Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
748/21.6PBSTR-A.E1
Relator: GOMES DE SOUSA
Descritores: VEÍCULO APREENDIDO
PROCESSO PENAL
DESVALORIZAÇÃO
BENFEITORIAS
AVALIAÇÃO
DIREITO DE RETENÇÃO
INEXISTÊNCIA
RECUSA ILEGÍTIMA DE DEVOLUÇÃO
Data do Acordão: 10/10/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. Nos termos do art. 11.º do Dec-Lei nº 31/85 «Se, por qualquer motivo, for ordenada a restituição de um veículo apreendido, perdido ou abandonado em favor do Estado, será feito o apuramento da desvalorização ocasionada pelo uso por parte do Estado, bem como das benfeitoras que o Estado efectuou durante a utilização».
II. O cálculo das duas realidades obrigacionistas será feito após a determinação de restituição, sem prejuízo de o interessado poder vir pedir, também, indemnização pelo uso, tal como previsto no artigo 13.º do Dec-Lei nº 31/85. Ou seja, três realidades contabilísticas distintas, tendo o proprietário ou legítimo possuidor direito a ver bem quantificada a contabilização das benfeitorias, a desvalorização contabilizada e o direito à indemnização pelo uso. Tratando-se, pois, de mero contrabalanço de créditos e débitos – uma relação jurídica que se estabelece como mera obrigação pecuniária - entre o proprietário do bem e as entidades várias do Estado que se vão estabelecendo ao sabor das marés legislativas. E ninguém põe em causa que tais obrigações pecuniárias existam.
III. No presente caso o procedimento administrativo de quantificação das benfeitorias é tudo menos claro. Diríamos mesmo obscuro! Sendo o despacho que declarou a insusceptibilidade de perda do bem de 24/05/2022 e assumindo-se que a quantificação dos créditos e débitos deve ser efectuada após tal despacho (nos termos do artigo 11.º, n.º 1 do Dec-Lei n.º 31/85, se «for ordenada a restituição de um veículo apreendido, perdido ou abandonado em favor do Estado, será feito o apuramento da desvalorização ocasionada pelo uso por parte do Estado, bem como das benfeitoras que o Estado efectuou durante a utilização»), não se percebe como a notificação das benfeitorias não é comunicada aos autos mas tem que ser o arguido a vir juntar a notificação que recebeu da supra dita ESPAP de 07-11-2022, sem que as benfeitorias estejam sequer discriminadas, tornando assim impossível escrutinar do seu acerto.
Para mais as contas assentam nos critérios quantitativos fixados num arqueológico despacho do Secretário de Estado do Tesouro e das Finanças nº 1771/96-SETF de 31-10-1996 (DR 253, de 31-10-1996, pág. 15 192), dispensando-se, assim, todo o procedimento previsto no artº. 5.º do Dec-Lei nº 11/2007, esquecendo a nomeação de peritos para tal avaliação que, ao que parece, não foi realizada.
IV. Dos autos não consta sequer que tenha sido feita a avaliação do bem – e sua documentação fotográfica - à data da sua recepção, nos termos do disposto no art. 2.º, n.º 1 do Dec-Lei n.º 31/85 e 5º, nsº 1 a 5 do Dec-Lei nº 11/2207, de 19-01. Tudo muito obscuro! Mas actualizado … a valores de 1996!!! E daqui decorre, naturalmente, a ilicitude da invocação de benfeitorias realizadas no veículo.
V. Assim, contra a ordem contida num despacho judicial não é invocável – como se fosse privilégio do MP ou do Estado – um direito de natureza civilística que apenas se estabelece – como relação jurídica obrigacionista – entre credor e devedor e que não vincula um tribunal.
VI. Não há direito de retenção pois que não se trata de vulgar credor, sim de um despacho judicial determinativo. Nem há direito de retenção por ser ilícita a detenção do veículo.
VII. Com efeito, o despacho judicial que determinou a entrega do bem apreendido é uma ordem judicial e o seu não cumprimento não está a coberto de qualquer direito de retenção, sem se negar que se poderá manter a relação obrigacionista eventualmente resultante de benfeitorias. E isto quer significar que a ordem tem que ser cumprida, sem prejuízo da eventual manutenção da obrigação, com as consequências penais naturalmente resultantes do incumprimento dessa ordem.
VIII. Em suma, a inexistência de direito de retenção que se possa opor a ordem judicial torna ilegítima a recusa com a consequente conclusão de que o bem se mantém na posse da PJ ou da ESPAP de forma ilícita.
IX. E se a Mmª JIC decide, por despacho transitado, que o bem não é susceptível de ser declarado perdido a favor do Estado, a entrega desse bem tem que ser imediata e isso quer significar que o bem deve ser imediatamente restituído, sem prejuízo de a quantificação dos créditos ficar dependente de petição – por apenso aos autos principais - do proprietário do bem.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

A - Relatório:
Nos autos de Inquérito supra numerados, que corre termos no Tribunal da Comarca de ... - Juízo de Instrução Criminal ..., J... - a Mª JIC lavrou despacho, datado de 09/02/2023, a determinar a restituição ao arguido da viatura de sua propriedade, que estivera apreendida nos autos.
