Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
427/21.4T8TVR.E1
Relator: MARIA DOMINGAS
Descritores: COMPRA E VENDA
ERRO NA BASE DO NEGÓCIO
REDUÇÃO DO PREÇO
VENDA “AD CORPUS”
Data do Acordão: 03/07/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. A aplicação do regime estabelecido no artigo 888.º do Código Civil exige a declaração ou indicação, no contrato, da quantidade da coisa vendida, ainda que o preço tenha sido fixado em função da própria coisa, em si mesma considerada.
II. Constando da escritura que formalizou o negócio a identificação do imóvel também por referência à sua descrição predial e inscrição matricial, da qual consta uma área superior em cerca de ¼ à que veio a apurar-se ser a real, mostra-se cumprida a exigência legal se, por aplicação dos critérios de interpretação dos negócios jurídicos – artigos 236.º a 238.º –, ficar determinada a relevância da área na decisão de contratar por aquele preço.
III. Não tendo a área do prédio sido elemento essencial à decisão de contratar – caso em que estaríamos perante erro essencial, susceptível, verificados que fossem os pressupostos do artigo 247.º, ex vi do artigo 252.º, de conduzir à anulação do negócio- mas tendo resultado demonstrado que foi relevante, pelo menos para o autor comprador, na fixação do preço que aceitou pagar, verificado um desvio entre a área real e a declarada de cerca de 7 000 m2 num prédio que se disse ter a área de 32 000 m2, tem aquele direito à redução proporcional da quantia paga, que se alcança pela aplicação da regra de 3 simples (cfr. n.º 2 do artigo 888.º).
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 427/21.4T8TVR.E1
Tribunal Judicial da Comarca ...
...

I. Relatório
AA, divorciado, residente na Rua ..., em ..., instaurou contra BB, viúva, residente na R. ..., ..., ..., em ..., ...; CC e marido, DD, moradores na R. ..., ..., ..., em ..., ...; EE e mulher, FF, residentes na ..., na ..., ...; e I..., Lda., com sede na R. ..., ..., a presente acção declarativa de condenação, a seguir a forma única do processo comum, pedindo a final a condenação dos RR no pagamento da quantia de € 15.000,00, acrescida de juros legais.

Em fundamento alegou, em síntese, ter celebrado com os 1.ºs RR, intervindo a demandada I..., Lda. na qualidade de mediadora, contrato de compra e venda titulado por escritura pública outorgada em 24 de Março de 2021, tendo por objecto o prédio rústico que identifica, tendo o preço sido fixado em € 40.000,00, que pagou.
Sucede, porém, que não obstante constar da documentação que lhe foi entregue – cópia da caderneta predial rústica e certidão emitida pela Conservatória do Registo Predial – que o prédio tinha a área de 32 000 m2, motivo pelo qual ficou convencido de que era essa a área efectiva do terreno, tendo procedido a um levantamento topográfico após a compra apurou-se que a área é de apenas 24 857,90 m2. A situação descrita configura, diz, significativo erro sobre o objecto do negócio, o que lhe confere o direito à redução proporcional do preço como resulta do disposto no n.º 2 do artigo 888.º do Código Civil, disposição legal que expressamente invocou.

Citados os RR, apresentou-se a contestar a demandada I... tendo apresentado defesa por excepção mediante arguição da sua ilegitimidade para a causa, uma vez que não foi parte no contrato de compra e venda nem celebrou qualquer acordo de mediação com o autor.
Em sede de impugnação alegou que o A. adquiriu o terreno que viu, sem qualquer referência à área, sendo certo, diz, que não compete à contestante verificar a conformidade da mesma aos elementos constantes dos documentos oficiais.

Também os RR vendedores apresentaram contestação conjunta, peça na qual arguiram a excepção da ilegitimidade da ré FF, cujo regime de casamento é o da separação de bens, não tendo intervindo na escritura.
Mais impugnaram que a área do prédio fosse elemento considerado na fixação do preço, nem tão pouco essencial à decisão do autor em celebrar o contrato, tendo este adquirido a área devidamente demarcada que viu e quis adquirir, não tendo por isso direito à pedida redução do preço pago, sendo para além do mais pressuposto de aplicação do invocado artigo 888.º que no contrato seja indicada a medida da coisa vendida, o que no caso não se verifica. Acrescentaram que tendo-se mostrado, desde o início, disponíveis para anular o negócio, o demandante recusou tal solução.
Subsidiariamente, prevenindo para o caso de procedência da acção, formularam pedido reconvencional de anulação do negócio “com base em erro próprio quanto à área do prédio que alienaram, com todas as legais consequências”.
O autor respondeu, reiterando ter confiado nos elementos que constavam dos documentos oficiais de identificação do prédio que lhe foram entregues e dos quais não tinha motivo para duvidar, sublinhando ser inusitada a diferença de área entre o que daqueles consta e a realidade, o que lhe confere o direito à redução do preço, conforme peticionado.

Teve lugar a audiência prévia e nela, frustrada a tentativa de conciliação, foi admitido o pedido reconvencional formulado e proferido despacho saneador, no qual foram julgadas improcedentes as excepções dilatórias da ilegitimidade passiva das demandadas I..., Lda. e FF. Foi depois determinado o prosseguimento dos autos, tendo sido delimitado o objecto do processo e enunciados os temas da prova, peças que se fixaram sem reclamação das partes.

Realizou-se a audiência final, nos termos da qual foi proferida sentença que decretou a total improcedência da acção, com a consequente absolvição de todos os RR do pedido formulado, tendo resultado prejudicado o conhecimento do pedido reconvencional formulado.

Inconformado, interpôs o autor o presente recurso e, tendo desenvolvido na alegação os fundamentos da sua discordância com o decidido, formulou a final as seguintes conclusões:
“1.ª Independentemente da questão do autor destinar o terreno adquirido e em causa ao projecto de vinha, o tribunal não pode ignorar que ele foi convencido – como aliás está provado na sentença ora em crise – que o terreno tinha 3,2ha de área.
2.ª É nesse convencimento que o Autor aceita pagar € 40.000,00 pela aquisição do terreno.
3.ª Na verdade, só depois da realização da escritura de compra e venda, é que vem ao conhecimento do Autor que o terreno apenas tem 2,4ha de área.
4.ª É profunda, substancial e significativa, a diferença de área.
5.ª Com manifesto prejuízo ao autor.
6.ª A área do terreno, numa transacção, é sempre um elemento essencial.
7.ª O preço do prédio rústico é determinado em função da área do mesmo.
8.ª É manifestamente diferente o preço daquele terreno com 32.000 M2 ou com menos de 25.000 M2, como resulta do levantamento topográfico que consta dos autos.
9.ª Bem como do relatório/avaliação, igualmente junto dos autos.
10.ª Os vendedores que tinham a obrigação de vender o prédio com indicação da área correcta.
