Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
694/20.0T9LLE.E1
Relator: FERNANDO PINA
Descritores: INSTRUÇÃO
DESPACHO DE NÃO PRONÚNCIA
PRINCÍPIO DO ACUSATÓRIO
VINCULAÇÃO TEMÁTICA
Data do Acordão: 03/05/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - Da instrução requerida pelo arguido, para se opor à acusação contra si deduzida pelo Ministério Público, não poderá resultar, através do recurso interposto pelo Ministério Público do despacho de não pronúncia, uma outra e nova acusação contra o mesmo arguido, com factos totalmente distintos da acusação anterior, ainda que paralelos.
II - O entendimento contrário, admitindo essa possibilidade, implicaria a violação dos princípios do acusatório e da vinculação temática, com desrespeito pelas garantias de defesa do arguido.
Decisão Texto Integral:

ACORDAM OS JUÍZES, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:


I. RELATÓRIO

A –
Nos presentes autos de Instrução, com o nº 694/20.0T9LLE, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo de Instrução Criminal de Faro - Juiz 2, o Ministério Público deduziu acusação contra os arguidos:
- (A), melhor identificado nos autos;
- (B), melhor identificado nos autos;
- (C), melhor identificado nos autos e;
- (D), também melhor identificado nos autos.
Imputando-lhes a prática em co-autoria material e na forma consumada de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos artigos 14º, nº 1, 26º, 143º nº 1 e 145º, nº 1, alínea a) e nº 2, por referência ao artigo 132º, nº 2, alínea h), todos do Código Penal.
Inconformado com este despacho de acusação, veio o arguido (A), em 31-05-2022, requerer a abertura de instrução, pugnando pela sua não pronúncia, uma vez que entende não ter praticado o crime e ter sido ele o primeiro a ser agredido.
Requereu a sua tomada de declarações e juntou documentos.
Feitos os autos conclusos à Mª Juiz de Instrução, foi proferido despacho a declarar aberta a Instrução e, a deferir a realização dos actos instrutórios requeridos.
Procedeu-se à audição do arguido (A), seguido de realização do debate instrutório, que decorreu sob observância de todo o formalismo legal, como consta da respectiva acta.

Foi então proferida decisão instrutória, na qual foi decidido não pronunciar os arguidos (A), (B), (C) e (D), por se entender não existirem nos autos indícios suficientes da prática do ilícito em causa ou de qualquer outro, nomeadamente da prática em co-autoria material e na forma consumada de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos artigos 14º, nº 1, 26º, 143º nº 1 e 145º, nº 1, alínea a) e nº 2, por referência ao artigo 132º, nº 2 alínea h), todos do Código Penal, na pessoa de (E).

Inconformado com o assim decidido, recorreu o Ministério Público, extraindo da respectiva motivação as seguintes (transcritas) conclusões:
1. A decisão recorrida julgou incorrectamente os pontos 1 a 4 dos “factos não indiciados em sede de instrução”.
2. Acompanha-se a decisão recorrida na parte em que considera que não foram produzidos indícios probatórios suficientes para concluir que o arguido (A) se dirigiu ao local com os demais arguidos, de forma concertada, e que em conjunto agrediram (E).
3. Contudo, discorda-se já da decisão em dissídio quando esta julga não indiciados todos os referidos factos, sem considerar indiciada a actuação individual de (A).
4. Com efeito, existem nos autos indícios suficientes de que o arguido (A) agrediu (E) nas circunstâncias de tempo e lugar descritas na acusação.
5. O próprio arguido admitiu, aquando do interrogatório em sede de instrução, que agrediu o ofendido após este lhe ter desferido um soco na cabeça: “fiquei nervoso e fui para cima dele” (minuto 07:40 da gravação), “eu perdi a cabeça e fui para cima dele” (minuto 09:40), “efectivamente eu agredi, respondi à agressão” (minuto 10:35), “fui atrás dele, fui para cima dele, agarrei-o pelo pescoço, ficamos engalfinhados os dois” (minuto 11:22), e “houve agressões mútuas entre eu e ele” (minuto 16:00).
6. Tal conclusão é igualmente suportada pelas declarações confessórias do próprio arguido, e consentâneas com a prova documental (fotografias de fls. 57 e ss. do apenso 854/20.4GBLLE) e pericial (relatório de exame de avaliação de dano corporal de fls. 31 e ss. do mesmo apenso), que confirmam a ocorrência de lesões no ofendido compatíveis com a narrativa do arguido.
7. Conjugando as declarações do arguido (A), que admitiu ter agredido o ofendido e excluiu a ocorrência de agressões por parte dos demais arguidos, com a citada prova documental e pericial, e com regras de experiência comum, será incontroverso que as lesões descritas no relatório pericial foram consequência das agressões daquele arguido.
8. Das mesmas declarações do arguido, indicia-se igualmente que actuou de forma dolosa, numa atitude de retorsão.
9. Assim, levando em conta as referidas declarações do arguido, e a já citada prova documental e pericial, deveriam ter sido considerados indiciados os seguintes factos:
“1. No dia 19 de Setembro de 2020, pelas 11h30, na residência do ofendido (E), sita na (…..), área do município de Loulé, o arguido (A), depois de o ofendido o ter atingido com um soco na cabeça, dirigiu-se a este e agarrou-o pelo pescoço, acabando por provocar a queda de ambos ao solo, e atingiu-o no seu corpo por forma não concretamente apurada.
2. Como resultado directo e necessário do comportamento do arguido (A), o ofendido (E) sofreu dores, hematomas, escoriações e as seguintes lesões traumáticas: “Crânio: hematoma retroauricular à direita, com cerca de 1 cm de diâmetro, equimose roxa na face posterior da hélice da orelha; Pescoço: limitação da mobilidade do pescoço; Membro inferior esquerdo: escoriação, em fase de cicatrização, no maléolo externo, com 1 cm por 0,4 cm nas maiores dimensões; equimose roxa, em fase de absorção, sobre o maléolo externa.
3. O arguido (A) pretendeu ofender o corpo e a saúde do ofendido (E) e causar-lhe as dores e lesões supra descritas, o que conseguiu.
4. Em tudo acima descrito, agiu o arguido (A) de forma livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a suas condutas eram proibidas e punidas por leis penais, às quais foi indiferente.”
10. Tais factos integram a prática pelo arguido de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143º, nº 1, do Código Penal.
11. Não resultando dos autos que o dano provocado pela conduta do arguido, não se poderão reputar preenchidos os pressupostos genéricos de que depende a dispensa de pena, previstos no artigo 74º, nº 1, do Código Penal.
12. Por conseguinte, em face da matéria de facto que se considera dever resultar indiciada, e uma vez que se verificam os pressupostos legais previstos no artigo 281º, nº 1, do Código de Processo Penal, deveria o Tribunal de Instrução Criminal decidir em conformidade, suspendendo provisoriamente o processo nos termos e com as condições aceites por arguido e Ministério Público (suspensão por 3 meses, mediante a injunção de o arguido entregar nesse prazo a quantia de € 300,00 ao Banco Alimentar contra a Fome).
13. Por todo o exposto, deverão Vossas Excelências julgar procedente o presente recurso, revogar a decisão recorrida, substituindo-a por outra que que julgue provados os factos supra indicados, e que decida a suspensão provisória do processo nos termos descritos.