Anteriormente, em 24/05/2022, a Mmª Juíza, a requerimento do arguido, lavrara despacho a - nos termos do Artigo 109º, do C.P. - determinar o levantamento da apreensão criminal de tal bem e sua entrega ao requerente, com respectiva chave e documentos, após trânsito da decisão.
Posteriormente a ESPAP comunicara ao arguido que só poderia restituir a viatura mediante o pagamento da quantia de 515,29 €.
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O Digno Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal de Comarca de ... -Juízo de Instrução Criminal ..., J... - interpôs recurso do despacho da Mmª Juíza, com as seguintes conclusões:
1 - Por despacho proferido em 26/05/2022 no Apenso A, foi determinado o levantamento da apreensão do veículo com a matrícula ..-JN-.. e entrega ao seu proprietário, o arguido AA.
2 - Previamente, em 09/02/2022, por despacho proferido pelo Diretor Nacional da Polícia Judiciária, foi declarada a utilidade operacional do referido veículo ..-JN-.., o que foi notificado ao arguido em 17/02/2022.
3 - Para restituição da viatura ao arguido, foi elaborado pela Direção de Serviços de Gestão Financeira e Patrimonial, nos termos do artigo 11º do DL 31/85 o cálculo da compensação pelo seu uso, resultando para o Estado um crédito no valor de €515,29.
4ª - O arguido veio opor-se ao pagamento do referido valor, endereçando requerimento aos autos, sem qualquer formalidade.
5 - A Mm.ª JIC proferiu a seguinte decisão “A decisão do Tribunal foi proferida e adquiriu carácter definitivo. Não foi condicionada ao pagamento de qualquer valor. Não há lugar no caso presente a qualquer direito de retenção nem o arguido teve qualquer intervenção na criação do alegado direito de crédito do Estado que só dependeu da vontade e benefício da PJ. (…)
6 - O apenso A foi criado para decidir do pedido de restituição do veículo ..-JN-.. ao arguido AA, nos termos do disposto no artigo 178º, n.º 7 do Cód. Processo Penal, sendo que a questão ora colocada pelo arguido, quanto ao pagamento das benfeitorias realizadas no veículo pela Polícia Judiciária, e o direito de retenção exercido pelo Estado, ao abrigo do disposto no artigo 12º, n.º 2 do DL 31/85, extravasam já o âmbito da decisão proferida pelo tribunal relativamente à revogação da apreensão do veículo do arguido e assume outra natureza, a ser apreciada autonomamente.
7 - O poder jurisdicional do tribunal, neste apenso e sobre a questão peticionada pelo arguido, esgotou-se com a decisão de restituição ao abrigo do artigo 178º, n.º 7 do CPP, sendo que, a decisão sobre as demais questões posteriormente invocadas pelo arguido e pelo Estado são de natureza diversa e carecem de decisão devidamente fundamentada em ação especial de fixação de indemnização, conforme estipulado no artigo 13º do DL 31/85.
8 - Os procedimentos relativos ao apuramento do valor da indemnização são efetuados pela entidade administrativa competente só são efetivados depois de transitar a decisão de restituição do veículo e se determinar a cessação da utilidade operacional pela PJ, pois só depois de tal decisão, pode a Direção de Serviços de Gestão Financeira e Patrimonial calcular com exatidão o valor da indemnização a fixar pelo uso da viatura, tendo em conta os quilómetros percorridos.
8 - A decisão do tribunal sobre a revogação da apreensão nunca poderia ter em conta o pagamento de qualquer valor, por o mesmo ainda não ter sido apurado, naquela fase, nem ser possível prever a existência (ou não) de crédito a favor do Estado.
9. - Trata-se de questão distinta, que em nada contende com a decisão já proferida e transitada quanto à revogação da apreensão do veículo, e que deve ser invocada pelo arguido nos termos do procedimento legal regulado no artigo 13º do DL 31/85.
10 - O tribunal violou os artigos 11º, 12º e 13º do DL 31/85, pelo que deve o despacho proferido em 09/02/2023 ser revogado e ser substituído por outro em que remeta a apreciação da questão levantada pelo arguido para sede própria, nos termos do que dispõe o artigo 13º do DL 31/85.
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Respondeu o arguido defendendo a improcedência do recurso, com as seguintes conclusões:
1º - A decisão do Tribunal recorrido não merece qualquer reparo já que toda a prova carreada para os autos foi devida e correctamente analisada e apreciada pelo Tribunal.
2º - Não se pode deixar de concordar na íntegra com a decisão, não se vislumbrando nela qualquer dos vícios e violação das normas invocados pelo MºPº nas suas doutas alegações de recurso.
3º - De enorme relevância para a boa decisão e que o MºPº não refere nas suas doutas alegações de recurso, é o facto de o arguido ter dirigido um requerimento ao Ministério Público em 14 de Dezembro de 2021 (muito antes da declaração de utilidade pública notificada ao arguido em 17 de Fevereiro de 2022), solicitando o levantamento da apreensão do veículo, sustentando que as perícias a realizar ao veículo, dados os factos em causa e a forma da sua ocorrência, nunca seriam de grande complexidade e que dado o tempo decorrido já deveriam estar concluídas, requerendo, por via disso, a restituição da viatura.
