Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2816/23.0T8GMR.G1
Relator: MARIA JOÃO MATOS
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
INDEFERIMENTO LIMINAR
REQUISITOS
CULPA DO DEVEDOR PESSOA SINGULAR
INSOLVÊNCIA CULPOSA DE PESSOA COLECTIVA
AFECTAÇÃO DO GERENTE PELA QUALIFICAÇÃO CULPOSA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/15/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I. A exoneração do passivo restante tem por fundamento final proporcionar ao devedor um fresh start, ou uma nova oportunidade, de modo a que, liberto do passivo que o vinculava, se reabilite economicamente e se reintegre, plenamente, na vida económica e social.

II. A apreciação liminar do pedido de exoneração do passivo restante pressupõe a avaliação conjunta, e em concreto, dos requisitos negativos previstos para o efeito no art.º 238º, do CIRE, devendo a decisão proferida (de admissão ou de indeferimento liminar) ser fundamentada (de facto e de direito), sob pena de nulidade.

III. Tendo a exoneração do passivo restante carácter excepcional (face ao princípio de que os contratos são para cumprir, conforme art.º 406º, n.º 1, do CC), o devedor insolvente só deverá beneficiar da mesma quando demonstre, ao longo de todo o processamento do incidente, que é merecedor da dita segunda oportunidade.

IV. O referencial de merecimento (da segunda oportunidade em que se traduz a exoneração do passivo restante) verifica-se, grosso modo, desde que não haja dolo ou culpa grave da parte do devedor na situação de insolvência em que se encontra, nomeadamente, por ter agido de forma recta e honesta, cumprindo com o rigor, a transparência e a boa fé que lhe eram exigíveis e acessíveis as obrigações que previamente assumiu; e não ser a insolvência em que, não obstante, depois incorreu devida a contrário modo de proceder seu.

V. Deverá indeferir-se liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, ao abrigo da al. b) do n.º 1 do art.º 238.º do CIRE, quando sejam provados factos concretos que, cumulativamente, demonstrem que o insolvente: nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência (período temporal); por escrito (forma); com dolo ou culpa grave (grau de culpa); prestou informações (comportamento) sobre as suas circunstâncias económicas (objecto); de forma falsa ou incompleta (características); com vista à obtenção de crédito ou de subsídios de instituições públicas ou a evitar pagamentos a instituições dessa natureza (objectivo).

VI. O fundamento de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante previsto na al. e) do n.º 1 do art.º 238.º do CIRE, tem de ser conjugado com todo o regime previsto no art.º 186.º, do mesmo diploma (para o qual aquele remete sem restrições), no qual se fixam os requisitos cumulativos para a qualificação da insolvência como culposa.

VII. Deverá indeferir-se liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, ao abrigo da al. e) do n.º 1 do art.º 238.º do CIRE, quando, cumulativamente, sejam revelados no processo factos concretos que demonstrem toda a probabilidade do insolvente: nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência (período temporal); com dolo ou culpa grave (grau de culpa); ter praticado uma acção ilícita ou omitido ilicitamente a prática de um acto que lhe estava cometido (comportamento); desse modo criando ou agravando a respectiva insolvência (nexo causal).

VIII. O grau de probabilidade exigido para o preenchimento da al e) do n.º 1 do art.º 238.º do CIRE, é maior do que a «mera probabilidade», ainda que forte, conforme resulta do adjetivo «toda», e menor do que um «juízo de certeza»; e, por isso, não bastarão para o efeito meras suposições e conjecturas ou simples indícios, exigindo-se que estes sejam suficientemente fortes para que se possa concluir, com toda a probabilidade, pela futura qualificação da insolvência como culposa.

IX. A previsão de «culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência», contida no art.º 238.º, n.º 1, al. e), do CIRE, reporta-se à actuação do mesmo relativamente ao universo dos seus próprios credores (únicos que serão potencialmente afectados pela exoneração do seu passivo restante), nomeadamente ao cumprimento dos deveres decorrentes de relações (v.g. contratuais) que com eles estabeleceu, e não ao cumprimento de quaisquer outros deveres assumidos para com quaisquer outros credores (não afectados pela sua exoneração).

X. Não deverá indeferir-se liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, ao abrigo da al. e) do n.º 1 do art.º 238.º do CIRE, com o singelo fundamento do insolvente requerente ter sido condenado a indemnizar os credores de uma sociedade comercial pelos créditos não satisfeitos, em prévia insolvência da mesma (qualificada como culposa e com afectação dele próprio), por estarem unicamente em causa deveres que assumiu na qualidade de gerente de uma entidade estranha ao universo dos seus próprios credores pessoais e ao âmbito da exoneração que eventualmente lhe venha a ser concedida.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I - RELATÓRIO

1.1. Decisão impugnada
1.1.1. AA, residente na Travessa ..., na freguesia ..., concelho ... (aqui Recorrente), propôs o presente processo especial de insolvência, pedindo que:

· fosse declarada em estado de insolvência;

· e lhe fosse concedido o benefício de exoneração do seu passivo restante.

Alegou para o efeito, em síntese: ser casada, no regime de separação de bens; ter sido gerente de EMP01... Unipessoal, Limitada, cujo negócio não sobreviveu à pandemia de Covid 19, tendo, por isso, sido declarada insolvente; terem revertido para si própria, como respectiva gerente, as dívidas fiscais da Sociedade; ter a insolvência da mesma Sociedade sido qualificada como culposa e ela própria afectada por essa qualificação, sendo, nomeadamente, inibida por dois anos para o exercício de comércio e condenada a indemnizar os seus credores no montante dos créditos não satisfeitos; ascenderem actualmente as suas dívidas a € 178.741,81; encontrar-se desempregada, sem auferir subsídio de desemprego; não ser proprietária de quaisquer bens (móveis ou imóveis); viver em casa arrendada, pagando uma renda mensal de € 500,00; e não ter, deste modo, rendimentos ou património suficientes para o pagamento das suas dívidas.
Mais alegou estar em condições de beneficiar da exoneração do passivo restante, por preencher todos os requisitos exigidos para o efeito pelos art.ºs 237.º e 238.º, ambos do Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas [1].
Por fim, alegou viver com o seu filho menor, dependendo da ajuda dos seus familiares para fazer face às suas despesas domésticas.

1.1.2. Em 23 de Maio de 2023 foi proferida sentença (aqui se dando por integralmente reproduzida), onde, nomeadamente: se declarou a insolvência da Requerente (AA); se decretou a imediata apreensão de todos os seus bens; e se designou o prazo de trinta dias para reclamação de créditos.

