Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
100/22.6T8PTG.E1
Relator: ISABEL DE MATOS PEIXOTO IMAGINÁRIO
Descritores: DANO BIOLÓGICO
PERDA DA CAPACIDADE DE GANHO
EQUIDADE
Data do Acordão: 03/07/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: - o quantum indemnizatório devido pelo dano biológico que implica perda de capacidade de ganho futuro alcança-se segundo critérios de critérios de equidade, tendo-se em conta as exigências do princípio da igualdade, cuja prossecução implica a procura de uma uniformização de critérios, tomando em atenção as circunstâncias do caso concreto;
- os custos a suportar com a ajuda de terceira pessoa não configuram danos de natureza não patrimonial;
- na falta de elementos factuais bastantes, a indemnização do mencionado dano é fixada com recurso à equidade.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Évora

I – As Partes e o Litígio

Recorrente / Autora: AA
Recorrida / Ré: (…) Seguros, SA

Trata-se de uma ação declarativa de condenação no âmbito da qual a A peticionou a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de € 1.044.793,00 (um milhão, quarenta e quatro mil, setecentos e noventa e três euros), acrescida de juros legais, contados desde a data de citação e até efetivo e integral pagamento, o que se reporta às seguintes verbas:
- € 12.290,50 a título de indemnização pela incapacidade temporária absoluta desde a data do acidente até à data da alta, a 30/01/2018, o que perfaz o período de 523 dias, considerando a RMMG de € 705,00;
- € 25.615,00 a título de indemnização pela incapacidade parcial de 60% desde a data da alta até à propositura da ação, o que perfaz o período de 1090 dias, considerando a RMMG de € 705,00;
- € 359.897,51 a título de indemnização pelo dano patrimonial futuro decorrente da incapacidade de 55 pontos;
- € 100.000,00 a título de indemnização de lucros cessantes;
- € 483.990,00 para remuneração de empregada encarregue do serviço doméstico, à razão de 4 horas por semana, durante 51 anos;
- € 30.000,00 para suportar custos futuros com medicamentos e cirurgia;
- € 33.000,00 a título de indemnização de danos de natureza não patrimonial.
Para tanto, alegou ter sofrido acidente de viação quando seguia como passageira em veículo automóvel que foi embatido por reboque de veículo seguro pela Ré. Os danos que sobrevieram a tal acidente, que enuncia, reclamam indemnização a prestar pela Ré.
Em sede de contestação, a Ré, aceitando a responsabilidade do segurado na produção do acidente, considerou os montantes peticionados manifestamente excessivos, salientando ter já procedido ao pagamento de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros), que a Autora não tinha profissão, não lhe sendo conhecida nenhuma atividade desde a maioridade, não está incapacitada para toda e qualquer profissão nem teve necessidade de ajuda de terceira pessoa.

II – O Objeto do Recurso
Decorridos os trâmites processuais documentados nos autos, foi proferida sentença julgando a ação parcialmente procedente, conforme segue:
«Julga-se parcialmente procedente, por apenas parcialmente provada, a ação intentada por AA contra a R. (…) Seguros, S.A., e, em consequência, decido condenar a R, no pagamento à A. da quantia de € 160.000,00 (cento e sessenta mil euros), sendo € 100.000,00 a título de danos patrimoniais e € 60.000,00 a título de danos não patrimoniais, determinando-se a dedução de € 2.500,00 no primeiro montante, absolvendo-se a R. do demais peticionado.
Sobre as referidas quantias são devidos juros de mora contados desde a data de citação relativamente aos danos patrimoniais e desde a data da prolação da presente decisão quanto aos danos não patrimoniais.»