4º - Relativamente àquele requerimento, foi o arguido notificado em 13 de Janeiro de 2021 do despacho do MºPº de que: “sucede que encontrando-se a investigação ainda a decorrer, encontram-se ainda a ser realizadas diligências de prova que permitirão apurar da utilização do veículo, no cometimento dos factos, o que para já se encontra indiciado…” (negritos nossos).
5º - Fazendo fé na explicação fornecida pelo Ministério Público foi com hercúleo espanto que em 17 de Fevereiro de 2022, mais de um mês após o despacho do MºPº negando a entrega do veículo, este ainda estaria a ser alvo de diligências de prova, que o arguido foi surpreendido pela notificação pela Polícia Judiciária do Termo de Notificação de uma Declaração de Utilidade Operacional do dito veículo.
6º - Então, não estavam a ser realizadas diligências de prova para justificar a não entrega do veículo ao seu legítimo proprietário quando requerida?
7º - Existe aqui uma grave contradição entre o que o MºPº veio alegar para não levantar a apreensão da viatura e o que veio a suceder depois.
8º - Retira-se, pois da Declaração de Utilidade Operacional que esta naquela data já não tinha importância para o inquérito, já que a utilização operacional não se coaduna com a realização de perícias e, por conseguinte nada obstava a que o veículo fosse entregue ao seu legítimo proprietário.
9º - É que o automóvel não tinha sido declarado perdido a favor do estado e não era de todo previsível que o viesse a ser.
10º - Todos nós sabemos que a Lei permite a utilização daquele instituto, contudo este não pode ser de aplicação cega, tem de ser proporcional e consonante com a realidade dos factos e a situação familiar do arguido.
11º - A aplicação da Lei tem de ser acompanhada de elementos éticos e morais senão perde a sua primordial função que é a prossecução da Justiça.
12º -E, salvo o devido respeito, esta situação não tem nada de justo e proporcional.
13º - O veículo não foi declarado perdido a favor do estado.
14º - A invocada aplicação do Dec. Lei. 31/85 de 25 de Janeiro, salvo o devido respeito por melhor opinião é, neste caso, um desproporcional ataque aos mais elementares princípios constitucionais do direito de propriedade.
15º - Ainda o arguido não foi condenado, mas já está sujeito, não ele, mas antes a sua família à sujeição do que passa a ser uma pena acessória de cariz patrimonial, o que consideramos deveras desproporcional, injusto e que não pode estar, neste caso, conforme à moralidade que a aplicação da Lei implica.
16º - Tem o arguido dois filhos, um com cerca de 14 anos. e outro com, actualmente, cerca 3 anos que necessita com alguma frequência de atendimentos médicos.
17º - A criança está a ser seguida no departamento de desenvolvimento do Hospital .... Sofre de perturbação do espectro do autismo.
18º - É uma doença crónica que requer acompanhamento regular por terapia da fala e terapia ocupacional.
19º - O veículo que se encontra apreendido nos autos é o único meio de transporte de que a sua família dispõe para efectuar as deslocações para o trabalho, assim como o transporte de seus filhos para os estabelecimentos de ensino e para as deslocações em busca de atendimento médico para o mais pequeno.
20º - Apesar de ordenada a entrega da viatura em 26/05/2022 e após o trânsito em julgado da decisão e no seguimento de várias insistências pelo arguido para que se agisse em conformidade, materializadas através de várias comunicações por correio electrónico, juntas aos autos e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, a PJ nunca procedeu em conformidade com a decisão do Tribunal.
21º - Em 14-11-2022 foi-lhe enviado para o seu correio electrónico cópia de um ofício da eSPap dirigido ao DIAP, ... secção de ... contendo o cálculo de compensação apagar no levantamento do veículo, acompanhado de algumas facturas de benfeitorias que a PJ, alegadamente, havia feito no automóvel em questão
22º - Desse conjunto de facturas enviado destaca-se uma correspondente a uma inspecção periódica ao veículo ...-...-IU, veículo que não corresponde ao veículo apreendido nos autos?!.
23º - É ainda apresentada uma outra factura no valor de € 2.107,73 que inclui serviço de mecânica, substituição de pneus, bate-chapa, pintura e limpeza de estofos.
24º - Antes de mais cumpre referir que quando o veículo foi apreendido tinha sido sujeito à inspecção periódica em 31/07/2022 e nenhuma anomalia foi detectada em relação aos pneus ou qualquer outro componente, pelo que não necessitavam de ser substituídos.
25º - Pelo que aquelas intervenções seriam perfeitamente desnecessárias.
26º - Quanto ao serviço de mecânica, também antes de o veículo ser apreendido tinha sido realizada a revisão ao carro em 23/10/2021 pelo também aqui não seria necessária qualquer intervenção.
27º - Por último é cobrado um serviço de bate chapas e pintura porque o veículo alegadamente tinha uma mossa na chapa.
28º - Ora tal imperfeição estética não compromete a segurança do veículo e a considerar-se uma benfeitoria, apenas configuraria uma benfeitoria voluptuária e não necessária, pelo que nunca seria exigível a sua compensação.
29º - Nas contas apresentadas, feita a compensação entre as “benfeitorias” e os kilómetros percorridos, tem o arguido ainda a pagar a quantia de cerca de € 500,00.