Na resposta ao recurso interposto pelo Ministério Público o arguido (B) pronunciou-se no sentido da improcedência do recurso interposto, concluindo por seu turno (transcrição):
1. A decisão instrutória recorrida julgou corretamente os pontos 1 a 4 dos "factos não indiciados em sede de instrução".
2. Acompanha-se a decisão instrutória de não pronúncia quanto ao ora arguido (B), considerando que o Tribunal "a quo" apreciou corretamente e de forma fundamentada os referenciados factos não indiciados em sede de instrução (os pontos 1 a 4 da douta decisão instrutório de não pronúncia).
3. Acresce que, o recorrente acompanha a decisão recorrida na parte em que considera que não foram produzidos indícios probatórios suficientes para concluir, como constava da acusação, que o arguido (A) se dirigiu ao local com os demais arguidos, de forma concertada, e que em conjunto agrediram (E).
4. Em sede de instrução o arguido (A) prestou declarações através das quais excluiu a ocorrência de agressões por parte dos demais arguidos, nomeadamente, praticadas pelo ora arguido (B) contra o alegado ofendido (E).
5. O recorrente por meio do recurso interposto pretende, agora, alterar a sua acusação, objecto dos presentes autos do processo (fls. 151 e seguintes}, imputando, única e exclusivamente, ao arguido (A) a alegada prática de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143º, nº 1 do Código Penal contra o alegado ofendido (E).
6. O recorrente exclui, atentas a motivações de facto e de Direito, e respetivas conclusões apostas no recurso interposto pelo Ministério Público, quaisquer factos passíveis de configurarem responsabilidade criminal imputáveis ao ora arguido (B) no que concerne às alegadas ofensas à integridade física sofridas por (E).
7. O recorrente interpôs o recurso apenas e somente contra um dos arguidos, nomeadamente, o arguido (A), o que nos termos do disposto no nº 3 do artigo 402º do CPP, não prejudica os restantes arguidos, nomeadamente, o arguido (B).
Nestes termos e nos melhores de Direito, deverão V. Exas Venerandos Desembargadores, julgar improcedente, por não provado, o recurso interposto pelo recorrente, não sendo revogada a decisão instrutória de não pronúncia quanto ao ora arguido (B), e em consequência determinar-se o arquivamento dos presentes autos.