Inconformada, a Autora apresentou-se a recorrer, pugnando pela revogação da decisão recorrida, a substituir por outra que condene a Ré no pagamento da quantia de € 1.044.793,01 (um milhão, quarenta e quatro mil, setecentos e noventa e rês euros e um cêntimo) a título de indemnização global, pelos danos patrimoniais e não patrimoniais por si sofridos.
As conclusões da alegação do recurso são as seguintes:
«1. Quanto à enunciação dos factos provados e não provados manifestamos a total concordância com a Douta apreciação realizada na Douta Sentença.
2. Assim como se concorda também com a fundamentação e a matéria de direito vertida na Douta Sentença.
3. Apenas se discorda, não na totalidade, mas em parte no relativo na forma de cálculo do valor indemnizatório, e ao valor indemnizatório atribuído.
4. Relativamente a dano emergente:
Entendeu a Douta sentença que:
(…) “da matéria de facto provada, resulta que a A., à data do acidente, não desenvolvia qualquer atividade profissional.
E nessas circunstâncias, beneficiava de rendimento social de inserção, cuja atribuição é incompatível com a existência de rendimentos de trabalho, não resultando que o seu pagamento tenha sido colocado em crise em razão do acidente.
Notificado a A. para proceder à junção de declarações de IRS, a mesma não as juntou por inexistirem.
Não resultou provado, por conseguinte, o alegado dano emergente. Pelo exposto, improcede o pedido nesta parte.”
5. No entanto entende a Autora, que apesar da matéria de facto dada como provada, com a qual concorda, não deveria o Douto Tribunal na sua sentença concluir desta forma, porquanto, se é correto que a Autora na data do acidente era beneficiária do rendimento social de inserção, nada poderá ser provado quanto a se a Autora posteriormente iria manter esta situação, sendo que de facto aconteceu e se manteve, em virtude do acidente e das lesões que teve que a impediram de trabalhar e não por sua vontade.
6. O facto de a Autora não possuir quando lhe foi pedido declarações de IRS não quer dizer que não o pudesse fazer posteriormente, até porque já colaborava com o seu marido na atividade de vendedora em feiras.
7. Não se apurando qual a quantia que a autora recebia da sua atividade de vendedora, isso não significa que não deva ser arbitrada à autora uma indemnização pelo dano decorrente de ter perdido a capacidade de fazer trabalhos de vendedora, indemnização essa a calcular segundo as regras da equidade (artigo 566.º, n.º 3, do CC).
8. E quanto à questão vertida na douta sentença de que tendo a Autora sido notificada para vir juntar comprovativos de IRS e não o tendo feito, que tal facto é demonstrativo que não exercia atividade profissional e consequentemente ganhos salariais, conclusão com a qual não se concorda de todo.
9. No apuramento do rendimento mensal do lesado, o Tribunal deve atender ao resultado de toda a prova produzida, ainda que não coincida com o fiscalmente comprovado, recusando a aplicação do artigo 64.º, n.º 7, do Dec.-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto, por violar o princípio constitucional da igualdade (artigo 13.º da C.R.P.), e o princípio do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva (artigo 20.º da C.R.P.).
10. Pelo que se conclui que existe dano emergente, dano este que deverá ser indemnizado em termos pecuniários.
11. Conforme ficou dado como provado em 13.
“Em face das lesões sofridas a Autora e tendo em conta a repercussão permanente na atividade profissional habitual encontra-se sem capacidade para manter a sua atividade profissional habitual podendo desenvolver outra dentro da sua área de formação”.
12. Ora sofreu e sofre assim a Autora o que vulgarmente se denomina por IPATH.
13. O Tribunal na sua douta Sentença entendeu não ser de arbitrar qualquer valor indemnizatório por esta IPATH porquanto entendeu que nada deveria ser arbitrado em virtude de apesar de ser o próprio Tribunal que determina que não consegue exercer o seu trabalho habitual, por outro lado na douta Sentença se contradiz afirmando que a A não exercia qualquer atividade de trabalho.
14. Ora a Autora exercia sim a atividade profissional de vendedora em feiras, profissão que deixou de conseguir exercer em face das lesões sofridas em consequente do acidente sofrido de que trata os presentes autos, apenas não possuindo comprovativo fiscal de tal facto, e como exercia esta atividade profissional juntamente com o seu marido, não tem comprovativo de ganhos salariais, o que não deverá levar há conclusão que estes não existem.
15. Assim e por esse motivo, unicamente o que deverá acontecer é para efeitos de indemnização a atribuir em função da IPATH atribuída, ser calculada tendo por base o valor do salário mínimo nacional.
16. Em decorrência, deverá ser atribuído valor indemnizatório da seguinte forma:
A sinistrada deverá receber uma pensão anual vitalícia de € 11.151,00 (€ 796,50 x 14 meses), a contar da data da alta clínica, valor este que deverá ser pago até ao fim da sua vida.