30º - Então e a indemnização ao arguido pela privação do uso do veículo desde o data do trânsito em julgado da decisão e a efectiva entrega da viatura? Além do desgaste e kilómetros percorridos, também neste parâmetro, privação de uso, devia o arguido ser indemnizado.
31º - Pelo que se considera que o arguido nada tem a pagar àquela instituição.
32º - Como já se disse a Lei (Decreto-Lei nº 31/85 de 25-01) permite a utilização daquele instituto, contudo este não pode ser de aplicação cega, tem de ser proporcional e consonante com a realidade dos factos e a situação familiar do arguido, não podendo extravasar os limites do princípio fundamental da protecção da propriedade privada inscrito no artº 62º da CRP.
Com efeito, decorre do Artigo 62.º da CRP que:
“1. A todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição.
2. A requisição e a expropriação por utilidade pública só podem ser efectuadas com base na lei e, fora dos casos previstos na Constituição, mediante pagamento de justa indemnização.”
33º - Em primeiro lugar há que referir que a constituição prevê, para o lesado no seu direito de propriedade ou posse, o pagamento de justa indemnização, não nos parece que é o que acontece aqui neste caso.
34º - Não prevê lei fundamental que se possa alocar ao lesado na sua posse o pagamento de qualquer quantia, seja a que título que for, para reaver o que é seu.
35º - Pelo que sempre teremos de considerar e invocar a inconstitucionalidade do (Decreto-Lei nº 31/2007 de 19-01), por violar aquele princípio fundamental.
36º - A aplicação da Lei não pode ser cega nem arbitrária, tem de ser acompanhada de elementos éticos e morais senão perde a sua primordial função que é a prossecução da Justiça.
37º - E, salvo o devido respeito, a situação em apreço não tem nada de justo ou proporcional.
38º - Onde se enquadram aqueles conceitos, quando se retira a uma família com filhos de tenra idade o seu único meio de transporte, se usa e abusa do veículo durante oito longos meses e quando ordenada a entrega através de decisão judicial se vem condicionar essa entrega ao pagamento de uma quantia pecuniária?
39º - Quando durante esse período o arguido não só esteve privado da posse do veículo como teve de continuar a pagar o empréstimo bancário para a sua aquisição e todos os impostos devidos, mormente o IUC?
40º - A assinalada decisão que ordenou a entrega do veículo, não a fez depender de quaisquer condições.
41º - Ora, num estado de direito as decisões judiciais transitadas em julgado são para ser cumpridas, sob pena de colapso de todo o edifício da Justiça.
42º Salvo o devido respeito, não assiste razão ao MºPº quando conclui que :”O poder jurisdicional do Tribunal, neste apenso e sobre a questão peticionada pelo arguido, esgotou-se com a decisão de restituição ao abrigo do artº 178, nº 7 do CPP, sendo que, a decisão sobre as demais questões posteriormente invocadas pelo arguido e pelo Estado são de natureza diversa e carecem de decisão devidamente fundamentada em acção especial de fixação de indemnização, conforme estipulado pelo artº 13º do DL 31/85.”
43º - Com efeito, salvo o devido respeito, o poder jurisdicional não se esgotou com a decisão proferida em 26/05/2022, até porque as facturas que foram apresentadas ao arguido ostentam as datas de 30/05/2022, relativamente a uma viatura com uma matrícula que não corresponde à da viatura do arguido e outras facturas datadas de 25/07/2022, emitidas dois meses após a prolação da decisão do Tribunal e um mês e quinze dias após o trânsito daquela decisão.
44º - O que indicia fortemente que as “benfeitorias” foram realizadas já após o trânsito da decisão que ordenou a entrega ao arguido da viatura apreendida.
45º - Quando foram emitidas estas facturas já a PJ tinha conhecimento do teor da decisão de levantamento da apreensão da viatura, pelo que não existia razão alguma que pudesse fundamentar a realização de qualquer intervenção no veículo em questão a partir daí.
46º - A este respeito veja-se o parecer do Exmº Sr. Provedor de Justiça Dr. José Meneres Pimentel de 21/09/1995, Rec.38/B/95, o qual subscrevemos na íntegra, quando refere:
” 1.Refere o preâmbulo do Decreto-Lei nº 31/85 que o diploma visa obviar a situação em que se encontram os veículos automóveis apreendidos em processo crime que, permanecendo longos períodos sem utilização, ficam reduzidos pelo tempo e, muitas vezes pela intempérie, a destroços sem utilidade, ao mesmo tempo que aproveita para agrupar e classificar outras situações de veículos automóveis apreendidos, declarados perdidos ou abandonados, conferindo-lhes tratamento idêntico.
1.1.Da leitura do Diário da Assembleia da República, relativo à reunião plenária da mesma Assembleia em que foi discutida e aprovada a proposta de Lei nº 75/III, que autorizava o Governo a legislar sobre a utilização, pelo Estado, de veículos automóveis apreendidos, verifica-se que, com o diploma em análise, se pretendeu conciliar os interesses do proprietário do veículo apreendido, por acautelar as expectativas de o vir a recuperar em bom estado de conservação, com o interesse público, através da utilização dos veículos.