11.ª A imobiliária tinha também a obrigação de se certificar que não publicitava, erradamente, as características do prédio em venda, neste caso com área muito superior ao real.
12.ª O interesse do autor era comprar aquele terreno com mais de 3 hectares para a candidatura do projecto agrícola.
13.ª O autor não perdeu o interesse, mas como o prédio tem menos aproximadamente 1/3 da área que consta dos documentos, pretende ver restituída parte do preço pago.
14.ª Assim, o prédio não vale o que pagou.
15.ª São elementos essenciais deste negócio aqueles que são capazes de influir na vontade de contratar, ou seja, a área do terreno e o respectivo preço.
16.ª Na aquisição do prédio rústico, não há outros factores ou elementos a influir.
17.ª Aqui não há expectativas de construção.
18.ª E o terreno, por não ter água, está limitado ao cultivo agrícola apenas de sequeiro!
19.ª Há assim, e conforme resulta manifestamente dos autos, um erro sobre o objecto do negócio: art. 888º/2 do CCivil.
20.ª Como ficou visto supra, há neste caso, diferença entre a área real e a área declarada.
21.ª Atenta a matéria dada como provada pelo tribunal a quo e supra mencionada em sede de motivação do presente recurso.
22.ª No caso dos autos, está excessivamente considerado quase um hectare de terreno, numa propriedade que na realidade, tem pouco mais de dois hectares.
23.ª V. para o efeito e atento todo o supra dito, a seguinte jurisprudência STJ nos Processos: 453/07.6TBAMR.G1.S1, 6.ª SECÇÃO Relator: Salazar Casanova (…)
24.ª Devendo assim ser revogada a sentença ora recorrida.”

Contra-alegaram os RR vendedores, defendendo naturalmente a manutenção do julgado, tendo concluído como segue:
1.ª A única solução de direito possível face àquela que é a verdade processual que importa conhecer e decidir em sede de recurso determina a improcedência da apelação e manutenção da sentença recorrida.
2.ª O Recorrente imputa, aparentemente, uma nulidade à sentença recorrida sem discriminar que nulidade seja essa que aponta à decisão que entende sindicar.
3.ª Não se verifica nenhuma das causas de nulidade da sentença ao abrigo do disposto no artigo 615.º do CPC.
4.ª O Recorrente não requer a alteração da decisão sobre a matéria de facto que, mantendo-se, não pode ter a virtualidade de levar ao resultado almejado pelo Recorrente.
5.ª Da prova carreada aos autos resulta amplamente provado que o Recorrente comprou aquilo que viu, conhecia e que acordou ter o valor que os Recorridos estabeleceram como preço mínimo de venda.
6.ª O Recorrente nunca informou ou anunciou por qualquer forma os Recorridos de que a área do terreno seria um elemento essencial para formar a sua vontade de contratar.
7.ª Os factos provados demonstram, por si só, que a área do prédio rústico nunca foi um elemento essencial à formação da vontade do Recorrente de contratar.
8.ª Para que o negócio fosse anulado com fundamento no erro sobre o objeto do negócio, o Recorrente teria de alegar e provar que os Recorridos conheciam, e não deviam ignorar, a essencialidade, para o Recorrente, do elemento sobre que alegadamente incidiu o erro (i.e., a área do prédio rústico) – o que não aconteceu.
9.ª Da decisão tomada pelo Digníssimo Tribunal a quo acerca da matéria de facto resulta indubitavelmente provado que os Recorridos desconheciam, de boa-fé, a pretensa essencialidade para o Recorrente da correspondência entre a área do prédio rústico tal como descrito nos documentos oficiais e a que resultasse de um levantamento topográfico (que o Recorrente nunca solicitou em momento anterior à celebração do negócio, como resulta da matéria de facto julgada como provada).
10.ª Face à decisão acerca da matéria de facto, um eventual erro em que o Recorrente tivesse contratado sempre seria juridicamente irrelevante.
11.ª O pressuposto de que no contrato seja indicada a medida da coisa vendida não se verifica pelo que se impõe concluir, sem mais, não ser de aplicar o disposto no n.º 2 do artigo 888.º do Código Civil – neste sentido, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07-04-2011, proferido no âmbito do processo n.º 453/07.6TBAMR.G1.S1, Relator Salazar Casanova.
12.ª A compra e venda do prédio rústico sub judice não foi negociada com base na área, nem no preço por metro quadrado ou hectare, sendo certo que resulta provado, que o Recorrente visitou e conhecia o terreno antes da compra, reforçando a convicção que relevante foi o seu propósito de comprar o prédio rústico pelo preço ajustado.
13.ª O Recorrente não foi induzido em erro que determinou a sua vontade de contratar – nesse sentido, o facto julgado como não provado (que o Recorrente aceita como tal ao não impugnar a matéria de facto).
14.ª Atentas as circunstâncias em que o Recorrente contratou, ter-se-á que concluir que o elemento da área do prédio não se revestiu de essencialidade, porquanto a compra foi acertada com os vendedores por um preço global.
15.ª À luz da decisão acerca da matéria de facto tomada pelo Digníssimo Tribunal a quo, não existe lugar à pretendida redução do preço pelo Recorrente, impondo-se julgar pela total improcedência da apelação com a consequente manutenção da sentença recorrida.
16-ª Subsidiariamente, à luz do disposto no n.º 1 do artigo 636.º, tendo por base a decisão da matéria de facto tomada pelo Digníssimo Tribunal a quo, e caso seja julgada procedente a apelação – cenário em que não se concede – sempre deverá proceder a reconvenção deduzida pelos Recorridos mediante anulação do contrato de compra e venda sub judice com base em erro próprio quanto à área do prédio rústico alienado, suscetível de preencher as previsões constantes dos artigos 247.º e 251.º, ambos do Código Civil.
17.ª O Digníssimo Tribunal a quo apreciou e valorou corretamente a prova carreada aos autos, não sendo imputável qualquer erro à sentença recorrida.
18.ª O Recorrente não cumpriu com o ónus de alegação e de prova que sobre si impendia face à causa de pedir e pedidos por si formulados. Sibi imputet.
19.ª Bem andou o Digníssimo Tribunal a quo ao decidir nos moldes que constam da sentença recorrida, a qual deve ser mantida com todas as legais consequências.
Requereram a final fosse “julgada totalmente improcedente a apelação com a consequente manutenção da sentença recorrida, com todas as legais consequências” e, subsidiariamente, “ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 636.º do CPC ampliado o objeto do recurso de molde a permitir o julgamento do pedido reconvencional em moldes que concluam pela sua procedência, com todas as legais consequências”.
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Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, constitui única questão a decidir saber se o autor/apelante tem direito à redução do preço que pagou. A proceder tal pedido, cabe decidir se também a demandada empresa de mediação é responsável perante o A. adquirente e se aos RR vendedores assiste, conforme peticionaram em via reconvencional, o direito de anular o negócio com fundamento em erro.