1.1.3. A Administradora de Insolvência nomeada apresentou o relatório previsto no art.º 155.º, do CIRE (aqui se dando por integralmente reproduzido), onde defendeu que: a «insolvente contraiu diversas dívidas, maioritariamente resultantes de reversões fiscais e de outras responsabilidades por ter sido gerente da sociedade comercial EMP01... Unipessoal, Limitada»; a «referida sociedade foi constituída em dezembro de 2018 e com a pandemia COVID 19 ficou impedida de desenvolver a sua atividade normal», o que «gerou incumprimento generalizado das obrigações e consequente encerramento e insolvência da empresa (sentença de declaração de insolvência decretada em ...21)»; no «âmbito desse processo foi considerada a insolvência da sociedade como culposa e afetada pela qualificação a insolvente, como sócia e gerente, de facto e de direito», ficando nomeadamente «responsável também pelo pagamento as dívidas da sociedade, que não venham a ser pagas no âmbito desse processo de insolvência»; e com «o rendimento que aufere e a inexistência de ativos não consegue assumir o pagamento das dívidas, apresentando-se por isso à insolvência».
Considerou, ainda, «que não se verifica no caso em apreço motivos para o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, nos termos do artigo 238º do CIRE», já que, pese embora a sua afectação pela qualificação como culposa da insolvência de EMP01... Unipessoal Lda, a  «insolvente não foi condenada em termos individuais, mas sim na qualidade de gerente da sociedade», «não foi condenada por nenhum dos crimes previstos e punidos nos artigos 227º a 229º do Código Penal» e a «eventual extinção das dívidas que não forem pagas, cumprindo a insolvente com os deveres que lhe venham a ser fixados, nunca se aplicará aos créditos por alimentos, às indemnizações devidas por factos ilícitos dolosos praticados pelo devedor, aos créditos por multas, coimas e outras sanções pecuniárias por crimes ou contra-ordenações e aos créditos tributários e da segurança social».

1.1.4. Realizada a assembleia de credores, a Administradora da Insolvência concluiu pelo encerramento do processo, por insuficiência da massa insolvente.

1.1.5. Devidamente notificados os Credores, apenas a Administradora da Insolvência de EMP01... Unipessoal, Limitada se opôs à concessão do benefício de exoneração do passivo restante.
Alegou para o efeito, em síntese, decorrer da sentença de qualificação como culposa da insolvência de EMP01... Unipessoal, Limitada, de que a aqui Insolvente era gerente, ter sido a mesma condenada a ressarcir os credores daquela, «lesados pela sua atuação na qualidade de gerente», «tendo parte das dívidas (…) reconhecidas naqueles autos, revertido para a esfera da aqui insolvente, designadamente as dívidas ao Estado»; e terem estes factos sido «ocultados pela insolvente nestes autos».

1.1.6. Foi proferido despacho, indeferindo liminarmente o incidente de exoneração do passivo restante, lendo-se nomeadamente no mesmo:
«(…)
Conforme requerimento sob ref. ...09: Decorre da sentença que se junta sob o n.º 1 e cuja “Decisão” se transcreve, que a insolvente, com dolo e culpa grave foi condenada a ressarcir os credores lesados pela sua atuação na qualidade de gerente da ali insolvente, tendo parte das dívidas contraídas e reconhecidas antes da declaração da insolvência e reconhecidas naqueles autos, revertido para a esfera da aqui insolvente, designadamente as dívidas ao Estado. Estes factos foram ocultados pela insolvente nestes autos.
Foi junta certidão da respetiva decisão (ref. ...12) onde se mostra decidido que:
A) Declarar culposa a insolvência de EMP01... Unipessoal, Lda, NIF - ...57, domicílio: Rua ..., ..., ... ....
B) Afectar pela qualificação como culposa, a sócia gerente ( de facto e de direito) AA.
C) Declaro-a inibida para o exercício do comércio pelo período de dois anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa;
D) Determino a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou massa insolvente por parte do referido sócio-gerente.
E) Condeno-a a restituir os bens ou direitos que tenha recebido em pagamento de créditos; 
F) Condeno-a a indemnizar os créditos não satisfeitos desta insolvência nas forças do seu património pessoal.
Esta decisão transitada em julgado em 09-05-2023.
Tal é motivo de indeferimento liminar do pedido de EPR em face do disposto no art. 238º, nº1, als. b) e e) ambos do CIRE, razão pela qual se indefere tal pedido.
(…)»
*
1.2. Recurso
1.2.1. Fundamentos
Inconformada com esta decisão, a Insolvente (AA) interpôs o presente recurso de apelação, pedindo que fosse provido e se revogasse o despacho recorrido.

Concluiu as suas alegações da seguinte forma (aqui se reproduzindo as respectivas conclusões ipsis verbis, com excepção da concreta grafia utilizada e de manifestos e involuntários erros e/ou gralhas de redacção):

1. Vem o presente recurso interposto da decisão proferida em primeira instância que decidiu indeferir liminarmente a exoneração do passivo restante previsto no artigo 235.º do CIRE,

2. pelo facto da insolvente, com dolo e culpa grave ter sido condenada a ressarcir os credores lesados pela sua actuação na qualidade de gerente da empresa EMP01..., Unipessoal, Lda., tendo parte das dívidas contraídas e reconhecidas antes da declaração de insolvência naqueles autos revertido para a esfera da aqui Recorrente,

3. de tais factos terem sido ocultados no âmbito dos presentes autos,

4. e que, tendo em conta a decisão proferida de declarar como culposa com afectação da Recorrente, tal era motivo para indeferimento liminar nos termos do disposto nas als. b) e e) do n.º 1 do art.º 238º do CIRE.

5. Refere o tribunal a quo na fundamentação da sua decisão que indeferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, que a Recorrente, com dolo e culpa grave, ocultou a sua condenação de ressarcir os credores lesados pela sua atuação na qualidade de gerente da empresa da qual foi Sócia Gerente - EMP01... Unipessoal, Lda., tendo parte das dívidas contraídas e reconhecidas antes da declaração da insolvência e reconhecidas naqueles autos, revertido para a esfera da aqui insolvente, designadamente as dívidas ao Estado.

6. Contrariamente ao que é afirmado pelo Tribunal a quo a Recorrente não ocultou tais factos nos presentes autos, resultando os mesmos da sua petição inicial, mais concretamente nos seus artigos 4º, 12º, 15º e 16º.

7. Não existiu, assim, por parte da aqui Recorrente qualquer ocultação de tais factos nos presentes autos de processo pelo que, não podia, o douto Tribunal a quo considerar que a Recorrente ocultou tal informação.

8. Tais informações resultam do Relatório da Sra. Administradora de Insolvência, que em sede de assembleia de credores, reiterou que nada tinha a opor ao deferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante da devedora.

9. É entendimento da Recorrente que não deverá ser confundido o facto da Insolvência da empresa, da qual era gerente, ter sido declarada como culposa (essencialmente pelo facto de não ter sido mantida a contabilidade da empresa organizada), com a insolvência pessoal da aqui Recorrente.

10. Consultando o seu registo criminal, nunca a Recorrente foi condenada por nenhum dos crimes previstos e punidos nos artigos 227.º a 229.º do Código Penal;

11. E nunca a Recorrente ocultou quaisquer informações, designadamente, sobre o facto de ter sido condenada a ressarcir os credores lesados pela sua actuação na qualidade de gerente daquela empresa insolvente.

12. Em lado algum dos presentes autos - nem sequer da fundamentação da decisão de que ora se recorre - resulta que a Recorrente tenha fornecido por escrito informações falsas ou incompletas sobre as suas circunstâncias económicas com vista à obtenção de crédito ou subsídios de instituições públicas ou a fim de evitar pagamentos a instituições dessa natureza, muito menos o tenha feito com dolo ou culpa grave, pelo que também não podia o Tribunal a quo fazer tal consideração.

13. Acresce que inexiste no processo qualquer facto que indicie, com toda a probabilidade, a existência de culpa da Recorrente na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186º do CIRE.

14. Na verdade, a sentença que declarou a insolvência da EMP01..., Unipessoal, Lda como culposa, com afectação da aqui Recorrente, transitou em julgado em 09 de Maio de 2023, tendo a Recorrente requerido a sua apresentação à Insolvência apenas 8 dias após aquela data.