2.Todavia, no que respeita aos interesses do proprietário do veículo, não parece que a solução legal consagrada os proteja de forma adequada.
2.1.Na verdade, desde logo, são escassos os meios de oposição conferidos ao proprietário que, tendo sido privado do seu veículo, apreendido e à disposição da Direcção-Geral do Património do Estado, pretendendo reavê-lo, apenas dispõe da possibilidade de requerer ao juiz de instrução competente (ou à autoridade administrativa no caso de processo de contra-ordenação) que profira despacho em que aprecie, provisoriamente, com base num juízo de prognose, a susceptibilidade de futura perda da viatura em favor do Estado (vd. artigo 3º nº 1, do Decreto-Lei nº 31/85, de 25 de Janeiro).
2.2.Por outro lado, além dos encargos inerentes ao facto de ter sido privado do uso e fruição de um bem que lhe pertence, no momento da restituição do veículo, permite o diploma em análise que possa ser imputado ao respectivo proprietário, o pagamento ao Estado de uma quantia, correspondente ao valor das reparações que o Estado entendeu serem necessárias durante a utilização (vd. artigos 9º, e 11º do Decreto-Lei nº 31/85).
2.2.1.Caso o proprietário discorde com o montante em dívida apurado (diferença entre a desvalorização ocasionada pelo uso por parte do Estado e as benfeitorias que este efectuou durante a utilização), designadamente por considerar desnecessárias as benfeitorias efectuadas, terá que recorrer da decisão proferida pelo Ministro das Finanças (sob proposta do director-geral do Património do Estado), recaindo sobre o proprietário o ónus da prova (vd. artigos 11º, e 13, nº 2, do Decreto-Lei nº 31/85, de 25 de Janeiro).
Assim, não parece justa a situação em que é colocado o proprietário, desapossado do seu veículo, que, para recorrer do montante apurado no momento da restituição do veículo, e nessa altura pago (sob pena da sua não devolução), terá que requerer a fixação judicial daquele valor, sendo conhecida a morosidade e os custos inerentes à tramitação dos processos judiciais.
3.A aplicação deste regime legal dá origem a situações de grande injustiça, do prisma do proprietário
(…)
4.Tendo sido solicitadas informações à Direcção-Geral do Património do Estado sobre a aplicação prática de algumas disposições do diploma em análise, constatou-se, relativamente ao ano de 1994, que das 8425 comunicações efectuadas nos termos do artigo 2º do Decreto-Lei, apenas 188 automóveis foram considerados com interesse para o parque automóvel do Estado, o que corresponde a uma percentagem de 2,23%. Assim, considerando que um dos objectivos deste diploma era obviar à situação em que se encontravam as várias centenas de veículos apreendidos que, permanecendo durante longos períodos sem utilização, ficavam reduzidos a destroços sem utilidade, decorre que a prossecução daquele objectivo só teria sido possível caso tivessem sido afectos ao parque automóvel do Estado um número substancialmente mais elevado de veículos, entre os quais deveriam conter-se, designadamente, os mais susceptíveis de depreciação por imobilização.
4.1.Na prática, verifica-se que esta solução legal promove o interesse exclusivo do Estado, economizando avultadas somas na utilização de veículos apreendidos em bom estado de conservação, que de outra forma despenderia na aquisição de novos veículos para o seu parque automóvel.
5.Após um breve estudo de direito comparado, verificou-se que nos ordenamentos jurídicos estrangeiros consultados não existe nenhum regime que, à semelhança do Decreto-Lei nº 31/85, permita que fiquem à disposição dos serviços do Estado os veículos apreendidos em processo judicial antes de ser proferida sentença. Nesses ordenamentos jurídicos, os veículos apreendidos em processo crime destinam-se a efeitos probatórios e são, se possível, entregues ao proprietário enquanto fiel depositário, ou então retidos em depósitos judiciais sem que seja feita qualquer referência à sua utilização por entidades públicas.
6.O direito penal português, por sua vez, tem evoluído no sentido de diminuir os casos em que a perda de objectos apreendidos no decurso de processo crime é decretada, o que deveria ser acompanhado, relativamente ao destino dos objectos apreendidos, por uma diminuição das situações em que fosse possível declarar a sua utilização a favor do Estado (cfr. artigos 75º do Código de Processo Penal de 1929, 107º e ss. do Código Penal de 1982 e 110º da nova redacção deste último, em vigor a partir de 1 de Outubro de 1995).
6.1.No entanto, o anterior diploma que regulava a matéria em questão, a Lei nº 25/81, de 21 de Agosto, ao contrário do vigente, só em circunstâncias excepcionais permitia a entrega às entidades públicas dos veículos apreendidos, o que resultava quer através da instituição do mecanismo da caução, quer através de um leque apertado de condições, entre as quais avultava a exigência de despacho judicial para o efeito.
7.A solução consagrada no Direito Português relativamente ao destino dado aos veículos apreendidos em processo crime, privando os legítimos proprietários da sua utilização, mesmo quando estão na posição de terceiros relativamente ao processo judicial, e entregando os veículos à ordem da Direcção-Geral do Património do Estado, para uso e fruição de entidades públicas, antes de ser proferida sentença condenatória, constitui uma limitação do direito de propriedade privada que pode conduzir a situações injustas. Acresce que não parece justificável que os veículos apreendidos na situação prevista na alínea a), do nº 1, do Decreto-Lei nº 31/85, tenham tratamento legal semelhante aos veículos declarados definitivamente perdidos a favor do Estado ou abandonados.
