Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1958/23.7T8TMR.E1
Relator: ALBERTINA PEDROSO
Descritores: AÇÃO DE RECONHECIMENTO DA EXISTÊNCIA DE CONTRATO DE TRABALHO
COMPETÊNCIA TERRITORIAL
TRIBUNAL DO TRABALHO
Data do Acordão: 03/21/2024
Votação: PRESIDÊNCIA
Texto Integral: S
Sumário:
O tribunal territorialmente competente para conhecer das ações interpostas pelo Ministério Público para reconhecimento da existência de contrato de trabalho do prestador de atividade, na sequência de participação remetida pela Autoridade para as Condições de Trabalho é o do local onde é prestada a atividade que alegadamente constitui um contrato de trabalho, e não o do domicílio do réu.
(Sumário elaborado pela relatora)
Decisão Texto Integral:
*
Processo: 1958/23.7T8TMR.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Santarém[1]
Reclamação – artigo 105.º do Código de Processo Civil[2]

I. – Relatório
1. Na sequência de ação inspetiva desenvolvida, a Autoridade para as Condições do Trabalho[3], remeteu participação à Procuradoria da República junto da Comarca de Santarém – Procuradoria do Juízo do Trabalho de Tomar, relativa a indícios de uma situação de prestação de atividade aparentemente autónoma em plataforma digital, em condições análogas ao contrato de trabalho, relativamente à entidade Uber Eats Portugal, Unipessoal, Lda (Uber), com sede em Lisboa, e ao prestador de atividade (…), com intervenção de intermediário, que igualmente identificou.

2. Foi proferido despacho inicial determinando o registo e autuação como Ação de Reconhecimento da Existência de Contrato de Trabalho[4], nos termos do artigo 26.º n.º 1 al. i) e n.º 6 do Código de Processo de Trabalho[5], e que os autos aguardassem a apresentação de petição inicial, de harmonia com o artigo 186.º-K n.º 1 do CPT.

3. Apresentada a petição inicial, foi determinada a citação dos empregadores, tendo a Uber requerido a prorrogação do prazo de contestação, requerimento que foi deferido: «Atentos os fundamentos apresentados pela Ré - que são verdadeiros, sendo no nosso conhecimento funcional o elevado número de ações do mesmo tipo que deram entrada nos tribunais após as Ações inspetivas da ACT - não oferece dúvida que o prazo de 10 dias para contestar consagrado na lei (art. 186.º-L n.º 2 do CPT) se mostra demasiado curto, não permitindo uma defesa cabal perante centenas de ações com prazos a correr simultaneamente, pondo até em causa o próprio princípio da igualdade entre as partes, já que o Autor dispôs de prazo mais alargado para instaurar a ação».
Nesse mesmo despacho, o julgador ponderou ainda «que, efetivamente, a situação relatada pela Ré é absolutamente extraordinária e anómala, (…) reconhecendo que, estando em causa centenas de autos visando a Ré, uma defesa organizada em tão curto prazo não será uma boa defesa, pois embora as ações assentem nos mesmos pressupostos, os casos concretos são necessariamente diferentes; e, por fim, reconhecendo também que qualquer escritório de advocacia, por maior que seja, terá necessariamente prazos a correr noutras ações pendentes que, como é obvio, não poderão ser prejudicadas com estes novos processos, tendo em conta tudo o exposto, cremos existir motivo justificativo para uma suspensão da instância por determinação judicial, nos termos do art. 272.º n.º 1 do CPC, considerando-se para tanto razoável o prazo de 20 dias (suficiente para a Ré poder organizar melhor a sua defesa, conjugando com o prazo da contestação e respetiva prorrogação)», tendo determinado a audição da Ré e do Ministério Público, que se opôs.

4. Após a emissão de pronúncia, foi proferido despacho declarando suspensa a instância por 10 dias, tendo a Ré apresentado contestação, na qual não foi invocada a exceção de incompetência territorial.

