Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
259/20.7T8ODM.E1
Relator: FRANCISCO MATOS
Descritores: AQUISIÇÃO ORIGINÁRIA
AQUISIÇÃO DERIVADA
USUCAPIÃO
Data do Acordão: 02/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Na ação de reivindicação de uma parcela de terreno, parte integrante de um prédio rústico, adquirido por negócio translativo da propriedade não basta ao autor demonstrar a aquisição derivada do direito, sendo necessária a demonstração de uma aquisição originária do direito, como a usucapião, por si ou por parte de anterior titular de quem recebeu o direito.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 259/20.7T8ODM.E1

Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora:

I – Relatório
1. (…), residente em (…), S1510 (…), França e (…), residente em França, instauraram contra o Município de Odemira[1], com sede na Praça da República, em Odemira, ação declarativa com processo comum.
Alegaram, em resumo, que são donos e legítimos proprietários do prédio rústico denominado “(…)”, sito na freguesia de Vila Nova de Milfontes, concelho de Odemira, com a área total de 1,5250 ha, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo (…), secção “(…)”, da freguesia de Vila Nova de Milfontes, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Odemira sob o n.º (…), da freguesia de Vila Nova de Milfontes e que o Réu, à sua revelia, no ano de 2002, abriu e pavimentou uma via, como se de um caminho público se tratasse, ocupando uma parcela do terreno do seu prédio com a área de 223 m2, aí instalando infraestruturas de saneamento básico e privando-os do uso desta porção de terreno que lhes pertence.
Concluíram pedindo a condenação do Réu a reconhecê-los como como donos e legítimos proprietários da totalidade do prédio rústico, supra referido, com a área total de 1,5250 ha, a restituir-lhes a área de 223 m2, no estado em que se encontrava no momento anterior às obras, a pagar-lhes a quantia de € 18.000,00 a título de indemnização pela privação do uso da parcela ilicitamente ocupada e a quantia mensal de 83,33 euros até à efetiva desocupação e restituição da referida parcela.
O Réu contestou por exceção e por impugnação; excecionou a incompetência do tribunal para conhecer da causa e competentes, para o efeito, os tribunais administrativos e contradisse os factos alegados pelos Autores por forma a defender que pavimentou um terreno do domínio público, desde sempre afeto ao uso da população e cuja manutenção tem incumbido aos serviços municipais ou da freguesia.
Concluiu pela absolvição da instância e, em qualquer caso, pela improcedência da ação.
Os Autores responderam por forma a concluir pela improcedência da exceção da incompetência do tribunal em razão da matéria.

2. Foi proferido despacho saneador a julgar improcedente a exceção da incompetência do tribunal em razão da matéria e a afirmar, em tudo o mais, a validade e regularidade da instância, identificado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova.
Teve lugar a audiência de discussão o julgamento e depois foi proferida sentença em cujo dispositivo, designadamente, se consignou:
Face ao exposto, julgo a presente ação totalmente improcedente e, em consequência disso:
a) Reconheço os Autores (…) e (…) como donos e legítimos proprietários do prédio rústico denominado “(…)”, sito na freguesia de Vila Nova de Milfontes, concelho de Odemira, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo (…), secção (…), da freguesia de Vila Nova de Milfontes e descrito na Conservatória do Registo Predial de Odemira sob o n.º (…) e registada pela inscrição pela Ap. (…), de (…).
b) Absolvo o Réu Município de Odemira dos pedidos contra si formulados.”