8.Assim, considerando que o diploma em análise “…visa obviar a situação em que se encontram os veículos automóveis apreendidos em processo crime que, permanecendo longos períodos sem utilização, ficam reduzidos pelo tempo e, muitas vezes pela intempérie, a destroços sem utilidade…” em virtude de estarem a aguardar que seja proferida decisão judicial, seria mais correcto encontrar uma solução que não aproveitasse a morosidade dos processos judiciais, que, em última análise, é imputável ao Estado, para servir os interesses do próprio em detrimento da limitação do direito de propriedade dos proprietários dos veículos.
(…)
-promova que os veículos apreendidos sejam, se possível, entregues ao seu proprietário, enquanto depositário ou, quando confiados à guarda do Estado, recaia sobre este o dever de zelar pela sua conservação e,
-assegure que os veículos apreendidos só possam ser colocados à disposição da Direcção-Geral do Património do Estado, para subsequente uso e fruição de entidades públicas, caso tenha sido declarada a sua perda definitiva a favor do Estado. (negritos e sublinhados nossos)
Nestes termos e no mais de direito deve o recurso interposto pelo MºPº ser julgado improcedente e, consequentemente, deve manter-se a decisão recorrida.
Mais se requer seja declarada no caso em apreço a inconstitucionalidade da aplicação do Dec.Lei 31/85 de 25-01.
*
Nesta Relação, a Exmª Procuradora-geral Adjunta, emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.
Foi observado o disposto no nº 2 do artigo 417° do Código de Processo Penal.
*****
B - Fundamentação:
B.1.1 - São elementos de facto relevantes e decorrentes do processo os que constam do relatório que antecede e os seguintes despachos lavrados nos autos, cujo teor é o seguinte:
Despacho judicial de 24/05/2022
«Encontra-se apreendida nos autos a viatura de fls. 170.
Nos autos principais, não se mostra ainda proferido despacho final.
Os autos, encontram-se, ainda em fase de investigação, que ainda não foi terminada, mas não se nos afigura que a viatura seja necessária para fins meramente probatórios, sendo que a viatura já foi objecto de exame directo de fls. 255 e fotografada.
Por outro lado, face aos elementos probatórios carreados para os autos, o veículo automóvel em causa, cujo levantamento de apreensão criminal se requer, foi indiciariamente instrumento (e não constitui somente elemento probatório) dos ilícitos que se mostram indiciariamente perpetrados pelos co-arguidos e em concreto pelo co-arguido AA, subscritor do requerimento de levantamento de apreensão criminal.
Na verdade, tal viatura, de matrícula ..-JN-.. foi utilizada para “barrar” a viatura conduzida pelo ofendido, obrigando-o a imobiliza-la e assim permitindo a sua abordagem, a fim de se concretizarem os actos atinentes ao crime de roubo e de ofensa à integridade física qualificada, conforme factualidade constante do auto de 1º interrogatório judicial de arguido detido.
Porém, não consideramos que exista perigo de continuação da actividade criminosa por referência a um qualquer ilícito que envolva a utilização da viatura automóvel, tanto mais que o Tribunal, em sede de 1º interrogatório, só considerou o perigo de continuação da actividade criminosa por referência a eventuais e futuros crimes de ameaça e coacção.
Por outro lado, o arguido é primário (fls. 290) e pessoa inserida. O contexto dos factos é muito específico. Pretendeu-se um acerto de contas com o ofendido.
E, embora nos termos do Artigo 109º do C.P., tal viatura constitua claramente instrumento da prática de facto ilícito, na nossa perspectiva, não há no caso presente, em face dos factos indiciariamente perpetrados e contexto dos mesmos, perigo sério de tal viatura ser de novo utilizada na prática de futuras infracções.
Por outro lado, apesar de tal contexto, a viatura não põe em causa a segurança das pessoas ou a moral ou ordem públicas, objectivamente considerado o instrumento per si.
Assim sendo, não entendo existir previsibilidade na declaração de perda de tal bem a favor do
Estado, nos termos do Artigo 109º, do C.P., pelo que, determino o levantamento da apreensão criminal de tal bem e sua entrega ao requerente, com respectiva chave e documentos, após trânsito da presente decisão.
Notifique e DN.
Devolvam-se os autos aos serviços do M.P..
..., 26/05/2022 (dia 24/05, elaboração e leitura de decisão instrutória e 25/05, diligências e 1º interrogatório)
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Despacho judicial recorrido de 09/02/2023
«A decisão do Tribunal foi proferida e adquiriu carácter definitivo. Não foi condicionada ao pagamento de qualquer valor.
Não há lugar no caso presente a qualquer direito de retenção nem o arguido teve qualquer intervenção na criação do alegado direito de crédito do Estado que só dependeu da vontade e benefício da PJ.
Mais, o mesmo pode impugnar a factura em causa e o dito alegado direito de crédito, através dos meios processuais próprios.