5. Seguidamente, o Senhor Juiz, invocando ter feito um estudo mais aprofundado da matéria em apreciação na presente ação, e que a violação da competência territorial em sede de processo laboral é de conhecimento oficioso, nos termos do artigo 19.º, n.º 2, do CPT julgou verificada a exceção dilatória de incompetência relativa, declarando o Juízo do Trabalho de Tomar incompetente em razão do território para tramitar a presente ação e, consequentemente, ordenou a sua remessa para o tribunal competente, que julgou ser o da sede da 1.ª Ré (Uber), o Juízo do Trabalho de Lisboa.
Em fundamento, aduziu, em síntese, que:
- O Ministério Público atua nestas ações em competência própria, nos termos do disposto no artigo 5.º-A, c) do CPC, e dos artigos 1º, 2º e 3º, alínea a), do respetivo Estatuto;
- A instância inicia-se com o recebimento da participação da ACT, nos termos do disposto nos artigos 26.º n.º 6 e 186.º-K n.º 1 do CPT, e o interesse preponderante é de natureza pública, sendo o trabalhador mero “assistente” do Ministério Público, não podendo pôr termo ao processo por desistência e não tendo legitimidade, sequer, para impugnar, mediante recurso de apelação, a decisão final desfavorável;
- Nos termos do art. 13.º n.º 1 do CPT, as ações devem ser propostas no juízo do trabalho do domicílio do réu, sem prejuízo do disposto nos artigos seguintes;
- Os artigos seguintes dizem respeito a ações emergentes de contrato de trabalho intentadas pelo trabalhador, ações emergentes de acidente de trabalho e despedimento coletivo, o que não abrange os presentes autos;
- O tribunal competente será, assim, o da sede da Ré, ou seja, o Juízo do Trabalho de Lisboa (art. 84.º, n.º 1, al. l) do Decreto-Lei n.º 49/2014, de 27 de março). Sendo que, sendo duas as Rés, o tribunal do domicílio de qualquer uma é competente (art.º 82.º n.º 1 do CPC).


6. Notificada, a Ré Uber reclamou para o Presidente do Tribunal da Relação de Évora, nos termos do artigo 105.º, n.º 4, do CPC, defendendo a competência territorial do Juízo de Trabalho de Tomar, invocando, em síntese, que:
i) a incompetência em razão do território, nas ações de reconhecimento de existência de contrato de trabalho, não pode ser conhecida oficiosamente, na medida em que a incompetência relativa, in casu, não se enquadra na situação do artigo 19.º, n.º 1 do CPT, nem em nenhuma das situações previstas no artigo 104.º, n.º 1 do CPC, aplicável ex vi artigo 1.º, n.º 2, a) e do artigo 19.º, n.º 2 do CPT;
ii) ainda que assim não se entenda, o Juízo do Trabalho de Tomar é territorialmente competente para o conhecimento desta ação, de acordo com o disposto n.º 3 do artigo 15.º-A da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro.