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II. Fundamentação
De facto
Não tendo sido impugnada a decisão proferida sobre a matéria de facto, nem se vendo razão para determinar a sua modificação oficiosa, é a seguinte a factualidade a considerar com relevância para a decisão:
1. Em 24 de Março de 2021, no Cartório Notarial ..., em ..., entre o autor e os réus BB, CC e EE foi celebrado um contrato de compra e venda de prédio rústico.
2. Para celebração de tal negócio interveio a Ré, pessoa coletiva, na qualidade de mediadora imobiliária.
3. Da escritura referida consta que os Réus identificados em 1. venderam ao Autor, pelo preço de 17.500,00 euros, sem quaisquer ónus ou encargos, “o prédio rústico, composto por terra de cultura, vinha e pastagem, sito em ..., freguesia de ... e ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ..., ainda da freguesia da .... […], inscrito na respetiva matriz sob o artigo ...10, que teve origem no artigo ...34 da extinta freguesia de ..., com o valor patrimonial tributário de2.095,33.”
4. O autor procedeu ao pagamento da quantia de € 40.000,00 aos réus vendedores para aquisição do prédio mencionado em 3.
5. O valor de venda do prédio rústico foi acordado entre os Réus vendedores, correspondendo ao valor mínimo pelo qual estes aceitariam aliená-lo.
6. Tal prédio rústico era, até ao negócio de compra e venda celebrado entre Autor e Réus vendedores, um bem pertencente à herança aberta por óbito do cônjuge, pai e sogro dos mesmos.
7. À data, os Réus vendedores estavam convencidos que a descrição do prédio rústico, tal como registada junto da Conservatória do Registo Predial e da Autoridade Tributária, correspondia às reais características do prédio, já que nunca realizaram qualquer medição ao prédio rústico.
8. Antes da celebração do negócio o Autor foi pessoalmente ao terreno, acompanhado da comercial da mediadora imobiliária que intermediou o negócio, e percebeu os limites do prédio rústico em causa.
9. Nessa visita, o autor teve oportunidade de ver onde se encontravam e encontram colocados os marcos que delimitam as estremas do prédio rústico.
10. O autor, aquando da visita ao terreno, antes de realizar a supramencionada escritura, recebeu os documentos atinentes ao prédio que adquiriu, os quais lhe foram entregues pela Ré imobiliária que os recebera dos Réus vendedores, designadamente: cópia da descrição predial onde se menciona a área total de 32 000 m2, cópia da caderneta predial rústica que menciona a área total do terreno em causa como sendo (ha) 3,20000, e uma planta de localização com mancha identificativa da área de terreno.
11. O pai da companheira e mãe dos filhos do Autor reside nas imediações do prédio rústico.
12. Foi essa proximidade o aspeto relevante na formação da sua decisão de contratar por parte do Autor.
13. Para todos os intervenientes, a informação constante dos documentos corresponderia fielmente à realidade do terreno objeto da transação.
14. Nunca foi posta em causa pelo Autor a realidade documentada.
15. O Autor nunca solicitou aos Réus vendedores que fosse feito um levantamento topográfico do prédio rústico em momento anterior à celebração do negócio.
16. O Autor nunca solicitou que fosse celebrado um contrato-promessa com base no qual o Autor, enquanto promitente comprador, pudesse requerer esse levantamento topográfico em momento anterior à celebração do contrato definitivo.
17. Após a compra do terreno, o Autor adquiriu documentos do prédio em questão, atinentes ao levantamento cadastral do local e contratou o levantamento topográfico do mesmo.
18. Constatando que o terreno em causa tem 24.837,90 m2 de área.
19. Nessa sequência o Autor interpelou cada um dos réus por escrito, conforme documentos 2 a 5 cujo teor se dá por integralmente reproduzido, pugnado pela redução do preço do prédio adquirido em 10.000,00 euros, por manter interesse no mesmo.
20. Os réus vendedores responderam através de correio postal, datado de 25 de Maio de 2021, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, referindo que não aceitam vender o prédio rústico por um valor inferior àquele que acordaram e que foi pago pelo A, mostrando-se disponíveis para formalizar a anulação do negócio com a restituição do prestado.
21. O Autor respondeu à mesma em 4 de Junho, por correio postal, conforme documento 7, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, reiterando a posição vertida em 18.
22. Os Réus vendedores responderam mediante correio postal datado de 18 de Junho, junto como doc. 9, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, reiterando a posição referida em 19.
23. O Autor recebeu ainda resposta da Ré imobiliária, conforme documento 8 cujo teor se dá por integramente reproduzido.
24. Da avaliação mandada efetuar pelo Autor consta que o mesmo tem o valor de mercado de 25.000,00 euros.
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Não resultou provado que o autor tenha sido sempre informado que a realidade do terreno correspondia fielmente ao documentado.
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De Direito
Do direito do autor à redução do preço por aplicação do artigo 888.º do CC
Não se mostra controvertido nos autos que, com intervenção da empresa de mediação imobiliária aqui também demandada, foi celebrado entre o autor e os RR BB, CC e EE, contrato de compra e venda nos termos do qual estes declararam vender e o primeiro declarou comprar, pelo preço de €40 000,00, que os compradores receberam -ainda que da escritura tenha ficado a constar valor substancialmente inferior-, o prédio rústico nela identificado. Com a celebração do contrato e por mero efeito do mesmo, transferiu-se para o autor adquirente o direito de propriedade sobre o prédio vendido, tudo conforme resulta do disposto nos artigos 874.º e 879.º do Código Civil[1].
Resultou, todavia, demonstrado que o prédio vendido, ao invés do que consta da documentação disponibilizada ao autor -caderneta predial rústica e certidão da descrição predial-, não tem a área de 32 000 m2 ali mencionada, mas antes e apenas 24.837,90 m2, ou seja, cerca de 7 000 m2 menos, o que foi por aquele apurado depois da formalização do negócio. Verificada tal diferença, pretende e insiste nesta via de recurso que a situação configura erro sobre o objecto do negócio, mas mantendo interesse na manutenção do contrato celebrado defende ser aplicável o regime do artigo 888.º, assistindo-lhe o direito à redução proporcional do preço nos termos previstos no n.º 2 do citado normativo, assim dissentindo da decisão proferida.
Vejamos, pois, da valia dos argumentos recursivos invocados.