Tendo por base a esperança média de vida atual para as mulheres e que situa nos 82 anos de idade, e tendo em conta que a A. tinha 32 anos de idade à data do acidente, contabiliza-se que deverá esta quantia ser multiplicada pelo número de anos (€ 11.151,00 x 50 anos), dando assim o valor indemnizatório de € 557,550,00 (quinhentos e cinquenta e sete mil, quinhentos e cinquenta euros) que deverá ser reduzida em 25% em virtude do seu pagamento antecipado, o que fará com que a quantia a receber a este título seja a quantia de € 418.162,50.
17. Concorda-se no restante com a posição da Douta Sentença, nomeadamente no raciocínio mas não com a contabilização do valor de € 100.000,00 (cem mil euros) a título de danos patrimoniais, devendo este ser superior conforme explanado anteriormente.
18. Quanto aos danos não patrimoniais entendeu o Douto tribunal na Douta Sentença:
“Em face destes critérios, e tudo ponderado, entendemos juta e equitativa a fixação de tal indemnização em € 60.000,00, referindo-se este valor globalmente aos valores peticionados diferenciadamente a título de a auxílio de terceira pessoa (€ 483.990,00), necessidade de toma de medicamentos e cirurgia ao longo da vida (€ 30.000,00) ao quantum doloris e dano estético (€ 33.000,00).”
19. Ora salvo o devido respeito e melhor opinião, o Douto Tribunal na Douta Sentença não deveria ter calculado um valor global pelos danos não patrimoniais, mas sim deveria ter calculado como chegar a estes valores.
20. O Douto Tribunal dá como provado e afirma-o novamente na parte de atribuição do valor indemnizatório por danos não patrimoniais ao facto de a Autora “irá necessitar de ajuda de terceira pessoa em medida fixada em 6 horas semanais.”
21. O valor médio hora que normalmente é usado para efeitos de cálculo de valores indemnizatórios, e uma vez que no futuro este valor hora presumidamente irá aumentar é o valor hora de € 10,00.
22. Logo a A. necessitará de ajuda semanal (de 7 em 7 dias) de 6 horas, ao valor de € 10,00 hora, o que dará um valor semanal de € 60,00 (sessenta euros), uma vez que cada ano civil tem 52 semanas, deverá assim este valor semanal (€ 60,00) ser multiplicado pelo número de semanas (52 semanas) para chegar ao valor anual.
O valor semanal (€ 60,00) vezes o numero de semanas (52 semanas) faz com que anualmente deverá a mesma ser indemnizada no valor de € 3.120,00 (três mil, cento e vinte euros) anuais.
Que deverão ser multiplicados pelos anos em que necessitará desta ajuda que será desde a data em que teve o acidente (32 anos) e a esperança média de vida das mulheres (82 anos), o que dá o espaço temporal de 50 anos.
Assim, chegamos ao valor indemnizatório pela ajuda de terceira pessoa, que será € 3.120,00 (valor anual) x 50 anos, o que dá o valor total de € 156.000,00.
23. A este valor, deverão ser acrescidos todos os restantes itens do direto a indemnização por danos não patrimoniais, nomeadamente a medicação que a Autora terá que tomar pela vida fora, a intervenção cirúrgica que foi determinada na perícia médica realizada e dada como provada pelo douto Tribunal e que orça no valor de € 7.500,00, o quantum doloris, todos os danos físicos e psicológicos que a Autora padeceu.
24. “A Autora foi afetada em todas as vertentes da vida, seja pessoal, familiar ou sexual, este no âmbito do seu relacionamento afetivo do qual tem quatro filhos.
Simplificando a descrição do que a Autora passou, basta atentar no “quantum doloris” fixado em 6, numa escala que vai até 7.
25. “As lesões exigiram inúmeras cirurgias e tratamentos também eles necessariamente dolorosos e tiveram consequências no seu dia-a-dia, sentindo-se marcada para o resto da vida, com sentimentos de tristeza, de angústia e depressão”.
“O relatório psicológico junto aos autos foi claro quanto a isto. Ainda que o dano estético tenha sido fixado em 1, numa escala até 7, o mesmo tem um impacto negativo na forma como a Autora olha para si própria”.
26. “Qualquer compensação será pequeno contributo para ultrapassar tais sentimentos e circunstâncias.
27. Estes danos são dificilmente mensuráveis em termos pecuniários, havendo necessariamente que recorrer a critérios de equidade que deverão igualmente ter em consideração a jurisprudência e a comparação com situações semelhantes e mesmo diferentes, de maior ou menor gravidade, distinguindo-as.
28. A estes danos na sua globalidade, deverá sim ser atribuído o valor indemnizatório de € 60.000,00 conforme o Douto Tribunal deu na sua Sentença.
29. Ao qual deverá ser acrescido o valor referente à ajuda de terceira pessoa no valor de € 156.000,00.
30. Deverá assim, ser atribuído a A. como valor indemnizatório o valor de € 418.162,50 devido ma IPATH arbitrada, acrescida do valor de € 100.000,00 pela incapacidade apurada e esforços suplementares para o exercício de atividade laboral que não a sua habitual, ao qual deverá ser acrescido o valor dos danos não patrimoniais, o valor de € 156.000,00 pela ajuda de terceira pessoa, e € 60.000,00 pelos restantes danos não patrimoniais na sua globalidade.»
A Recorrida apresentou contra-alegações sustentando que o recurso deverá ser julgado improcedente, mantendo-se a decisão recorrida, já que, em face da matéria de facto provada, que não foi impugnada, afigura-se correta, justa a acertada quantificação dos danos e da indemnização a atribuir à Recorrente.