7. O Ministério Público respondeu, pugnando pela confirmação da decisão reclamada.

8. O Senhor Juiz sustentou o despacho reclamado, argumentando, em síntese, que:
- A epigrafe da norma [artigo 19.º do CPT] é clara, ao referir a “nulidade dos pactos de desaforamento” e “conhecimento oficioso da incompetência em razão do território”, concluindo-se do uso da copulativa “e” a não associação do conhecimento oficioso apenas ao conhecimento da nulidade dos pactos de desaforamento, mas a toda a incompetência territorial, tratando-se de uma norma especial que afasta a norma geral do artigo 104.º n.º 1 do CPC;
- Não se vislumbra que a apreciação da competência territorial atrase o processo ou protele o andamento de uma ação de natureza urgente, já que se trata unicamente de encaminhar o processo para o Tribunal competente. O protelamento surge apenas com as reclamações apresentadas;
- Como bem aduz a Digna Magistrada do Ministério Público, a concentração de ações do mesmo tipo, contra a mesma Ré, no mesmo tribunal (e mesmo tribunal da Relação), mediante aplicação do artigo 13.º n.º 1 do CPT, é a solução que melhor permite verificar a existência de todas as situações alegadamente fraudulentas da Ré, conferindo uma visão mais nítida e global da realidade e permite tratar todos os casos uniformemente, evitando-se decisões contraditórias;
- O entendimento de que o artigo 15.º-A n.º 3 da Lei 107/2009, de 14 de dezembro, integra uma norma especial sobre a competência territorial para as ações de reconhecimento da existência do contrato de trabalho, afastando a regra geral prevista no artigo 13.º n.º 1 do CPT, só faria sentido se a norma em causa fosse clara, definindo expressamente e sem sombra de dúvida que a competência cabe, efetivamente, a outro tribunal que não o do domicílio do Réu (lugar da prestação da atividade; lugar do domicílio do alegado trabalhador, etc.), o que no caso não sucede, pois só recorrendo a um esforço interpretativo complexo é que a Ré chega à conclusão que o tribunal competente poder ser o Juízo do Trabalho de Tomar;
- Se o legislador tivesse querido a solução que a Ré promove, não lhe faltaram oportunidades para o dizer, em face das alterações a que foram sujeitos o Código do Processo de Trabalho e a própria Lei 107/2009, de 14 de setembro. Não o tendo feito, também aqui se afirma: onde o legislador não distinguiu, não cabe ao intérprete fazê-lo.
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II. – Fundamentação
Em face das descritas incidências processuais relevantes, na presente reclamação cumpre apreciar e decidir a questão de saber qual o tribunal territorialmente competente para conhecer das ações interpostas pelo Ministério Público para reconhecimento da existência de contrato de trabalho do prestador de atividade, na sequência de participação remetida pela Autoridade para as Condições de Trabalho: se o do domicílio do réu ou o do local onde é prestada a atividade que alegadamente constitui um contrato de trabalho.
Conforme o Senhor Juiz mencionou no despacho em que deferiu a prorrogação do prazo para contestação e decretou a suspensão, a situação em presença não é única, existindo neste momento centenas de ações idênticas interpostas no território nacional contra a mesma ré.
Consequentemente, mais do que discorrer sobre a (im)possibilidade de conhecimento oficioso da (in)competência relativa, importa fixar a orientação da presidência do Tribunal da Relação de Évora, a respeito da identificada questão da competência territorial neste tipo de ações.
Assim, e adiantando razões, cumpre desde já afirmar que apesar dos argumentos avançados pelo Senhor Juiz no despacho reclamado e naquele em que contrapôs os fundamentos aduzidos pela Reclamante, cremos que a melhor interpretação do preceito, é a sustentada por esta, entendendo que a presente ação foi corretamente proposta no Juízo do Trabalho de Tomar.
Aliás, do iter processual acima transcrito decorre evidente ter sido essa a “intuição jurídica” inicial de todos os intervenientes na causa: do Ministério Público, que ali instaurou a ação e não a remeteu para ser instaurada pela Procuradoria da República junto do Juízo do Trabalho de Lisboa, do Senhor Juiz, que a tramitou até à prolação do despacho reclamado, e do demandado, ora reclamante, que tacitamente deu o seu assentimento concordante à competência daquele juízo, ao apresentar contestação sem invocar a respetiva incompetência territorial.
E que é esta a interpretação que melhor se coaduna com a intenção do legislador, resulta bem evidenciado na decisão proferida em 27 de fevereiro de 2024[6], em situação similar à que nos ocupa, pelo Senhor Presidente do Tribunal da Relação do Porto, e em cujo sumário se destacou que:
«I - A ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho decorrente do disposto no artigo 15.º-A da Lei n.º 107/2009, de 14 de Setembro que regula o procedimento a adotar em caso de inadequação do vínculo que titula a prestação de uma atividade em condições correspondentes às do contrato de trabalho deve ser intentada pelo Ministério Público no juízo do trabalho da área territorial onde a pessoa em causa presta a respetiva atividade.