Previamente, afigura-se oportuno fazer notar que cabendo inequivocamente ao autor, no exercício do princípio do dispositivo, eleger a causa de pedir e formular a final o pedido, ou seja, o efeito prático-jurídico pretendido, assim conformando o objecto do processo, no caso em apreço nada foi alegado no sentido da detectada divergência de áreas consubstanciar afinal, e atenta a destinação que pretendia dar ao prédio, uma falta de qualidade da coisa vendida capaz de a tornar inidónea para o fim pretendido, a desencadear o regime da venda de coisa defeituosa, nos termos do artigo 913.º. Aliás, tal possível enquadramento jurídico dos factos, a par da existência de eventual situação de erro – essencial – sobre o objecto do negócio susceptível de conduzir à anulação do contrato celebrado nos termos das disposições conjugadas dos artigos 251.º e 247.º – a área, como o autor reconhece, não era elemento fundamental – foram na sentença recorrida devidamente ponderados no quadro das várias soluções plausíveis de direito e expressamente afastados sem impugnação do recorrente, tornando deste modo irrelevante qualquer discussão sobre o destino que pretendia dar ao prédio adquirido, factualidade que, para além do mais, não foi oportunamente alegada.
Feita tal prévia precisão, indaguemos, pois, se o autor tem, como sustenta, direito à redução do preço nos termos previstos no n.º 2 do artigo 888.º.
Epigrafado de “Coisas determinadas. Preço não fixado por unidade”, e inserido na secção relativa à venda de coisas sujeitas a contagem, pesagem ou medição, estabelece o convocado artigo 888.º que: “1. Se na venda de coisas determinadas o preço não for estabelecido à razão de tanto por unidade, o comprador deve o preço declarado, mesmo que no contrato se indique o número, peso ou medida das coisas vendidas e a indicação não corresponda à realidade. 2. Se, porém, a quantidade efetiva diferir da declarada em mais de um vigésimo da área desta, o preço sofrerá redução ou aumento proporcional”.
Regula-se em tal normativo, e como correctamente se considerou na decisão apelada, a chamada “venda ad corpus”, por oposição à “venda ad mensuram” (ou por medida), prevista no artigo anterior.
Como explica o Prof. Menezes Leitão[2], está em causa, em ambos os preceitos, a venda de coisas determinadas, ainda que sujeitas a uma posterior operação de contagem, pesagem ou medição. E ao invés “(…) do que sucede na venda de coisas genéricas, em que a indicação da quantidade se torna necessária à própria perfeição do contrato, no âmbito da venda de coisas específicas não é necessária a indicação no contrato de qualquer quantidade, uma vez que a simples individualização da coisa já é, só por si, suficiente para determinar o objecto da venda”. No entanto, pode acontecer - e, como reconhece o autor que vimos acompanhando, ocorre com frequência na venda de terrenos- que se mencione no contrato a “quantidade” da venda, quer para efeitos de melhor descrição do bem vendido, quer para efeitos de determinação do preço respectivo. Esta referência vai implicar uma futura operação de contagem, pesagem ou medição, consagrando os preceitos em análise soluções diferentes consoante o preço da venda tenha sido estabelecido precisamente em função de um tanto por cada unidade vendida ou tenha, pelo contrário, sido estabelecido para o conjunto das coisas vendidas: no primeiro caso, o artigo 887.º determina que, independentemente da quantidade referida no contrato, o que o comprador deve é o preço proporcional ao número, peso ou medida real das coisas vendidas; no segundo caso, o comprador deve pagar o preço declarado, ainda que a quantidade vendida divirja da realidade (vide n.º 1 do artigo 888.º), “a menos que a divergência entre a quantidade real e a declarada seja superior a um vigésimo desta, caso em que o preço sofrerá um aumento ou redução proporcional”, nos termos do n.º 2 do preceito[3].
Temos, pois, que na previsão do artigo 888.º eventual divergência entre a medida declarada e a medida real não afeta o preço devido pelo devedor, que corresponde ao preço estipulado. E isto porque “Do facto de as partes não terem indicado o preço unitário extrai-se a conclusão de que elas formaram a sua vontade sobre o preço e a coisa globalmente consideradas, sendo apenas incidental a referência à quantidade, peso ou medida das coisas vendidas.”[4]
No entanto, e mitigando as consequências da aplicação pura do critério consagrado no n.º 1, o n.º 2 do preceito vem atribuir relevância à divergência que exceda 1/20 da quantidade declarada, “(…) tendo assim como pressupostos, para além da referida fixação de um preço global, que haja uma diferença entre a área real e a área declarada, ou seja, que as partes tenham no contrato declarado uma quantidade, um número, peso ou medida, das coisas vendidas” (acórdão do TRC de 9/1/2024, no processo n.º 107/23.6T8CTB.C1, acessível em www.dgsi.pt).
Ainda a propósito da melhor interpretação dos preceitos em análise, esclareceu o Prof. Raul Ventura[5] que “os artigos 887.º e 888.º não abrangem as situações em que contratualmente não foi feita declaração alguma quanto à quantidade da coisa vendida. Em tais hipóteses é, pois, impensável uma divergência entre a quantidade declarada e a quantidade real da coisa vendida, mas é possível uma divergência entre a quantidade real e a quantidade prevista por uma ou outra das partes. Entrarão então em jogo outros preceitos legais, designadamente os relativos ao erro-vício, mas agora interessa apenas acentuar que tais hipóteses devem ser apreciadas unicamente perante esses outros preceitos, uma vez que a aplicabilidade dos artigos 887.º e 888.º está inicialmente excluída”.
E mais à frente, já para os casos em que foi fixada contratualmente uma quantidade: “A divergência entre a quantidade declarada e a quantidade real da coisa vendida pode ter resultado de erro – ou na declaração ou na formação da vontade – por parte de um ou ambos os sujeitos. Também aqui não há dúvida de que o regime estabelecido nos artigos 887.º e 888.º prescinde da causa da divergência e, por outro lado, conduz à subsistência do contrato, em vez da sua eventual anulação”.
No caso em apreço, sem afastar que a disciplina do artigo 888.º invocado pelo apelante possa ter aplicação à venda de imóveis[6], detectada que seja, após a celebração do contrato, discrepância de áreas, entendeu-se na sentença recorrida, com apoio na jurisprudência do STJ nela citada[7], que não seria de aplicar a solução ali prevista, porquanto, “conforme se alcança da factualidade dada como provada (…), na escritura de compra e venda nada foi declarado acerca da área do prédio objeto da compra e venda, constando da mesma que os Réus declaram vender ao Autor, pelo preço de 17.500,00 euros, sem quaisquer ónus ou encargos, “o prédio rústico, composto por terra de cultura, vinha e pastagem, sito em ..., freguesia de ... e ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ..., ainda da freguesia da ..., […], inscrito na respetiva matriz sob o artigo ...10, que teve origem no artigo ...34 da extinta freguesia de ..., com o valor patrimonial tributário de2.095,33” – (facto provado em 3). E, tendo-se embora reconhecido que “na escritura, o prédio foi identificado, para além do mais, pelo número da descrição predial, sendo certo que da respetiva descrição (…) consta que o prédio tem a área total de 32.000 m2”, desvalorizou-se tal menção, por ser “entendimento pacífico na doutrina e na jurisprudência [que] o registo predial, e muito menos a descrição matricial, nada garante relativamente às áreas dela constantes, apenas estabelecendo presunção relativamente à titularidade do direito inscrito, nos termos do artigo 7.º do Código de Registo Predial”.