15. A apresentação à Insolvência pessoal da Recorrente ocorreu imediatamente após a prolacção daquela decisão de declarar a afectação da Recorrente, pelo que inexistiu qualquer culpa grave desta no agravamento da sua situação de insolvência, não se verificando sequer o retardamento dessa apresentação à Insolvência por parte da Recorrente.

16. A decisão recorrida apenas dá como assente que decorre da sentença proferida nos autos de insolvência da empresa EMP01..., Unipessoal, Lda, que a Insolvente, com dolo e culpa grave, foi condenada a ressarcir os credores lesados pela sua actuação na qualidade de gerente da ali insolvente, tendo parte das dívidas contraídas e reconhecidas antes da declaração da insolvência e reconhecidas naqueles autos revertido para a sua esfera pessoal, e que tais factos foram ocultados pela Insolvente,

17. sendo que a culpa grave da Recorrente e consequente prejuízo para os credores pela falta de apresentação à insolvência, verifica-se apenas naquela insolvência da sociedade comercial de que a Recorrente era gerente.

18. É entendimento da aqui Recorrente que a culpa grave do devedor na criação ou agravamento da insolvência, a que a alínea e) do n.º 1 do art.º 238.º se refere, terá que ser factualmente concretizada e enquadrada nalguma das situações do art.º 186º, o que, salvo devido respeito, não é feito na douta decisão recorrida,

19. Na certeza de que, nos termos do artigo 342.º do Código Civil, impende sobre os credores e o administrador da insolvência, o respectivo ónus de prova, não cabendo à aqui Recorrente o ónus de fazer prova da inexistência da sua culpa.

20. A exoneração do passivo restante constitui uma medida de protecção do devedor, visando conceder-lhe a possibilidade de lhe vir a ser concedida, mediante o cumprimento de condições previstas na lei, a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao encerramento deste, sendo que a apreciação final da questão, e a concessão ou não do benefício pretendido, terá lugar apenas em momento posterior, como resulta do disposto nos art.ºs 243.º e 244.º do CIRE.

21. O indeferimento liminar do pedido nega logo à partida ao insolvente essa possibilidade, que o legislador quis abrir como uma via para a sua reabilitação económica, com o inerente benefício de o exonerar dos seus débitos restantes no final desse processo, pelo que só pode ser decidido de forma gradual, e apenas nos casos estritos para os quais a lei expressamente o estatuiu.

22. Os factos em que a decisão recorrida apoia a sua decisão resumem-se, expressamente, à ocultação por parte da Insolvente da sua situação económica nos autos - o que como vimos, não se verifica, por a mesma não ter ocultado tais informações - e que a sentença proferida nos autos de insolvência da empresa da qual a Recorrente era gerente decorre que a mesma foi condenada a ressarcir os credores lesados pela sua actuação na qualidade de gerente, com dolo ou culpa grave.

23. Não é, sequer referido, na decisão de que ora se recorre que de tal actuação resultou prejuízo para os credores da Recorrente.

24. Inexiste, salvo o devido respeito que é muito, qualquer elemento factual nos autos, que permita ao Tribunal a quo concluir pelo dolo ou a culpa grave da Recorrente na criação ou agravamento da situação de insolvência, não sendo, igualmente mencionado na douta decisão.

25. Os factos conhecidos nos autos não permitem concluir pela existência de culpa do recorrente na criação e agravamento da sua situação de insolvência, nos termos do art.º 186º do CIRE, de forma a justificar o indeferimento liminar decidido, e de que os factos disponíveis nos autos não indiciam “com toda a probabilidade” a existência dessa culpa nos termos do art.º 186º.

26. É entendimento da Recorrente que estão verificados os pressupostos necessários para o deferimento liminar da exoneração do passivo restante, uma vez que a Recorrente não agiu com culpa nem se acham preenchidos os requisitos previstos no artigo 238º n.º 1 al. b) e e) do CIRE, sendo por esse facto merecedora de uma nova oportunidade.

27. Deve, assim, a douta decisão ser revogada e substituída por outra que defira o pedido de exoneração do passivo restante da Recorrente.

28. Tudo por violação do art.ºs 235.º e 238.º do CIRE, e ainda do art.º 487, n.º 2 do Código Civil.
*
1.2.2. Contra-alegações

Não foram apresentadas quaisquer contra-alegações.
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II - QUESTÕES QUE IMPORTA DECIDIR

2.1. Objecto do recurso - EM GERAL
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (art.ºs 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, ambos do CPC, aqui aplicáveis ex vi do art.º 17.º, do CIRE), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (art.º 608.º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do art.º 663.º, n.º 2, in fine, ambos do CPC, e do art.º 17.º, do CIRE) [2].
Não pode igualmente este Tribunal conhecer de questões novas (que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida) [3], uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais (destinando-se, por natureza, à sua reapreciação/reponderação e consequente alteração e/ou revogação, e não a um novo reexame da causa).
*
2.2. QUESTÕES CONCRETAS a apreciar
Mercê do exposto, e do recurso interposto pela Insolvente (AA), uma única questão foi submetida à apreciação deste Tribunal ad quem:

· Questão única -  Fez o Tribunal a quo uma errada interpretação e aplicação do art.º 238.º, n.º 1, als. b) e e), do CIRE, inexistindo fundamento legal para se indeferir liminarmente o incidente de exoneração de passivo restante requerido pela Insolvente (nomeadamente, por a mesma não ter violado o seu dever de prestação de informações verdadeiras e completas sobre as suas circunstâncias económicas e por não constarem do processo  elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa sua na criação ou agravamento da respectiva insolvência)?
*
III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

O Tribunal a quo proferiu o seu despacho de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante sem previamente declarar quais os factos que considerava provados para esse efeito, ao contrário do que lhe impunha a lei [4].
Essa sua omissão torna a respectiva decisão nula, por falta de fundamentação de facto (conforme art.ºs 613.º, n.º 3 e 615.º, n.º 1, al. b), do CPC), sem que, porém, a referida nulidade tenha sido arguida nos autos; e a mesma não é de conhecimento oficioso (conforme art.ºs 615.º, n.º 4 e 617.º, n.º 1 e n.º 6, ambos do CPC) [5].
Contudo, e atento o disposto no art.º 662.º, n.º 2, al. c), do CPC [6], podia e devia este tribunal ad quem anular oficiosamente, e com tal fundamento, o dito despacho de indeferimento liminar do Tribunal a quo (já que a total omissão de factos consubstancia o grau máximo do vício previsto na sua parte final) [7].
*
Face, porém, ao teor dos autos (nomeadamente, aos documentos autênticos nele insertos, não arguidos de falsos), e com relevo para o conhecimento e decisão do recurso de apelação interposto, encontram-se já assentes os factos suficientes para o efeito.
Assim, passa de seguida este Tribunal ad quem a discriminá-los (de forma lógica e cronológica, conforme a realidade histórica que é suposto retratarem [8]), nos termos do art.º 607.º, n.º 4, II parte, do CPC (aplicável ex vi do art.º 663.º, n.º 2, in fine, do CPC, e do art.º 17.º, do CIRE):

1 - AA foi sócia e gerente de EMP01... Unipessoal, Limitada.

2 - EMP01... Unipessoal, Limitada apresentou-se à insolvência, tendo a mesma sido declarada em 29 de Outubro de 2021, no processo n.º 5604/21...., do Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo de Comércio ..., Juiz ....

