Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2127/15.5T8STB-B.E1
Relator: ANABELA LUNA DE CARVALHO
Descritores: SANÇÃO PECUNIÁRIA COMPULSÓRIA
RESPONSABILIDADE
EXEQUENTE
Data do Acordão: 03/07/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1. O instituto da sanção pecuniária compulsória foi introduzido no nosso ordenamento jurídico por via do artigo 829.º-A, aditado ao Código Civil pelo Decreto-Lei n.º 262/1983, de 16 de Junho
2. A sanção pecuniária compulsória prevista no n.º 4 de tal artigo teve por finalidade incentivar e pressionar o devedor ao cumprimento célere de obrigações pecuniárias de quantia certa, decorrentes de fonte seja negocial seja extra negocial com determinação judicial, que tenham sido, em qualquer dos casos, objeto de sentença condenatória transitada em julgado.
3. Considerando essa finalidade, os juros compulsórios previstos no n.º 4 do artigo 829.º-A do C.C., não são verdadeiros juros legais, constituindo, antes, uma sanção que visa uma dupla finalidade de moralidade e de eficácia, tendente a reforçar a soberania dos tribunais, o respeito pelas suas decisões e o prestígio da justiça.
4. Estabelecendo uma sanção a impor ao devedor/executado, a este cabe pagá-los. Não sendo da responsabilidade do exequente suportar o pagamento de tal sanção.
5. A assim não se entender, estar-se-ia a penalizar o credor / exequente e não o devedor / executado que incumpriu a obrigação a que foi condenado, transferindo-se a sanção daquele que se quis punir para aquele que se quis proteger.
6. Se, a solicitação do agente de execução, o exequente depositou montante liquidado como juros compulsórios, tem direito à sua restituição.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 2127/15.5T8STB-B.E1
2ª Secção

Acordam no Tribunal da Relação de Évora


I

1. Relatório

Os presentes autos de recurso de apelação em separado foram extraídos dos autos de execução de sentença instaurados em 03-03-2015, nos quais figura como exequente a sociedade (…) – Comércio Indústria e Serviços, S.A. e executada a sociedade (…) – Compra e Venda de Propriedades, Lda..

Resulta dos autos principais que:

- A exequente liquidou a quantia exequenda em € 289.124,08.

- No decurso da execução foi penhorado um bem imóvel da executada e determinada a sua venda mediante abertura de propostas em carta fechada.

- A exequente apresentou proposta de aquisição do bem por € 290.000,00.

- Tendo sido determinado que:

“A exequente está dispensada do depósito do preço, uma vez que a proposta é inferior à quantia exequenda (à data de 19-11-2019). Não está no entanto dispensada do depósito do valor das custas prováveis que saem precípuas do produto da venda (artigo 541.º do CPC).

Considerando que não foi proferida sentença de graduação no apenso de reclamação de créditos, terá de ser observado o preceituado no n.º 3 do artigo 815.º do C.P.C. (…)”.

- Em 06-01-2023 veio a exequente/adquirente requerer ao Sr. Agente de Execução que “atento o valor da adjudicação ser semelhante à quantia exequenda, requerer que seja dispensada (ou reduzido) do valor eventualmente devido a título de juros compulsórios por tal corresponder a um agravamento substancial do seu prejuízo.”

- Requerimento levado a apreciação judicial, tendo o Mm.º Julgador decidido por despacho de 22-02-2023: “Notifique antes de mais o AE para juntar aos autos a notificação enviada à exequente para proceder ao pagamento de juros compulsórios, acompanhada da nota de liquidação dos mesmos”.

- O que foi cumprido.

- Em 24-03-2023 o Mmº Julgador proferiu o seguinte despacho:

“A presente execução baseia-se em sentença condenatória que, além do mais, condenou a executada a pagar uma determinada quantia em dinheiro.