3. Os Autores recorrem da sentença e concluem assim a motivação do recurso:
“A) – A Ré, ora recorrida, ocupou uma parcela com a área de 223 m2 pertencente aos ora recorrentes, tendo determinado que fosse aberta na mesma uma via que veio a ser pavimentada e lá colocadas estruturas de saneamento;
B) – A Ré não tinha legitimidade para abrir a referida via, pavimentá-la, e proceder à colocação de estruturas de saneamento na mesma, por estar a ocupar uma parcela de terreno que não lhe pertence – mas sim aos recorrentes – não tendo obtido o consentimento dos mesmos para o fazer, não tendo movido qualquer processo de expropriação para o efeito, nem correspondendo a referida parcela a um caminho público;
C) – Verificou-se, desse modo, uma ocupação abusiva por parte da ora recorrida da referida parcela com a área de 223 m2, violando diretamente o direito de propriedade sobre a mesma que pertence aos AA., ora recorrentes;
D) – Com efeito, o prédio rústico em questão tem a área de 1,5250 ha, área essa consonante com a área que se encontra registada quer na Conservatória do Registo Predial, quer na caderneta predial rústica do prédio em questão (cfr certidão predial e caderneta predial rústica juntas aos autos), e a qual foi confirmada pelo levantamento topográfico efetuado e junto aos autos;
E) – Para provar quais os limites e confrontações do prédio ora em causa, por forma a provar-se que a referida parcela com a área de 223 m2 discutida nos presentes autos se inclui na área total de 1,5250 ha que o prédio contém, foi junto aos autos um levantamento topográfico elaborado por um topógrafo, que é a pessoa com formação e capacidades técnicas para elaborar tal documento;
F) – Analisando-se o referido levantamento topográfico elaborado pelo sr. Topógrafo, verifica-se que a área dos 223 m2 ora em causa se encontra, efetivamente, inserida no prédio rústico pertencente aos recorrentes;
G) – Foi explicado ao Tribunal a quo por parte do sr. Topógrafo, que o referido levantamento topográfico foi elaborado com base na consulta ao cadastro geométrico – o qual é de acesso público e foi elaborado pelas respetivas entidades públicas competentes, o qual demonstra quais os limites e confrontações dos vários prédios rústicos existentes no território nacional – bem como com base nos vários documentos do prédio em questão e ainda com a inspeção direta ao local, no qual se encontra implantado um marco de pedra que delimita o prédio dos ora recorrentes do prédio vizinho confinante;
H) – Nessa sequência, foi efetuada uma inspeção judicial ao local em questão, na qual o Tribunal a quo pôde diretamente verificar a realidade do prédio em questão, nomeadamente, e com particular interesse para o caso, a existência do referido marco de pedra que delimita a estrema do prédio dos recorrentes com o prédio vizinho confinante, o qual fica, precisamente, no limite da referida parcela com a área de 223 m2 ocupada pela ora recorrida;
I) – Não faz sequer sentido colocar-se a hipótese do marco de pedra existente no local em questão não estar colocado no mesmo sítio onde estava descrito no cadastro, pois marcos de pedra como ao que ora nos referimos, não são, de todo, amovíveis, sendo robustos, fixos no solo, sem hipótese de serem alterados de local;
J) – Pela análise da realidade e factualidade (física e documental) atrás referida, verificou-se que o local onde o marco de pedra se encontra implantado está inteiramente de acordo com a realidade retratada no cadastro geométrico, pois a linha representada no mesmo como sendo o limite da estrema do prédio rústico inscrito na matriz predial rústica sob o artigo (…), da secção (…), de Vila Nova de Milfontes vai exatamente até à construção de uma casa existente no prédio que confina com aquele (casa essa representada por um quadrado a sombreado no cadastro geométrico);
K) – A casa atrás referida continua, presentemente, a existir no local em questão – conforme foi aferido pelo Tribunal – sendo que o marco existente no local se encontra colocado, precisamente, entre o prédio dos AA., ora recorrentes, e a referida casa que pertence ao prédio vizinho confinante com o mesmo, tudo inteiramente de acordo com o mapa cadastral;
L) – Surpreendentemente a Mma Juíza do Tribunal “a quo” entendeu descredibilizar o levantamento topográfico junto aos autos, alegando que o topógrafo em causa foi contratado pelos ora recorrentes e que terá sido efetuado com base no cadastro geométrico que, segundo a mesma, poderá estar desatualizado, não devendo, por isso, ser utilizado para poder aferir limites e estremas dos prédios em questão;
M) – Em primeiro lugar, nada de estranho resulta do facto do topógrafo em causa ter sido contratado pelos ora recorrentes para prestar-lhes um serviço pois se é aos recorrentes que cabe o ónus da prova de provar a respetiva propriedade da parcela em questão, sempre teriam que ser os mesmos a contratar um topógrafo – fosse este ou qualquer outro topógrafo que lhes prestasse o serviço de que necessitavam – para poderem juntar aos autos o respetivo levantamento topográfico do prédio em questão, documento esse essencial para prova da propriedade dos mesmos sobre a parcela em questão;