Nesta Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da procedência do recurso interposto pelo Ministério Público, conforme melhor resulta do seu parecer.
Cumpriu-se o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal.
Procedeu-se a exame preliminar.
Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

B -
A decisão recorrida encontra-se fundamentada nos seguintes termos (transcrição):
(…)
A instrução, conforme refere o artigo 286º, nº 1 e nº 2 do Código de Processo Penal é uma fase facultativa do procedimento criminal que visa a comprovação judicial da decisão do Ministério Público, enquanto titular da acção penal orientado pelo princípio da legalidade (artigo 219º da Constituição da República Portuguesa) de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
A estrutura acusatória do processo criminal implica que a actividade cognitiva do Tribunal – na fase de instrução ou na fase do julgamento – esteja limitada pelo objecto processual – cfr. art. 32º nº5 da Constituição da República Portuguesa. O objecto processual será definitivamente delimitado pela acusação ou, no caso de decisão de arquivamento do Ministério Público, pelo requerimento de abertura de instrução – neste sentido Frederico Isasca em Alteração Substancial dos factos e a sua relevância no processo penal português, Coimbra editora, pág.174 e segs. É a acusação que fixa, perante o Tribunal, o objecto do processo. É ela que delimita e fixa os poderes de cognição do Tribunal e é nela que se consubstanciam os princípios da identidade, da unidade e da conjunção do objecto do processo penal.
Para cumprir o objectivo de controlar, em sede judicial, a decisão que encerrou o inquérito, deve o Juiz de Instrução ordenar e realizar os actos instrutórios que considere necessários, nos termos do artigo 290º, nº1 do Código Processo Penal, existindo apenas uma única diligência obrigatória – o debate instrutório, previsto no artigo 297º do Código Processo Penal.
O Ministério Público, ao proferir o despacho de acusação ou de arquivamento, deve pautar a sua acção pela noção de indícios suficientes, ou seja, deve acusar se encontrar indícios suficientes da verificação do crime e de quem foi o seu agente, ou arquivar o processo se tais indícios não foram recolhidos – artigos 283º, nº 1, e 277º, nº 2 do Código de Processo Penal.
Este juízo que preside ao encerramento do inquérito não está isento de sindicância, quer pelo superior hierárquico do magistrado do Ministério Público que prefere a decisão (artigo 278º do Código de Processo Penal), quer pelo juiz de instrução, através do mecanismo que temos vindo a explanar.
Assim, também em sede de instrução será novamente efectuado o juízo de existência ou não de indícios suficientes de quem cometeu o crime e de quem foi o seu agente.
Deste modo, será necessário trazer à colação, o artigo 308º, nº 1 do CPP de acordo com o qual, o juiz deverá pronunciar o arguido se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos dos quais depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança.
Caso não seja possível reunir tal acervo probatório, deverá ser proferido despacho de não pronúncia.
Indícios suficientes são os elementos que, relacionados e conjugados, persuadem da culpabilidade do agente, fazendo nascer a convicção de que virá a ser condenado; são vestígios, suspeitas, presunções, sinais, indicações, suficientes e bastantes para convencer de que há crime e de que alguém determinado é o responsável, de forma que, logicamente relacionados e conjugados formem um todo persuasivo da culpabilidade; enfim, os indícios suficientes consistem nos elementos de facto reunidos no inquérito e na instrução (cfr. Acórdão do TRC de 10/09/2008, processo 195/07.2GBCNT.C1, www.dgsi.pt).
Conforme refere Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, 1993, Verbo, Tomo II, págs. 85 e 86, “a prova indiciária (indiciação suficiente) permite a sujeição a julgamento, mas não constitui prova, no significado rigoroso do conceito, pois que aquilo que está provado já não carece de prova e a acusação e a pronúncia tornam apenas legítima a discussão judicial da causa. A natureza indiciária da prova significa que não se exige a prova plena, a «prova», mas apenas a probabilidade, fundada em elementos de prova que, conjugados, convençam da possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada uma pena ou medida de segurança criminal”.
Importa, por conseguinte, determinar se nos presentes autos se mostram preenchidos de forma suficiente tais indícios.
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IV – Dos factos
IV.1 – Dos factos indiciados em sede de instrução
Com relevo para a decisão, mostram-se indiciados os seguintes factos:
a) o ofendido (E) sofreu dores, hematomas, escoriações e as seguintes lesões traumáticas: “Crânio: hematoma retroauricular à direita, com cerca de 1 cm de diâmetro, equimose roxa na face posterior da hélice da orelha; Pescoço: limitação da mobilidade do pescoço; Membro inferior esquerdo: escoriação, em fase de cicatrização, no maléolo externo, com 1 cm por 0,4 cm nas maiores dimensões; equimose roxa, em fase de absorção, sobre o maléolo externa.
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IV.2 – Dos factos não indiciados em sede de instrução
Com relevo para a decisão, consideram-se não indiciados os seguintes factos:
1. No dia 19 de Setembro de 2020, pelas 11h30, os arguidos (A), (B), (C) e (D), de acordo com o plano que todos delinearam entre si e com o qual concordaram, dirigiram-se à residência do ofendido (E), sita na (…..), área deste município de Loulé e, de forma concertada, todos cercaram o ofendido e desferiram diversas pancadas, socos e pontapés, que atingiram o ofendido por todo o corpo e cabeça.
2. Os arguidos (A), (B), (C) e (D) pretenderam ofender o corpo e a saúde do ofendido (E) e causar-lhe as dores e lesões supra descritas, o que conseguiram.
3. Mais sabiam que as suas condutas eram especialmente censuráveis e perversas, uma vez que estavam em superioridade numérica, sendo quatro agressores para apenas uma vítima, pelo que este não teve qualquer hipótese de se defender das agressões que sofreu, que apenas terminaram porque o senhorio do ofendido chamou a Guarda Nacional Republicana e os arguidos fugiram do local.
4. Em tudo acima descrito, agiram os arguidos (A), (B), (C) e (D) de comum acordo e em conjugação de esforços e de forma livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a suas condutas eram proibidas e punidas por leis penais, às quais foram indiferentes.
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Da fundamentação de facto