Dispõe o artigo 829.°-A, n.º 4, do Código Civil que "quando for estipulado ou judicialmente determinado qualquer pagamento em dinheiro corrente, são automaticamente devidos juros à taxa de 5% ao ano, desde a data em que a sentença de condenação transitar em julgado, os quais acrescerão aos juros de mora, se estes também forem devidos, ou à indemnização a que houver lugar".

Nos termos do artigo 716.º, n.º 3, do CPC, a liquidação do valor devido a título de juros compulsórios compete ao agente de execução, sendo certo que, nos termos do n.º 3 do artigo 829.º-A, o montante referente a título de juros compulsórios destina-se, em partes iguais, ao credor e ao Estado.

Nesta conformidade, notifique o AE para esclarecer a que título pretende exigir da exequente uma quantia referente a juros compulsórios, uma vez que o responsável pelo seu pagamento é a executada.(sublinhado nosso)

- Tendo o mesmo informado em 26-05-2023 que – “À cautela foi liquidado e pago o valor que se pensa ser devido ao Estado a título de juros compulsórios, no montante de 34.411,57 euros, conforme documento anexo. Se tal não for o entendimento do Tribunal, desde já se anexa comprovativo de NIB para que seja ordenado ao IGFIG a devolução daquele valor aos autos, mais se requerendo a remessa do comprovativo por esta mesma via.”

- Em 18-09-2023, veio Exequente expor que:

“(…) tendo efetuado o depósito da quantia que lhe foi exigida referente aos juros compulsórios, vem requerer a sua dispensa (ou redução) por entender que a responsável pelo pagamento é a Executada, e consequente devolução.

Com efeito, a Exequente apresentou a melhor proposta para aquisição do prédio penhorado à Executada por valor semelhante à quantia exequenda, sendo que, em virtude da graduação de créditos, teve ainda de depositar o valor correspondente aos créditos graduados antes do seu.

Deste modo, a Exequente não só não viu o seu crédito completamente satisfeito como teve de suportar o pagamento dos créditos, sendo o seu prejuízo absolutamente manifesto.

Assim, exigir à Exequente o pagamento de juros compulsórios cuja responsabilidade é da Executada, agrava ainda sobremaneira e de forma evidente o prejuízo que aquela já teve.

A decisão sobre a exigibilidade dos juros compulsórios afigura-se determinante para reduzir o incontornável prejuízo que a ação da Executada já provocou à Exequente.”

- Foi então proferida a seguinte Decisão, ora sob recurso (despacho de 29-09-2023):

“A presente execução baseia-se em sentença condenatória que, além do mais, condenou a executada a pagar uma determinada quantia em dinheiro.

Dispõe o artigo 829.°-A, n.º 4, do Código Civil que "quando for estipulado ou judicialmente determinado qualquer pagamento em dinheiro corrente, são automaticamente devidos juros à taxa de 5% ao ano, desde a data em que a sentença de condenação transitar em julgado, os quais acrescerão aos juros de mora, se estes também forem devidos, ou à indemnização a que houver lugar".

Nos termos do artigo 716.º, n.º 3, do CPC, a liquidação do valor devido a título de juros compulsórios compete ao agente de execução, sendo certo que, nos termos do n.º 3 do artigo 829.º-A, o montante referente a título de juros compulsórios destina-se, em partes iguais, ao credor e ao Estado.

A exequente requereu a restituição da quantia que depositou a título de juros compulsórios devidos ao Estado, liquidados pelo AE.

Coloca-se assim a questão de saber se tal depósito era devido, sendo certo que a exequente tinha de depositar, além das custas do processo – que saem precípuas do produto da venda do bem penhorado –, o montante que era necessário para pagar aos credores graduados antes dele (artigo 815.º, n.º 1, do CPC).

Pronunciando-se sobre a matéria, o acórdão da RE de 17.01.2019 (proc. n.º 2720/16.9T8ENT.E1, in www.dgsi.pt) respondeu afirmativamente a tal questão, aduzindo os seguintes argumentos:

“1 - Executando-se uma obrigação pecuniária, o valor devido por força do disposto no preceituado no artigo 829.º-A, n.º 4, do Código Civil não tem de ser requerido pelo exequente no respetivo requerimento executivo para ser ali considerada, devendo a sua liquidação ser feita a final pelo agente de execução.