Cumpre conhecer das seguintes questões:
i) do montante indemnizatório relativo à incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual;
ii) do montante indemnizatório relativo às despesas suportadas com a ajuda de terceira pessoa;
iii) do montante indemnizatório relativo aos danos de natureza não patrimonial.

III – Fundamentos
A – Os factos provados em 1.ª Instância
1 – No dia 25-08-2016, cerca das 21.45 horas a A. seguia como passageira no veículo ligeiro de mercadorias, com a matrícula ..-..-SN, conduzido por BB, no sentido .../... no ... ao Km. 175.2
2 – Em sentido contrário circulava o veículo pesado de mercadorias com a matricula ..-FD-.., com o reboque L-...67, propriedade e conduzido por CC, carregado com lenha.
3 – A responsabilidade civil pela utilização da viatura ..-FD-.., encontrava-se transferida pela apólice de seguros n.º ...36 para a Seguradora Açoreana, que atualmente após fusão/aquisição é a Ré (…) Seguros, S.A..
4 – Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas, por razões não concretamente apuradas, o dolly do reboque partiu-se e soltando-se, foi invadir a faixa contrária onde circulava a viatura ..-..-SN, indo embater com esta.
5 – No local do embate a estrada configura uma curva suave, estava bom tempo e era de noite.
6 – A faixa de rodagem é composta por duas vias de trânsito uma no sentido de trânsito de ... para ... e outra no sentido inverso.
7 – A viatura ..-..-SN circulava dentro dos limites de velocidade permitidos para o local.
8 – Tendo resultado para a Autora em virtude do acidente relatado, inúmeras lesões de que recebeu tratamento primeiramente no Hospital ... e depois no Hospital ... e posteriormente de novo no Hospital ....
9 – Nomeadamente perfuração timpânica bilateral, fraturas na coluna cervical e costelas com perfuração do pulmão, tendo sido assistida e submetida a intervenção cirúrgica de urgência, em perigo de vida, teve danos ao nível de vertebras da coluna lombar, tendo ficado com a raiz nervosa comprimida, e ainda fratura dos ossos do nariz.
10 – E traumatismo da face com fratura dos ossos próprios do nariz, traumatismo da cervical com fratura C1, traumatismo torácico com fraturas ACD 6-7-11-12, hemotórax bilateral, pneumotórax esquerdo, traumatismo lombar com fratura L.5 e traumatismo do membro inferior direito com fratura de Maisonneue.
11 – E em consequência sofre de cervicalgia, lombalgia, síndrome vertiginoso, depressão exógena e talagia direita.
12 – Passou a necessitar de ajuda para algumas tarefas da lide doméstica, necessitando de um apoio de terceira pessoa para trabalhos domésticos de 6 horas por semana.
13 – Em face das lesões sofridas a Autora e tendo em conta a repercussão permanente na atividade profissional habitual encontra-se sem capacidade para manter a sua atividade profissional habitual, podendo desenvolver outra dentro da sua área de formação.
14 – O valor de Défice Funcional Permanente deverá ser fixado em 22 pontos, de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades em Direito Civil.
15 – A recuperação das lesões sofridas pela Autora em consequência do acidente são irreparáveis e irreversíveis.
16 – O “quantum doloris” é fixável em 6/7.
17 – O dano estético é fixável em 1/7.
18 – A repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer é fixável em 1/7.
19 – O dano sexual é fixável em 2/7.
20 – Em consequência do acidente a Autora padece de depressão exógena.
21 – A Autora tem indicação para manter medicação antiálgica, antidepressiva e para as perdas de equilíbrio e tem a eventual necessidade de cirurgia ao tornozelo direito para a remoção do material de osteossíntese.
22 – A data de consolidação da situação clinica é fixável em 06/03/2019 (do plano ortopédico a partir de 12/12/2016).
23 – Ficou com tonturas devido à perfuração timpânica bilateral que sofreu.
24 – Devido a fratura dos ossos do nariz, ficou e fica muitas vezes com dificuldades em respirar.
25 – Em face das lesões que sofreu a nível da coluna, teve de andar um largo período de tempo, cerca de 6 meses com colar cervical.
26 – Por terem sido aplicados parafusos nos tornozelos, que ainda mantém, tem dores.
27 – Derivado das lesões que sofreu, esteve impedida até ter alta (30/01/2018), por motivo de fortes dores e impossibilidade física e psíquica de conseguir fazer a sua vida normal, poder ter atividades de lazer, e ainda ter qualquer atividade sexual.
28 – Esteve internada durante o período de 25/08/2016, até ao dia 30/01/2018, data da alta médica.
29 – A Autora acompanhava o seu marido na atividade de feirante, não tendo qualquer atividade laboral.
30 – Era beneficiária do rendimento social de inserção no valor aproximado de € 500,00.
31 – À data do acidente, a Autora tinha 32 anos.
32 – Gozava de boa saúde, com alegria de viver e era bem-disposta.
33 – Teve receio pela sua vida, sofreu dores físicas, ansiedade e angústia, enquadráveis como stress pós-traumático.
34 – Ficou a sentir vergonha da sua imagem, sente-se diminuída com as alterações corporais (cicatrizes), com impacto negativo na sua autoestima.
35 – Sente-se como uma sobrecarga familiar, estando desde o acidente associada a um estado depressivo e ansioso.
36 – Tem dificuldades em se deslocar de carro, por sentir dores, e por sentir medo em consequência do acidente.
37 – Sofreu alterações a nível do desejo sexual, em face da sua baixa autoestima e dificuldades em movimentar-se fisicamente.
38 – A Ré, por conta da indemnização final, já entregou à Autora a quantia de € 2.500,00.

