Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2978/20.9T9FAR.E2
Relator: MARIA CLARA FIGUEIREDO
Descritores: REJEIÇÃO DO RAI
INTERVENÇÃO HIERÁRQUICA
MEIO ADEQUADO
FALTA DE ACUSAÇÃO ALTERNATIVA
Data do Acordão: 03/05/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I - A competência do JIC para conhecer de eventuais nulidades do inquérito pressupõe o recebimento da instrução e a abertura de tal fase processual. Até lá, tal competência pertence ao Ministério Público, que, como sabemos, é o titular da investigação que decorre na fase processual de inquérito.

II - A omissão das diligências que a assistente sustenta ter ocorrido no inquérito, podendo traduzir-se numa eventual insuficiência material de tal fase processual, mas não consubstanciando um meio de prova cuja produção seja legalmente imposta, nunca acarretaria nenhuma das nulidades decorrentes da falta de promoção do processo ou da insuficiência do inquérito, previstas, respetivamente, nos artigos 119º, alínea b) e 120.º, n.º 2, alínea d) do CPP. Tudo isto, na medida em que a apreciação da necessidade da realização de tais diligências, com vista a fundamentar uma decisão de acusar ou de arquivar o inquérito, é da competência exclusiva do Ministério Público.

III - Da teleologia da instrução, vista como uma fase de controlo externo da decisão do Ministério Público no encerramento do inquérito, decorre que quando o assistente pretende escrutinar a investigação do Ministério Público, designadamente invocando a sua insuficiência, o único meio processual adequado a acomodar a sua pretensão é a intervenção hierárquica com assento legal no artigo 278.º CPP, não se revelando legalmente admissível a fase instrutória requerida com tal desiderato.

IV - A tarefa de acusar cabe ao acusador e não há outra forma de a cumprir no RAI apresentado pelo assistente sem ser formulando a chamada “acusação alternativa”, na qual se inclua uma concretização precisa e concisa dos factos objetivos e subjetivos conformadores dos ilícitos penais em causa.

V - Em qualquer das situações referidas nos dois pontos anteriores – opção pelo RAI em vez da intervenção hierárquica e falta de acusação alternativa – o RAI revela-se legalmente inadmissível e ao juiz não lhe resta senão rejeitá-lo

Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I - Relatório.

Nos presentes autos que correm termos no Juízo de Instrução Criminal de … - Juiz …, do Tribunal Judicial da Comarca de …, com o n.º 2978/20.9T9FAR, foi proferido despacho de rejeição do requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente AA, identificada nos autos, em virtude de o mesmo ter sido considerado legalmente inadmissível.

Inconformada com tal decisão, veio a assistente interpor recurso da mesma, tendo apresentado, após a motivação, as conclusões que passamos a transcrever:

“1. Compulsado o RAI, do seu teor se alcança, em concreto dos pontos 1 a 33, que pela assistente foram assacadas duas nulidades ao inquérito, nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 120.º do CPP e da alínea b) do artigo 119.º do CPP,

2. não tendo sobre elas, todavia, a decisão recorrida tomado qualquer posição, e, por conseguinte, julgado esses vícios procedentes ou improcedentes.

3. Por tal motivo, salvo o devido respeito, entende a ora recorrente que a decisão recorrida é nula, por falta de pronúncia relativamente às nulidades que lhe foram colocadas, tendo assim violado o disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 379º do CPP.

4. Acresce que, decidiu-se a decisão recorrida pela rejeição do “(…) requerimento de abertura de instrução, com fundamento na sua inadmissibilidade legal, de acordo com as disposições conjugadas dos arts. 286.º, n.º 1, 287.º, n.º 2, a contrario sensu, e 3 do Código de Processo Penal”.

5. Tal decisão, estribou a sua fundamentação na circunstância de, segundo ela, “(…) o requerimento de abertura de instrução não descreve factos concretos e muito menos factos praticados por pessoas determinadas (…) o assistente se refere à denunciada sem a identificar”.

6. Porém, tendo a participação criminal apresentada pela assistente apenas um visado, claramente identificado como sendo a sociedade BB, tendo também a assistente delimitado em concreto que pretendia sindicar a decisão de a denunciada BB não ter sido sujeita a julgamento, salvo o devido respeito, não corresponde, pois, à verdade que a assistente não impute factos contra pessoa determinada, como alega a decisão recorrida.

7. Nesse sentido, salvo melhor opinião em contrário, tendo essa imputação sido estabelecida de forma clara, não deveria a decisão recorrida ter rejeitado a abertura da instrução, alegando que o sujeito alvo desse acto não se encontrava determinado.

8. Por outro lado, nos pontos 1 a 7 daquela peça processual facilmente se encontrará factos nos quais a assistente aí mencionou que recebeu uma factura na sua sede social, proveniente da denunciada, referente a serviços não propostos nem adjudicados, tendo em consequência devolvido a factura em causa.

9. No ponto 8 do RAI, também referiu a assistente que a inexistência da obrigação foi validada em sede judicial, tendo, em consequência, nos seus pontos 42 e 43, mencionado igualmente que a denunciada tentou por diversas vezes obter a cobrança de valores que sabia não lhe serem devidos, assim visando a obtenção de um enriquecimento ilegítimo.

10. Por fim, no ponto 52 do RAI, concluiu a assistente que entendia estarem verificados os requisitos para que a denunciada pudesse ser condenada na prática de um crime de burla, na forma tentada, nos termos dos n.os 1 e 2 do artigo 217.º do CP.

11. Isto é, com a alegação de tais factos no RAI, a assistente enunciou os factos, com a respectiva qualificação jurídica, pelos quais entendeu que ao invés do ocorrido, deveria o MP ter proferido uma acusação.

12. Em face a todo o atrás exposto, e compulsado tal requerimento, facilmente se conclui que a ora recorrente enunciou as razões de facto e de direito da sua discordância em relação à decisão do MP de arquivamento, pelo que, indicando os factos e o direito, contra pessoa determinada,

13. não se verificou qualquer motivo que determinasse a rejeição da instrução, em concreto, a sua inadmissibilidade legal, pelo que a decisão recorrida aplicou de forma incorrecta o disposto no n.º 3 do artigo 287.º do CPP.

14. Acresce ainda que, também entende a ora recorrente, salvo o devido respeito, que não corresponde à verdade, que não tenha indicado factos “integradores do elemento subjectivo do tipo de crime por cuja pronuncia se propugna”, neste caso, o de um crime de burla na forma tentada.

15. Compulsados os pontos 1 a 3, 5, 43 e 52 do RAI, conclui-se que a recorrente enunciou as razões de facto e de direito da sua discordância em relação à decisão do MP de arquivamento, pelo que, tendo entendido a decisão recorrida que tal assim não sucedeu, violou o estatuído no n.º 2 do artigo 287.º do CPP..”

Termina pedindo a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que determine o recebimento do requerimento de abertura de instrução ou, em alternativa, “que ordene a instância recorrida a pronunciar-se pelas nulidades assacadas no RAI”.