2 - Resulta do artigo 815.º do CPC que o exequente que adquira bens pela execução só é dispensado de depositar «a parte do preço que não se mostre necessária para pagar aos credores graduados antes dele» conquanto aquela parte do preço não exceda o que tem a receber.

3 - A sanção pecuniária compulsória prevista no artigo 829.º-A, n.º 4, do CC traduz-se num adicional de juros, calculados à taxa de 5%, destinada em partes iguais ao Estado e ao credor, juros que são devidos automaticamente desde o trânsito em julgado da sentença condenatória, isto é, juros devidos por força da lei. E, como tal, deverão ser pagos antes do capital devido ao exequente/adquirente dos bens, como resulta do artigo 875.º do Código Civil.

4 - Estamos perante um crédito que, tal como aqueles que estão previstos no artigo 815.º, do CPC, deve ser pago antes do crédito do exequente. Logo, a semelhança das situações deve determinar, ao abrigo do disposto no artigo 10.º do Código Civil, a aplicação a analógica do artigo 815.º do CPC ao caso em que ao Estado são devidos juros por força do disposto no artigo 829.º-A, n.º 4, do CC.

5 - Uma vez que o adquirente do bem é o próprio exequente deverá este proceder ao depósito da parte do preço que se mostre necessária para pagar, para além das custas do processo e demais despesas, o valor referente aos juros que são devidos ao Estado por força do disposto no artigo 829.º-A, n.º 4, do Código Civil.” (sumário do acórdão).

Posto isto, resta concluir, na esteira da orientação seguida no acórdão citado – que acompanhamos inteiramente –, que a exequente tinha efetivamente de proceder ao depósito do montante correspondente aos juros compulsórios devidos ao Estado, inexistindo como tal fundamento para ser determinada a restituição por aquela requerida.

Pelo que vem de ser exposto, e sem necessidade de outras considerações, indefiro o requerido. Notifique.”

Inconformada com tal decisão veio a exequente recorrer, assim concluindo as suas alegações de recurso:

1º. A decisão em recurso obriga a Exequente ao pagamento de juros compulsórios no montante de € 34.411,57, o que representa um completo absurdo e uma injustiça atroz;

2º. Com efeito, tais juros são devidos apenas e só pelo devedor executado, nos termos do disposto nos n.ºs 1 e 4 do artigo 829.°-A do Código Civil, não pelo exequente ou pelo licitante do bem penhorado e vendido.

3º. Por essa razão o Tribunal a quo através do despacho com a referência 96863278 notificou o Agente de Execução para “esclarecer a que título pretende exigir da exequente uma quantia referente a juros compulsórios, uma vez que o responsável pelo seu pagamento é a executada”.

4º. Os juros compulsórios destinam-se a pressionar o devedor ao cumprimento da obrigação e da decisão judicial que a reconhece e impõe o seu pagamento.

5º. No caso do devedor não pagar os juros compulsórios, a execução pode prosseguir a requerimento do Ministério Público, em representação do Estado, para a sua cobrança.

6º. Ademais, a Recorrente/Exequente nem tampouco peticionou no Requerimento executivo o pagamento de juros compulsórios e o artigo 829.º-A, n.º 1, é taxativo no sentido de que a sanção pecuniária compulsória só pode ser decretada a pedido do credor e no que toca ao n.º 4 do artigo 829.º-A do CC, a sanção não poderá ser judicialmente exigida se o credor o não requerer ao tribunal (normalmente na execução).

7º. Na ação executiva para pagamento de quantia certa o exequente pretende obter o cumprimento de uma obrigação pecuniária à custa do património do devedor/executado (artigo 817.º, do CC).