N) – Por outro lado, salvo o devido respeito, nenhum sentido faz o entendimento da Mma Juíza do Tribunal a quo ao referir que não se pode dar crédito ao cadastro geométrico para definir a delimitação de um determinado prédio rústico, pois, se assim fosse, a existência do cadastro geométrica ficaria completamente inócua e vazia, não se podendo retirar nenhuma utilidade prática da existência do mesmo, fosse a que nível fosse;
O) – Para provar ao Tribunal que a parcela discutida nos autos e ocupada pela Ré, ora recorrida, pertence ao prédio rústico de que os mesmos são proprietários, os mesmos muniram-se de toda a documentação respetiva, juntando a mesma ao presente processo, demonstrando, sem margem para dúvidas, que a configuração do prédio rústico dos ora recorrentes é aquela que consta do levantamento topográfico, a qual está em inteira consonância com os registos públicos do mapa cadastral;
P) – O próprio Tribunal a quo verificou a existência de um marco de pedra no local (aquando a inspeção ao local realizada), o qual se encontra especificamente colocado na estrema entre o prédio dos ora recorrentes e o prédio confinante, em exata consonância com o que se encontra reproduzido no cadastro geométrico, sendo esse, salvo melhor entendimento, um elemento essencial de prova do alegado pelos recorrentes;
Q) – Para além dos elementos documentais supra referidos, foram também juntos aos autos fotografias aéreas, ortofotomapas, bem como fotografias juntas por parte da Direção Geral do Território que permitiram perceber que a parcela em causa nos presentes autos, e que mais recentemente foi pavimentada pela ora recorrida, não se encontrava a ser utilizado pela população “desde sempre”, pois nos ortofotomapas e fotografias juntas mais antigas, essa mesma parcela não se mostra de nenhuma forma “autonomizada” do remanescente prédio dos ora recorrentes;
R) - A acrescer a tudo quanto foi referido, diga-se ainda que os ora recorrentes têm registada a seu favor a propriedade do prédio em questão, com a área total de 1,5250 ha, a qual – conforme referido – inclui a parcela com os 223 m2 em causa nos presentes autos, beneficiando da presunção de prova prevista no artigo 7.º do Código do Registo Predial de que tal direito existe e de que pertence ao titular da inscrição;
S) - Sustentar-se que a única forma de provar que os ora recorrentes são donos e proprietários da parcela de terreno ora em causa seria através do instituto da usucapião – conforme é referido na sentença proferida pela Mma. Juíza do Tribunal a quo – parece-nos totalmente desprovido de qualquer sentido, quando os ora recorrentes demonstraram inequivocamente através da prova documental de que aquela área lhes pertence, beneficiando, ainda para mais, da presunção registral a seu favor;
T) - Tendo-se mostrado provado que o prédio rústico dos AA. possui a área total de 15250 m2 e que a parcela com a área de 223 m2 que ora nos ocupa se encontra integrada no referido prédio daqueles, sendo, desse modo, pertença dos mesmos, resulta demonstrado que mal andou o Tribunal a quo ao dar como não provado que o prédio dos Autores, ora recorrentes, tenha uma área total de 15250 m2 e que do mesmo faça parte a parcela de terreno com a área de 223 m2 a que ora nos reportamos, devendo, ao invés, ser dada como provada tal factualidade;
U) - A ora recorrida, ao agir como agiu, violou diretamente o direito de propriedade dos ora recorrentes, ocupando e efetuando obras sobre uma parcela de terreno que não lhe pertencia, não tendo nenhum título nem legitimidade para o efeito;
V) - Razão pela qual, pelos motivos expostos, entendem os recorrentes que o Tribunal a quo não andou bem quando aplicou e interpretou o artigo 1305.º do nosso Código Civil e o artigo 7.º do Código do Registo Predial, devendo, no entender dos mesmos, ter sido entendido que da análise conjunta dos normativos legais atrás referidos com conjugação da factualidade supra descrita, aliada à prova carreada para os autos, se mostrou provado que os ora recorrentes são, efetivamente, os verdadeiros proprietários da parcela de terreno em causa nos autos, a qual foi ilicitamente ocupada pela Ré, tendo esta violado diretamente o direito de propriedade daqueles, direito esse tutelado no referido artigo 1305.º do Código Civil;
W) - Pelo que deverá a decisão proferida ser revista e substituída por outra que condene a ora recorrida a reconhecer a propriedade dos ora recorrentes sobre a parcela com a área de 223 m2 em causa nos presentes autos e, consequentemente, condenada a restituir aos mesmos a referida parcela de terreno, no exato estado em que se encontrava antes de ter sido ilicitamente ocupado pela mesma.
Termos em que deverá a douta sentença ser revogada e substituída por outra que condene a Ré, ora recorrida, em todos os pedidos formulados
Com o que se fará JUSTIÇA!”
Respondeu o Réu por forma a defender a improcedência do recurso.