Para fundamentar a sua convicção, o Tribunal baseou-se em toda a prova produzida em sede de inquérito e instrução, nomeadamente as declarações do arguido (A) e das testemunhas (…..) e (…..), Fotografias de fls. 57 a 60 do processo apenso (854/20.4GBLLE), Relatórios de fls. 31, 32 do processo apenso (854/20.4GBLLE) e documentos de fls 238 a 242.
No que respeita à matéria dada como indiciada, a mesma não foi objecto de qualquer oposição por parte do arguido (A), sendo ainda confirmada pelo teor do relatório de exame pericial junto a fls 31 e 32.
No que concerne à matéria dada como não indiciada, da prova produzida resultam duas versões antagónicas.
Por um lado, temos a versão do ofendido que diz que os quatro arguidos entraram na sua habitação e o agrediram com vários murros e pontapés enquanto este estava estendido no chão sem se conseguir defender face ao número de suspeitos.
Também a testemunha (…..), na fase de inquérito, declarou que presenciou os quatro arguidos a atingir (E) com vários socos.
Por outro lado, temos a versão do arguido (A) que atestou que foi (E) que teve a iniciativa de o agredir, dando-lhe um soco na cabeça. Perante a atitude do ofendido, o arguido (A) deu-lhe também um soco, tendo ficado agarrados no chão por poucos segundos, uma vez que os restantes arguidos intervieram com o sentido de os separar, nunca chegando a agredir o ofendido.
E inexistem mais testemunhas inqueridas que tivessem presenciados os factos em análise.
Ora, das versões apresentadas, o Tribunal considerou mais credível a versão exposta pelo arguido (A).
Com efeito, analisado o teor do exame pericial do ofendido (E) constata-se que, fruto da contenda, o ofendido “apenas” sofreu um hematoma e umas escoriações/equimoses que entendemos não serem compatíveis com as suas declarações, já que o mesmo referiu que esteve prostrado no chão a ser atingido com vários murros e pontapés pelos quatro arguidos. Ora, dificilmente alguém que é agredido com murros e pontapés por quatro cidadãos apresenta lesões tão leves como um hematoma e duas equimoses.
Sem olvidar, analisada a ficha clínica do arguido (A), a mesma já é compatível com a respectiva versão dos factos, uma vez que apresentava escoriação ao nível do joelho (o mesmo referiu que caiu ao chão com o ofendido) e um edema ao nível da mão esquerda.
Ora, se efectivamente, o ofendido (E) não tivesse agredido nenhum dos arguidos e estivesse no chão a ser pontapeado e socado pelos quatro arguidos, temos por certo que o arguido (A) não apresentaria qualquer lesão e o ofendido (E) apresentaria mais lesões do que as que se verificaram.
Por via disso, deu o Tribunal como não indiciados os factos atinentes à prática de qualquer conduta pelo arguido (A), uma vez que ficou por esclarecer o que efectivamente ocorreu.
Deste modo, e na dúvida, sempre se imporia a não pronúncia do arguido em virtude da aplicação do princípio “in dubio pro reo”.
No que concerne à ausência de indiciação dos elementos subjectivos dos factos, a mesma resulta como consequência lógica da falta de indiciação dos respectivos elementos objectivos.
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V – Do Direito
Dispõe o art. 143º, nº 1, do Cód. Penal, que: “Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”.
Deste modo, para que se mostrem preenchidos os elementos típicos do crime de ofensa à integridade física, torna-se necessário que o agente, por qualquer modo, agrida outra pessoa, lesando o seu corpo e saúde.
Trata-se de um crime que visa, primariamente, proteger a integridade física do ser humano e, de modo reflexo, a sua vida e honra, consistindo numa manifestação penal concreta dos princípios da dignidade da pessoa humana.
Corresponde a um crime material, de dano e de realização instantânea, já que abrange um determinado resultado que é a lesão do corpo ou saúde de outrem.
Os elementos objectivos deste tipo legal de crime são:
– A lesão ao corpo e saúde;
– De outra pessoa.
No que tange ao primeiro elemento, tem-se entendido que a mesma não tem que ter gravidade, nem deixar consequências físicas relevantes. Na verdade, desde que o agente pratique e concretize voluntariamente uma conduta que seja socialmente valorada como de agressão para com a vítima, e que tal conduta leve a uma consequência no corpo desta (que poderá ir de uma mera dor momentânea até às mais gravosas lesões e sequelas), que se verificam preenchidos os requisitos legais do tipo de crime. Neste sentido, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 21 de Janeiro de 2009, proc. nº 525/06.4GCLRA.C1, disponível in www.dgsi.pt.
Relativamente ao segundo elemento, é entendido que apenas as lesões perpetradas a outras pessoas integram o tipo legal do crime, sendo excluídas do mesmo as denominadas auto-lesões.
Quanto ao elemento subjectivo do crime, pode o mesmo ocorrer por dolo do agente, ou por mera negligência, nos termos do art. 148º do Cód. Penal.
No que tange à qualificação do crime de ofensa à integridade física, o art. 145º do Cód. Penal determina que, caso a ofensa prevista no art. 143º, nº 1, do Cód. Penal seja produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, a moldura penal aplicável é de pena de prisão até 4 anos.
Ora, conforme determina o nº 2 deste mesmo preceito legal, são susceptíveis de revelar especial censurabilidade ou perversidade os casos previstos no nº 2 do art. 132º.
A determinação da existência da especial censurabilidade ou perversidade corresponde, assim, a um raciocínio hermenêutico, fundamentado na análise casuística dos factores que estiveram na origem do crime, bem como do seu modo de execução. Ou seja, não basta que uma das circunstâncias do nº 2 do art. 132º se verifique para que automaticamente o crime seja qualificado: é preciso que, no caso concreto, tais circunstâncias redundem num maior grau de censura à conduta do agente, seja pelo acrescido desvalor do dolo, seja pelo meio particularmente infame, cobarde ou perigoso com que o crime foi perpetrado.
Como acima se aludiu, o art. 132º, nº 2, alínea h), do Cód. Penal, determina que revela especial censurabilidade ou perversidade a circunstância de o agente “Praticar o facto juntamente com, pelo menos, mais duas pessoas ou utilizar meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática de crime de perigo comum;”
Ora, no caso em análise não foram dados como indiciados quaisquer factos relevantes para o preenchimento dos elementos típicos do ilícito imputado ao arguido (A).
Assim, e sem necessidade de maiores considerações, impõe-se a não pronúncia do arguido da prática do crime de ofensa à integridade física qualificado que lhe vinha imputado.