*

O recurso foi admitido.

Na 1.ª instância, o Ministério Público, pugnou pela improcedência do recurso e pela consequente manutenção da decisão recorrida, tendo apresentado as seguintes conclusões:

“1 – Insurgem-se os recorrentes contra a decisão instrutória que rejeitou a abertura de instrução por inadmissibilidade legal perante a falta de indicação da pessoa autora dos factos e omissão da descrição dos elementos objectivos e subjectivos dos tipos de crime convocados. Mais a contestam pelo facto de não ter apreciado as nulidades de inquérito que haviam arguido em sede de requerimento de abertura de instrução.

2 – Não lhes assiste razão.

3 – No que tange ao não conhecimento das nulidades, bem andou a Mma. JIC, visto não ser competente para as apreciar, uma vez que não declarou aberta a fase de instrução. Em sede de inquérito a autoridade judiciária titular é o Ministério Público, apenas sendo legalmente admissível ao/à JIC intervir nos termos do disposto nos artigos 268.º e 269.º do Código de Processo Penal – neste sentido, o aresto desse Venerando Tribunal, proferido no processo 254/20.6GTABF.E1 e disponível para consulta em http://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/a40ef8759e23b075802589fa00352f16?OpenDocument, o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora, no Processo n.º 180/19.1GDSRP-A.E1, datado de22/01/2021(disponívelemhttp://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/c70d0c048c8c20f88025876c003577b0.)

4 – Do mesmo modo, entendemos não merecer reparos a decisão recorrida quanto à falta de imputação objectiva e subjectiva do tipo de crime pelo qual a assistente pretendia a pronuncia [embora discordemos do segmento em que exige que seja descrito que a pessoa aja sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei – pelo menos no que ao direito penal clássico diz respeito -, visto que tal segmento contende com a consciência da ilicitude que se inclui no dolo de culpa e não no dolo do tipo].

5 – Constitui “Crime”, nos termos do artigo 1.º, alínea a) do Código de Processo Penal, “o conjunto de pressupostos de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou de uma medida de segurança criminais”, o que compreende uma acção (ou omissão) típica, ilícita e culposa (e punível) e, segundo o artigo 287.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, é aplicável, ao requerimento de abertura de instrução do assistente, entre o mais, o disposto nas alíneas b) do n.º 3 do artigo 283.º do mesmo diploma legal, que, por seu turno impõe que, da acusação, conste a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, ou seja, de factos que constituam crime.

6 – Estando em falta tais elementos, a instrução é legalmente inadmissível porque fica inviabilizada a pronúncia por crimes, sendo que o objecto da instrução é fixado estritamente pelo requerimento de abertura de tal fase processual.

7 – Por outro lado, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2005 de 12 de Maio de 2005, fixou jurisprudência no sentido de que “Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido.”, interpretação que já mereceu acolhimento por parte do Tribunal Constitucional, pelo menos, nos acórdãos n.º 807/2003, 310/2005 e 636/2011.

8 – Assim, o requerimento de abertura de instrução por assistente tem de conter a narração dos factos que constituem crime, nas suas dimensões objectiva e subjectiva, pois apenas estas exigências se compatibilizam com as garantias do direito de defesa de arguidos/as e com a estrutura acusatória do processo penal português – neste sentido, vide o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 636/2011 https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20110636.html.

9 – Ora, analisado o requerimento de abertura de instrução apresentado nestes autos, verifica-se que não obedece aos requisitos legalmente impostos, pelo que bem andou o Tribunal a quo em rejeitar a abertura de instrução por inadmissibilidade legal.

10 - Refere a recorrente que os elementos estão descritos nos pontos 1 a 8, 42 e 43, reiterando ainda que no RAI identificada a pessoa concreta a quem se imputam os factos.

11 – Ora, no RAI não está identificada concretamente a denunciada.

12 – Por outro lado, referindo a recorrente que pretende a pronúncia de uma pessoa colectiva, a descrição objectiva e subjectiva tem de conter os elementos previstos no artigo 11.º do Código Penal, o que implica, prima facie, a indicação da ou das pessoas que, em concreto, agiram em nome da denunciada ou por sua conta e no seu interesse directo ou indirecto e a sua posição de liderança, ou, daquelas que ajam em nome e por conta da pessoa colectiva, sob a autoridade das pessoas que exerçam posição de liderança, em virtude de violação dos deveres de vigilância ou controlo que lhes incumbe.

13 - Nada é descrito no RAI a respeito.

14 - Por outro lado, descreve a assistente no RAI que a denunciada remeteu factura para pagamento por serviços que, efectivamente, não prestara à assistente. Sucede que tal factualidade não consubstancia um erro provocado na assistente, visto que esta simplesmente poderia recusar o pagamento, como o fez, uma vez que a remessa da factura nunca a colocaria em erro sobre se beneficiou ou não de serviços ou bens fornecidos pela denunciada. Ou seja, não é possível que a remessa de uma factura solicitando um pagamento possa consubstanciar erro para efeitos do indicado artigo – o erro ou engano criado, como bem refere o Ministério Público no despacho de arquivamento, tem de revestir um estratagema ardiloso, de encenação orientada a ludibriar.

15 - Por fim, evidencia-se a total omissão de qualquer facto inerente ao elemento subjectivo.

16 - Assim, o Ministério Público pugna pela improcedência do recurso.”

*

A Exmª. Procuradora Geral Adjunta neste Tribunal da Relação emitiu parecer, tendo-se pronunciado no sentido da improcedência do recurso.

*

Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do CPP, não tendo sido apresentada qualquer resposta.

Procedeu-se a exame preliminar.

Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

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II – Fundamentação.

II.I Delimitação do objeto do recurso.

Nos termos consignados no artigo 412º nº 1 do CPP, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente na sua motivação, as quais definem os poderes cognitivos do tribunal ad quem, sem prejuízo de poderem ser apreciadas as questões de conhecimento oficioso.

Em obediência a tal preceito legal, a motivação do recurso deverá enunciar especificamente os fundamentos do mesmo e deverá terminar pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, nas quais o recorrente resume as razões do seu pedido, de forma a permitir que o tribunal superior apreenda e conheça das razões da sua discordância em relação à decisão recorrida.

No presente recurso e considerando as conclusões extraídas pela recorrente da respetiva motivação, são as seguintes as questões a apreciar e a decidir:

- Caso se conclua pela alegabilidade do vício da nulidade por omissão de pronúncia previsto no artigo 379º, nº 1, alínea c) do CPP relativamente à decisão recorrida, determinar se a mesma enferma de tal vício por se não ter pronunciado sobre as nulidades do despacho de arquivamento do inquérito invocadas no RAI.

- Determinar se o requerimento de abertura de instrução apresentado pela recorrente contém todos os elementos necessários ao seu recebimento e, consequentemente, se deveria ter sido admitido, ou se, tal como sustenta a decisão recorrida, se revela legalmente inadmissível em virtude de não conter a narração autónoma dos factos relativos aos elementos objetivos e subjetivos do tipo imputado à denunciada.