Assim sendo, cumpra-se a decisão já proferida, restituindo-se ao arguido a viatura em causa, de sua propriedade.
Notifique e DN, oficiando-se a PJ em conformidade, bem como notificando-se o arguido e seu Il. Advogado do presente despacho.
Dez dias decorridos tal ofício e notificação, deverá a PJ informar se procedeu ou não a tal devolução».
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B.2 - Cumpre conhecer.
A questão a apreciar nesta decisão, em função das conclusões de recurso, é a de saber se o despacho recorrido e o despacho que o antecedeu estão dependentes de efectivação de direito de retenção ou de questão prejudicial civil que impeça a restituição do veículo e, logo, do cumprimento da ordem judicial constante dos despachos referidos.
Quanto à questão que está suposta em ambos os despachos judiciais, dispõe o artigo 109.º do Código Penal, sob a epígrafe “Perda de instrumentos e produtos” que são declarados perdidos a favor do Estado os objectos que:
- tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico;
- ou que por este tiverem sido produzidos, quando:
- pela sua natureza
- ou pelas circunstâncias do caso,
- puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos.
Esta é a base teórica que apenas funciona aqui como base de partida para a análise do objecto do recurso. Mas que revela que a declaração de perda de bens apreendidos é a etapa final do processo quanto ao destino desses bens - a ocorrer, em princípio, em sentença ou acórdão após julgamento – de um processo que naturalmente exige regulamentação de procedimentos em fases prévias, designadamente em inquérito, fase preliminar em que nos encontramos nos presentes autos.
Ora, o despacho recorrido é um acto preliminar lavrado após recusa de cumprimento do despacho anterior que declarou a insusceptibilidade de perda do bem – veículo – e sua restituição com base num direito de crédito alegado pelo Estado
No entanto o recurso apresenta alguns mal entendidos que importa esclarecer previamente.
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B.2.1 – O primeiro mal entendido centra-se na afirmação de que o arguido, aqui reclamante tem duas vias para discutir o montante da quantia a pagar/receber por via das supostas benfeitorias realizadas pela PJ (nem sequer estão identificadas nem descriminadas por valor unitário) no veículo que lhe foi apreendido e isso é bem patente nas afirmações iniciais das motivações de recurso quando se assevera que:
Os procedimentos relativos ao apuramento do valor da indemnização são efetuados pela entidade administrativa competente, com base na lei e acrescentamos, só são efetivados depois de transitar a decisão de restituição do veículo e se determinar a cessação da utilidade operacional pela PJ, pois só depois de tal decisão, pode a Direção de Serviços de Gestão Financeira e Patrimonial calcular com exatidão o valor da indemnização a fixar pelo uso da viatura, tendo em conta os quilómetros percorridos.
Desta forma, a decisão do tribunal sobre a revogação da apreensão nunca poderia ter em conta o pagamento de qualquer valor, por o mesmo ainda não ter sido apurado, naquela fase, nem ser possível prever a existência (ou não) de crédito a favor do Estado.
Trata-se de questão distinta, que em nada contende com a decisão já proferida e transitada quanto à revogação da apreensão do veículo, e que deve ser invocada pelo arguido nos termos do procedimento legal regulado no artigo 13º do DL 31/85.
Ora, do que aqui se trata não é de fixar o valor da indemnização pelo uso, previsto de facto no art. 13º do Dec-Lei nº 31/85, de 21-01, sim de encarar coisa diversa, o determinar do valor das benfeitorias eventualmente realizadas pela PJ no bem apreendido.
E estas também estão previstas, em conjunto, no art. 11º do mesmo diploma quando ali se afirma que «Se, por qualquer motivo, for ordenada a restituição de um veículo apreendido, perdido ou abandonado em favor do Estado, será feito o apuramento da desvalorização ocasionada pelo uso por parte do Estado, bem como das benfeitoras que o Estado efectuou durante a utilização».
Ou seja, o cálculo das duas realidades obrigacionistas será feito após a determinação de restituição, sem prejuízo de o interessado poder vir pedir, também, indemnização pelo uso, tal como previsto no artigo 13º do Dec-Lei nº 31/85. Ou seja, três realidades contabilísticas distintas, tendo o proprietário ou legítimo possuidor direito a ver bem quantificada a contabilização das benfeitorias, a desvalorização contabilizada e o direito à indemnização pelo uso.
Trata-se, pois, de mero contrabalanço de créditos e débitos – uma relação jurídica que se estabelece como mera obrigação pecuniária - entre o proprietário do bem e as entidades várias do Estado que se vão estabelecendo ao sabor das marés legislativas.
E ninguém põe em causa que tais obrigações pecuniárias existam.
Nem ninguém põe em causa a possibilidade que o interessado tem, por apenso a esta acção penal e nos termos do artigo 13º do Dec-Lei nº 31/85, de, deduzir pedido impugnando o valor da desvalorização e das benfeitorias realizadas, como claramente se determina nos nsº 1 e 2 do 13º do diploma por referência aos ns. 1 e 2 do art. 11º do mesmo diploma citado.
Por outro lado, no presente apenso o procedimento administrativo de quantificação das benfeitorias é tudo menos claro. Diríamos mesmo obscuro!