3 - Em 24 de Abril de 2023, no apenso pertinente ao incidente de qualificação de insolvência (n.º 5604/21....) de EMP01... Unipessoal, Limitada, foi proferida sentença (que aqui se dá por integralmente reproduzida), transitada em julgado em 09 de Maio de 2023, declarando culposa a respectiva insolvência e afectando por essa qualificação a sócia gerente AA, lendo-se nomeadamente na mesma:
«(…)
Na verdade, apurou-se que a sociedade há muito que não possuía contabilidade pelo que torna-se impossível saber a real situação financeira da empresa, pelo que também não sabemos se a facturação foi correctamente processada, nem como a sociedade ou o seu património foi gerido durante tal período.
Assim inexistindo contabilidade, deixa de haver informação relevante para se compreender de que forma a sociedade insolvente exerceu a sua actividade, nomeadamente, qual o seu volume de negócios, qual a proveniência das suas receitas, qual o montante total das suas receitas, quais os custos que suportou para o exercício da sua actividade, qual o seu activo e que destino foi dado ao mesmo, qual o seu passivo e qual a sua origem. Isto torna incompreensível a real situação financeira e contabilística da empresa.
Pelo contexto descrito e factos provados, sem necessidade de mais considerações, não parece haver dúvidas que a insolvente e a sua legal representante agiram em prejuízo dos seus credores, ou pelo menos de alguns.
Por fim e quanto à contabilidade também resulta dos factos apurados que a contabilidade da insolvente não espelhava a realidade da mesma, uma vez que o saldo de caixa era desconforme com a realizada, nada tendo sido apreendido, preenchendo assim a alínea h) do n.º 2 do art. 186º do CIRE, com prejuízo para os credores, prejudicando a leitura quanto às possibilidades de recuperação da sociedade.
Quanto à falta de apresentação, também a insolvente não conseguiu ilidir a presunção existente, atentos os factos que resultam como provados, nesse âmbito.
A insolvente e a respetiva gerente sabiam, pelo menos desde início do ano 2020, se não antes, que se verificava o incumprimento generalizado das suas obrigações vencidas e que não conseguiria cumprir as mesmas.
Não obstante a insolvente continuou a sua actividade gerando prejuízo para a massa insolvente, nomeadamente com a criação de novos créditos.
Por tudo o exposto, e mais uma vez socorrendo-nos da factualidade dada como demonstrada, outra conclusão não é de retirar que a insolvência da referida sociedade terá de ser qualificada como culposa e afectada pela qualificação a então sócia gerente AA.
Consequentemente e para os efeitos do art. 189º n.º 2 do CIRE:

A) Declarar culposa a insolvência de EMP01... Unipessoal, Lda, NIF - ...57, domicílio: Rua ..., ..., ... ....

B) Afectar pela qualificação como culposa, a sócia gerente ( de facto e de direito) AA.

C) Declaro-a inibida para o exercício do comércio pelo período de dois anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa;

D) Determino a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou massa insolvente por parte do referido sócio-gerente.

E) Condeno-a a restituir os bens ou direitos que tenha recebido em pagamento de créditos;

F) Condeno-a a indemnizar os créditos não satisfeitos desta insolvência nas forças do seu património pessoal.
(…)»

4 - Em 18 de Maio de 2023 AA apresentou-se à insolvência, pedindo para ser reconhecido esse seu estado e para lhe ser concedido o benefício da exoneração do passivo restante, lendo-se nomeadamente na sua petição inicial:
«(…)
4. Sucede que, a Apresentante contraiu diversas dívidas, a maior parte delas resultantes de reversões fiscais por ter sido gerente da sociedade comercial EMP01... Unipessoal, Lda, NIF ...57.

5. Na verdade, a referida sociedade foi criada em Dezembro de 2018, sendo que com o surgimento da pandemia da COVID-19, ficou impedida de exercer a sua atividade,

6. entrando numa crise económico-financeira que levou ao seu encerramento, e consequente apresentação e declaração de Insolvência daquela empresa.

7. Assim, e por falta de cumprimento das obrigações fiscais daquela empresa, tais dívidas fiscais reverteram para a Apresentante, por ser, naquela data a gerente da sociedade,

8. não tendo a Apresentante conseguido proceder ao pagamento de tais dívidas.

9. Assim, foram intentadas várias execuções contra a aqui Apresentante, para recuperar coercivamente os valores em dívida, tudo conforme decorre da lista de ações e execuções pendentes contra a Apresentante, que ora se junta sob o documento n.º ..., ... e ....

10. Sucede que, apesar da Requerente ter tentado, por diversas vezes negociar o pagamento dos montantes em dívida naquelas execuções, a verdade é que, nunca foi possível alcançar qualquer acordo.

11. Não tendo a Apresentante conseguido proceder ao pagamento de tais dívidas.

12. Acresce que, no âmbito da declaração de insolvência daquela sociedade EMP01... Unipessoal, Lda, NIF - ...57, foi declarada a inibição da aqui Apresentante, para o exercício do comércio, pelo período de dois anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa,

13. Atualmente as dívidas da Apresentante ascendem ao montante de 178.741,81 € (cento e setenta oito mil e setecentos e quarenta e um euros e oitenta e um cêntimos) que constitui, assim, o seu passivo,

14. Tudo conforme melhor resulta da lista dos credores e lista dos 5 maiores credores que se junta e cujo conteúdo, por brevidade, aqui se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos – doc. n.º ... e ....

15. Sucede que, conforme supra se refere, no âmbito da declaração da insolvência como culposa da sociedade comercial EMP01... Unipessoal, Lda, foi a aqui Apresentante condenada a indemnizar os credores da devedora, no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças dos respetivos patrimónios, sendo tal responsabilidade solidária,

16. Pelo que, às dividas já descritas na relação de credores, acrescerão a dos credores daquela sociedade que não tiverem tido os seus créditos satisfeitos.

17. De facto, os rendimentos da Apresentante são manifestamente insuficientes para liquidar o supra mencionado passivo,
(…)»

5 - AA instruiu a sua petição inicial com diversos documentos, nomeadamente com a declaração prevista no art.º 24.º, n.º 1, al. c), do CIRE, que aqui se dá por integralmente reproduzida e onde nomeadamente se lê:
«(…)
DECLARAÇÃO NOS TERMOS DO ART. 24º DO CIRE

AA, vem respeitosamente informar que nos últimos três anos foi gerente da empresa EMP01..., Confeções Unipessoal, Lda., até ao momento de encerramento da mesma, data em que ficou em situação de desemprego.
Mais informa não ser titular de qualquer estabelecimento.
No que se refere às causas da situação em que se encontra, tal estado deveu-se ao facto da empresa da qual a Requerente era gerente - EMP01... Unipessoal, Lda - ter contraído diversas dívidas junto do Instituto da Segurança Social e Autoridade Tributária, dívidas essas que reverteram para a Requerente.
A verdade é que a Requerente não consegue liquidar tais dívidas, nem existe por parte da Requerente qualquer possibilidade de solver tais dividas, não só por dificuldades financeiras, como por ausência de património.
(…)»

6 - Em 23 de Maio de 2023 foi proferida sentença (aqui se dando por integralmente reproduzida), onde, nomeadamente: se declarou a insolvência da Requerente (AA); se decretou a imediata apreensão de todos os seus bens; e se designou o prazo de trinta dias para reclamação de créditos.
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IV - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

