n.º 3 do artigo 283º, todos do CPP;

13. A Assistente ao longo do RAI e em específico no artigo 34º enuncia e descreve o tipo subjetivo e objetivo do crime em apreço, bem como a sua autoria, culminado o RAI com o pedido de que a Arguida fosse pronunciada pela prática de um crime de maus-tratos contra o menor, CC, p.p. pelo artigo 152º – A do CP;

14. São elementos objetivos deste tipo de crime, a existência de uma específica relação entre o arguido e a vítima e a existência de agressões físicas ou psicológicas.

15. No que ao elemento subjetivo diz respeito, trata-se de um crime que exige o dolo, admitindo-se o dolo em qualquer das suas modalidades (artigo 14º do CP), ou seja, o dolo, o conhecimento e vontade de praticar o facto, com consciência da sua censurabilidade.;

16. Ao analisar-se o RAI, dúvidas não podem existir de que a Assistente apresentou uma estrutura acusatória, individualizando os factos que entende subsumirem ao crime de maus-tratos e que devem ser sujeitos ao crivo judicial;

17. Também entende que ao longo do RAI enunciou por diversas vezes o elemento subjetivo do crime ao referir que a Arguida agiu de forma livre, deliberada e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e punível por lei penal, ao contrário do que decorre do Despacho;

18. A Assistente não se limitou a descrever as razões pelas quais discordava dos fundamentos do despacho de arquivamento, apresentando uma acusação onde se pode constatar um enquadramento no espaço, tempo e modo de como os factos foram praticados e de quem é o autor material dos mesmos;

19. A Assistente, no RAI, narrou devidamente os factos que, em sua opinião, constituem indícios da prática do crime de maus-tratos ao menor;

20. Identificou também qual o autor material dos factos praticados, fazendo o devido enquadramento destes no espaço e no tempo;

21. No RAI foram descritos os factos integradores dos elementos constitutivos do crime em apreço e que a Assistente pretende ver imputados à Arguida;

22. Estão assim devidamente asseguradas as garantias de defesa da Arguida, quanto aos factos que lhe são imputados;

23. Pelo que, não deveria o Tribunal a quo ter rejeitado a instrução por inadmissibilidade;

24. A Assistente requereu, ainda, em sede de RAI, a produção acrescida de prova, sobre a qual o douto Tribunal não se pronunciou, e deveria tê-lo feito.

25. Entende assim a Assistente que deu cumprimento a todas as imposições legais, contendo uma estrutura acusatória, enumerando os factos praticados pela Arguida que integram a prática do crime de maus-tratos, e por isso, suscetíveis de aplicação de uma pena;

26. Foi no RAI enunciado de forma ordenada e concreta, os factos imputados à Arguida integradores do crime de maus-tratos, na sua vertente objetiva e subjetiva, nos mesmos termos que são exigidos ao Ministério Público quando exerce a ação penal, tendo ali plasmado o preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos do tipo de crime em causa, de um modo conciso que permite a defesa da Arguida;

27. Em suma, não houve qualquer motivo legal para a não admissão da instrução, devendo a mesma ser admitida com todas as legais consequências.

Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso, por via dele, ser revogado o despacho recorrido e, em consequência, substituído por outro que admita o requerimento de abertura de instrução, por se legalmente admissível, com as demais e devidas consequências legais, assim se fazendo a Costumada JUSTIÇA!”

O Ministério Público respondeu às motivações de recurso apresentadas pela Assistente Recorrente, pugnando pela improcedência do mesmo.

Neste Tribunal, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta teve vista dos autos, emitindo parecer no sentido do não provimento do recurso.

A recorrente, notificada nos termos e para os efeitos previstos no art.º 417º, nº 2 do CPP, quedou-se pelo silêncio, nada tendo vindo alegar.

Efectuada a conferência prevista no art.º 419º do CPP, cumpre agora apreciar e decidir.

O OBJECTO DO PRESENTE RECURSO

Como se sabe, é pelas conclusões que o recorrente extrai da sua motivação que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem, sem prejuízo para a apreciação de questões de oficioso conhecimento e de que ainda se possa conhecer - Cfr., neste sentido, o Ac do STJ de 3/2/99 (in BMJ nº 484, pág 271); o Ac do STJ de 25/6/98 (in BMJ nº 478, pág 242); o Ac do STJ de 13/5/98 (in BMJ nº 477, pág 263); SIMAS SANTOS/LEAL HENRIQUES (in “Recursos em Processo Penal”, p. 48); GERMANO MARQUES DA SILVA (in “Curso de Processo Penal”, vol. III, 2ª ed., 2000, p. 335); JOSÉ NARCISO DA CUNHA RODRIGUES (in “Recursos”, “Jornadas de Direito Processual Penal/O Novo Código de Processo Penal”, 1988, p. 387); e ALBERTO DOS REIS (in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, pp. 362-363). «São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respectiva motivação que o tribunal ad quem tem de apreciar» - GERMANO MARQUES DA SILVA, ibidem.