8º. Para tal, foi apreendido um bem da Executada que não foi de todo considerado suficiente para cobrir a importância da quantia exequenda, das custas e dos créditos reclamados e graduados a fim de ter lugar a venda desse bem para com o preço obtido se proceder ao pagamento.

9º. A Recorrente, adquiriu o bem penhorado e depositou a parte do preço necessária para pagar a credores graduados antes dele (artigo 815.º do CPC).

10º. A justificação da dispensa do depósito do preço pelo exequente que adquire os bens penhorados consiste em aquele dever à execução o preço pelo qual adquiriu o bem mas ser também credor da execução por determinada quantia, tendo o direito a receber do produto da venda do bem penhorado.

11º. Desta forma, em vez de depositar a totalidade do preço para depois o levantar em parte, fez-se o encontro das duas verbas e não depositou aquilo que excedia o montante que tinha a receber mas sim a parte do preço necessária para pagar a credores graduados antes dele, as custas e, perante a exigência do Agente de Execução, os juros compulsórios.

12º. Nessa conformidade, a Recorrente/Exequente, credor da quantia de € 289.124,08, acrescida de juros, tendo apresentado proposta de aquisição do bem por € 290.000,00, teve de depositar € 214.982,65, verificando-se que, no final de contas, pouco recebeu do seu crédito, o que torna a situação ainda mais iniqua.

13º. Não podemos esquecer que a letra do artigo 815.º CPC refere-se apenas aos créditos reclamados na execução e graduados, não se referindo, portanto, ao suposto crédito do Estado adquirido por força do disposto no artigo 829.º-A, n.º 4, do CC, não se justificando, s.m.o., qualquer aplicação analógica.

14º. Ao interpretar o artigo 829.º-A do CC como o fez, o despacho recorrido está a condenar o credor no pagamento de uma sanção pecuniária, o que subverte a ratio legis e a letra da referida disposição legal.

15º. Pelo que a decisão em recurso interpretou e aplicou erradamente o disposto no artigo 829.°-A, n.° 3 e 4, do Código Civil e 815.º do CPC, devendo por isso ser revogada e substituída por outra que ordene que a quantia depositada pela Exequente a título de juros compulsórios lhe seja devolvida.

A final requer que seja revogado o despacho em apreço e determinado que o pagamento dos juros compulsórios é da responsabilidade da Executada devendo a quantia depositada pela Exequente a esse título lhe deve ser devolvida.

Não foram apresentadas contra-alegações.


II

Do objeto do recurso:

Considerando a delimitação que decorre das conclusões das alegações (artigos 635.º, 3 e 639.º, 1 e 2, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (artigo 608.º, in fine), importa apreciar:

- Se deve ser restituído à exequente o valor que lhe foi exigido a título de juros compulsórios previstos no artigo 829.º-A, n.º 4, do Código Civil, na parte de 50% devida ao Estado, por não lhe ser exigível tal sanção.


III

Para apreciação da questão importa ter presente a factualidade exposta no relatório antecedente.

Apreciando e decidindo.


IV

Fundamentação

Resulta dos autos que a exequente adquiriu em execução o imóvel penhorado e depositou a parte do preço necessária para pagar a credores graduados antes dela e as custas.

Na respetiva liquidação o Sr. Agente de execução incluiu o cálculo dos juros compulsórios previstos no artigo 829.º-A, n.º 4, do Código Civil, na parte de 50% devida ao Estado, valor que no seu conjunto a exequente depositou, reclamando agora, em recurso, que tais juros não são da sua responsabilidade.

Defende a exequente que não lhe cabe o pagamento de juros compulsórios ao Estado, os quais são devidos apenas e só pelo devedor executado, nos termos do disposto nos n.ºs 1 e 4 do artigo 829.°-A do Código Civil.

Devendo, por isso, o respetivo montante ser-lhe restituído.

Questiona-se se pode ser exigido à exequente que adquiriu o bem penhorado na execução, o depósito do valor necessário ao pagamento dos juros compulsórios, na parte devida ao Estado.