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II.II - A decisão recorrida.

Decidiu o tribunal recorrido nos seguintes termos:

“(…) Do Requerimento de Abertura de Instrução:

Nos presentes autos o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento conforme consta nos presentes autos.

O Assistente por discordar do despacho de arquivamento proferido, veio requerer a abertura da instrução por requerimento que fez, a 29.09.2023, pedindo a pronuncia da denunciada e referindo as suas razões de discordância do despacho de arquivamento.

Resulta do disposto no nº2 do artº 287º do CPP, que o requerimento de abertura de instrução, não está sujeito a formalidades especiais, mas que deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos, que através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto no artº283º, nº3 al.s a) e b) do CPP.

Ora, dispõe o artº 283º nº3 do CPP que “ a acusação contém, sob pena de nulidade: a) As indicações tendentes à identificação do arguido;

b) .A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua pratica, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;

Acresce que, nos termos do disposto no artº 309º do CPP, a decisão instrutória é nula, na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente ou no requerimento de abertura da instrução.

Conforme sabemos, o processo penal rege-se pelos princípios do acusatório e do contraditório, pelo que o requerimento de abertura da instrução, quando requerida pelo assistente, na sequência de despacho de arquivamento do Ministério Público, deve conter todos os elementos de uma acusação, descrevendo os factos que consubstanciem o ilícito, cuja prática imputa ao arguido.

Na apresentação do R.A.I. por parte do assistente, a Lei exige que o assistente proceda em termos idênticos àqueles que caberiam ao Ministério Público, na prolação de uma acusação, e em que a descrição factual dos elementos objectivos e subjectivos do tipo ou tipos, pelos quais o arguido deverá ser pronunciado, funcionam como a fixação do objecto do processo, i.e., do seu thema probandum. Com efeito, “ (…) Integrando o requerimento de instrução razões de perseguilidade penal, aquele requerimento contém uma verdadeira acusação; não há lugar a uma nova acusação; o requerimento funciona como acusação em alternativa, respeitando-se, assim, «formal e materialmente a acusatoriedade do processo», delimitando e condicionado a actividade de investigação do juiz e a decisão de pronúncia ou não pronúncia. (…)” - in Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol III, p. 125, apud Acórdão de fixação de jurisprudência do S.T.J. n.º 7/2005, de 12 de Maio de 2005.

Sobre a mesma questão veja-se ainda José de Souto Moura in “Jornadas de Direito Processual Penal – O Novo Código de Processo Penal”, ed. Almedina, 1988, pag. 120 “se o assistente requerer a instrução sem a mínima delimitação do campo factual sobre que há-de versar, a instrução será a todos os títulos inexequível. O juiz ficará sem saber que factos é que o assistente gostaria de ver acusados.

Aquilo que não está na acusação e que no entendimento do assistente lá devia estar pode ser mesmo muito vasto. O juiz de instrução “não prossegue “uma investigação nem se limitará a apreciar o arquivamento do MºPº, a partir da matéria indiciária do inquérito. O juiz de instrução responde ou não a uma pretensão”.

De facto, é o requerimento de abertura da instrução que vai delimitar o objecto da fase de instrução, sendo que o arguido tem de estar identificado e conhecer todos os factos situados no espaço e no tempo que em concreto lhe são imputados para que se possa defender, bem como a indicação do ilícito pelo qual se pretende a sua pronúncia.

O requerimento de abertura da instrução formulado pelo assistente, na sequência de um despacho de arquivamento do Ministério Público, é mais que uma forma de impugnar o despacho de arquivamento do Ministério Público (para o qual existe a reclamação hierárquica) uma vez que consubstancia, uma verdadeira acusação.

Sem a descrição de factos concretos situados no espaço e no tempo que consubstanciem uma conduta penalmente punível, a identificação do seu agente e a indicação do ilícito pelo qual se pretende ver aquele pronunciado a instrução não tem objecto, ou seja não pode haver instrução.

Sem instrução, o debate e a decisão instrutória constituem uma impossibilidade jurídica e os actos instrutórios actos inúteis, sendo que ainda que fossem apurados factos concretos e a data da sua ocorrência, se tal viesse a constar da decisão instrutória esta seria nula, por violação do disposto no artº 309º, conforme supra referimos.

Destarte, no requerimento apresentado pelo aqui assistente, o mesmo refere as suas razões de discordância relativamente á investigação levada a cabo pelo Ministério Público no decurso do inquérito, bem como manifesta a sua discordância relativamente ao despacho de arquivamento proferido, referindo-se a factos vagos e conclusivos.

Não obstante, o requerimento de abertura de instrução não descreve factos concretos e muito menos factos praticados por pessoas determinadas que sejam susceptíveis de integrar a tipicidade de um crime designadamente do crime que refere. Veja-se que por todo o requerimento, o assistente se refere à «denunciada», sem a identificar.

Sem olvidar, o assistente limita-se a fazer uma exposição conclusiva tendo omitido totalmente a descrição de qualquer facto que se possa subsumir aos elementos subjectivos do tipo criminal relativamente ao qual foi apresentada queixa, não havendo, de todo em todo, qualquer descrição factual referente ao dolo.

Com efeito, não trata o assistente de narrar circunstanciadamente, de forma completa e coerente, os factos que, a seu ver, terão sido cometidos e serão susceptíveis de integrar o crime em causa.

Note-se que nenhum facto é alegado relativamente ao propósito que terá animado a dita denunciada aquando da prática dos factos que constam descritos. Tal como na acusação pública, também no requerimento de abertura de instrução tem de constar que o arguido agiu de forma livre (afastando, assim, as causas de exclusão da culpa), deliberada (elemento volitivo ou emocional do dolo) e consciente, bem sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei (elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento dos elementos objectivos do tipo).

Neste conspecto veja-se o entendimento do douto Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 25-05-2023, no processo 485/22.4GARMR.E1, disponível em www.dgsi.pt.

No caso, o assistente não indica factos completos integradores do elemento subjectivo do tipo de crime por cuja pronúncia se propugna, não os apresentando, pois, com a estrutura de uma acusação, como se exige.

Ora, as falhas supra descritas subsumíveis à falta de descrição factual com a virtualidade de fundamentar a aplicação de uma pena ou medida de segurança, não poderão ser supridas, sendo este o entendimento do Acórdão de fixação de jurisprudência do S.T.J. n.º 7/2005, de 12 de Maio de 2005, segundo o qual, “Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido.”

Deste modo, em face do exposto, rejeita-se o requerimento de abertura de instrução, com fundamento na sua inadmissibilidade legal, de acordo com as disposições conjugadas dos arts. 286.º, n.º1, 287.º, n.ºs 2, a contrario sensu, e 3 do Código de Processo Penal.

Custas a cargo do assistente, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC’s. Notifique.

Oportunamente arquive. (…)”.

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II.III - Apreciação do mérito do recurso.

A) Da inalegabilidade do vício previsto no artigo 379º, nº 1, alínea c) do CPP.