II - Estando em causa uma lei especial e face ao nela preceituado, a presente exceção impõe-se à regra geral do art. 13º n.º 1 do Cód. de Processo de Trabalho que determina ser competente territorialmente o juízo do trabalho do domicílio do réu».
Concordamos integralmente com os fundamentos que suportaram essa conclusão, estribados na doutrina citada e em sólida argumentação que, data venia, aqui reproduzimos, sublinhando os elementos de interpretação alinhados que cremos serem mais relevantes para estribar a declarada competência do tribunal da área territorial em que a pessoa em causa presta a sua atividade, no quadro legal aplicável ao caso.
«Presentemente, na ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, a instância inicia-se com o recebimento da participação – artigo 26.º, n.º 6 do CPT – a remeter aos serviços do Ministério Público junto do juízo do trabalho da “área de residência do trabalhador”, conforme decorria do artigo 15.º-A, n.º 3, da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro. Já desde então foi criada uma norma especial, que afasta o regime da competência territorial a que alude a seção II, do capítulo II, título II, do CPT.
Entretanto, a partir de 1 de agosto de 2017, data de entrada em vigor das alterações introduzidas pela Lei n.º 55/2017, de 17 de julho, a participação dos factos será remetida para os serviços do Ministério Público junto do Juízo do Trabalho do lugar da prestação da atividade.
Nestes termos, de acordo com o n.º 3 do artigo 15.º-A da Lei n.º 107/2009, que prevê o procedimento a adotar em caso de inadequação do vínculo que titula a prestação de uma atividade em condições correspondentes às do contrato de trabalho e que veio a originar apresente ação para reconhecimento de existência de contrato de trabalho, a ACT deve remeter “(…) participação dos factos para os serviços do Ministério Público junto do tribunal do lugar da prestação da atividade, acompanhada de todos os elementos de prova recolhidos, para fins de instauração de ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho.”.
Depois, sequencialmente, esclarece o n.º 1 do artigo 186.º-K do Código do Processo do Trabalho que “após a receção da participação prevista no n.º 3 do artigo 15.º-A da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, o Ministério Público dispõe de 20 dias para propor ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho”.
Ou seja, os serviços do MP recebem a participação e dispõem de um prazo que é exigente para logo proporem a ação correspondente.
Não faria legalmente sentido que a ação fosse proposta pelo MP noutra comarca que não a que recebeu a participação até pela dificuldade operacional que tal opção implicaria num procedimento que o legislador quis expedito.
No nosso caso, o serviço do Ministério Público que recebeu a participação foi o serviço do Ministério Público do Juízo do Trabalho de Aveiro, que se encontra integrado na procuradoria do juízo especializado do trabalho de Aveiro, sedeado na Comarca de Aveiro – cfr. artigo 73.º, n.º 2 do Estatuto do Ministério Público. Nesta comarca, exerce as suas competências, obviamente, o Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro devendo a ação ser interposta na jurisdição especializada laboral da comarca de Aveiro.
Neste sentido, “ex abundanti”, atente-se na sequência pormenorizada constante do citado artigo 15º:
Procedimento a adotar em caso de inadequação do vínculo que titula a prestação de uma atividade em condições correspondentes às do contrato de trabalho:
1 - Caso o inspetor do trabalho verifique, na relação entre a pessoa que presta uma atividade e outra ou outras que dela beneficiam, a existência de características de contrato de trabalho, nos termos previstos nos n.os 3 e 4 do artigo 2.º, lavra um auto e notifica o empregador para, no prazo de 10 dias, regularizar a situação, ou se pronunciar dizendo o que tiver por conveniente.