Das consequências jurídicas quanto aos arguidos não requerentes de abertura de instrução:
Tendo em consideração todo o explanado, entende-se que a decisão instrutória abarca os arguidos (B), (C) e (D), nos termos concretamente apreciados, sendo de extrair quanto aos mesmos, as mesmas consequências que se extraíram quanto ao arguido (A), uma vez que não se logrou apurar o que efectivamente ocorreu.

VI – Decisão
Face ao supra exposto, o Tribunal decide não pronunciar os arguidos (A), (B), (C) e (D) pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 14º, nº 1, 26º, 143º nº 1 e 145º, nº 1 al. a) e nº 2, por referência ao artigo 132º, nº 2 al. h), todos do Código Penal.
(…)

II – FUNDAMENTAÇÃO

1 - Âmbito do Recurso

De acordo com o disposto no artigo 412º, do Código de Processo Penal e com a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça nº 7/95, de 19-10-95, publicado no D.R. I-A de 28-12-95 (neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Setembro de 2007, proferido no processo nº 07P2583, acessível em www.dgsi.pt, que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria) o objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, que aqui e pela própria natureza do recurso, não têm aplicação.
Assim, vistas as conclusões do recurso interposto, verificamos que a questão suscitada se resume:
- Sobre os indícios constantes dos autos serem suficientes para submeter o arguido (A), a julgamento pela prática de factos subsumíveis ao crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143º, nº 1, do Código Penal.

Apreciando e decidindo:
O Código de Processo Penal estabelece que quem dirige a investigação é o Ministério Público, e é ele que acusa, podendo existir uma segunda fase de investigação que é a fase de instrução em que já há um juiz a presidir.
A estrutura acusatória do processo implica também aquilo que normalmente se define em termos restritos como o princípio da acusação ou princípio da vinculação temática. O juiz que julga está tematicamente vinculado aos factos que lhe são trazidos pela entidade que acusa.
É por isso que é muito importante verificar quando, em que momento, e como é que no processo português se fixa o objecto do processo.
Quando o Ministério Público deduz acusação ou, em alternativa, quando é requerida a abertura da instrução pelo assistente, nesse momento fixam-se os factos que o juiz do julgamento vai poder conhecer, fixa-se o objecto do processo, resultando do princípio do acusatório o denominado princípio da vinculação temática, no sentido que o tribunal apenas pode conhecer daqueles factos e não de quaisquer outros.
Este princípio do acusatório e da vinculação temática têm garantia constitucional, conforme expresso resulta do artigo 32º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa.
Daqui resulta, que da instrução requerida pelo arguido para se opor à acusação contra si deduzida pelo Ministério Público e que define os precisos contornos do objecto do processo, não poderá resultar, através do recurso interposto do despacho de não pronúncia sobre tais factos e tal objecto, uma outra e nova acusação contra o mesmo arguido, com factos totalmente distintos, ainda que paralelos, mas que constituem um outro e novo objecto do processo, com o qual o arguido não foi confrontado, nem o poderá ser antes da audiência de julgamento.
Verifica-se assim, uma frontal e ostensiva violação dos princípios do acusatório e da vinculação temática, com evidente violação das garantias de defesa do arguido, constantes do artigo 32º, da Constituição da República Portuguesa.
Então nunca poderá resultar do recurso interposto, a indiciação do arguido por quaisquer outros factos, ainda que paralelos aos constantes da acusação, mas que objectivamente constituem uma nova e distinta acusação, com clara violação das garantias de defesa do mesmo, constitucionalmente definidas no artigo 32º, nº 1 e nº 5, da Constituição da República Portuguesa.
Assim, nunca poderia proceder o presente recurso nos termos propostos pelo Ministério Público.