Relativamente à invocação do vício da nulidade previsto no artigo 379º, nº 1, alínea c) do CPP, reportado à decisão de rejeição do RAI, nos termos constantes do recurso da assistente, cabe, antes de mais, assentar em que a mesma se não mostra admissível, uma vez que os vícios previstos em tal norma – tal como a sua própria epígrafe indica – são vícios próprios da sentença.

Sempre se dirá, todavia, que a decisão sindicada no presente recurso não padece de qualquer vício que inquine a sua validade, designadamente do vício de nulidade, sendo que, relativamente à alegada falta de conhecimento das nulidades do despacho de arquivamento, se impõe clarificar que, conforme bem referiu o Ministério Público na sua resposta ao recurso, não tendo sido declarada aberta a fase de instrução, o Tribunal a quo se encontrava impedido de as apreciar.

Com efeito, não obstante o artigo 119.º do CPP determinar que as nulidades insanáveis devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento, é sabido que o processo penal português se reparte nas fases de inquérito, instrução, julgamento e recurso, consubstanciando a instrução a primeira fase processual de carácter jurisdicional, presidida por um juiz. Ora, apenas quando verificar que não existem fundamentos para rejeitar o requerimento de abertura de instrução, nos termos do disposto no artigo 287.º, n.º 3, do CPP o JIC declarará aberta tal fase processual, no âmbito da qual poderá conhecer de eventuais invalidades – entre os quais a nulidade – que possam afetar os atos praticados na fase de inquérito. Até lá, de acordo com os princípios da legalidade, da estrutura acusatória do processo e da vinculação temática, com assento constitucional no previstos pelo artigo 32.º, n.º 5 da CRP, o JIC não tem competência para o efeito, pertencendo tal competência ao Ministério Público, que, como sabemos, é o titular da investigação que decorre na fase processual de inquérito. (1) (2) Ou seja, a competência do JIC para conhecer de eventuais nulidades do inquérito pressupõe o recebimento da instrução, o que na situação dos autos não veio a suceder, pelo que nenhuma censura merece a circunstância de o tribunal a quo não ter conhecido das nulidades arguidas pela assistente relativamente ao despacho de arquivamento do inquérito, nulidades que, aliás, haviam já sido objeto de apreciação pelo Ministério Público no despacho proferido em 06.09.2022.

Improcede, pois, este fundamento do recurso.

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B) Da apreciação da admissibilidade do requerimento de abertura de instrução (RAI).

Nos presentes autos, findo o inquérito foi proferido despacho arquivamento do processo, por se ter entendido que se não reuniram indícios suficientes da prática do crime sob investigação e que a queixosa imputara à empresa denunciada, tendo, sequentemente, sido dado cumprimento ao disposto no artigo 277.º do CPP.

A assistente, não se tendo conformado com o teor do despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público, requereu a abertura da fase de instrução através do requerimento que veio a ser rejeitado pela decisão recorrida. Para sustentar o seu requerimento de abertura da fase de instrução veio a requerente arguir a nulidade da decisão de arquivamento por insuficiência do inquérito e por falta de promoção do processo pelo MP– tendo para tanto convocado o disposto nos artigos 120.º, n.º 1, alínea d) e 119º n.º 1 alínea b) do CPP – e solicitar a pronúncia da denunciada pela prática do crime que identificou.

Após apreciação de tal requerimento, veio a ser proferida a decisão recorrida que decidiu pela sua rejeição, por inadmissibilidade, com fundamento na ausência de narração dos factos integradores do ilícito penal imputado à denunciada. Vejamos.

*

Antes de mais, e pese embora a decisão recorrida se não reporte expressamente às nulidades do despacho de arquivamento arguidas no RAI (3), sempre diremos que se não verifica nenhuma delas, pois que inexiste, obviamente, a nulidade insanável decorrente da falta de promoção do processo pelo Ministério Público legalmente prevista no artigo 119º alínea b) do CPP, não se verificando igualmente a nulidade dependente de arguição consubstanciada na insuficiência do inquérito por não terem sido praticados atos legalmente obrigatórios, prevista no artigo 120.º, n.º 2, alínea d) do CPP, ambas invocadas pela assistente.

A este propósito caberá reter, que, nos termos do artigo 263.º, n.º 1 do CPP, a direção do inquérito cabe ao Ministério Público, assistido pelos órgãos de polícia criminal, praticando-se em tal fase processual os atos e assegurando-se os meios de prova necessários à realização das finalidades a que alude o artigo 262.º, n.º 1 do mesmo código, ou seja, “o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher provas em ordem à decisão sobre a acusação”, tudo conforme o preceituado no artigo 267.º do citado diploma legal. A lei processual penal vigente não impõe a prática de quaisquer atos típicos de investigação atento o modelo de autonomia que, em sede de exercício da ação penal, foi desenhado para a atividade do Ministério Público.

A revisão do Código de Processo Penal levada a cabo pela Lei n.º 48/2007 de 29 de agosto, introduziu na redação da citada alínea d) do artigo 120.º, n.º 2 do CPP o segmento “por não terem sido praticados atos legalmente obrigatórios”. Esta alteração, que teve em vista promover a aceleração das fases preliminares e evitar a proliferação de recursos interlocutórios, consagrou o entendimento, que era corrente na doutrina e na jurisprudência, de que a insuficiência do inquérito ou da instrução só se verifica quando o ato omitido for prescrito pela lei como obrigatório.

De acordo com este entendimento maioritário, que sufragamos, seguindo de perto os ensinamentos do Prof. Germano Marques da Silva (4), a insuficiência do inquérito é uma nulidade genérica, que só se verifica quando se tiver omitido a prática de um ato que a lei prescreva como obrigatório e desde que para essa omissão a lei não disponha de forma diversa, pelo que a omissão de diligências de investigação não impostas por lei não determina a nulidade do inquérito por insuficiência, posto que a apreciação da necessidade dos atos de inquérito é da competência exclusiva do Ministério Público.

Assim, considerando que apenas a omissão de ato que a lei prescreva como obrigatório pode consubstanciar a nulidade de insuficiência do inquérito prevista na alínea d), do n.º 2, do artigo 120.º do CPP e levando em conta que – tal como vem sendo unanimemente defendido na nossa jurisprudência (5) – o único ato obrigatório de inquérito ou de instrução cuja falta a lei comina com a nulidade é o interrogatório do arguido, ou seja, da pessoa contra quem correu o inquérito e em relação à qual haja fundada suspeita da prática de crime, nenhuma dúvida pode restar de que a omissão de diligências no âmbito da produção de prova, cuja obrigatoriedade não resulte de lei, não dá origem a essa nulidade. Acresce que, também o segmento “omissão de posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade” da mencionada alínea d), do n.º 2, do artigo 120.º do CPP não pode acolher a invocada nulidade, pois o mesmo apenas se pode reportar à omissão de atos processuais nas fases subsequentes às fases de inquérito e de instrução, ou seja, nas fases de julgamento e de recurso, conforme claramente decorre da utilização do vocábulo “posterior”.