Assim sendo, no caso sub judicio, a questão submetida pela ora recorrente à apreciação desta Relação é:

1) a de saber se o requerimento de abertura da instrução por ela oportunamente apresentado contém factos que consubstanciam quer os elementos objectivos, quer os elementos subjectivos do tipo legal de crime pelos quais a assistente logo apresentou queixa.

O MÉRITO DO PRESENTE RECURSO

1- Se o requerimento de Abertura de Instrução da ora recorrente contém ou não factos que consubstanciam quer os elementos objectivos, quer os elementos subjectivos do tipo legal de crime pelos quais a assistente logo apresentou queixa.

«No actual ordenamento processual penal, a abertura da instrução pode ser requerida apenas pelo arguido ou pelo assistente: o primeiro requere-a para contrariar a acusação que contra si haja sido deduzida pelo Mº Pº ou pelo assistente (em caso de procedimento dependente de acusação particular), visando, assim, sujeitar à comprovação judicial a decisão, por aqueles tomada, de deduzir acusação; o segundo requere-a “relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação” e cujo procedimento não dependa de acusação particular, visando, pois, por seu turno, a comprovação judicial da decisão assumida pelo Mº Pº ao não deduzir acusação por aqueles factos (cfr. art. 287º, nº 1, e 286º do C. P. Penal)» - Ac. da Relação do Porto de 21/1/2004, proferido no Proc. nº 0111424, in site http://www.dgsi.pt.).

«Donde a maior exigência que a lei marca para o requerimento do assistente – que, ao contrário do arguido, não tem a antecedê-lo uma acusação que delimite o âmbito da eventual pronúncia – que terá de, substancialmente, se estruturar à semelhança de uma acusação, descrevendo os factos e indicando as disposições legais que fundamentem a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança» - cit. Ac. da Relação do Porto de 21/1/2004.

«É o que claramente se retira da parte final do nº 2 do art.º 287º, onde, depois de se indicarem os requisitos a que, sejam do arguido ou do assistente, os requerimentos para abertura da instrução obedecerão, manda ainda aplicar ao requerimento do assistente o disposto no art.º 283º, nº 3, al. b) e c), ou seja, precisamente, exigências que, sob pena de nulidade, a acusação há-de satisfazer: “A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança,...” e “a indicação das disposições legais aplicáveis”» – cit. Ac. da Relação do Porto de 21/1/2004.

O Ac. da Rel. de Lx., de 21/3/2001 (in CJ, XXVI, 2º, p. 131), aponta a diferença entre as duas peças – acusação e requerimento do assistente para abertura da instrução –, considerando que, enquanto na primeira se indicam, necessária e unicamente, factos precisos que se reputam já indiciados, no segundo podem indicar-se factos hipotéticos que se deseja sejam averiguados em sede instrutória.

«Ora, como se alcança dos art.º 303º e 309º do C. P. Penal, a narração dos factos na acusação ou, no caso de instrução requerida pelo assistente, no requerimento para abertura da instrução, assume particular relevo, na medida em que é por tais factos que a pronúncia tem necessariamente de se pautar, já que – nº 1 daquele art.º 309º – “a decisão instrutória é nula na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente ou no requerimento para abertura da instrução”; o que está em consonância com o princípio do acusatório que inspira o nosso ordenamento processual penal e que o texto fundamental acolhe (art.º 32º, nº 5, da Constituição)» – cit. Ac. da Relação do Porto de 21/1/2004.

«A par disso e não menos importante, também tal exigência de narração dos factos no requerimento para abertura da instrução é de fulcral interesse para cabalmente assegurar o princípio do contraditório, a que o mesmo preceito constitucional manda subordinar a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar» – cit. Ac. da Relação do Porto de 21/1/2004.

Na verdade, desde que, na definição legal – al. f) do nº 1 do art.º 1º do C. P. Penal –, alteração substancial dos factos é “aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis”, haverá, necessariamente, uma alteração substancial dos factos se, no requerimento para abertura da instrução, se não descrevem e imputam ao arguido factos que integrem crime e, a despeito de tal, o juiz de instrução pronuncia o arguido, imputando-lhe factos concretos que o integram – cfr., neste sentido, o cit. Ac. da Relação do Porto de 21/1/2004.

Eis por que «o requerimento do assistente para abertura da instrução tem de configurar substancialmente uma acusação, com a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança e a indicação das disposições legais aplicáveis» - Ac. da Relação do Porto de 23/5/2001, proferido no Proc. nº 0110362, in site http://www.dgsi.pt.).