Contudo, analisando os factos invocados no presente recurso e, tendo presente que a instrução, constitui uma fase intermédia entre o inquérito e o julgamento, que nas palavras do legislador “visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento” (artigo 286º, nº 1 do Código de Processo Penal).
Nos termos do nº 2 do referido artigo 286º do Código de Processo Penal, a instrução configura-se, pois, como uma fase sempre facultativa e destinada a questionar a decisão de acusação ou de arquivamento.
Dispõe o nº 1 do artigo 308º do mencionado diploma legal que “se até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia”.
Assim, deverá o Tribunal proferir despacho de não pronúncia do arguido quando conclua pela insuficiência de indícios, plasmada na inexistência de factos, na sua não punibilidade, na ausência de responsabilidade ou na insuficiência da prova para a pronúncia, bem como quando se verifique a inadmissibilidade legal do procedimento ou vício de acto processual.
Relativamente à prolação do despacho de pronúncia, ela deverá sustentar-se na existência de indícios suficientes da prática do crime pelo arguido.
Tendo em conta o critério enunciado no nº 2 do artigo 283º do Código de Processo Penal, são indícios suficientes os que se verifiquem quando deles resulte a possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança, isto é, quando seja mais provável, face aos indícios recolhidos, a condenação do que a absolvição do arguido em sede de julgamento (cfr. Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal”, I, Coimbra Editora, 1974, página 133).
Tem entendido a jurisprudência que são bastantes os indícios quando se trata de um conjunto de elementos convincentes de que o arguido praticou os factos que lhe são imputados.
Na verdade, por indícios suficientes entendem-se, pois, suspeitas, vestígios, presunções, sinais, indicações suficientes e bastantes, para convencer de que há crime e é o arguido por ele responsável. Porém, não é necessária certeza da existência da infracção, não se impondo a mesma exigência de verdade requerida para o julgamento, mas os factos indiciados devem ser suficientes e bastantes, de forma que, logicamente relacionados e conjugados, formem um todo persuasivo da culpabilidade do arguido, impondo-se um juízo de probabilidade (cfr. neste sentido conferir, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1 de março de 1961, Bol. 105º, 439).
Devem, pois, os indícios ser reputados de suficientes quando, das diligências efectuadas durante o inquérito e instrução, resultarem vestígios, suspeitas, presunções, sinais, indicações suficientes e bastantes para convencer que há crime e que é o arguido o seu agente.
Nesta fase do processo, o objectivo a alcançar não é a demonstração da realidade dos factos, mas tão só indícios, sinais, de que um crime foi cometido por determinado arguido, isto porque as provas a reunir não são pressuposto de uma decisão de mérito, mas de uma decisão processual da prossecução dos autos para julgamento (cfr. Acórdãos da Relação de Coimbra de 20 outubro 1993, in CJ, IV, pág. 261, e de 31 de março de 1993, in CJ, II, página 66).
Fundando-se o conceito de indícios suficientes na possibilidade razoável de condenação ou aplicação de uma pena ou medida de segurança, deve considerar-se existirem indícios suficientes para o efeito de prolação do despacho de pronúncia, quando:
- Os elementos de prova, relacionados e conjugados entre si, fizerem pressentir da culpabilidade do agente e produzirem a convicção pessoal de condenação posterior;
- Se conclua, com probabilidade razoável, que esses elementos se manterão em julgamento, ou
- Quando se pressinta que da discussão em audiência de julgamento, para além dos elementos disponíveis, outros advirão no sentido da condenação futura.
Estaremos, então, perante indícios suficientes quando se verifique uma alta probabilidade de futura condenação do arguido ou, pelo menos, quando se verifique uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição (cfr. Castanheira Neves, in “Sumários de Processo Criminal”, páginas 38 e 39).
Nas palavras de Germano Marques da Silva “para a pronúncia, como para a acusação, a lei não exige, pois, a prova no sentido da certeza moral da existência de indícios do crime basta-se com a existência de indícios, de sinais da ocorrência do crime, donde se pode formar a convicção de que existe uma possibilidade razoável de que foi cometido o crime pelo arguido.” (cfr. “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 1994, página 183).
Não se impõe, no entanto, na aferição da existência de indícios ou sinais de ocorrência de um ilícito, a mesma exigência de certeza requerida pelo julgamento final.
Assim, para a determinação do grau da possibilidade razoável, indícios suficientes existirão quando, através de um juízo de prognose antecipada, se conclua que os elementos de prova, relacionados e conjugados entre si, fazem pressentir a existência de uma conduta criminalmente tipificada por parte do agente e produzem a convicção de condenação posterior e que, com probabilidade razoável, esses elementos se manterão e repetirão em julgamento ou se preveja que surjam da ampla discussão da causa em audiência de julgamento.