II - Objeto do recurso
Considerando que o objeto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas, salvo as questões de conhecimento oficioso (artigos 635.º, n.º 4 e 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), que nos recursos se apreciam questões e não razões ou argumentos e que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido, as conclusões do recurso colocam as seguintes questões: i) a impugnação da decisão de facto, ii) se a parcela com a área de 223 m2, pavimentada e infra-estruturada pelo Réu, integra o prédio dos Autores.

III. Fundamentação
1. Factos
1.1. A 1ª instância julgou assim os factos:
Provado:
1. Da Ap. (…), de 28/09/1982 resulta que se encontra registada a favor dos Autores (…) e (…), bem como em nome de (…)., a compra do prédio rústico denominado “(…)”, sito em Vila Nova de Milfontes, inscrito na matriz predial rústica sob o n.º (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de Odemira sob o n.º (…), da freguesia de Vila Nova de Milfontes.
2. Consta do teor da certidão predial referente ao prédio aludido em 1 que a área total é de 15250 m2, que o mesmo confronta a norte e poente com caminho público, a sul com (…) e a nascente com (…) e é composto por prado natural.
3. Em data não concretamente apurada, foi aberta, por ordem e sob direção, do Réu Município de Odemira uma via numa parcela com 223 m2.
4. O Réu, no ano de 2002, pavimentou a referida via e colocou estruturas de saneamento.
5. A aludida via encontra-se, desde data não concretamente apurada mas pelo menos desde 1984, afeta ao uso da população e é mantida e limpa pelos serviços municipais ou da freguesia.
6. Não foi instaurado nenhum processo de expropriação relativamente à parcela mencionada em 3.
Não provado:
A. Que o prédio dos Autores e identificado em 1 tenha uma área total de 15250 m2 e que do mesmo faça parte a parcela de terreno identificada em 3.
B. Que os Autores nunca tenham sido contactados por parte do Município de Odemira relativamente à realização dos trabalhos referidos em 4.
C. Que os Autores tenham entrado em contacto com o Réu para alertar para a ilegalidade dos trabalhos acima referidos por considerarem que a obra foi executada em terreno alheio e sem autorização dos proprietários ou processo de expropriação.
D. Que as respostas do Réu sempre tenham sido demoradas e que os Autores tenham tido dificuldades em resolver o assunto por residirem no estrangeiro.
E. Que o Réu tenha referido aos Autores que as obras acima referidas eram legais por terem sido efetuadas num caminho público.
F. Que, em virtude da obra acima menciona, os Autores tenham sentido tristeza, revolta e frustração e se tenham sentido enganados pelo Réu.
G. Que, desde pelo menos 2002, o Réu ocupa uma parcela de terreno pertencente ao prédio identificado em 1.
H. Que nunca tenha existido qualquer via ou caminho, ainda que privado e que o acesso aos prédios confinantes com os dos Autores fosse feito por um caminho situado a Nascente.
I. Que os Autores, em virtude do referido em 3 e 4 tenham ficado impedidos de utilizar a parcela e arrendar o prédio identificado em 1 que tinha um valor locativo de € 1.000,00 por ano.
J. Que a via aludida em 3 e 4, desde há tempos imemoriais, estivesse no uso e servisse os habitantes locais.