2 - O procedimento é imediatamente arquivado caso o empregador faça prova da regularização da situação do trabalhador, designadamente, mediante a apresentação do contrato de trabalho ou de documento comprovativo da existência do mesmo, reportada à data do início da relação laboral, mas não dispensa a aplicação das contraordenações previstas no n.º 2 do artigo 12.º e no n.º 10 do artigo 12.º-A do Código do Trabalho.
3 - Findo o prazo referido no n.º 1 sem que a situação do trabalhador em causa se mostre devidamente regularizada, a ACT remete, em cinco dias, participação dos factos para os serviços do Ministério Público junto do tribunal do lugar da prestação da atividade, acompanhada de todos os elementos de prova recolhidos, para fins de instauração de ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho.
4 - A ação referida no número anterior suspende até ao trânsito em julgado da decisão o procedimento contraordenacional ou a execução com ela relacionada.
A nosso ver, não existe, portanto, uma lacuna legal, pelo contrário erigiu-se uma cadeia procedimental que se pretende rigidamente fixada.
Como se refere na reclamação em apreço, a lei tomou a opção, sensata em termos de eficácia, de conferir ao Tribunal do lugar da prática da infração, que será o lugar da prestação da atividade, a competência não somente para decidir sobre a impugnação judicial de contraordenação laboral como também para decidir sobre a existência de contrato de trabalho.
Aliás, note-se que, em rigor e repetindo-nos, uma vez recebida em juízo a participação -registada e distribuída nos serviços judiciais – logo se inicia, se fixa, a instância (art. 26.º, n.º 6, do CPT) sendo depois apresentada ao Ministério Público aquela participação para efeito de elaboração, sendo o caso, da petição inicial.
Esta é a conclusão que resulta a única consentânea com o explicitado na lei.
Como refere José Joaquim Fernandes de Oliveira Martins, em “A Ação Especial de Reconhecimento da Existência de Contrato de Trabalho – Vinho Velho em Odres Novos”, JULGAR Online n.º 25, 2015, página 206, a propósito deste artigo 15º “retira-se deste normativo que a Secção do Trabalho territorialmente competente para apreciar esta ação é o da “área de residência do trabalhador” (hoje, por força da Lei n.º 55/2017, de 17 de julho, a área da prestação da atividade), para cujos serviços do MP deve ser remetida a respetiva participação, à qual devem ser juntos todos os elementos de prova obtidos pela ACT (verbi gratia, cópia de contratos celebrados, recibos de prestação de serviços, mapas de horários a cumprir pelo “prestador de serviços”, etc.).
E, atento o teor deste artigo, considera-se que deve ser elaborada uma participação por trabalhador, para facilitar a elaboração da posterior petição inicial e até por poderem ser competentes em razão do território várias secções do trabalho, sem prejuízo de, depois de instauradas as subsequentes ações, se poderem apensar, antes da fase de julgamento, as diversas ações pendentes com vista a uma maior economia processual.”
Naturalmente que estas várias secções do trabalho seriam todas de uma mesma comarca, como poderá ser o caso em Aveiro.
Neste mesmíssimo sentido, na mesma revista Julgar, Cristina Martins da Cruz em “A ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho 2013- 2021: de iure condito e de iure condendo”, Julgar Online, abril de 2022, p. 11 defende que a remessa da participação dos factos para os serviços do Ministério Público junto do Juízo do Trabalho do lugar da prestação da atividade deverá ser a regra a aplicar, uma vez que, num paralelo relevante, “concentra num único tribunal, o julgamento da ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho e da apreciação de um eventual recurso da decisão final no processo contraordenacional, cujo juízo do trabalho competente sempre seria, tal como designado pelo artigo 34.º do RPCOLSS, o do lugar em cuja área territorial se haja verificado a contraordenação (e não o da residência do trabalhador)” - daí quiçá a alteração operada em 2017.