No culminar da fase de instrução, e como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 29-03-2006 (processo 0516874 e disponível no site www.dgsi.pt), o juízo de pronúncia deve, em regra, passar por três fases:
«Em primeiro lugar a um juízo de indiciação da prática de um crime, ou seja, a uma indagação de todos os elementos probatórios produzidos, quer na fase de inquérito, quer na de instrução, que conduzam ou não à verificação de uma conduta criminalmente tipificada.
Por sua vez e caso se opere essa adequação, proceder-se-á em segundo lugar, a um juízo probatório de imputabilidade desse crime ao arguido, de modo que os meios de prova legalmente admissíveis e que foram até então produzidos, ao conjugarem-se entre si, conduzam à imputação desse(s) facto(s) criminoso(s) ao arguido.
Por último efectuar-se-á um juízo de prognose condenatório, mediante o qual se possa concluir que predomina uma razoável possibilidade de o arguido vir a ser condenado por esses factos e vestígios probatórios, estabelecendo-se um juízo indiciador semelhante ao juízo condenatório a efectuar em julgamento».
Note-se, até, que a doutrina – entre outros, Jorge Noronha e Silveira, “O Conceito de Indícios Suficientes no Processo Penal Português”, Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, coordenação Prof. Fernanda Palma, Almedina, 2004, pág. 171 – vem defendendo uma maior exigência quanto à suficiência dos indícios, sustentando que esta não se basta com a maior possibilidade de condenação do que de absolvição, mas antes “(…) deve pressupor a formação de uma verdadeira convicção de probabilidade de futura condenação.”.
A jurisprudência tem considerado, de modo que se nos afigura maioritário, que “indícios suficientes” correspondem à persuasão ou à convicção de que, mediante o debate amplo da prova em julgamento, se poderão provar em juízo os elementos constitutivos da infracção – cfr. entre outros, os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 25-06-1988, no B.M.J. nº 378, pág. 787, do Supremo Tribunal de Justiça de 10-12-1992, no processo nº 427747, cit. em “Código de Processo Penal Anotado”, Simas Santos e Leal Henriques, vol. II, 2ª ed., e do Tribunal da Relação de Évora de 22-06-1993, no B.M.J. nº 428, pág. 706.
Isto é, os indícios suficientes correspondem a um conjunto de factos que, relacionados e conjugados entre si, conduzam à convicção de culpabilidade do arguido e de lhe vir a ser aplicada uma pena.
Na consideração do que se deixa exposto, não pode deixar de se ter presente que a sujeição de alguém a julgamento é, no dizer de Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4ª Edição, Coimbra Ed., 2007, pág. 522, “(…) já de si, um incómodo muitas vezes oneroso e não raras vezes um vexame.”.
Ou, como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28-06-2006, no Processo 06P2315, disponível em www.dgsi.pt.jstj, “a simples sujeição de alguém a julgamento, mesmo que a decisão final se salde pela absolvição, não é um acto neutro, quer do ponto de vista das suas consequências morais, quer jurídicas. Submeter alguém a julgamento é sempre um incómodo, se não mesmo um vexame.
Por isso, no juízo de quem acusa, como no de quem pronúncia, deverá estar sempre presente a necessidade de defesa da dignidade da pessoa humana, nomeadamente a necessidade de protecção contra intromissões abusivas na sua esfera de direitos, mormente os salvaguardados na Declaração Universal dos Direitos do Homem e que entre nós se revestem de dignidade constitucional, como é o caso da Liberdade (artº 3º daquela Declaração e 27º da Constituição da República).
E por isso é que, quer a doutrina, quer a jurisprudência, vêm entendendo aquela «possibilidade razoável» de condenação é uma possibilidade mais positiva que negativa; «o juiz só deve pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido» ou os indícios são os suficientes quando haja «uma alta probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição» (…).”.
Tendo em consideração o que se deixa exposto, como bem salienta a Mmº Juiz aquando da explicitação do conteúdo da prova produzida em inquérito e em instrução, “nomeadamente as declarações do arguido (A) e das testemunhas (…..) e (…..), Fotografias de fls. 57 a 60 do processo apenso (854/20.4GBLLE), Relatórios de fls. 31, 32 do processo apenso (854/20.4GBLLE) e documentos de fls 238 a 242.
No que respeita à matéria dada como indiciada, a mesma não foi objecto de qualquer oposição por parte do arguido (A), sendo ainda confirmada pelo teor do relatório de exame pericial junto a fls 31 e 32.
No que concerne à matéria dada como não indiciada, da prova produzida resultam duas versões antagónicas.
Por um lado, temos a versão do ofendido que diz que os quatro arguidos entraram na sua habitação e o agrediram com vários murros e pontapés enquanto este estava estendido no chão sem se conseguir defender face ao número de suspeitos.