Dito isto, caberá concluir que a omissão das diligências de investigação que a assistente sustenta ter ocorrido no caso dos autos (6), podendo traduzir-se numa eventual insuficiência material do inquérito, mas não consubstanciando um meio de prova cuja produção seja legalmente imposta, nunca acarretaria nenhuma das nulidades decorrentes da falta de promoção do processo ou da insuficiência do inquérito, previstas, respetivamente, nos artigos 119º, alínea b) e 120.º, n.º 2, alínea d) do CPP. Tudo na medida em que, por um lado, o Ministério Público não deixou de promover o processo, tendo proferido o despacho que entendeu adequado – o de arquivamento do inquérito – e, por outro lado, porquanto a apreciação da necessidade da realização de diligências, com vista a fundamentar uma decisão de acusar ou de arquivar o inquérito, é da competência exclusiva do Ministério Público.

Estas as razões pelas quais a decisão de arquivamento que a assistente pretendia sindicar com a apresentação do RAI não enferma de qualquer nulidade.

*

Analisemos então as razões que, concretamente, determinaram a rejeição do RAI.

Sobre a finalidade e âmbito da instrução, dispõe o artigo 286º do CPP, da seguinte forma:

“Artigo 286.º

Finalidade e âmbito da instrução

1 - A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.

2 - A instrução tem carácter facultativo.

3 - Não há lugar a instrução nas formas de processo especiais.”.

Relativamente à legitimidade para requerer a abertura de instrução, ao seu objeto, ao conteúdo do respetivo requerimento e às causas da sua rejeição, estatui, por sua vez o artigo 287º, nºs 1, 2 e 3 do CPP nos seguintes temos:

“Artigo 287.º

Requerimento para abertura da instrução

1. A abertura da instrução pode ser requerida, no prazo de 20 dias a contar da notificação da acusação ou do arquivamento:

(…)

b) Pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação.

2 - O requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e d) do n.º 3 do artigo 283.º, não podendo ser indicadas mais de 20 testemunhas.

3 - O requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução. (…)”

*

É clara e incontrovertida a estatuição do artigo 286º do CPP no que tange aos fins visados pela instrução, pelo que temos por assente que tal fase processual visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento. Trata-se de uma fase intermédia do processo penal – situada entre o inquérito e o julgamento – de natureza facultativa, que tem como escopo a sindicância pelo Juiz de Instrução Criminal da decisão final do inquérito.

Quando requerida pelo assistente, como sucede na situação que nos ocupa, a instrução visa sindicar a decisão do Ministério Público de não deduzir acusação, solicitando o assistente ao JIC que verifique se se justifica, ou não, submeter o arguido a julgamento, sendo que tal fase processual termina com a prolação de um despacho de pronúncia ou de não pronúncia, consoante “até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos [ou não] indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança”, conforme expressamente estatui o artigo 308º, nº 1 do CPP.

Os fundamentos de rejeição do requerimento de abertura da instrução são exclusivamente os que se encontram previstos no artigo 287º n.º 3 do CPP:

-A extemporaneidade;

- A incompetência do juiz;

- E a inadmissibilidade legal da instrução.

Interessa-nos, para apreciação da questão que somos chamados a decidir no presente recurso, apenas a inadmissibilidade legal da instrução – por ser esse o fundamento utilizado no despacho recorrido para rejeitar o requerimento de abertura de instrução apresentado pela recorrente – sabendo-se, ademais, que é precisamente tal fundamento que, por suscitar maiores dúvidas na sua concretização, tem sido objeto de ampla explanação teórica quer doutrinária, quer jurisprudencial.

Vejamos então. Conforme acima referimos, a instrução em processo penal constitui uma fase não obrigatória, sendo, essencialmente, uma fase de controlo externo da decisão do Ministério Público no encerramento do inquérito. Controlo externo porque é levada a efeito pelo poder judicial, nesta medida, entre o mais, se distinguindo da intervenção hierárquica, prevista no artigo 278.º CPP. Sucede que, contrariamente ao que preconiza a assistente, este controlo jurisdicional da decisão do Ministério Público não tem por objeto toda a atividade do Ministério Público na fase preliminar de inquérito, antes se restringe à decisão que se impugna, questionando-se o juízo que nela se encerra. Tal decisão, no caso dos autos, cinge-se ao arquivamento e pode ser posta em causa por, alegadamente, ter ficado aquém dos indícios que constam do processo quanto à prática do crime de tentativa de burla que a assistente entende dever ser imputado à denunciada. Nunca, porém, com fundamento na invocada insuficiência da investigação. Quanto a esta, podendo ter mobilizado o instituto da intervenção hierárquica, insatisfeita que estava com o arquivamento do inquérito devido a tal insuficiência, a assistente optou por não o fazer.

Neste exato sentido se pronunciou Pedro Soares de Albergaria, na sua anotação ao artigo 286º, inserida no Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, em termos que, pela sua pertinência e relevância para a apreciação da questão que agora analisamos, optamos por transcrever: “(…) a sindicância da atuação do MP só é levada a efeito de modo mediato, indireto, na medida em que se projete na decisão (de acusação do - do MP ou do assistente; ou de arquivamento - do MP) que puser termo ao inquérito; esta, a decisão é que é o objeto imediato de apreciação judicial e só dentro destes limites se mostra legítimo o controlo respetivo, em homenagem à autonomia constitucionalmente reconhecida à magistratura do MP (art. 219.º/2 CRP) e à estrutura acusatória do processo penal pátrio (art. 32.º/5 CRP). De resto, concorrem ainda para esta caracterização da instrução como fase processual substancialmente jurisdicional, a circunstância de ser facultativa (art. 287.º/2), de não poder iniciar-se oficiosamente (art. 287.º/1) e de na decisão que lhe põe fim estar o juiz tematicamente vinculado (art. 390.º/1).(…)” (7)

Ora, é precisamente considerando a teleologia da instrução, vista como uma fase de controlo externo da decisão do Ministério Público no encerramento do inquérito, com a dimensão concretizada no excerto transcrito, que não temos dúvida em concluir que o meio adequado para acomodar a pretensão da assistente – no sentido de que se determine a realização de novas diligências de investigação – não é a abertura de instrução, mas sim a intervenção hierárquica com assento legal no artigo 278.º CPP (8). Com efeito, da fundamentação que acabámos de expor – que, assente no respeito pelos princípios da autonomia da magistratura do MP, da vinculação temática e da estrutura acusatória do processo penal, delimita o âmbito do controlo jurisdicional da decisão final do inquérito pelo JIC – decorre que quando o assistente pretende escrutinar a investigação do Ministério Público, designadamente invocando a sua insuficiência, como sucede no caso dos autos, o único meio processual adequado para enquadrar a sua pretensão é a intervenção hierárquica, não se revelando legalmente admissível a fase instrutória requerida com tal desiderato.