Pois bem, não se questionando que a força probatória plena das certidões prediais não abrange os limites, confrontações, áreas e outros elementos de identificação física dos prédios descritos, à semelhança do que ocorre com as cadernetas prediais, que “apenas constituem presunção para efeitos fiscais, não para efeitos civis, [pelo que] os elementos matriciais apenas conseguem obter relevância, indirectamente, através do registo predial, com as quais se devem em princípio harmonizar (artigos 28.º e seguintes do Código do Registo Predial)[8]” –, não cremos, porém, que se trate de argumento decisivo para afastar a aplicação do regime consagrado no artigo 888.º quando está em causa uma diferença superior a 7 000 m2 num prédio que se dizia ter 32 000,00 m2, afigurando-se antes ser central a questão de saber se a menção desses – entendida como a remissão para esses – elementos documentais para efeitos de completa identificação do prédio vendido, dos quais constava inequivocamente uma outra e superior área, preenchem a previsão legal e, consequentemente, suportam ainda a aplicação do preceito em causa[9].
Está em causa, recorde-se, a aquisição de um prédio rústico, ao que resulta da matéria de facto apurada devidamente demarcado, tendo o autor visualizado e percebido os seus limites, mas que adquiriu convencido de que tinha uma determinada área, na circunstância 32 000 m2, como constava da documentação que lhe foi entregue aquando da visita ao imóvel, e que veio a verificar posteriormente ser apenas de 24 857,90 m2. É certo que o apelante não considerou fundamental a área do prédio, ou seja, tê-lo-ia adquirido ainda que tivesse tomado conhecimento da sua área real, como o comprova o facto de ter recusado a revogação (por consenso) do contrato, inicialmente proposta pelos vendedores. No entanto, alega, conforme de imediato comunicou aos vendedores, tê-lo-ia feito noutras condições, designadamente de preço, entendendo que se encontra lesado na fixação daquele que lhe foi pedido e diz só ter aceitado pagar no convencimento da correspondência entre a área comprada e aquela que constava dos documentos que lhe foram entregues, convencimento, aliás, de que os vendedores comungavam (cfr. pontos 7 e 13).
Encontrando-se comprovada nos autos a divergência, relevante, entre a área real e a pressuposta pelos contraentes, importa, pois, determinar se, para efeitos da previsão do artigo 888.º, não havendo na escritura referência expressa à dimensão ou área concreta do prédio objecto do contrato, se pode considerar resultar a mesma da menção ou remissão feita para a descrição predial e inscrição matricial atinentes ao imóvel. Trata-se de questão controversa, que vem dividindo os tribunais, nomeadamente o STJ, que decidiu nos acórdãos de 26/4/2007 (processo 07B698)[10] e 10/9/2019 (proc. 272/17.1T8BGC.G1.S2), este último citado na sentença recorrida, que não constando da escritura referência a qualquer dimensão, não tem lugar a aplicação do preceito. No entanto, neste aresto, estava em causa “a venda (por um preço genérico) de um prédio urbano composto de “uma casa de rés-do-chão” de um “anexo” e de um “logradouro””, diferenciação que, implicando “(…) naturalmente, óbvia diferenciação valorativa (…)”, não permitia “a determinação de um preço uniforme por cada metro quadrado”. Não deixou todavia o STJ de consignar que “Em relação à venda de terrenos ou (em princípio) de prédios rústicos, afigura-se-nos que nada obsta a que se possa considerar a admissibilidade da aplicação do regime estabelecido no nº 2 do artigo 888º do C. Civil, na medida em que, nesses casos, a venda pode ser considerada como sendo feita ou como passível de ser aferida em função da quantidade, ou seja, em função da área que haja sido declarada – sendo que nesses casos não haverá (e conforme supra dissemos, em princípio) razão para uma diferenciação de cada uma das partes em função do todo, em termos de proporcionalidade valorativa”.
Já no acórdão do STJ de 6/4/2021 (proc. 1116/18.2T8PRT.P1.S1)[11], reconhecendo-se embora que da escritura pública não constava expressa menção à área do logradouro -parte do imóvel que se discutia nos autos e que comprovadamente não tinha aquela que constava dos documentos- considerou-se que “as partes outorgantes, não tendo feito a descrição do imóvel (apenas referindo que era um “prédio urbano, composto de casa de rés-do-chão e andar, compreendendo dependência e logradouro”), remeteram a sua descrição para a constante da Conservatória do Registo Predial, da qual constava a área, elemento que, por apelo aos critérios de interpretação consagrados nos artigos 236.º e 238.º, se considerou assumir relevância no contexto do negócio, reconhecendo assim o direito do comprador à redução proporcional do preço nos termos do n.º 2 do art.º 888.º.
Já se disse que a aplicação do regime estabelecido no artigo 888.º exige a declaração ou indicação, no contrato, da quantidade da coisa vendida – o que é coisa diversa do preço ter sido fixado em função dessa quantidade, caso em que seria aplicável o artigo precedente[12] – ainda que o preço tenha sido fixado em função da própria coisa, em si mesma considerada. No caso dos autos, como em tantos outros, na escritura que formalizou o negócio o imóvel surge identificado também por referência à sua descrição predial e inscrição matricial, referências para além do mais obrigatórias, como decorre do disposto nos artigos 54.º e 57.º do Código do Notariado[13], cumprindo pois decidir se tal menção cumpre ainda a previsão legal.
A este respeito, ponderou-se no acórdão do TRL de 29/3/2011 (processo 975/08.1TBCLD.L1-7), que “A declaração ou indicação de quantidade é um elemento importante para descortinar o conteúdo ou a dimensão concreta da coisa que é vendida e que foi tida em conta no processo de formação da vontade real das partes; e, assim sendo, com este alcance, sendo o conteúdo ou dimensão um elemento que releve, importante ou essencial, para essa formação da vontade, exigível será que no contrato conste com suficiente expressão e clareza, que assim permita intuir e fazer ver que, de facto, se bem que o preço ajustado seja (apenas) referido à coisa, também a respectiva dimensão foi tida em conta, pelas partes ou ao menos por alguma delas, na decisão de contratar. É que o direito à redução proporcional do preço, nestas circunstâncias (artigo 888.º, n.º 2), não é de certa forma alheio a um erro de formação de vontade, aquele que consiste em ela se gerar na base de uma circunstância que é desconforme à realidade; e essa desconformidade não pode ser ambígua, antes se deve revelar inequívoca e concludente. Ou seja; a declaração da quantidade, para efeitos do regime do artigo 888.º, significa o esclarecimento de qual a coisa intencionada que é o objecto (mediato) do contrato; permitindo dissipar as dúvidas sobre aquilo relativamente a que cada uma das partes alicerçou a sua decisão e vontade de contratar”[14].