1.2. A impugnação da decisão de facto
Com fundamento no documento denominado “levantamento topográfico”, junto com a petição inicial, pretendem os Autores que se julgue provado o seguinte: “O prédio dos Autores tem uma área total de 15250 m2 e que do mesmo faz parte a parcela de terreno com a área de 223 m2.”
Argumentam que o levantamento topográfico “delimita o prédio rústico dos AA (…) verificando-se que o referido prédio possui a área total de 1,5250 há e que, incluída nessa área, se encontra a parcela com a área de 223 m2 em causa nos presentes autos”.
A decisão recorrida desconsiderou o referido meio de prova por ajuizar, em resumo, que o “levantamento foi elaborado com base no cadastro geométrico (junto a fls. 63) datado de 1948 (…) “o cadastro geométrico não tem rigor suficiente para se decidir a quem pertence determinada parcela” e que na “ausência de qualquer prova relativamente à efetiva ocupação e utilização do terreno por parte dos Autores (que se encontram e encontravam, à data, a residir em França) ou por intermédio de outrem” não é possível “considerar, tendo por único elemento o levantamento topográfico junto aos autos, que o prédio dos Autores tenha a área acima referida e que do mesmo faça parte a aludida parcela.”
O verdadeiro problema que aqui se coloca, se bem vemos, não é o da aptidão do levantamento topográfico para demonstrar a área do prédio dos Autores e, por consequência, se área ocupada pelo Réu se insere nela, ou não, mas o de distinguir entre um meio de prova e a decisão do litígio que o meio de prova visa influenciar.
Na configuração dada à causa, destinada precisamente a reconhecer o direito de propriedade dos Autores sobre uma área de 223 m2 alegadamente ocupada pelo Réu, a julgar-se provado a matéria impugnada – “o prédio dos Autores tem uma área total de 15250 m2 e que do mesmo faz parte a parcela de terreno com a área de 223 m2 – não se estaria a emitir um mero juízo de facto, mas a emitir o juízo final sobre a sorte do litígio, ou seja, se área de 223 m2 faz parte do prédio dos Autores, então só restava reconhecê-los como proprietários dessa área e ordenar a pedida restituição, com a particularidade de a causa haver então sido decidida não pelo juiz, mas pelo meio de prova, mais apropriadamente pelo seu autor – o topógrafo –, cujo juízo o juiz se limitaria a declarar.
Assim se chega à conclusão que o facto impugnado envolve, na configuração da causa, uma questão de direito – aliás, a solução de direito – e, como tal, por definição, a sentença não comporta a sua discriminação como facto provado [artigo 607.º, n.º 3, do CPC].
Improcede a impugnação.