Também a este propósito se pronuncia, de forma cristalina, Pedro Soares de Albergaria, na obra acima citada, referindo que: “(…) Esta teleologia da instrução compreende-se melhor no confronto dela com a intervenção hierárquica (art. 278.º). Muito embora por vezes se diga , sem mais, que os mecanismos são alternativos, na realidade essa afirmação só é exata no sentido de que não podem o assistente ou o denunciante com a faculdade de se constituir assistente deles se prevalecerem cumulativamente. Para lá desta constatação, os institutos obedecem a uma lógica distinta – em especial do n.º 3 do art. 278.º não se deve extrair que o reverso da pura e simples impossibilidade (proibição) de cumulação de requerimentos é a ilimitada liberdade de opção entre eles (entre intervenção hierárquica e abertura de instrução). Sem prejuízo de zonas cinzentas mais ou menos amplas, há casos em que a opção não existe e isso é especialmente evidente quando o assistente ou o denunciante com a faculdade de se constituir assistente pretende essencialmente escrutinar a investigação do MP ou, direta e abertamente, o modo como uma pressupostamente deficiente investigação se projetou na decisão de não acusar. (…) Nestes casos o caminho adequado (rectior: o único), será suscitar a intervenção hierárquica. Não podem estes ser casos para instrução, pois, precisamente, pressuporiam no juiz que os conduzisse um juiz investigador e nessa figura vai por seu turno implicado um desenho processual que não é o constitucionalmente sancionado, como acima se disse – desenho que naturalmente não é desfigurado quando o complemento de investigação é exigido à própria autoridade que tem o dever de investigar.(…)” (9)

Estas as razões pelas quais o requerimento de abertura de instrução apresentado pela, assistente, na parte em que se arrimou na alegada insuficiência da investigação, não se revela legalmente admissível.

*

No que tange à parte do requerimento que pôs em causa a decisão de arquivamento, questionando o juízo que em tal decisão se encerra, em virtude de aquele ter ficado aquém dos indícios que constam do processo quanto à prática do crime de tentativa de burla que a assistente entende dever ser imputado à denunciada, também o aludido requerimento se revela legalmente inadmissível por não respeitar os requisitos estabelecidos pelo artigo 287.º, n.º 2 do CPP. O tribunal recorrido entendeu que o requerimento de abertura de instrução da assistente, a mais de não ter identificado a arguida, não continha a narração dos factos atinentes aos elementos objetivos e subjetivos do tipo aí imputado à denunciada, pelo que o considerou inadmissível. E não temos dúvida de que decidiu acertadamente.

Com efeito, nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do CPP, acima transcrito, o requerimento para abertura de instrução não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que for caso disso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros, se espera provar. Ainda de acordo com a mesma norma legal, ao requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente é aplicável o disposto no artigo 283.º, n.º 3, alíneas b) e c) do CPP, isto é, o mesmo deverá conter a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada e a indicação das disposições legais aplicáveis.

Voltando à questão da abrangência da inadmissibilidade legal da instrução que acima enunciámos, e no que à economia dos autos importa, é amplamente aceite que na mesma se insere o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente que não contenha a narração, ainda que sintética, dos factos que imputa ao arguido e pelos quais pretende que este venha a ser pronunciado. Outro não poderá ser o sentido a atribuir ao artigo 308.º, nº 2 do CPP quando enuncia que o despacho de pronúncia deve conter os elementos exigidos pelo nº 3 do artigo 283.º do mesmo código, ou seja, a narração dos factos deverá constar do RAI e, subsequentemente – se o mesmo vier a ser proferido – do despacho de pronúncia, com a mesma precisão e rigor que são exigidos para uma acusação do Ministério Público. Do que verdadeiramente se trata é da dedução de uma “acusação alternativa”, que, contendo uma concretização precisa e concisa dos factos objetivos e subjetivos conformadores do ilícito penal em causa, cumpra a função de delimitar o objeto do processo, por força da estrutura acusatória deste, assegurando o respeito das garantias de defesa do arguido. (10)

Omitindo-se esses elementos não pode o juiz substituir-se ao assistente, procedendo ao aditamento de factos, ou à sua enumeração e descrição, compondo uma verdadeira acusação, sob pena de violar o princípio da estrutura acusatória do processo penal. Em tais casos, restará apenas ao JIC proceder à rejeição do requerimento de abertura de instrução, por inadmissibilidade legal (11) (12), encontrando-se já fixada jurisprudência pelo STJ no sentido de que “não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido” (13).

Recordamos ainda que, tendo sido chamado a apreciar a conformidade com a Constituição do mencionado entendimento do artigo 287.º do CPP, o Tribunal Constitucional, no seu Acórdão n.º 636/2011, de 20.12, decidiu:

“Não julgar inconstitucional a norma contida conjugadamente nos n.ºs 2 e 3 do artigo 287.º do CPP, na interpretação segundo a qual, não respeitando o requerimento de abertura de instrução as exigências essenciais de conteúdo impostas pelo n.º 2 do artigo 287.º do CPP, e não ocorrendo nenhuma das causas de rejeição previstas no n.º 3 do mesmo preceito, cabe rejeição imediata do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente (não devendo antes o assistente ser convidado a proceder ao seu aperfeiçoamento para suprir as omissões/deficiências constatadas).” (14)

*

Ora, na situação em causa nos presentes autos, analisado o requerimento de abertura de instrução (RAI), constatamos que – ainda que se ultrapassasse a questão da falta de identificação concreta das denunciada (15), conquanto a mesma se encontra identificada na participação – o mesmo não contém a acusação que o Ministério Público entendeu não produzir, ou seja, a “acusação alternativa” daquela, pois não integra o acervo factológico suscetível de preencher o tipo penal de tentativa de burla imputado à denunciada.

Na motivação do recurso, a assistente salienta as suas divergências relativamente à apreciação levada a efeito no despacho recorrido, fornecendo novamente a sua visão e a sua interpretação dos factos e identificando as partes do RAI nas quais entende encontrarem-se alegados os elementos objetivos e subjetivos do tipo. Mas não tem razão.

Alega a recorrente a este propósito que:

“(… ) salvo o devido respeito, também não corresponde à verdade, que a assistente não tenha descrito factos concretos no seu RAI.

Como adiante se explanará como mais detalhe, nos pontos 1 a 7 daquela peça processual facilmente se encontrará factos nos quais a assistente aí mencionou que recebeu uma factura na sua sede social, proveniente da denunciada, referente a serviços não propostos nem adjudicados, tendo em consequência devolvido a factura em causa.

No ponto 8 do RAI, também referiu a assistente que a inexistência da obrigação foi validada em sede judicial, tendo, em consequência, nos seus pontos 42 e 43, mencionado igualmente que a denunciada tentou por diversas vezes obter a cobrança de valores que sabia não lhe serem devidos, assim visando a obtenção de um enriquecimento ilegítimo.

Por fim, no ponto 52 do RAI, concluiu a assistente que entendia estarem verificados os requisitos para que a denunciada pudesse ser condenada na prática de um crime de burla, na forma tentada, nos termos dos n.os 1 e 2 do artigo 217.º do Código Penal (CP).