A decisão recorrida entendeu que sim, seguindo de perto a fundamentação do Acórdão deste TRE de 17/01/2019, Proc. n.º 2720/16.9T8ENT.E1 (Cristina Dá Mesquita), in www.dgsi.pt, no qual se defende que a sanção pecuniária compulsória prevista no artigo 829.º-A, n.º 4, do CC, traduz-se num mero adicional de juros, calculados à taxa de 5%, destinada em partes iguais ao Estado e ao credor, juros que são devidos automaticamente desde o trânsito em julgado da sentença condenatória, isto é, juros devidos por força da lei e, como tal, deverão ser pagos antes do capital devido ao exequente/adquirente dos bens, por força do artigo 785.º do Código Civil[1].

Divergimos, com todo o respeito, desta fundamentação que atribuiu aos juros compulsórios a natureza de juros legais (“adicional de juros legais”), sem atender à finalidade e às razões da introdução desta medida legislativa.

O instituto da sanção pecuniária compulsória foi introduzido no nosso ordenamento jurídico por via do artigo 829.º-A, aditado ao Código Civil pelo Decreto-Lei n.º 262/1983, de 16 de Junho, com o seguinte teor:

“1 – Nas obrigações de prestação de facto infungível, positivo ou negativo, salvo nas que exigem especiais qualidades científicas ou artísticas do obrigado, o tribunal deve, a requerimento do credor, condenar o devedor ao pagamento de uma quantia pecuniária por cada dia de atraso no cumprimento ou por cada infração, conforme for mais conveniente às circunstâncias do caso.

2 – A sanção pecuniária compulsória prevista no número anterior será fixada segundo critérios de razoabilidade, sem prejuízo da indemnização a que houver lugar.

3 – O montante da sanção pecuniária compulsória destina-se, em partes iguais, ao credor e ao Estado.

4 – Quando for estipulado ou judicialmente determinado qualquer pagamento em dinheiro corrente, são automaticamente devidos juros à taxa de 5% ao ano, desde a data em que a sentença de condenação transitar em julgado, os quais acrescerão aos juros de mora, se estes forem também devidos, ou à indemnização a que houver lugar.”

Neste quadro normativo configuram-se duas espécies de “sanção pecuniária compulsória”: uma prevista no n.º 1 do artigo 829.º-A, dependente de requerimento do credor, destinada a compelir o devedor à execução específica da generalidade das obrigações de prestação de facto infungível, a que a doutrina designa de sanção pecuniária compulsória judicial (nesse sentido, Lebre de Freitas in https://portal.oa.pt/media/133309/jose-lebre-de-freitas.pdf).

Outra, em discussão nos autos, prevista no n.º 4 do mesmo artigo, tendente a incentivar e pressionar o devedor ao cumprimento célere de obrigações pecuniárias de quantia certa, decorrentes de fonte seja negocial seja extra negocial com determinação judicial, que tenham sido, em qualquer dos casos, objeto de sentença condenatória transitada em julgado.

Consistindo num adicional automático (ope legis) de “juros” à taxa de 5% ao ano, independentemente dos juros de mora ou de outra indemnização a que haja lugar, tomando a designação de sanção pecuniária compulsória legal ou de juros compulsórios.

Legal porque, emerge da própria lei, de modo automático, em virtude do trânsito em julgado de sentença que condene o devedor no cumprimento de obrigação pecuniária, sem necessidade de intermediação judicial ou de requerimento nesse sentido.

Sucede que, em ambas as modalidades de sanção pecuniária compulsória, a finalidade subjacente é a mesma, levar o devedor a ser célere, satisfazendo, sem delongas, o interesse do credor na satisfação do seu direito e, dar mostras do seu respeito pela decisão do tribunal.

Assim, ambas as modalidades previstas no artigo 829.º-A do C.C. constituem sanções, ou melhor, a mesma sanção – a sanção pecuniária compulsória – diferindo quanto à forma de contabilização, uma através da fixação de uma quantia pecuniária por cada dia de atraso ou por cada infração e a outra dum adicional automático de 5% ao ano, relativamente aos juros.