2. Direito
2.1. Se a parcela com a área de 223 m2, pavimentada e infra-estruturada pelo Réu, integra o prédio dos Autores.
Os Autores vieram a juízo pedir o reconhecimento de propriedade e a restituição de uma área de 223 m2, alegadamente parte integrante da área de 15.250 m2 do seu prédio rústico denominado “(…)”, sito em Vila Nova de Milfontes e ocupada pelo Réu com a abertura e pavimentação de uma via e colocação de infra-estruturas de saneamento.
O pedido é, tipicamente, de reivindicação, isto é, encerra a “pretensão do proprietário não possuidor contra o possuidor não proprietário”[2], como é específico da reivindicação – não alterando esta natureza a circunstância de a reivindicação ter por objeto uma parte do prédio rústico (223 m2) e não à totalidade da área dele – e tem apoio no artigo 1311.º do Código Civil, que dispõe:
1. O proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence.
2. Havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei.”
A restituição depende, assim, da verificação do seguinte: da propriedade do reivindicante e da posse por outrem que não é proprietário, ou seja, o autor na ação de reivindicação tem o ónus de demonstrar que é proprietário da coisa e que a coisa está na posse de outem.
O reivindicante demonstra que é proprietário da coisa se prova que a adquiriu por justo título.
Segundo o artigo 1316.º do Código Civil (CC), o direito de propriedade adquire-se por contrato, sucessão por morte, usucapião, acessão e demais modos previstos na lei.
À primeira vista poder-se-ia ser levado a pensar – é o que, aliás, se defende no recurso – que a prova do direito do direito de propriedade, para efeitos da procedência da ação de reivindicação, tanto se faz alegando os factos constitutivos v.g. da usucapião, como se faz alegando os factos constitutivos v.g. da compra e venda, ou seja, que as exigências probatórias das formas de aquisição originária (usucapião, acessão, ocupação) são idênticas às exigências probatórias das formas de aquisição derivada (compra e venda, doação, sucessão).
Mas não é assim por uma razão simples, mas decisiva: nem a compra e venda, nem v.g. a doação são constitutivas do direito de propriedade, mas apenas translativas desse direito [cfr. artigos 879.º, alínea a) e 94.º, n.º 1, do CC], o que significa que o direito é transmitido se e na exata medida em que, existe na esfera jurídica do transmitente; assim, nas ações de reivindicação em que o autor alega como modo de aquisição do direito de propriedade um negócio translativo, v.g. a compra e venda, incumbe-lhe provar “que o direito já existia no transmitente (dominium auctoris)[3], ou seja, não basta (…) a demonstração de uma aquisição derivada do direito (…) é assim necessária a demonstração de uma aquisição originária do direito, como a usucapião, por parte do autor ou de anterior titular do direito, a quem aquele tenha adquirido[4], a menos que existam presunções de propriedade como a derivada do registo (artigo 7.º do CRP), caso em que beneficiário escusa de provar o facto a que a presunção conduz [artigo 350.º, n.º 1, do CC] e, assim, o reivindicante escusa de provar o(s) facto(s) aquisitivo(s) da propriedade.
Por adoção deste entendimento e verificando que os Autores não alegaram factos suscetíveis de configurar uma qualquer forma de aquisição originária do direito de propriedade a que se arrogam, a decisão recorrida julgou a ação improcedente.
Decidiu bem, a nosso ver.
Os Autores alegaram a inscrição da aquisição do prédio, por compra, a seu favor, indicaram documentar a descrição do prédio a área de 15.250 m2 e argumentaram ocupar o Réu uma área de 223 m2 do prédio como se de um caminho público se tratasse, mas não alegaram nenhum ato material de posse sobre o prédio suscetível de conduzir usucapião na medida que o registo documenta, apesar de não lhes faltar margem temporal para o fazerem, independentemente de posse anterior à sua, uma vez que o registo da aquisição a favor dos Autores data de 28/9/1982.
Tudo visto, dispõem do título do registo predial segundo o qual o prédio tem a área de 15.250 m2.
Segundo o artigo 7.º do Código do Registo Predial, o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.
A despeito desta última expressão “nos precisos termos em que o registo o define e por razões que aqui não cumpre verificar – os autos não colocam a questão – a doutrina e jurisprudência têm considerado que as presunções registrais se circunscrevem: i) a de que o direito existe tal como o registo o revela e ii) a de que o direito pertence a quem está inscrito como seu titular.
De fora ficam os elementos circunstanciais descritivos como as áreas, limites e confrontações. É vasta a jurisprudência que, por forma reiterada e consistente tem assinalado que as presunções do registo não abrangem a área (ou, pelo menos, a sua exatidão), confrontações e/ou limites dos imóveis registados.[5]
Assim, omitindo os Autores, na configuração que deram à causa, a alegação de factos suscetíveis de conduzir à usucapião do prédio na medida do título, nesta se incluindo a parcela reivindicada e não decorrendo do registo da descrição predial uma presunção de domínio quanto à exata área do prédio, a ação não reunia ab initio condições para provarem a propriedade da parcela reivindicada, pressuposto primeiro da sua pretensão reivindicativa.
Havendo sido este o sentido da decisão recorrida, resta confirmá-la.

2.2. Custas
Vencidos no recurso, incumbe aos Autores/recorrentes o pagamento das custas (artigo 527.º, nºs 1 e 2, do CPC).

Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do CPC):
(…)

IV. Dispositivo:
Delibera-se, pelo exposto, na improcedência do recurso, em confirmar a decisão recorrida.
Custas pelos Recorrentes.
Évora, 8/2/2024
Francisco Matos
Cristina Dá Mesquita
Vítor Sequinho dos Santos

__________________________________________________
[1] A demanda foi inicialmente dirigida contra a Câmara Municipal de Odemira, mas por despacho de 2/10/2020 foi ordenada a correção do erro na designação / identificação da Ré.
[2] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil anotado, vol. 3º, 1972, pág. 101.
[3] Pires de Lima e Antunes Varela, Ob. cit., pág. 102.
[4] Menezes Leitão, Direitos Reais, pág. 234.
[5] Cfr. v.g. Acórdãos do STJ de 14/11/2013 (processo n.º 74/07.3TCGMR.G1.S1), de 11/2/2016 (processo n.º 6500/07.4TBBRG.G2.S3) e de 19/9/2017 (processo n.º 120/14.4T8EPS.G1.S1), todos disponíveis em www.dgsi.pt,