4.1. Exoneração do passivo restante 
4.1.1. A que realidade é que atende (que ponderação lhe subjaz)
A exoneração do passivo restante é um instituto próprio, e gerado, pela economia moderna, de mercado, a qual necessita de funcionar permanentemente, isto é, de produzir ininterruptamente.
Contudo, esta produção ininterrupta só pode ser alimentada se, do outro lado, houver quem consuma incessantemente. Ora, o consumo vive intimamente ligado à concessão de crédito [9], actividade que se faz com risco (antecipado e calculado pelos credores). Logo, o sobreendividamento é um resultado, não só eventual, como previsível, da dita concessão de crédito [10].
Vindo a liquidação do património do devedor (a garantia geral dos seus credores - art.º 601.º, do CC) a revelar-se insuficiente para o cumprimento integral das suas obrigações, poderão os respectivos credores, em caso de regresso de melhor fortuna, accionar o insolvente nos 20 anos do prazo ordinário de prescrição dos seus créditos (art.º 309.º, do CC); e, assim, pode ser inviabilizada a sua reabilitação económica (cruzando-se na mesma quer a dignidade da pessoa humana, quer o interesse no desenvolvimento da economia, que nomeadamente pressupõe o contributo do maior número de elementos financeiramente saudáveis [11]).

Com efeito, foi-se reconhecendo que:
(i) a insolvência pode ter causas que escapam ao controlo do devedor, sobretudo ao nível das perdas de rendimento, sejam estas resultantes de factores pessoais (v.g. desemprego, doença, divórcio - nos trabalhadores subordinados - ou fracasso de uma iniciativa empresarial -, nos trabalhadores independentes), sejam resultantes do quadro macro-económico (v.g. crise do subprime, pandemias, guerras regionais) [12]. A própria realização descontrolada de despesas (v.g. hábitos de consumo desenfreados) foi muitas vezes demasiado facilitada, senão mesmo induzida, por campanhas agressivas, senão mesmo enganadoras, de marketing [13].

(ii) o desenvolvimento da economia (na lógica de ininterrupto funcionamento do mercado) pressupõe o contributo do maior número de elementos financeiramente saudáveis; e, por isso, também lucraria com a adição, e não com a exclusão por um tempo demasiado longo, do consumidor insolvente.

(iii) a dignidade da pessoa humana imporia que a reabilitação económica do insolvente (recuperação da sua liberdade económica, da sua produtividade e, em última análise, do seu bem-estar) não ficasse postergada ad eternum.

Decidiu-se, então, conceder ao devedor insolvente uma nova oportunidade, por meio de um importado fresh start (nascido no ordenamento jurídico norte-americano), por forma a que pudesse começar de novo, liberto das suas anteriores dívidas. O princípio geral nesta matéria é, então, o de poder ser concedida ao devedor pessoa singular a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência [14].
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4.1.2. Definição
Lê-se, então, no art.º 235.º, do CIRE, que se o «devedor for uma pessoa singular pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao encerramento deste, nos termos do presente capítulo».
Logo, só as pessoas singulares podem requerer a concessão do benefício de exoneração do passivo [15]; mas todas as pessoas singulares o podem fazer (v.g. consumidores, comerciantes, profissionais independentes ou liberais).

Mais se lê, nos art.º 239.º e 245.º, do CIRE, que, encerrado o processo de insolvência sem que os credores do insolvente pessoa singular (cujos créditos sejam anteriores à data da declaração de insolvência) tenham logrado o seu pagamento (ou logrado o seu pagamento total), inicia-se um novo período, de três anos, em que os ditos credores têm uma nova oportunidade para serem pagos, pela cedência pelo devedor do rendimento própria que a lei considera disponível para o efeito; e, decorrido esse período (haja, ou não, pagamento integral dos créditos sobre a insolvência), verifica-se  extinção da quase generalidade dos créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que a exoneração do passivo restante seja concedida.
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Vem-se, assim, defendendo que a exoneração do passivo restante é um instrumento que, simultaneamente: liberta o devedor do estigma da insolvência,  reabilitando-o e reintegrando-o plenamente na vida económica (evitando que fique ad eternum marginalizado, social e economicamente); beneficia a transparência e o funcionamento da economia em geral, nomeadamente evitando o recurso a procedimentos maliciosos (como o recurso a testas de ferro do devedor, na tentativa deste sobreviver economicamente),  aumentando a disponibilidade dos credores para negociarem (quer a satisfação dos seus créditos, quer a recuperação do devedor), recuperando para a economia um novo agente (uma vez que o devedor não exonerado tem o seu acesso ao crédito limitado, o que deixará de suceder após alcançar aquele benefício,  propiciando-se a sua contribuição futura no desenvolvimento da economia) e estimulando a concessão responsável do crédito por parte das entidades bancárias e financeiras; e atende aos interesses dos credores (renovando a possibilidade de pagamento - ainda que parcial - dos créditos não satisfeitos na pendência do processo de insolvência) [16].
Afirma-se, por isso, que não «se pense (…) que o CIRE contém um regime que é um brinde ao incumpridor» (Alexandre de Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, 2.ª edição, Almedina, 2016, pág. 584), já que, a exoneração do passivo restante balancearia, simultânea e equilibradamente, quer o interesse do devedor (que poderá ficar, definitivamente, exonerado do seu passivo restante - face ao termo do processo de insolvência), quer os interesses dos seus credores (que aqui encontram uma «dupla oportunidade» de satisfação dos seus créditos) [17].

Ora, dir-se-á que, defendendo uns que o instituto se encontra estabelecido tendo em conta um razoável benefício dos credores [18], e outros tendo em conta interesses não só dos devedores como ainda inapropriáveis por nenhum sujeito ou grupos de sujeitos [19], entendemos que nele se privilegiaram sobretudo os interesses dos devedores [20].
Com efeito, é indiscutível que na exoneração do passivo restante há uma efectiva «colisão entre direitos ou valores constitucionalmente protegidos; de um lado, a proteção constitucional dos créditos no quadro (…) da proteção geral do património; do outro, a proteção da liberdade económica e do direito ao desenvolvimento da personalidade, e, também, o princípio, próprio do Estado Social de Direito, da proteção social dos mais fracos (neste caso, tendencialmente o devedor insolvente)»; mas é igualmente indiscutível que a solução alcançada passou por um sacrifício não desproporcionado do interesse do credor na satisfação do seu crédito (Paulo Mota Pinto, «Exoneração do passivo restante: Fundamento e constitucionalidade», III Congresso de Direito da Insolvência, Almedina, 2015, págs. 179, 187 e 194).
Só assim se compreende que a exoneração do passivo restante possa ser requerida em casos de insuficiência da massa insolvente, conforme art.º 39.º, n.º 8, do CIRE [21], ou sê-lo por insolventes sem qualquer rendimento actual susceptível de ser cedido aos seus credores [22]; e se assista, na generalidade das situações pendentes em juízo, a uma inexistente, ou irrisória, satisfação remanescente (durante o período de cessão) dos créditos sobre a insolvência insatisfeitos no prévio encerramento do processo de insolvência [23].
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4.1.3. Pressuposto - Merecimento do devedor (na concessão da segunda oportunidade)
Contudo, ainda assim e conforme já se deixou implícito, o nosso instituto da exoneração do passivo restante não assenta num modelo de puro fresh start , mas antes no modelo derivado do earned start ou da reabilitação [24]: o devedor, pessoa singular, declarado insolvente não pode ser exonerado das suas dívidas em quaisquer circunstâncias, dado que, em princípio, os contratos são para cumprir, conforme art.º 406º, n.º 1, do CC (assumindo o instituto um carácter excepcional); e, por isso, o devedor insolvente só será exonerado das ditas dívidas quando demonstre, ao longo de todo o processamento do incidente, que é merecedor da dita segunda oportunidade (grosso modo, desde que não haja dolo ou culpa grave da sua parte na situação em que se encontra, isto é, por ter agido de forma recta e honesta, nomeadamente cumprindo com o rigor, a transparência e a boa fé que lhe eram exigíveis e acessíveis as obrigações que previamente assumira, não sendo a insolvência em que, não obstante, depois incorreu devida a contrário modo de proceder seu) [25].
Esta avaliação do seu merecimento é feita em três momentos chave [26], nomeadamente: na apreciação liminar do seu pedido; durante os três anos do período de cessão; e no final do mesmo, ao ser proferida a decisão final do incidente (podendo ainda, mas com carácter eventual, ocorrer na posterior revogação da exoneração antes concedida, conforme art.º 246.º, n.º 1, do CIRE).
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Precisando