Constituindo esse adicional os chamados juros compulsórios.

A decisão ora em crise e a jurisprudência em que se apoiou equipara os juros compulsórios a juros legais, afetando-lhe o patamar de satisfação estabelecido no artigo 785.º do CC, quando em concorrência estiverem prestações de natureza diferente (capital, juros, indemnização).

A questão em apreciação prende-se com a interpretação do n.º 4 do artigo 829.º-A do C.C., nomeadamente com o significado de juros compulsórios nele previstos que a decisão recorrida classifica como juros legais.

Lê-se no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 262/1983, de 16 de Junho, a seguinte razão de motivos para a introdução de tal previsão:

“Autêntica inovação, entre nós, constituem as sanções compulsórias reguladas no artigo 829.º-A. Inspira-se a do n.º 1 desse preceito no modelo francês das astreintes, sem todavia menosprezar alguns contributos de outras ordens jurídicas; ficando-se pela coerção patrimonial, evitou-se contudo atribuir-se-lhe um carácter de coerção pessoal (prisão) que poderia ser discutível face às garantias constitucionais.

A sanção pecuniária compulsória visa, em suma, uma dupla finalidade de moralidade e de eficácia, pois com ela se reforça a soberania dos tribunais, o respeito pelas suas decisões e o prestígio da justiça, enquanto por outro lado se favorece a execução específica das obrigações de prestação de facto ou de abstenção infungíveis.

Quando se trate de obrigações ou de simples pagamentos a efetuar em dinheiro corrente, a sanção compulsória – n o pressuposto de que possa versar sobre quantia certa e determinada e, também, a partir de uma data exata (a do trânsito em julgado) – poderá funcionar automaticamente. Adota-se, pois, um modelo diverso para esses casos, muito similar à presunção adotada já pelo legislador em matéria de juros, inclusive moratórios, das obrigações pecuniárias, com vantagens de segurança e certeza para o comércio jurídico.”

Considerando a finalidade e as razões desta medida legislativa, os juros compulsórios previstos no n.º 4 do artigo 829.º-A do C.C., não são verdadeiros juros legais, constituindo, antes, uma sanção que visa uma dupla finalidade de moralidade e de eficácia, tendente a reforçar a soberania dos tribunais, o respeito pelas suas decisões e o prestígio da justiça.

Referindo o preâmbulo da lei que, nesses casos se adota um modelo similar ao juros, ou seja, não são juros.

Ao contrário dos juros legais, os juros compensatórios previstos no n.º 4 do artigo 829.º-A do C.C. não têm primordialmente uma função reparadora. Visam antes pressionar o devedor ao cumprimento célere de obrigações pecuniárias de quantia certa. Tanto assim que metade do seu valor se destina ao Estado, que não está desapossado de qualquer capital, logo, não é credor de qualquer obrigação pecuniária, cuja mora, implique o pagamento de juros.

Como o preâmbulo da lei deixa claramente definido, embora apelidando-os de juros compulsórios, estamos perante uma sanção tendente a pressionar o devedor ao cumprimento célere de obrigações pecuniárias de quantia certa, menosprezando uma função reparadora.

Cremos, pois, não ser legítimo equiparar tal sanção a juros legais, equívoco em que, com todo o respeito, a decisão recorrida e a jurisprudência em que se apoiou, incorrem.

Demonstrado que o n.º 4 do artigo 829.º-A do C.C. estabelece uma sanção a impor ao devedor, não fará sentido conjugá-lo com preceitos que estabeleçam prioridades ou graduações de pagamento.

Estabelecendo uma sanção a impor ao devedor/executado, a este cabe pagá-los. Executado a quem deve ser notificada a liquidação, não ao exequente.