B – As questões do Recurso
i) Do montante indemnizatório relativo à incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual
A Recorrente considera que deve ter-se em conta o salário mínimo nacional para efeitos de cálculo da indemnização devida em função da IPATH que foi fixada, sendo que, atentos os 50 anos de vida ativa que tinha pela frente, implica no montante de € 418.162,50.
Em 1.ª Instância, tal valor foi fixado em € 100.000,00, tendo em consideração a idade da Autora de 32 anos, a esperança de vida até aos 82 anos, a sua aptidão para exercer atividade profissional remunerada pelo menos com o salário mínimo nacional (€ 760,00), o défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixado em 22 pontos.
Ora vejamos.
Está em causa a afetação da pessoa do ponto de vista funcional, que é determinante de consequências negativas a nível da sua atividade geral, justificando a indemnização no âmbito do dano patrimonial, para além da valoração que se imponha a título de dano não patrimonial. Importa, pois, determinar o montante justo e adequado a indemnizar o dano aqui em discussão, a perda de capacidade de ganho decorrente do défice funcional de integridade físico-psíquica de que a Recorrente ficou afetada.
No que respeita aos critérios a adotar para fixação do quantum indemnizatório, tem-se entendido que assentam na equidade, à luz do regime inserto no art. 566.º n.º 3 do CC. Porém, «a utilização de critérios de equidade não impede que se tenham em conta as exigências do princípio da igualdade, cuja prossecução implica a procura de uma uniformização de critérios, naturalmente não incompatível com a devida atenção às circunstâncias do caso. Os critérios seguidos pela Portaria n.º 377/2008, de 26/05, com ou sem as alterações introduzidas pela Portaria n.º 679/2009, de 25/06, destinam-se expressamente a um âmbito de aplicação extra-judicial, e se podem ser ponderados pelo julgador, não se sobrepõem ao critério fundamental para a determinação judicial das indemnizações fixado pelo Código Civil.»[1]
À luz de tais ensinamentos bem como dos parâmetros que vêm sendo aplicados pelos tribunais superiores[2], importa levar em linha de conta a seguinte factualidade provada:
- a Recorrente contava, à data do acidente, 32 anos de idade;
- a esperança média de vida, atento o ano de nascimento da Recorrente, prolonga-se até aos 76,1 anos;[3]
- a idade legal de acesso à reforma é, atualmente, de 66 anos e 4 meses;
- a Recorrente ficou a padecer de défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 22 pontos, com rebate profissional;
- a RMMG à data da prolação da sentença[4] cifra-se em € 760,00[5].
Por aplicação das regras decorrentes da Portaria n.º 377/2008 e respetivo anexo IV (artigos 3.º, alínea b) e 8.º da citada Portaria), na redação atualizada, a indemnização ascenderia, segundo o simulador da Associação Portuguesa de Seguradores[6], ao montante de € 40.770,49. Procedendo às operações inerentes a tal tabela, ou seja, multiplicando por 22 o valor de € 1.400,00 constante da tabela, atenta a idade da Recorrente à data do acidente (valor considerado adequado em face da nota 3 da referida tabela), alcança-se o montante de € 26.400,00, valor fixado com referência à RMMG de 2007, no montante de € 403,00. Tomando por referência a RMMG de € 760,00 e aplicando a regra matemática de três simples, obtém-se o montante indemnizatório de € 49.786,60.
Trata-se do montante apontado como critério orientador para efeitos de apresentação, pelas seguradoras aos lesados por acidente automóvel, de proposta razoável para indemnização do dano corporal, em caso de incapacidade permanente parcial – vide o artigo 1.º da referida Portaria.
Já aplicando a tabela inserta no Ac. do STJ de 04/12/2007[8], considerando 34 anos de vida ativa e o fator 21,13184, alcança-se o valor de € 49.465,41, a que se reduziria 1/3 pela antecipação da disponibilidade do capital. Tal construção considera uma taxa de juro de 3%, desajustada dos tempos presentes.
Afigura-se, no entanto, que a utilização de tais instrumentos só pode servir para determinar o minus indemnizatório[9], o qual terá de ser corrigido com vários elementos que possam conduzir a uma indemnização justa[10], já que tais tabelas não contemplam, designadamente, os seguintes itens:
- o prolongamento da IPP para além da idade de reforma (entrando na base de cálculo a referência à idade de reforma aos 66 anos, não significa necessariamente que se deixe de trabalhar depois dessa idade, ou que se deixe de ter atividade depois dela);
- a tendência, pelo menos a médio e longo prazo, quanto à melhoria das condições de vida do país e da sociedade e do próprio aumento de produtividade;
- a tendência para o aumento da vida ativa para se atingir a reforma nem o aumento da própria longevidade;
- a inflação;
- a progressão na carreira e, decorrentemente, a progressão salarial.[11]
Por outro lado, afigura-se não ser devida a redução da quantia apurada em 1/3 a título de compensação da vantagem decorrente da antecipação do capital, desde logo atentas as reduzidas taxas de juros que atualmente se registam e se perspetivam.
Considerando tudo o que se deixa exposto, aplicando-se um juízo de equidade e levando em conta montantes indemnizatórios arbitrados em casos similares, já citados, afigura-se desprovido de fundamento aumentar a indemnização de € 100.000,00 (cem mil euros) fixada em 1.ª Instância relativa à incapacidade permanente absoluta de 22 pontos de que ficou a padecer a Recorrente.