i) no despacho inicial (de admissão ou indeferimento liminar) - preenchimento inicial de determinados requisitos, grosso modo, o não ter prejudicado os credores com a sua pretérita actuação (nomeadamente, não ter falseado nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência as informações pertinentes à sua situação económica por forma a obter crédito, ter-se apresentado prontamente à insolvência, não ter culposamente criado ou agravado a sua situação de insolvência, e não ter violado, com dolo ou culpa grave, os deveres de informação, apresentação e colaboração que o CIRE lhe impunha no decurso do respectivo processo de insolvência).

Lê-se, assim, no art.º 236.º, do CIRE, que o «pedido de exoneração do passivo restante é feito pelo devedor no requerimento de apresentação à insolvência ou no prazo de 10 dias posteriores à citação» (n.º 1); e do requerimento deve constar «expressamente a declaração de que o devedor preenche os requisitos» exigidos para o efeito, discriminados nos art.ºs 238.º e seguintes (n.º 3) [27].

ii) durante o período de cessão - sujeição a/cumprimento de várias obrigações fundamentais, discriminadas no art.º 239.º, do CIRE (nomeadamente, de exercer uma profissão remunerada, de entregar ao fiduciário a parte dos rendimentos que receba que seja objecto da cessão, de não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, informando prontamente sobre os mesmos ou sobre o seu património [28], e de não fazer quaisquer pagamentos ou a não criar quaisquer vantagens especiais em benefício de qualquer dos credores da insolvência [29]) e cujo incumprimento (comportamentos dolosos ou gravemente negligentes do devedor relacionados com a insolvência ou com a desprotecção e violação dos direitos dos credores, com efectivo prejuízo para estes) poderá conduzir à cessação antecipada do incidente.
Das mesmas resulta que, para além dos específicos deveres de apresentação, informação e colaboração, o devedor insolvente está ainda obrigado aos deveres gerais de cooperação e de actuação com boa-fé processual.

Lê-se, assim, nos art.ºs 239.º, n.º 1 e n.º 2, e 241.º, n.º 1, al. d), ambos do CIRE, que, não «havendo motivo para indeferimento liminar, é proferido despacho inicial, na assembleia de apreciação do relatório, ou nos 10 dias subsequentes», determinando que, durante os três anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado período de cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, neste capítulo designada fiduciário, escolhida pelo tribunal», a quem cabe afectar «os montantes recebidos, no final de cada ano que dure a cessão», aos «credores da insolvência, nos termos prescritos para o pagamento aos credores no processos de insolvência» [30]; e, no art.º 242.º, do CIRE, que durante o período de cessão, não são «permitidas quaisquer execuções sobre os bens do devedor destinadas à satisfação dos créditos sobre a insolvência», nem qualquer actuação que conceda vantagens especiais a um credor sobre outro [31].
Mais se lê, no art.º 243.º, n.º 1, al. a), do CIRE, que, antes «ainda de terminado o período de cessão, deve o juiz recusar a exoneração, a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência, se estiver ainda em funções, ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, quando» este «tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência».

iii) na decisão final (de concessão ou recusa) - no termo desse período, tendo o devedor cumprido, para com os credores, todos os deveres que sobre ele impediam, é proferido despacho de exoneração, que liberta o devedor das eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento [32].

Lê-se, assim, no art.º 244.º, do CIRE, que, não «tendo havido lugar a cessação antecipada, ouvido o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência, o juiz decide, nos 10 dias subsequentes ao termo do período da cessão, sobre a respetiva prorrogação, nos termos previstos no artigo 242.º-A, ou sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante do devedor» (n.º 1); e a «exoneração é recusada pelos mesmos fundamentos e com subordinação aos mesmos requisitos por que o poderá ter sido antecipadamente, nos termos do artigo anterior» (n.º 2).
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4.1.4. Efeitos
O despacho proferido no final do período da cessão, concedendo a exoneração, liberta o devedor das eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento, mesmo que os correspondentes créditos não tenham sido reclamados e verificados [33].
Contudo, esta exoneração não é absoluta.

Com efeito, lê-se no art.º 245.º, n.º 1, do CIRE, que, vindo a ser concedida a exoneração do passivo restante, «importa a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida, sem excepção dos que não tenham sido reclamados e verificados» [34]. Logo, os credores que não tenham logrado a satisfação dos seus créditos verão os mesmos ficarem extintos, não podendo mais propor qualquer acção judicial (declarativa ou executiva) com vista à sua satisfação, restando-lhes apenas a possibilidade de requererem a revogação da exoneração do passivo restante (se para tanto existir fundamento).

Mais se lê, no art.º 245.º, n.º 2, do CIRE, que a «exoneração não abrange, porém», os «créditos por alimentos», as «indemnizações devidas por factos ilícitos dolosos praticados pelo devedor, que hajam sido reclamados nessa qualidade», os «créditos por multas, coimas e outras sanções pecuniárias por crimes ou contra-ordenações» e os «créditos tributários e os da segurança social» [35]. Logo, os credores titulares de tais créditos, não extintos por força da exoneração concedida, conservam o seu direito de acção judicial contra o devedor após o termo do incidente, podendo, por isso, promover a cobrança coerciva do seu crédito.
Atendeu-se, neste elenco de créditos excluídos da exoneração, à particular natureza dos interesses dos seus titulares, que o legislador entendeu assegurar; e todos eles têm como elemento comum a sua fonte legal, isto é, os seus credores são-no involuntariamente, não tendo podido avaliar previamente o devedor com que depois se relacionaram [36].
Precisa-se apenas, a propósito das «indemnizações devidas por factos ilícitos dolosos praticados pelo devedor, que hajam sido reclamadas nessa qualidade» (isto é, no próprio processo de insolvência) - em que se valorou a especial censurabilidade das condutas geradoras das obrigações de indemnização -, que, estando aqui incluídos quer os ilícitos extracontratuais, quer os ilícitos contratuais, há quem proponha uma interpretação restritiva do preceito, por forma a excluir estes últimos [37].