Isto é, com a alegação de tais factos no RAI, a assistente enunciou os factos, com a respectiva qualificação jurídica, pelos quais entendeu que ao invés do ocorrido, deveria o MP ter proferido uma acusação (…).”

Não concordamos, de todo, com tal apreciação da recorrente.

Com efeito, e ressalvado o devido respeito, os referenciados artigos do RAI, contrariamente ao que alega a recorrente, não contêm os factos atinentes aos elementos integradores do crime que se pretende imputar à denunciada, faltando, manifestamente, os factos atinentes à intenção da denunciada de obter um enriquecimento ilegítimo por via da criação de um engano, ou seja, através da astúcia, necessários à prática do crime de burla e os relativos aos elementos subjetivos do tipo. Atentemos no conteúdo do requerimento de abertura de instrução rejeitado pela decisão recorrida, do qual transcreveremos tão somente os artigos identificados no recurso que supostamente conteriam os factos que a assistente identifica como integradores do mencionado ilícito penal:

“(…)1. Aquando da apresentação da respectiva participação criminal, no seu ponto 2, referiu a assistente que “em 13 de Março de 2020, a Denunciante recebeu na sua sede social a Factura n.º …, datada de 4 de Março de 2020, emitida e remetida pela ora Denunciada”.

2. No seu ponto 12, denunciou a assistente que “jamais a Denunciada apresentou qualquer proposta/orçamento dos serviços que reclama”,

3. tendo no ponto 13 referido ainda que “jamais a Denunciante aceitou qualquer orçamento ou proposta da Denunciada”.

4. Em virtude da inexistência nos registos da assistente de qualquer proposta/orçamento de fornecimento de bens e/ou prestação de serviços adjudicados à Denunciada, máxime, “assistência técnica” e/ou “a porta automática na recepção e a automatismo de portão”,

5. como também pela assistente foi denunciado naquela participação, ponto 4, deu “nota à Denunciada, por carta registada C/AR, datada de 17 de Março de 2020, na qual a Denunciante, para além de manifestar a sua estranheza pela recepção da dita factura, procedeu à devolução da mesma”.

6. Não obstante essa devolução, e respectiva explicação, o certo é que a denunciada não se inibiu de por diversas vezes tentar obter a satisfação de um crédito que bem sabia não existir.

7. Ora, de toda a factualidade atrás alegada, conforme foi igualmente denunciado na participação criminal, resulta assim que a assistente não procedeu ao pagamento da factura n.º …, de 4 de março de 2020,

8. conduta que veio mais tarde a ser respaldada com a prolação da sentença proferida nos autos que sob o n.º 67675/20.0…, correram termos no Juízo Local Cível de … - Juiz …, a qual julgou o procedimento de injunção deduzido pela denunciada totalmente improcedente, tendo, em consequência, a ora assistente sido absolvida do pedido, conforme alegado no aditamento à participação criminal, junto aos autos em 10/09/2021.

(…)

(…)

42. Não obstante a inexistência de uma relação obrigacional entre as partes, tentou por diversas vezes a denunciada obter a cobrança de um crédito que sabia não lhe ser devido, quer por si própria, quer por mandatário.

43. Isto é, a emissão da factura n.º … tinha como propósito da denunciada a obtenção de um enriquecimento ilegítimo, no valor de 1.397,59€, à custa do património da assistente, mediante um engano consubstanciado numa relação jurídica obrigacional inexistente,

(…)

(…)

52. encontram--se, pois, verificados os requisitos de que depende a condenação da denunciada por um crime de burla, na forma tentada, nos termos dos n.os 1 e 2 do artigo 217.º do CP, em concreto, a intenção de a assistente obter um enriquecimento ilegítimo por via de um engano que criou à assistente(…)

Compulsado o teor do requerimento para abertura da fase de instrução da autoria da assistente, mormente na parte transcrita, nenhuma dúvida temos de que o mesmo não encerra uma verdadeira acusação, nos termos acima explicitados, pois que não contém uma narração dos factos precisa e sequencial, nem inclui todos os factos necessários ao preenchimento do crime de tentativa de burla. Com efeito, o acervo factológico relevante para a imputação do ilícito penal em causa, quer na sua vertente subjetiva, quer no que aos elementos objetivos do tipo diz respeito, ou não está, de todo, presente no requerimento – o que sucede no que diz respeito à astúcia, à intenção da denunciada de obter um enriquecimento ilegítimo por via da criação de um engano, e aos elementos subjetivos do tipo, como bem se assinala na decisão recorrida – ou se encontra dissipado num articulado no qual se incluem, de forma indistinta, a exposição dos motivos de discordância relativamente à decisão do Ministério Público e a alegação de alguns factos relativos às condutas atribuídas à empresa denunciada apresentados com contornos meramente civilistas. Impunha-se à assistente que descrevesse de forma precisa, clara e escorreita a concreta materialidade das condutas integradoras do crime de tentativa de burla que pretende ver imputado à denunciada nas suas dimensões objetiva e subjetiva. Mas a verdade, é que não o fez.

Verificamos, pois, que a assistente não concedeu autonomia à vertente da acusação, tendo violado o dever de fundamentação, que emerge como uma decorrência lógica e inevitável da estrutura acusatória do processo penal português, com respaldo constitucional no artigo 32.º, nº 5.º da CRP, de acordo com a qual ao acusador compete formular a acusação, competindo o julgamento a órgão distinto, o tribunal, e não cabendo a este modificar a peça processual que recebeu, designadamente aditando factos essenciais como sejam os constitutivos de elementos do tipo penal imputado ao arguido. Outro entendimento que viabilizasse tal procedimento pelo JIC redundaria numa flagrante violação do princípio do acusatório, estruturante do nosso processo penal, a que acima já aludimos, pois que significaria atribuir-lhe a titularidade do exercício da ação penal, que manifestamente lhe não pertence.

A tarefa de acusar cabe ao acusador – in casu à assistente – e não há outra forma de a cumprir sem ser condensando os factos relevantes e necessários ao preenchimento do tipo penal no libelo acusatório, narrando-os, enumerando-os e ordenando-os lógica e cronologicamente. Não o fazendo de todo, ou fazendo-o de forma incompleta, a suposta peça acusatória está votada ao insucesso e ao juiz não lhe resta senão rejeitá-la. Relembramos que na posição oposta se encontra o arguido, cujos direitos de defesa é preciso acautelar, direitos nos quais em primeiro lugar se inclui o de saber quais são exatamente os factos de que é acusado e dos quais tem que se defender. Só dando conhecimento preciso, claro e rigoroso ao arguido dos motivos da acusação se revelará possível assegurar-lhe uma defesa justa, própria de um processo equitativo salvaguardado pelo artigo 20º, nº 4 da CRP e pelo artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

Em suma, na situação que constitui o objeto da nossa apreciação, para além de o RAI não se revelar o meio processual adequado a realizar a pretensão da assistente no que diz respeito à falta de investigação no inquérito, o mesmo encontra-se deficientemente elaborado no que à narração dos factos diz respeito, nos termos sobreditos. Os factos relatados no RAI não integram, pois, qualquer tipo criminal, aqui cabendo recordar a jurisprudência fixada com a prolação do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 1/2015, de acordo com a qual: “a falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal.”