Concordando-se com o entendimento expresso no aresto vindo de citar, afigura-se, no entanto, na esteira do entendimento expendido no citado acórdão do STJ de 6/4/2021, que a menção à quantidade pode resultar da remissão para os documentos dos quais consta referência à área, elemento cuja relevância na decisão de contratar naqueles termos, designadamente no que se refere ao preço, será atingida por apelo aos critérios de interpretação da declaração negocial.
Ao autor cabia, pois, provar que, tendo embora visualizado os limites do prédio que lhe foi mostrado -e o que foi mostrado corresponde ao que foi efectivamente vendido- quis comprar aquele terreno, mas pressuposta a sua área como sendo a de 32 000 m2 que constava dos documentos que lhe foram entregues pela colaboradora da empresa de mediação, também aqui demandada, e só por isso aceitou pagar o preço pedido.
Em matéria de interpretação da declaração negocial releva quanto dispõem os artigos 236.º a 239.º, o primeiro destes preceitos consagrando a teoria objectivista da impressão do destinatário, maneira que a regra é a de que o sentido decisivo da declaração negocial é aquele que seria apreendido por um declaratário normal, entendido como alguém medianamente instruído e diligente colocado na posição do real declaratário, perante o comportamento do declarante (exceptuados os casos, que aqui não relevam, de não poder ser imputado ao declarante, razoavelmente, aquele sentido, ou o de o declaratário conhecer a vontade real daquele).
O objectivismo é, no entanto, temperado por uma salutar restrição de inspiração subjectivista[15], tomando-se em consideração a posição concreta do declaratário real e os elementos que ele efectivamente conheceu, mas atendendo ainda aos elementos que uma pessoa normal, isto é, uma pessoa com razoável esclarecimento, zelo e sagacidade, teria conhecido, concluindo-se que o declaratário real ponderou sobre esses elementos, como ponderaria um declaratário normal. As circunstâncias a ter em conta na interpretação são, deste modo, todas aquelas a que um declaratário normal atenderia, a saber, os termos do negócio, as negociações prévias, os interesses em jogo, a finalidade prosseguida pelo declarante, etc.
No caso vertente releva que ao aqui apelante tenham sido facultadas, aquando da sua visita ao prédio, as certidões matricial e registal, acompanhadas de planta com mancha de implantação, o que foi naturalmente entendido no sentido -assim o entenderia o declaratário normal- que o que estava a ser vendido era aquele prédio, com os limites apontados e visíveis, mas com aquela implantação e área constante dos documentos. Daí que, percebendo embora os respectivos limites, o apelante tenha, ainda assim, formado a convicção de que a área delimitada correspondia aos 32 000 m2 que coincidentemente constava dos documentos que lhe foram então presentes, convencimento de resto partilhado pelos vendedores. E não tendo em momento algum sido suscitada dúvida quanto à coincidência entre o que lhe foi mostrado e os elementos constantes dos documentos (cfr. pontos 13 e 14), perdem relevância os factos assentes em 15 e 16. Deste modo, tendo o prédio sido identificado na escritura também por remissão para os aludidos documentos, o que o comprador apelante quis na verdade comprar e acreditou que estava a ser vendido era aquele prédio, mas com a área de 32 000 m2. É certo que, como também já se deixou referido, as mesmas certidões não asseveram que os limites ou áreas dos prédios documentados tenham exacta correspondência nos elementos que constam da respectiva descrição, admitindo-se ainda que seja do conhecimento comum a falta de rigor de tais elementos. Todavia, o que já não pode admitir-se como expectável, e muito menos “normal”, é um desvio da ordem de grandeza daquela que aqui se verifica.
Por outro lado, estando em causa um prédio rústico, sem capacidade edificativa, o seu valor será, segundo autorizada presunção judiciária, afectado pela dimensão, o que nos autos se mostra de algum modo comprovado pelo resultado da avaliação efectuada e assente em 24. É certo que aí não se afirma que o valor mencionado corresponda ao valor real do prédio, mas legitima a conclusão, atendendo até à diferença significativa entre a área constante da descrição predial e a área real – um pouco menos de ¼ – de que o prédio, tendo apenas cerca de 25 000 m2, vale menos do que se tivesse os 32 000 m2 indicados nos documentos a ele relativos. Daí que a área, não tendo sido elemento essencial à tomada da decisão de comprar o prédio – caso em que estaríamos perante erro essencial, susceptível, verificados que fossem os pressupostos do artigo 247.º, ex vi do artigo 252.º, de conduzir à anulação do negócio – foi relevante, pelo menos para o autor apelante, para a fixação do preço que aceitou pagar, tendo por isso direito à redução proporcional, que se alcança pela aplicação da regra de 3 simples (cfr. n.º 2 do artigo 888.º), impondo-se a restituição do montante de € 8.952,62.
Sobre a quantia agora apurada são devidos juros de mora à taxa supletiva legal desde a data da citação nos termos dos artigos 805.º, n.º 1, alínea a), como peticionado.
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Da responsabilidade da Ré empresa de mediação (…)
Desconhecendo-se embora os termos do contrato celebrado entre os RR vendedores e a empresa de mediação imobiliária I... e a data em que foi celebrado, não há dúvida quanto à sua existência, que não foi impugnada, constando para além do mais expressamente da escritura a intervenção desta última. Deste modo, haverá agora que decidir se, conforme pretende o autor, a 2.ª Ré deve ser solidariamente condenada com os primeiros na decretada restituição de parte do preço, por ter violado os deveres que sobre ela impendem.
Resulta do disposto no artigo 17.º da Lei n.º 15/2013, de 08 de Fevereiro, aqui aplicável que sobre a empresa de mediação impendem os deveres de
- se certificar, no momento da celebração do mesmo contrato, por todos os meios ao seu alcance, da correspondência entre as características do imóvel objeto do contrato de mediação e as fornecidas pelos interessados contratantes, bem como se sobre o mesmo recaem quaisquer ónus ou encargos – artigo 17.º, n.º 1, alínea b);
- obter informação junto das pessoas com quem o contrato de mediação foi celebrado e fornecê-la aos interessados de forma clara, objetiva e adequada, nomeadamente sobre as características, composição, preço e condições de pagamento do bem em causa – artigo 17.º, n.º 1, alínea c);
- propor com exatidão e clareza os negócios de que forem encarregadas, procedendo de modo a não induzir em erro os interessados [artigo 17.º, n.º 1, alínea d);
- comunicar imediatamente aos interessados qualquer facto que ponha em causa a concretização do negócio visado – artigo 17.º, n.º 1, alínea e).
O mesmo diploma, no seu artigo 7.º e anexo 1.º, prevê a obrigatoriedade das empresas de mediação imobiliária estabelecidas em território nacional possuírem seguro destinado a garantir a responsabilidade civil por danos patrimoniais causados no exercício da atividade, o qual se destina a assegurar, no mínimo, o pagamento de indemnizações para ressarcimento dos danos patrimoniais causados a terceiros, decorrentes de ações ou omissões das empresas de mediação imobiliária ou dos seus representantes legais e colaboradores, ou do incumprimento de outras obrigações resultantes do exercício da atividade.