Contudo, e não obstante o carácter excepcional da norma de exclusão dos créditos não abrangidos pela exoneração (sendo, por isso, o seu elenco taxativo) [38], parte da doutrina defende que, ainda assim, se consagraram exclusões muitos amplas, capazes de diminuir o interesse da exoneração, em particular no que tange aos créditos tributários [39] (o que, porém, a prática/estatística dos tribunais não tem confirmado [40]).
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4.2. Indeferimento liminar (do pedido de exoneração do passivo restante)
4.2.1. Em geral
Recorda-se que se lê no art.º 236.º, do CIRE, que o «pedido de exoneração do passivo restante é feito pelo devedor no requerimento de apresentação à insolvência ou no prazo de 10 dias posteriores à citação» (n.º 1), pelo que só ele tem legitimidade para o efeito; e do requerimento deve constar «expressamente a declaração de que o devedor preenche os requisitos» exigidos para o efeito, discriminados nos art.ºs. 238.º e seguintes (n.º 3).
Precisa-se, porém, que o despacho liminar visa apenas aferir da existência de condições mínimas para aceitar o requerimento que contém o pedido de exoneração formulado pelo devedor: o juízo de mérito que então se formula destina-se tão somente a averiguar se o devedor merece que lhe seja conferida uma nova oportunidade (requisitos de admissão do pedido),  e não sobre se lhe deverá ser, ou não, concedida a exoneração (requisitos de exoneração definitiva), decisão esta,  necessária e exclusivamente, a proferir findo o período de cessão.
Compreende-se, por isso, que se afirme que «não pode deixar de se associar o despacho inicial e a subsequente abertura do período de cessão à concessão da liberdade condicional por bom comportamento - uma espécie de “período experimental”, em que, se tudo correr bem, terá lugar a libertação definitiva do sujeito» (Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, Fevereiro de 2021, pág. 616, com bold apócrifo) [41].
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Mais se lê, no art.º 238.º, n.º, 1, do CIRE (preceito inovador, face ao regime anterior), que o «pedido de exoneração é liminarmente indeferido se» o insolvente tiver actuado de forma subsumível a qualquer uma das suas alíneas, recorda-se e grosso modo, ter prejudicado os credores com a sua pretérita actuação (nomeadamente, ter falseado nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência as informações pertinentes à sua situação económica por forma a obter crédito, ter-se apresentado tardiamente à insolvência, ter culposamente criado ou agravado a sua situação de insolvência, e ter violado, com dolo ou culpa grave, os deveres de informação, apresentação e colaboração que o CIRE lhe impunha no decurso do respectivo processo de insolvência) [42].
Logo o indeferimento liminar [43] assenta em comportamentos de natureza substantiva (com excepção do previsto na al. a) do n.º 1 do art.º 238.º do CIRE, que também tem incidências processuais, por se reportar ao prazo em que deve ser formulado o pedido), que justificam a não concessão da exoneração  [44]; e considera-se que o elenco legal destas causas de indeferimento liminar é taxativo, e não meramente indicativo [45].

Precisa-se, ainda, que estando em causa o direito do devedor insolvente à exoneração do passivo restante, entende-se maioritariamente que não é ele quem deverá fazer prova dos requisitos previstos no art.º 238.º, n.º 1, do CIRE (bastando-lhe a mera declaração da sua verificação).
Caberá, sim, aos seus credores, ou ao administrador de insolvência (que o n.º 2 do mesmo preceito impõe que sejam previamente ouvidos), o ónus de invocarem e demonstrarem que os ditos requisitos não se verificam, como circunstâncias impeditivas do direito daquele à dita exoneração [46].
Contudo, não deixa também aqui de ser aplicável o princípio do inquisitório, consagrado no art.º 11.º, do CIRE, que permite que, no incidente de exoneração do passivo restante, o juiz possa fundamentar a sua decisão em factos que não tenham sido alegados pelas partes, ou cuja prova haja resultado da sua própria actividade [47]
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4.2.2. Em particular
4.2.2.1. Informações sobre as circunstâncias económicas do devedor (art.º 238.º, n.º 1, al. b), do CIRE)
Pormenorizando uma das causas de indeferimento liminar do incidente de exoneração do passivo restante (a primeira reclamada e sindicada nos autos), lê-se no art.º 238.º, n.º 1, al. b), do CIRE, que o «pedido de exoneração é liminarmente indeferido se» o «devedor, com dolo ou culpa grave, tiver fornecido por escrito, nos três anos anteriores à data do início do processo de insolvência, informações falsas ou incompletas sobre as suas circunstâncias económicas».
É, assim, necessário que as informações tenham sido fornecidas pelo devedor: nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência (período temporal); por escrito (forma), por razões de segurança jurídica, mas não necessariamente assinadas pelo seu autor [48]; com dolo ou culpa grave (grau de culpa); sobre as suas circunstâncias económicas (objecto);  de forma falsa ou incompleta (características); com vista à obtenção de crédito ou de subsídios de instituições públicas ou a evitar pagamentos a instituições dessa natureza (objectivo).
Dir-se-á estarem aqui em causa condutas com relevante grau de censurabilidade (revelada pela exclusão da culpa leve, pela ponderação ínsita à prestação por escrito de informações e pela natureza falsa ou incompleta das mesmas), em que o devedor criou ou manteve para si próprio uma situação económica precária (resultante as mais das vezes do seu endividamento), dela beneficiando em prejuízo dos seus credores; e, por isso, sendo injusto que, novamente à custa destes, fosse depois premiado com a posterior exoneração do seu passivo restante.
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4.2.2.2. Culpa do devedor na criação ou agravamento da respectiva insolvência (art.º 238.º, n.º 1, al. e), do CIRE)
Pormenorizando uma outra das causas de indeferimento liminar do incidente de exoneração do passivo restante (a segunda reclamada e sindicada nos autos), lê-se no art.º 238.º, n.º 1, al. e), do CIRE que o «pedido de exoneração é liminarmente indeferido se» constarem «já no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186.º».

Começa-se por reconhecer que este é, «aliás, um dos fundamentos mais perigosos de toda a lista [de possíveis causas de indeferimento liminar do incidente]. Como é fácil de ver, o juiz irá decidir sobre o pedido de exoneração do passivo restante sem ter ainda decidido que a insolvência é culposa» (Alexandre de Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, 2.ª edição, Almedina, 2016, pág. 592) [49].
Dir-se-á mesmo que a dificuldade acresce quando esteja em causa a aplicação da cláusula geral prevista no art.º 186.º, n.º 1, isto é, sem que o comportamento do devedor insolvente preencha alguma das alíneas do seu n.º 2 (o que, a acontecer, faz - de imediato e de forma inilidível - presumir o carácter culposo da insolvência) ou do seu n.º 3 (o que, a acontecer, faz apenas - e de forma ilidível - presumir a culpa grave do autor do incumprimento dos deveres nele previstos) [50].

Precisa-se, a propósito, que a remissão que a al. e) do n.º 1 do art.º 238.º do CIRE faz para o art.º 186.º do mesmo diploma, sem qualquer restrição, importa a consideração de todo o seu normativo, incluindo os respectivos n.º 2 e n.º 3 [51]; e que estando as suas previsões pensadas primacialmente para insolvente pessoa colectiva, o seu n.º 4 estende-as ao insolvente pessoa singular, onde a isso não se opuser a diversidade das situações [52].