No caso de o executado não pagar os juros compulsórios, a execução pode prosseguir a requerimento do Ministério Público em representação do Estado, para a sua cobrança, promovendo-se o cumprimento do artigo 716.º, n.º 3, do CPC, que estabelece que na liquidação:

“(…) o agente de execução liquida, ainda, mensalmente e no momento da cessação da aplicação da sanção pecuniária compulsória, as importâncias devidas em consequência da imposição de sanção pecuniária compulsória, notificando o executado da liquidação.”

A assim não se entender, estar-se-ia a penalizar o credor/exequente e não o devedor / executado que incumpriu a obrigação a que foi condenado, transferindo-se a sanção daquele que se quis punir para aquele que se quis proteger.

Desse modo, recorrendo à “mens legis” na interpretação do artigo 829.º-A do CC e, conjugando esta norma com a previsão do artigo 716.º, n.º 3, do CPC, dúvidas não subsistem de que os juros compulsórios decorrendo automaticamente da lei, são da responsabilidade do devedor / executado, não cabendo ao exequente suportar o pagamento de tal sanção.

Em sentido convergente pronunciaram-se os seguintes acórdãos deste Tribunal da Relação de Évora:

Ac. de 07-11-2023, Proc. n.º 730/10.9TBPTM-B.E1 (Elizabete Valente), in www.dgsi.pt, assim sumariado:

«I - Os juros correspondentes à sanção legal prevista no artigo 13.º, n.º 1, alínea d), 2.ª parte, do RPOP e no artigo 829.º-A, n.º 4, do CC não gozam da regra de precipucidade (cfr. artigo 541.º do CPC) e só podem ser pagos pelo executado, não pelo credor (exequente ou reclamante) pelo que não devem ser pagos antes do capital devido ao exequente / adquirente dos bens.

II - Entender o contrário – ou seja, que a sanção pecuniária compulsória devida ao Estado é paga com prioridade sobre o crédito exequendo – constituirá, em última análise, uma dupla penalização do credor/exequente, que não só não vê o seu crédito ser completamente liquidado, como tem ainda de suportar uma sanção criada em sua defesa.”

Ac. também de 07-11-2023, Proc. n.º 2172/17.6T8LLE-D.E1 (Graça Araújo), com o seguinte sumário:

«À exequente que adjudicou o bem penhorado por quantia inferior à exequenda não é exigível o adiantamento da parte que cabe ao Estado nos juros previstos no n.º 4 do artigo 829.º-A do Código Civil para que lhe seja passado o título de transmissão do bem.»

Jurisprudência que desobriga o credor do pagamento dos juros compulsórios e que, na adesão a tal posição, importa dar concretização.

Na ação executiva foi apreendido um imóvel da executada que não foi considerado suficiente para cobrir a importância da quantia exequenda, das custas e dos créditos reclamados e graduados a fim de ter lugar a venda desse bem para com o preço obtido se proceder ao pagamento.

A exequente, adquiriu o bem penhorado e depositou a parte do preço necessária para pagar a credores graduados antes dela (artigo 815.º do CPC) as custas e, perante a exigência do Sr. agente de execução, os juros compulsórios.

Nessa conformidade, a exequente, depositou o montante liquidado a esse título.

Não sendo os juros compulsórios por si devidos, tem direito ao respetivo reembolso.

Nestes termos, procede o recurso de apelação interposto pela exequente.

Síntese conclusiva: (…)


V

Termos em que se acorda em, julgar procedente o recurso de apelação interposto pela exequente e, em consequência, revoga-se o despacho recorrido, declarando-se que a exequente não é devedora de qualquer quantia a título de juros compulsórios, devendo o montante que depositou a tal título, ser-lhe restituído.

Sem custas.

Évora 07 de março de 2024

Anabela Luna de Carvalho (Relatora)

Francisco Matos (1º Adjunto)

José Tomé de Carvalho (2º Adjunto)

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[1] Por notório erro de escrita, o acórdão alude ao artigo 875.º do CC, em vez de artigo 785.º do CC.