Por sua vez, nos termos do n.º 5 do artigo 7.º da referida Lei, consideram-se terceiros todos os que, em resultado de um ato de mediação imobiliária, venham a sofrer danos patrimoniais, ainda que não tenham sido parte no contrato de mediação imobiliária.
Da concatenação das citadas disposições resulta a responsabilização da mediadora por atos ou omissões dos seus representantes ou colaboradores que determinem danos patrimoniais, quer perante aqueles com quem contratou – responsabilidade contratual – quer perante terceiros – responsabilidade extracontratual. Com efeito, e tal como desenvolvidamente se esclareceu no aresto deste mesmo TRE de 22 de Maio de 2022 (processo 1996/19.4T8FAR.E2, acessível em www.dgsi.pt), a circunstância de, ao invés do que ocorria com o Decreto-Lei n.º 211/2004, de 20 de agosto, cujo artigo 22.º continha previsão expressa sobre a “responsabilidade civil”, a Lei n.º 15/2013 não consagrar norma correspondente, não resulta que fique arredada a aplicação do regime geral da responsabilidade civil, verificados que estejam os respectivos pressupostos. Tal responsabilidade da mediadora, a despeito da sua diversa fonte, é solidária com a dos seus clientes, porquanto, tal como ali também se ponderou, em citação do Prof. A. Varela, “O facto de duas obrigações terem causas diferentes, não obsta a que possa existir solidariedade entre elas – cfr. Antunes Varela Obrigações 2ª ed. I 618 –. Necessário é que tenham o mesmo fim, a satisfação do mesmo interesse do credor – id. 621».
Assim estabelecido que a ré mediadora pode responder perante o autor se verificados os pressupostos da responsabilidade civil por acto ilícito, e resultando dos autos que o prédio objecto do contrato de compra e venda não tinha as características informadas pelos vendedores seus clientes e que constavam da documentação pertinente, que entregou ao A. aquando da visita ao terreno, parece ter sido objectivamente violado o dever que lhe é imposto pela antes citada alínea b) do artigo 17.º, tanto mais que, atenta a actividade profissional por si desenvolvida, não poderá naturalmente desconhecer que a área é elemento relevante, especialmente se estiver em causa, como é o caso, um prédio rústico.
Todavia, sendo a nosso ver inexigível que as mediadoras procedam por si a levantamento topográfico dos prédios objecto da mediação para apuramento rigoroso das áreas ou demandem dos seus clientes tal elemento, afigura-se que os factos apurados, até pela sua escassez no que à atividade desenvolvida pela 2.ª Ré no caso concreto diz respeito, não permitem a formulação de um juízo de culpa. Com efeito, importa notar que, conforme resulta dos documentos juntos pelo A. em 21/11/2022 (fls. 145 a 149 e verso do processo físico), o prédio manteve sempre a mesma área, sem alteração ao longo dos tempos, maneira que até os vendedores estavam convencidos da conformidade entre a menção nos documentos - sendo além do mais concordes as constantes da inscrição matricial e descrição predial – e a realidade, não tendo sido levantada qualquer dúvida a este respeito em todo o processo negocial, nada fazendo suspeitar da existência do desvio que se veio a apurar.
Por último, mas afigura-se que decisivamente, a obrigação que resulta para o vendedor da aplicação do n.º 2 assemelha-se à obrigação de restituir com fundamento na repetição do indevido, donde, nada tendo a mediadora recebido a mais, nada tem que repor.
Improcede, pelos fundamentos expostos, o pedido formulado quanto à 2.ª Ré.
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Da anulação do contrato por erro essencial na formação da vontade dos apelados vendedores.
Subsidiariamente, prevenindo a possibilidade, que se confirmou, de procedência da pretensão formulada pelo A., vieram os RR ampliar o objecto do recurso, de modo a ser apreciado o pedido reconvencional formulado, cujo conhecimento havia ficado prejudicado pela solução encontrada na sentença recorrida.
Pedem os apelados que seja anulado o negócio uma vez que, conforme alegaram e resultou provado, também eles estavam em erro quanto à área do prédio alienado, tendo sido vendido pelo valor mínimo por que aceitariam vendê-lo, sendo que jamais aceitariam fazê-lo pelo valor reduzido.
Apreciemos, pois, a pretensão dos apelados reconvintes.
Os vícios da vontade constituem “(...) perturbações do processo formativo da vontade, operando de tal modo que esta, embora concorde com a declaração, é determinada por motivos anómalos e valorados, pelo direito, como ilegítimos”[16]. O erro-vício traduz-se assim numa representação inexacta ou na ignorância de uma qualquer circunstância, de facto ou de direito, que foi determinante na decisão de efectuar o negócio: trata-se de um erro na formação[17] da vontade.
Regulando o “erro sobre a pessoa ou sobre o objecto do negócio”, o artigo 251.º dispõe que o erro que atinja os motivos determinantes da vontade, quando se refira à pessoa do declaratário ou ao objecto do negócio, torna este anulável nos termos do artigo 247.º”.
O erro sobre o objecto do negócio pode incidir sobre as qualidades do objecto, como pretendem os RR reconvintes ter ocorrido no caso em apreço, uma vez que, também eles, incorreram em erro sobre a área do prédio que pretendiam vender, convencidos que tinha a área de 32 000 m2 que constava da inscrição matricial e descrição predial.
É facto demonstrado que os RR vendedores e aqui apelados também estavam em erro no que respeita à área do prédio. No entanto, por força da remissão para a disciplina do artigo 247.º, a anulação do negócio depende da verificação do requisito da essencialidade - só o erro essencial é causa de anulabilidade- exigindo ainda a lei que o declaratário conhecesse, ou não devesse ignorar, a essencialidade, para o declarante, do elemento sobre que incidiu o erro, dispensando embora o conhecimento ou cognoscibilidade do erro em si.
O erro essencial é aquele que levou o errante a concluir o negócio em si mesmo, e não apenas nos termos em que o foi. Noutra formulação, “o erro foi causa (…) da celebração do negócio e não apenas dos seus termos. O erro é essencial se, sem ele, se não celebraria qualquer negócio ou se celebraria um negócio com outro objecto ou de outro tipo ou com outra pessoa”[18].