Também a testemunha (…..), na fase de inquérito, declarou que presenciou os quatro arguidos a atingir (E) com vários socos.
Por outro lado, temos a versão do arguido (A) que atestou que foi (E) que teve a iniciativa de o agredir, dando-lhe um soco na cabeça. Perante a atitude do ofendido, o arguido (A) deu-lhe também um soco, tendo ficado agarrados no chão por poucos segundos, uma vez que os restantes arguidos intervieram com o sentido de os separar, nunca chegando a agredir o ofendido.
E inexistem mais testemunhas inqueridas que tivessem presenciados os factos em análise.
Ora, das versões apresentadas, o Tribunal considerou mais credível a versão exposta pelo arguido (A).
Com efeito, analisado o teor do exame pericial do ofendido (E) constata-se que, fruto da contenda, o ofendido “apenas” sofreu um hematoma e umas escoriações/equimoses que entendemos não serem compatíveis com as suas declarações, já que o mesmo referiu que esteve prostrado no chão a ser atingido com vários murros e pontapés pelos quatro arguidos. Ora, dificilmente alguém que é agredido com murros e pontapés por quatro cidadãos apresenta lesões tão leves como um hematoma e duas equimoses.
Sem olvidar, analisada a ficha clínica do arguido (A), a mesma já é compatível com a respectiva versão dos factos, uma vez apresentava escoriação ao nível do joelho (o mesmo referiu que caiu ao chão com o ofendido) e um edema ao nível da mão esquerda.
Ora, se efectivamente, o ofendido (E) não tivesse agredido nenhum dos arguidos e estivesse no chão a ser pontapeado e socado pelos quatro arguidos, temos por certo que o arguido (A) não apresentaria qualquer lesão e o ofendido (E) apresentaria mais lesões do que as que se verificaram.
Por via disso, deu o Tribunal como não indiciados os factos atinentes à prática de qualquer conduta pelo arguido (A), uma vez que ficou por esclarecer o que efectivamente ocorreu.
Deste modo, e na dúvida, sempre se imporia a não pronúncia do arguido em virtude da aplicação do princípio “in dubio pro reo”.
No que concerne à ausência de indiciação dos elementos subjectivos dos factos, a mesma resulta como consequência lógica da falta de indiciação dos respectivos elementos objectivos.
Assim, dúvidas não se nos suscitam, num juízo de prognose, que tal prova em julgamento conduziria com razoável e elevada probabilidade, ante o juízo de certeza e segurança que a apreciação da prova em julgamento impõe e exige, à absolvição do arguido.
Vale o exposto por se afirmar que, o tribunal “a quo” motivou e objectivou o seu convencimento expresso no relato dos factos que teve como não suficientemente indiciados de forma inteiramente racionalizável, em que assumiu compreensível e inatacável conjugação de indícios, instalando-se-lhe dúvida sobre a justeza dos factos constantes da acusação inicial e na agora pretendida pelo Ministério Público/recorrente no seu recurso do despacho de não-pronúncia, que naturalmente, tal como consta da decisão recorrida e em obediência ao princípio “in dubio pro reo”, só pode e deve ser resolvida a favor do arguido.
Um “non liquet” na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido.
Assim, bem andou o tribunal “a quo” ao não pronunciar o arguido (A), pela prática em co-autoria ou em autoria de factos subsumíveis ao tipo legal de crime de ofensa à integridade física qualificada nos termos do disposto nos artigos 14º, nº 1, 26º, 143º, nº 1 e 145º, nº 1, alínea a) e nº 2, todos do Código Penal, ou ao tipo legal de ofensa à integridade física simples previsto no artigo 143º, nº 1, do mesmo diploma legal, na pessoa de (E).
Em face de tudo o que se deixa exposto, conclui-se, assim, que o juiz bem valorou todos os indícios probatórios, em sintonia com as regras de experiência, sem que se detecte ter enveredado por convicção que não esteja devidamente fundamentada e, por isso, suficientemente objectivada e lógica, através de uma equilibrada ponderação.
A decisão instrutória recorrida não merece, pois, qualquer censura, devendo ser mantida nos seus precisos termos, com a consequente falta de provimento do recurso interposto.
Assim, pelo exposto decide-se julgar totalmente improcedente o recurso interposto pelo Ministério Público, mantendo-se o decidido na 1ª instância nos seus precisos termos.

Sem custas por delas estar isento o Ministério Público, artigo 522º, do Código de Processo Penal.

III – DISPOSITIVO

Face ao exposto, acordam os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:
- Julgar totalmente improcedente, o recurso interposto pelo Ministério Público, confirmando-se na íntegra o despacho recorrido.
- Sem custas por delas estar isento o Ministério Público, artigo 522º, do Código de Processo Penal.

Certifica-se, para os efeitos do disposto no artigo 94º, nº 2, do Código do Processo Penal, que o presente Acórdão foi pelo relator elaborado em processador de texto informático, tendo sido integralmente revisto pelos signatários.

Évora, 05-03-2024
Fernando Pina
Beatriz Borges
Fátima Bernardes