«Di-lo desde logo o art.º 287º, nº 2, do CPP, ao remeter para o art.º 283º, nº 3, alíneas b) e c), do mesmo código, onde se comina com nulidade a falta de cumprimento de qualquer destes ónus» – cit. Ac. da Relação do Porto de 23/5/2001.

Na realidade, se o assistente requerer instrução sem a mínima delimitação do campo factual sobre que há-de versar, a instrução será a todos os títulos inexequível. O juiz ficará sem saber que factos é que o assistente gostaria de ver acusados. Aquilo que não está na acusação e no entendimento do assistente lá devia estar pode ser muito vasto. O juiz de instrução “não prossegue” uma investigação, nem se limitará a apreciar o arquivamento do M° P°, a partir da matéria indiciada no inquérito. O juiz de instrução responde ou não a uma pretensão. Aliás, um requerimento de instrução sem factos, subsequente a um despacho de arquivamento, libertaria o juiz de instrução de qualquer vinculação temática. Teríamos um processo já na fase de instrução sem qualquer delimitação do seu objecto, por mais imperfeita que fosse, o que se não compaginará com uma fase que em primeira linha não é de investigação, antes dominada pelo contraditório (Cfr. José Souto de Moura, Inquérito e Instrução, in Jornadas de Direito Processual Penal – O Novo Código de Processo Penal, Pág. 120).

No mesmo sentido, importa salientar que o juiz está substancial e formalmente limitado na pronúncia aos factos pelos quais tenha sido deduzida acusação formal ou tenham sido descritos no requerimento do assistente (cfr. Germano Marques da Silva, Do Processo Preliminar, Pág. 264).

Perante o que acaba de se expender, é, desde logo, possível afirmar, de forma peremptória, que do requerimento de abertura da instrução formulado pela assistente, constam as circunstâncias de autoria, tempo, modo e lugar dos factos imputados à arguida BB (Cfr., designadamente, o que se encontra exarado no Art.º34 onde se pode ler: a)No dia 29 de setembro de 2022, entre as 18h e as 19h, o menor, CC, encontrava-se no interior da creche “…”, sita em Rua …, …, quando a Assistente o foi buscar; b)A Arguida encontrava-se a trabalhar no referido dia e hora, junto do menor, na creche “…; c)Quando, sem que nada o fizesse prever, a Arguida agarrou, o menor, CC, pela camisola na zona da gola; d) Num ato contínuo, atirou-o bruscamente contra o banco para este se sentar; e) Em decorrência direta do ato praticado pela Arguida, os botões da camisola do menor soltaram-se e este ficou vermelho no pescoço (na zona da gola da camisola),devido à força que foi exercida sobre si; f)Assim que a Arguida viu a Assistente soltou imediatamente o menor que correu para os braços da mãe, a chorar, assustado com o que acabara de acontecer; g) Depois do episódio supra descrito o menor deixou de ir à escola; h) A Assistente teve de contratar uma ama para ficar com o menor; i)A Arguida agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e puníveis por lei penal”).

Sendo certo que o mesmo se pode dizer quanto ao elemento subjectivo do tipo legal em causa, considerando que o elemento intelectual consiste na representação pelo agente de todos os elementos que integram o facto ilícito - o tipo objetivo de ilícito - e na consciência de que esse facto é ilícito e a sua prática censurável e que o elemento volitivo consiste na especial direcção da vontade do agente na realização do facto ilícito.

Não corresponde, pois, à realidade que a recorrente não tenha procedido, à narração da factualidade em causa.

Deste modo, mostra-se, por demais, evidente que a assistente não se limita a impugnar o supra referido despacho do Mº Pº, uma vez que indica factos concretos a ponderar e que podem preencher os elementos de possível crime - de maus tratos -, isto é, descreve a conduta da arguida susceptível de tal incriminação, com referência à respectiva disposição legal sancionatória (respectivamente, art.ºs 152º-A 1, al. a), do C. Penal).

Por isso, o requerimento para abertura de instrução em análise contém os elementos suficientes para legitimar a prossecução da instrução, a qual poderá culminar, sempre, com uma decisão de pronúncia ou de não pronúncia (Cfr. Art.º 308º, n.º 1 do C. P. Penal).

Deu, portanto, a assistente integral cumprimento ao disposto no Art.º 287°, n.º 2 do C. P. Penal que manda aplicar o estatuído no Art.º 283°, n.º 3, alíneas b) e c) do mesmo diploma.

Pelo que, nestes termos, mais nada nos resta senão concluir que o seu requerimento para abertura de instrução foi indevidamente rejeitado por inadmissibilidade legal.

DECISÃO

Nestes termos, acorda-se em conceder provimento ao recurso da assistente AA, revogando-se o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que defira o requerimento para abertura da instrução, procedendo à sua efectivação, designadamente com a realização do necessário debate instrutório.

Sem custas.

Évora, 05/03/2024