Visto o acervo factual apurado, afigura-se que, ao invés do que sustentam os apelados, a área do prédio, longe de ser elemento essencial para a formação da vontade de vender, era, na lógica da argumentação que expendem, irrelevante, sendo sim essencial o preço de € 40.000,00 que fixaram e correspondia ao preço mínimo por que aceitariam vendê-lo. Por outras palavras, o que os apelados pretendem ter ficado demonstrado é que nunca venderiam por valor inferior aos sobreditos € 40.000,00, fosse qual fosse a área do prédio – 32 000 m2, 25 000 m2 ou 10 000 m2 – elemento portanto absolutamente irrelevante à decisão de contratar e à fixação daquele preço (ainda que se abstenham de dizer o que fariam no caso de se vir a apurar uma área 25% superior àquela que acreditavam ser a real). Já o preço fixado seria essencial, essencialidade para além do mais conhecida do apelante, a conceder-lhes o direito à anulação do negócio quando se considere que a venda foi feita afinal pelos apurados € 31.047,38.
A este respeito resultou provado que o valor de venda do prédio rústico foi acordado entre os Réus vendedores, correspondendo ao valor mínimo pelo qual estes aceitariam aliená-lo (ponto 5). Ainda que não se diga que este mesmo facto foi dado a conhecer ao réu -a missiva a que se refere o ponto 20, sendo posterior ao negócio, não releva para este efeito-, não custa admitir que no decurso das negociações os RR tenham afirmado ser aquele o preço mínimo pelo qual aceitariam vender o prédio. Todavia, ainda a conceder que assim tenha ocorrido e reconhecendo que o preço será, naturalmente, um elemento essencial a ponderar na venda de um bem, quer pelo vendedor, quer pelo comprador, a verdade é que no caso em apreço A. e RR vendedores estavam convencidos que a área do prédio era de 32 000 m2, metragem que constava dos documentos e pano de fundo das negociações, sem curar agora da relevância que assumia para cada um dos contraentes. Deste modo, e não podendo os apelados desconhecer que, conforme é das regras da experiência ou modo como de ordinário as coisas ocorrem, na venda de imóveis, especialmente quando está em causa um prédio rústico, a área é elemento com repercussão no preço, o A. muito naturalmente considerou que seria o preço mínimo a pagar pelo terreno com aquela área, por isso o aceitou. Assim sendo, aos reconvintes cabia demonstrar terem dado a conhecer ao apelante que, independentemente da área do prédio, aquele era o preço abaixo do qual não o venderiam. Tal prova, porém, não foi feita, desde logo porque o facto em si não foi sequer alegado, obstando a que se dê como assente o requisito da essencialidade, com a consequente improcedência do pedido reconvencional formulado.
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III. Decisão
Acordam os juízes da 2.ª secção cível do tribunal da Relação de Évora em:
Julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo autor, condenando os RR vendedores BB; CC e marido, DD; e EE e mulher, FF, a restituírem ao autor a quantia de € 8.952,62 (oito mil, novecentos e cinquenta e dois euros e sessenta e dois cêntimos), acrescida dos juros vencido desde a data da propositura da acção e vincendos até integral pagamento, computados à taxa supletiva legal para as dívidas de natureza civil, mantendo a absolvição da 2.ª Ré;
Julgar improcedente o pedido reconvencional formulado.
As custas da acção, nesta e na 1.ª instância, ficam a cargo do A e dos RR vendedores, na proporção dos respectivos decaimentos; as custas da reconvenção ficam a cargo dos reconvintes (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).
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Sumário: (…)
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Évora, 07 de Março de 2024
Maria Domingas Simões (Relatora)
Mário João Canelas Brás (1º Adjunto)
Ana Margarida Leite (2ª Adjunta)


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[1] Diploma ao qual pertencerão as demais disposições legais que vierem a ser citadas sem menção da sua origem.
[2] Direito Das Obrigações, volume III, 10.ª edição, págs. 70 e seguintes.
[3] Autor e obra citados, pág. 72.
[4] Profs. Pires de Lima/A. Varela, comentário ao artigo 888.º, CC Anotado, vol. II, 3.ª edição Revista e Actualizada, sendo da nossa responsabilidade o destaque.
[5] in “Contrato de Compra e Venda no Código Civil – Proibições de Compra e de venda – Venda de bens futuros – Venda de bens de existência ou titularidade incerta – Venda de coisas sujeitas a contagem, pesagem ou medida”, na Revista da Ordem dos Advogados, Ano 43, acessível em https://www.oa.pt/upl/%7B16865038-1cf9-4dbd-8e5a-99fb85d06a0e%7D.pdf
[6] Como dá conta o Prof. Raul Ventura no artigo identificado na nota anterior, os preceitos em causa – artigos 887.º e 888.º do CC – inspiraram-se directamente nos artigos 1537.º e 1538.º do CC italiano, integrados na secção dedicada à venda dos imóveis.
[7] Acórdão de 10-09-2019, processo n.º 272/17.1T8BGC.G1.S2, disponível para consulta em www.dgsi.pt,
[8] Acórdão deste TRE de 5/2/2004, processo 1202/03-3, acessível em www.dgsi.pt.
[9] V., neste preciso sentido, o recente acórdão do TRC de 9/1/2024, no processo 107/23.6T8CTB.C1, disponível em www.dgsi.pt
[10] Com voto de vencido do Sr. Cons. Abrantes Geraldes, defendendo a aplicação extensiva do artigo 888.º ao caso concreto.
[11] Decidiu também neste sentido o TRP, em acórdão de 1/12/2014, processo 344/11.6TBAMT.P1, acessível, como os demais indicados, em www.dgsi.pt.
[12] Irrelevando, pois, para este efeito, que a compra e venda não tenha sido “negociada com base no preço por m2 ou ha”, conforme alegam os RR na contestação (vide artigo 74.º).
[13] Com seguinte teor:
Artigo 54.º:
“1. Nenhum instrumento respeitante a factos sujeitos a registo pode ser lavrado sem que no texto se mencionem os números das descrições dos respetivos prédios na conservatória a que pertençam ou hajam pertencido, ou sem a declaração de que não estão descritos.”
Artigo 57º:
“1. Nos instrumentos em que se descrevam prédios rústicos, urbanos ou mistos deve indicar-se o numero da respetiva inscrição na matriz ou, no caso de nela estarem omissos, consignar-se a declaração de haver sido apresentada na repartição de finanças a participação para a inscrição quando devida”.
[14] Aparentemente neste mesmo sentido Mafalda Miranda Barbosa, “Falta e vícios da vontade: uma viagem pela jurisprudência”, in RJLB, ano 4 (2018), n.º 6, acessível em https://www.cidp.pt/revistas/rjlb/2018/6/2018_06_2391_2446.pdf
[15] Profs. Antunes Varela e Pires de Lima, Código Civil Anotado, 1, 1987, Coimbra Editora, pág. 223.
[16] Prof. Mota Pinto, “Teoria Geral do Direito Civil”, 3.ª edição actualizada, Coimbra Editora, págs. 500-501.
[17] Por oposição aos erros na formulação da vontade, nas sugestivas palavras do Prof. Mota Pinto, ob. e loc. citados.
[18] Prof. Mota Pinto, ob. cit., págs. 508/509.