ii) Do montante indemnizatório relativo às despesas suportadas com a ajuda de terceira pessoa
A Recorrente pugna pela fixação da quantia de € 156.000,00 (cento e cinquenta e seis mil euros)[12] a título de indemnização das despesas que terá de suportar, até ao fim da vida, com a remuneração dos serviços de terceira pessoa, já que resultou provado que passou a necessitar de ajuda para tarefas da lide doméstica, necessitando de um apoio de terceira pessoa para trabalhos domésticos de 6 horas por semana.
Em 1.ª Instância, a pretensão deduzida a tal título foi considerada na indemnização global de € 60.000,00 fixada para danos de natureza não patrimonial, tal como tinha sido peticionado na p.i.
Certo é que o Tribunal não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (cfr. artigo 5.º/3, do CPC), tal como é certo que não está em causa dano de natureza não patrimonial. Estes contendem com prejuízos de natureza infungível em que, não sendo possível uma reintegração por equivalente, importa atribuir ao lesado uma compensação que proporcione certas condições decorrentes da utilização do dinheiro. A indemnização por tais danos, «sem embargo da função punitiva que, outrossim, reveste, tem por fim facultar ao lesado meios económicos que, de alguma sorte, o compensem da lesão sofrida, por tal via reparando, indiretamente, esses danos, por serem hábeis a proporcionar-lhe alegrias e satisfações, porventura de ordem puramente espiritual, que consubstanciam um lenitivo com a virtualidade de o fazer esquecer ou, pelo menos, mitigar a havido sofrimento moral»[13]. Abrange, «nomeadamente os prejuízos estéticos, os sociais, os derivados da não possibilidade de desenvolvimento de atividades agradáveis».[14]
Apreciando o pedido de indemnização pelos custos a suportar com a assistência de terceira pessoa, cumpre notar que não consta como é ou será prestada essa ajuda de 6 horas semanais para as tarefas domésticas, se decorre de contrato de trabalho, de prestação de serviço, de ajuda familiar ou de outra natureza.
Uma vez que, ainda assim, está em causa um dano futuro dado como previsível que decorre das limitações físico-psíquicas sofridas pela Recorrente e derivadas do dano biológico, face à exiguidade de prova, tem cabimento a fixação da indemnização numa base equitativa presumível[15], que não desconsidera o benefício decorrente da antecipação do capital, pelo que se afigura justa e adequada a verba de € 60.000,00 (sessenta mil euros).