Somos, pois, a concluir que a situação dos autos se integra na “inadmissibilidade legal” prevista no artigo 287.º, n.º 3 do CPP como causa de rejeição do requerimento de abertura de instrução, quer porque com o mesmo a assistente não pretende alcançar os fins que a instrução visa prosseguir, quer porque, face à insuficiência da matéria de facto que vimos de expor, a instrução se revelaria inexequível por falta de objeto. Bem andou, assim, o tribunal recorrido ao rejeitar, por inadmissibilidade legal, o requerimento para abertura da instrução, mostrando-se tal fase processual irremediavelmente comprometida.

***

III- Dispositivo

Por tudo o exposto e considerando a fundamentação acima consignada, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso e, consequentemente, em manter a decisão recorrida.

*

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC.

(Processado em computador pela relatora e revisto integralmente pelos signatários)

Évora, 05 de março de 2024

Maria Clara Figueiredo

Nuno Garcia

J. F. Moreira das Neves

..............................................................................................................

1 Na fase processual de inquérito, ao JIC apenas compete intervir nos atos elencados nos artigos 268º e 269.º do CPP, não lhe cabendo fiscalizar a atuação do Ministério Público.

2 Neste sentido decidiram, entre outros, os acórdãos desta Relação de 21.09.2021, proferido no processo n.º 180/19.1GDSRP-A.E1, relatado pela Desembargadora Beatriz Marques Borges e de 12.07.2023, proferido no processo n.º 254/20.6GTABF.E1, relatado pelo Desembargador Artur Vargues, ambos subscritos pela signatária na qualidade de adjunta, disponíveis em www.dgsi.pt.

3 Nem devesse fazê-lo, pelas razões acima explanadas.

4 Germano Marques da Silva in Curso de Direito Processual Penal, Volume III, 2.ª edição revista e atualizada, Editorial Verbo, p. 91.

5 Neste sentido, cfr., entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23.05.2012, proferido no proc. n.º 687/10.6TAABF.S1 e relatado pelo Conselheiro Henriques Gaspar, disponível em www.dgsi.pt. em cujo sumário podemos ler : “ I - O entendimento jurisprudencial e doutrinal comum, que temos seguido, é que apenas a falta de inquérito e se omita acto que a lei prescreve como obrigatório, como seja o interrogatório de arguido quando seja possível notificá-lo podem consubstanciar a nulidade de insuficiência de inquérito prevista na al. d) do n.º 2 do art. 120.º do CPP. A omissão de diligências, nomeadamente de produção de prova cuja obrigatoriedade não resulte de lei não dá origem àquela nulidade. (…)”

6 Diligências que, aliás, não concretiza.

7 Pedro Soares de Albergaria, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, tomo III, 2.º ed., 2022, pp. 1241/1242.

8 Dispõe tal norma que:

“Artigo 278.º

Intervenção hierárquica

1 - No prazo de 20 dias a contar da data em que a abertura de instrução já não puder ser requerida, o imediato superior hierárquico do magistrado do Ministério Público pode, por sua iniciativa ou a requerimento do assistente ou do denunciante com a faculdade de se constituir assistente, determinar que seja formulada acusação ou que as investigações prossigam, indicando, neste caso, as diligências a efetuar e o prazo para o seu cumprimento.

2 - O assistente e o denunciante com a faculdade de se constituir assistente podem, se optarem por não requerer a abertura da instrução, suscitar a intervenção hierárquica, ao abrigo do número anterior, no prazo previsto para aquele requerimento.”

9 Pedro Soares de Albergaria, ob. cit., páginas 1242/1243.

10 No sentido que o requerimento de abertura de instrução deverá equivaler a uma acusação alternativa, para além de vasta jurisprudência dos tribunais superiores, se pronunciou o Tribunal Constitucional no acórdão nº 258/2004 de 14 de abril de 2004, relatado pela Conselheira Maria Fernanda Palma. No mesmo sentido fundamentou o acórdão uniformizador da jurisprudência n.º 7/2005, de 12 de maio de 2005, relatado pelo Conselheiro Armindo dos Santos Monteiro. Na doutrina, entre muitos outros, também o Professor Germano Marques da Silva, no seu Curso de Processo Penal, vol. III, Verbo, pp. 139, toma posição idêntica.

11 É justamente por se tratar de omissão de requisitos essenciais que a rejeição do RAI por inadmissibilidade da instrução não constitui compressão significativa dos direitos de defesa dos arguidos, nem qualquer vulneração do princípio do processo equitativo, entendimento claramente expresso no acórdão do Tribunal Constitucional nº 46/2019, relatado pelo Conselheiro Gonçalo Almeida Ribeiro e disponível no respetivo site.

12 É vasta a jurisprudência dos tribunais superiores que, uniformemente, se tem vindo a pronunciar neste sentido, destacando-se, de entre os mais recentes acórdãos dos Tribunais das Relações, os seguintes, todos disponíveis em www.dgsi.pt:

- Acórdãos da Relação de Lisboa, de 12.03.2019, relatado por Artur Vargues; de 04.05.2021, relatado por Luís Gominho; de 21.09.2022, relatado por Rui Teixeira e de 24.05.2023, relatado por Cristina Almeida e Sousa.

- Acórdãos da Relação do Porto, de 10.11.2021, relatado por João Pedro Pereira Cardoso e de 22.06.2022, relatado por Paulo Costa.

- Acórdão da Relação de Coimbra de 12.07.2023, relatado por Alexandra Guiné.

- Acórdãos da Relação de Guimarães, de 21.05.2018, relatado por Ausenda Gonçalves e de 23.05.2022, relatado por Pedro Freitas Pinto.

- Acórdãos da Relação de Évora, de 18.02.2020, relatado por Alberto Borges; de 14.07.2020, relatado por Isabel Duarte; de 21.06.2022, relatado por Renato Barroso; de 13.09.2022, relatado por João Amaro e de 28.02.2023, relatado por António Condesso.

Em idêntico sentido tivemos também já ocasião de nos pronunciar nos acórdãos desta Relação, por nós relatados, proferidos nos processos nº 741/22.1GBABF.E1, datado de 07.11.2023 e nº 1959/20.7T9PTM.E1, datado de 05.12.2023, também disponíveis em www.dgsi.pt.

13 Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 7/2005, de 12.05, publicado no Diário da República, n.º 212 – S-A de 4.11,2005, relatado pelo Conselheiro Armindo dos Santos Monteiro.

14 Disponível no site do Tribunal Constitucional.

15 Na verdade, para além de a recorrente não identificar a denunciada no RAI, não indica a ou as pessoas que, em concreto, agiram em nome daquela, o que, nos termos previstos no artigo 11.º do CP também deveria ter sido feito.