Sendo o despacho que declarou a insusceptibilidade de perda do bem de 24/05/2022 e assumindo-se que a quantificação dos créditos e débitos deve ser efectuada após tal despacho (nos termos do artigo 11.º nº 1 do Dec-Lei nº 31/85, se «for ordenada a restituição de um veículo apreendido, perdido ou abandonado em favor do Estado, será feito o apuramento da desvalorização ocasionada pelo uso por parte do Estado, bem como das benfeitoras que o Estado efectuou durante a utilização»), não se percebe como a notificação das benfeitorias não é comunicada aos autos mas tem que ser o arguido a vir juntar a notificação que recebeu da supra dita ESPAP de 07-11-2022, sem que as benfeitorias estejam sequer discriminadas, tornando assim impossível escrutinar do seu acerto.
Para mais as contas assentam nos critérios quantitativos fixados num arqueológico despacho do Secretário de Estado do Tesouro e das Finanças nº 1771/96-SETF de 31-10-1996 (DR 253, de 31-10-1996, pag. 15 192), dispensando-se, assim, todo o procedimento previsto no art. 5º do Dec-Lei nº 11/2007, esquecendo a nomeação de peritos para tal avaliação que, ao que parece, não foi realizada.
Espantoso como despacho anterior revoga um Decreto-Lei da República publicado 26 anos depois e com um novo regime jurídico. Uma figura jurídica desconhecida dos manuais!
Acresce que dos autos não consta que tenha sido feita a avaliação do bem – e sua documentação fotográfica - à data da sua recepção, nos termos do disposto no art. 2º, nº 1 do Dec-Lei nº 31/85 e 5º, nsº 1 a 5 do Dec-Lei nº 11/2207, de 19-01.
Tudo muito obscuro! Mas actualizado … a valores de 1996!!!
Daqui decorre, naturalmente, a ilicitude da invocação de benfeitorias realizadas no veículo.
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B.2.2 – O segundo mal entendido concentra-se no invocar do direito de retenção.
E da análise deste ponto resulta uma perplexidade.
A de saber – jocosamente - se o tribunal Judicial da Comarca da ... – Juízo de Instrução criminal – é devedor ao Estado, designadamente à DGPE, à ESPAP (Entidade de Serviços Partilhados da Administração Pública) ou à Polícia Judiciária para lhe ser oposto um direito de retenção!!! Como tal não é alegado no recurso presume-se que não!!!!
Logo, a análise do caso sub iudicio tem que se iniciar pela análise dos pressupostos de facto e de direito do recurso.
O primeiro passo é, pois, saber o que é o direito de retenção.
Será a possibilidade de recusar cumprir um despacho judicial que contém uma ordem? Ou de arranjar expedientes administrativos que alcancem o mesmo resultado? Não nos parece!
A crer no que dispõe o artigo 754.ºdo Código Civil, o direito de retenção é um privilégio creditório que reconhece ao «devedor que disponha de um crédito contra o seu credor» e que detém um bem do devedor, de recusar a entrega do bem enquanto não for pago o seu crédito, se este resultar de despesas feitas por causa do bem detido ou por danos por ele causados.
Logo, como o Tribunal ... não é detentor ou possuidor do bem, não é sujeito de tal relação obrigacionista, que muito claramente se estabelece entre a DGPE, a ESPAP e o arguido.
Assim, contra a ordem contida num despacho judicial não é invocável – como se fosse privilégio do MP ou do Estado – um direito de natureza civilística que apenas se estabelece – como relação jurídica obrigacionista – entre credor e devedor e que não vincula um tribunal.
Não há direito de retenção pois que não se trata de vulgar credor, sim de um despacho judicial determinativo. Nem há direito de retenção por ser ilícita a detenção do veículo.
Rememoremos que, nos termos do artigo 205º, nº 2 da CRP, «As decisões dos tribunais são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer outras autoridades».
E o despacho judicial que determinou a entrega do bem apreendido é uma ordem judicial e o seu não cumprimento não está a coberto de qualquer direito de retenção, sem se negar que se poderá manter a relação obrigacionista eventualmente resultante de benfeitorias.
E isto quer significar que a ordem tem que ser cumprida, sem prejuízo da eventual manutenção da obrigação, com as consequências penais naturalmente resultantes do incumprimento dessa ordem.
Em suma, a inexistência de direito de retenção que se possa opor a ordem judicial torna ilegítima a recusa com a consequente conclusão de que o bem se mantém na posse da PJ ou da ESPAP de forma ilícita.
E se a Mmª JIC decide, por despacho transitado, que o bem não é susceptível de ser declarado perdido a favor do Estado, a entrega desse bem tem que ser imediata e isso quer significar que o bem deve ser imediatamente restituído, sem prejuízo de a quantificação dos créditos ficar dependente de petição – por apenso aos autos principais - do proprietário do bem.
A subsistência das obrigações será questão a dirimir posteriormente.
Improcede, pois, o recurso.
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C - Dispositivo
Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso.
Sem tributação.
Notifique.
(elaborado e revisto pelo relator antes de assinado).
Évora, 10 de outubro de 2023
João Gomes de Sousa
Beatriz Marques Borges
Ana Bacelar