iii) Do montante indemnizatório relativo aos danos de natureza não patrimonial
Na ótica da Recorrente, os danos de natureza não patrimonial que resultaram provados, excluindo a matéria atinente à indemnização com os custos de assistência por terceira pessoa, implicam na verba de € 60.000,00.
Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito – artigo 496.º do CC.
O montante adequado a indemnizá-los, nos termos do disposto no artigo 496.º, n.º 3, 1.ª parte e 494.º do CC, resultará de um julgamento de equidade que terá por base o bom senso, o equilíbrio e a noção das proporções, atendendo às circunstâncias concretas de cada caso tendo em conta a situação económica do agente e do lesado, bem como o grau de culpa daquele, sem esquecer os padrões geralmente adotados pela jurisprudência. O valor da indemnização deve ter um alcance significativo, que não simbólico ou miserabilista[16], apurado segundo um juízo de equidade (artigo 496.º, n.º 3, do CC), efetivando a procura da justiça do caso concreto, assente numa ponderação prudencial e casuística das circunstâncias do caso, observando o princípio da igualdade (artigo 13.º da CRP), iluminador da uniformização de critérios, tendo em atenção os padrões de indemnização normalmente adotados na jurisprudência em casos similares.[17]
Considerando toda a factualidade elencada que contende com tal questão, que traduz os padecimentos sofridos pela A, as hospitalizações a que foi sujeita, o receio que sofreu por estar em perigo de vida, as dores físicas, ansiedade, angústia e stress pós-traumático, as alterações a nível do desejo sexual, em face da sua baixa autoestima e dificuldades em movimentar-se fisicamente, as lesões irreversíveis que regista, o quantum doloris de grau 6/7, o dano estético de 1/7, o grau de repercussão dessas lesões nas atividades desportivas e de lazer, afigura-se adequado fixar em € 60.000,00 (sessenta mil euros) a compensação a atribuir à Autora a tal propósito.

Não se alcança argumento que sustente a pretendida indemnização no montante de € 100.000,00 por “incapacidade apurada e esforços suplementares para o exercício de atividade laboral que não a sua habitual.”

Procedem, em parte, as conclusões da alegação do presente recurso.