Consabidamente, existem centenas de ações interpostas contra este mesmo réu de natureza idêntica à presente; ora, tal como defende na sua reclamação o réu em causa “a remessa das centenas de ações de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, que se encontram a correr por todo o país, para o juízo do trabalho do domicílio da Ré, no caso, Lisboa, seria um enorme esforço de mobilização dos meios disponíveis que comportaria, necessariamente, o congestionamento dos recursos alocados ao Juízo do Trabalho de Lisboa.” Acrescentamos mesmo: um possível colapso.
A lei quis tratar esta questão localmente, por iniciativa dos serviços públicos a quem foi entregue essa missão, incluindo o Ministério Público; impõe-se que também em sede do órgão de soberania – tribunais – se concretize esse desiderato legislativo que incorpora, além do mais, uma clara mais valia gestionária, valor omnipresente nas decisões proferidas pela presidência de tribunais».
Reiteramos que, em face dos cânones interpretativos que o artigo 9.º do Código Civil nos fornece, cremos ser esta a única interpretação consentânea com a letra e o espírito das normas convocadas, não fazendo qualquer sentido que o legislador quisesse afinal, como aconteceria se prevalecesse a decisão reclamada, que a ACT remetesse a participação à Procuradoria junto do tribunal da área de prestação do serviço, para que esta se limitasse a remetê-la para a Procuradoria da área da sede da ré, e esta instaurasse a ação.
Tal entendimento, por ser manifestamente arredado dos fins visados pelo legislador ao consagrar um procedimento especial neste tipo de ações, contraria frontalmente a presunção decorrente do n.º 3 do citado preceito legal de que “o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”. Note-se finalmente que a consagração desta solução especial a respeito da determinação do tribunal competente nem sequer é inovadora no CPT, que igualmente a estabelece no artigo 14.º, n.º 1, para as ações emergentes de contrato de trabalho intentadas por trabalhador contra a entidade empregadora[7], que podem ser propostas no juízo do trabalho do lugar da prestação de trabalho ou do domicílio do autor.
Concordantemente com o exposto, concluímos que o tribunal territorialmente competente para conhecer das ações interpostas pelo Ministério Público para reconhecimento da existência de contrato de trabalho do prestador de atividade, na sequência de participação remetida pela Autoridade para as Condições de Trabalho é o do local onde é prestada a atividade que alegadamente constitui um contrato de trabalho, e não o do domicílio do réu.
Nestes termos, e sem necessidade de maiores considerações, na procedência da reclamação, revoga-se a decisão que julgou o Juízo do Trabalho de Tomar incompetente para conhecer da presente Ação de Reconhecimento da Existência de Contrato de Trabalho e, em consequência, determinou a remessa dos autos para o Juízo do Trabalho de Lisboa.
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III. – Decisão
Pelo exposto, na procedência da reclamação, decide-se revogar o despacho impugnado, determinando-se que a presente ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, prossiga os seus termos no Juízo do Trabalho de Tomar – Juiz 1.
Sem custas.
Notifique.
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Atenta a proliferação de ações similares à presente e a eventual relevância gestionária desta decisão, deverá a Secção Social enviar cópia da mesma aos Exmos. Srs. Desembargadores desta secção e ao Exm.º Senhor Procurador-Geral Regional de Évora, providenciando a signatária pelo envio da mesma para publicação, no sítio do TRE e na DGSI.
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Évora, 21 de março de 2024
Albertina Pedroso
(Presidente do Tribunal da Relação de Évora)


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[1] Juízo do Trabalho de Tomar – Juiz..
[2] Doravante abreviadamente designado CPC.
[3] Doravante abreviadamente designada ACT.
[4] Doravante abreviadamente designada ARECT.
[5] Doravante abreviadamente designado CPT.
[6] Processo n.º 8811/15.6T8STB-H.E1, disponível em www.dgsi.pt.
[7] O itálico corresponde a retificação introduzida por despacho proferido em 25.03.2024, em virtude da verificação de lapso evidente na referência a ação emergente de acidente de trabalho.