As custas recaem sobre a Recorrente e a Recorrida, na proporção de decaimento (artigo 527.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia aquela.

Considerando que as questões suscitadas no presente recurso não se revestem de complexidade assinalável e que nada há a apontar à conduta das partes na tramitação do mesmo, decide-se dispensar o pagamento do remanescente da taxa de justiça nesta instância – artigo 14.º/7, do RCP.

Sumário: (…)


IV – DECISÃO
Decide-se pela parcial procedência do recurso, em consequência do que se revoga a decisão recorrida na parte em que incluiu a indemnização decorrente dos custos com a ajuda de terceira pessoa na verba fixada a título de danos de natureza não patrimonial,
Condenando-se a Ré a pagar à Autora, a esse título, o montante de € 60.000,00 (sessenta mil euros),
Confirmando-se, no mais, o decidido em 1.ª Instância.

Custas pela Recorrente e pela Recorrida, na proporção de decaimento e sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia aquela, dispensando-se o pagamento do remanescente da taxa de justiça

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Évora, 7 de março de 2024
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Vítor Sequinho dos Santos
Mário João Canelas Brás

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[1] Cfr. Ac. STJ de 04/06/2015 (Maria dos Prazeres Beleza) e demais acórdãos aí citados.
[2] Ac. STJ de 25/11/2009, proc. n.º 397/03.0GEBNV.S1 A/lesado com 8 anos de idade à data do acidente, incapacidade de 80% acrescida de 5% de dano futuro, indemnização de € 350.000,00; ac. STJ de 11/09/2014, no proc. n.º 3437/07.0TBVCT.G1.S1 Autora /lesada com 18 anos de idade à data do acidente, incapacidade de 19 pontos, indemnização correspondente a danos patrimoniais futuros fixada em € 72.000,00; acórdão do STJ de 04/06/2015, no proc. n.º 1166/10.7TBVCD.P1.S1, Autora/lesada com 17 anos de idade à data do acidente, incapacidade de 16,9 pontos, indemnização pelos danos patrimoniais futuros em € 55.000,00; acórdão do STJ de 26/01/2017, no proc. n.º 1862/13.7TBGDM.P1.S1 Autora/lesada com 29 anos de idade à data do acidente, incapacidade de 13 pontos, indemnização pelo dano biológico em € 70.000,00; acórdão STJ de 06/04/2021, proc. n.º 2908/18.8T8PNF.P1.S1, A/lesado com 6 anos de idade à data do acidente, incapacidade de 50 pontos, indemnização em € 300.000,00.
[3] Cfr. www.pordata.pt.
[4] Já que o valor indemnizatório será reportado àquela data.
[5] Decreto-Lei n.º 85-A/2022.
[6] https://www.apseguradores.pt/pt/ferramentas/simuladores/valoriza%C3%A7%C3%A3o-de-dano-corporal
[7] DL n.º 2/2007, de 01.
[8] Relatado por Mário Cruz, onde publicita “tabela acessível a qualquer jurista ou cidadão, que, em seu entender, permite através de operações aritméticas simples, chegar a resultados muito semelhantes na determinação da indemnização da IPP, como dano patrimonial futuro, tendo apenas como suporte a aplicação do programa informático Excell à fórmula utilizada pelo STJ no Acórdão de 1994.05.05 e que foi construída tendo como referência a atribuição de 3% ao fator aí indicado como taxa de juro previsível no médio e longo e prazo, taxa essa que, apesar dos anos, tem vindo a confirmar-se dada a estabilidade do euro.”
[9] Veja-se que o valor alcançado com a aplicação da tabela no acórdão de 4/12/2007, de € 53.123,782 conduz a indemnização fixada, pela equidade, em € 110.000,00.
[10] Ac. STJ de 04/12/2007 já referido.
[11] Ac. STJ de 04/12/2007 já referido.
[12] O que decorre de € 10,00/valor hora, correspondendo à multiplicação do montante anual de € 3.129,00 (três mil, cento e vinte euros) por 50 anos.
[13] Ac. do STJ de 17/01/2008.
[14] Ac. STJ de 26/01/2012.
[15] Ac. STJ de 02/06/2016 (Tomé Gomes).
[16] Cfr. Ac. STJ de 25/06/2002.
[17] Cfr. Acs. STJ de 22/10/2009, de 24/04/2013.