Enfatiza-se, porém, que o «juízo que se exige» aqui «é de mera probabilidade, ainda que forte, ideia que é transmitida pelo uso do adjetivo “toda.” Significa isto que se, por um lado, não bastam para preencher esta alínea meras suposições ou conjeturas, por outro, não se exige um juízo de certeza semelhante ao que deve ser observado no momento em que o juiz profere a sentença de qualificação da insolvência» (Ac. da RG, de 12.10.2023, Gonçalo Oliveira Magalhães, Processo n.º 172/22.3T8MDL.G1, com bold apócrifo) [53]. Pode, assim, afirmar-se que não bastam indícios; esses indícios têm que ser fortes ao ponto de permitirem concluir, com toda a probabilidade, pela efetiva verificação dessa situação (Ac. da RC, de 19.10.2020, Maria Catarina Gonçalves, Processo n.º 6505/19.2T8CBR-E.C1).
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Particularizando (face à remissão operada pela al. e) do n.º 1 do art.º 238.º do CIRE), lê-se no art.º 186.º, n.º 1, do mesmo diploma, que a «insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência».
Consagra-se aqui uma «cláusula geral aberta» (Ana Prata, Jorge Morais Carvalho e Rui Simões, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado); e a mesma exige, para a qualificação da insolvência como culposa, não apenas uma conduta dolosa ou com culpa grave do devedor e seus administradores, mas também um nexo de causalidade entre essa conduta e a situação de insolvência, consistente na contribuição desse comportamento para a criação ou agravamento desta situação.
Logo, surgem como requisitos cumulativos da qualificação de uma insolvência como culposa: (i) o facto inerente à actuação, por acção ou por omissão, do devedor ou dos seus administradores, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência [54]; (ii) a ilicitude desse comportamento; (iii) a culpa qualificada do seu autor (dolo ou culpa grave - cujas noções respectivas serão dadas pelo direito em geral -, estando assim excluída a culpa simples); (iv) e o nexo causal entre aquela actuação e a criação ou o agravamento da situação de insolvência [55].
Precisa-se, ainda, que se vem entendendo «que há um agravamento de tal estado quando o devedor não se comporta como um bónus pater famílias, não havendo qualquer esforço da sua parte para o não agravamento do seu passivo e da sua situação económica» (Letícia Marques Costa, A Insolvência de Pessoas Singulares, Almedina, Teses, Maio de 2021, pág. 129).

Vêm sendo considerados como comportamentos enquadráveis na al. e) do n.º 1 do art.º 238.º, do CIRE (justificativos do indeferimento liminar da exoneração do passivo restante), por terem sido adoptados nos três anos anteriores ao reconhecimento da insolvência e a terem originado ou agravado: o negócio em bolsa de acções cotadas, praticado fora dos circuitos comerciais e legais (Ac. da RP, de 09.01.2006, Pinto Ferreira, Processo n.º 0556158); gastos desconformes com a situação económica (pessoal e familiar) do devedor, incluindo a utilização sumptuária de cartões ou linhas de crédito (Ac. da RP, de 08.06.2010, João Proença, Processo n.º 243/09.1TJPRT-D.P1); a contracção de créditos, muito para além das respectivas possibilidades de pagamento, incluindo a contracção de novos apenas para pagamento dos anteriores (Ac. da RC, de 22.03.2011, Carlos Gil, Processo n.º 1651/10.0TBFIG-C.C1), a contracção de dívidas em nome próprio, mas como “testa de ferro” de familiares (Ac. da RC, de 04.10.2011, Teles Pereira, Processo n.º 306/11.3TBTMR.C1) e a prestação de avais a favor de terceiros (Ac. da RG, de 15.09.2016, António Beça Pereira, Processo n.º 273/14.1TBCBT.G1); a realização de negócios, ou a adopção de condutas contratuais, desfavoráveis aos interesses próprios do devedor/dos seus credores, incluindo a cedência de um crédito por € 30.000,00 que permitiu aos cessionários receber mais de € 40.000,00 (Ac. da RP, de 28.09.2010, João Ramos Lopes, Processo n.º 995/09) e o incumprimento de dois contratos promessa de compra e venda de imóvel para habitação, com a perda do sinal prestado (Ac. da RL, de 03.11.2011, Isoleta Costa, Processo n.º  653/11.4TJLSB-A.L1-8); a frustração de fontes de rendimento próprio, incluindo o despedimento com justa causa, por o insolvente se ter apropriado do dinheiro da entidade patronal (Ac. da RE, de 26.01.2011, António M. Ribeiro Cardoso, Processo n.º 725/10.2TBOLH.E1) e a cedência de estabelecimento de café, única fonte de rendimentos, em circunstâncias não apuradas, ficando o insolvente desempregado e a viver da ajuda de familiares (Ac. da RE, de 12.05.2011, António M. Ribeiro Cardoso, Processo n.º 289/10.7TBRDD-B.E1); a venda de património a terceiros, sem afectação do produto da venda ao pagamento dos seus credores, incluindo a alienação de todo o património (Ac. da RC, de 11.02.2014, Arlindo Oliveira, Processo n.º 985/12.4T2AVR.C1), a venda de imóvel (Ac. da RP, de 07.12.2018, João Proença, Processo n.º 2762/15.1T8STS-E.P1), a venda de automóveis (Ac. da RG de 25.05.2023, Maria Eugénia Pedro, Processo n.º 4006/20.5T8GMR.G1) e a disposição a favor de terceiros e em proveito pessoal da quantia de € 110.000,00, recebida de promitente comprador de um prédio urbano próprio e que constituía parte considerável do seu património (Ac. da R, de 06.09.2021, Joaquim Moura, Processo n.º 2184/20.2T8STS-D.P1); e a transferência de património para pessoas especialmente relacionadas com o devedor, incluindo e transferência do património pessoal para uma empresa criada para o efeito (Ac. da RC, de 06.03.2012, Arlindo Oliveira, Processo n.º 2461/10.0TBPBL-G.C1), a dação em cumprimento ao respectivo pai (Ac. da RE, de 12.02.2015, Silva Rato, Processo n.º 1176/12.0TBELV-E.E1) e doações a filhos (Ac. da RC, de 02.03.2010, Gonçalves Ferreira, Processo n.º 331/09.4 TABAND-F.C1, Ac. da RE, de 25.06.2015, Alexandra Moura Santos, Processo n.º 575/14.7TBPTG-F.E1, Ac. da RE, de 05.05.2016, Jaime Pestana, Processo n.º 39/14.9T8CBA-F.E1, Ac. da RG, de 22.06.2017, Lina Castro Baptista, Processo n.º 814/16.0T8CHV-D.G1, Ac. da RG, de 18.01.2018, João Peres Coelho, Processo n.º 1518/16.9T8BGC-E.G1, Ac. da RG, de 21.10.2021, José Alberto Moreira Dias, Processo n.º 1809/19.7T8VNF-G.C1 e Ac. da RP, de 13.07.2022, Rui Moreira, Processo n.º 1796/21.1T8STS.P1) ou a outros familiares ou afins (Ac. da RE, de 12.09.2019, Vítor Sequinho, Processo n.º 3401/18.4TBSTB-C.E1).
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4.3. Caso concreto - Circunstâncias impeditivas particulares
4.3.1. Informações sobre as circunstâncias económicas do devedor (art.º 238.º, n.º 1, al. b), do CIRE)
4.3.1.1. Juízo do Tribunal a quo
Concretizando, verifica-se que, no despacho de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, o Tribunal a quo declarou que: a Insolvente (AA) «com dolo e culpa grave foi condenada a ressarcir os credores lesados pela sua atuação na qualidade de gerente» de EMP01... Unipessoal, Limitada, «tendo parte das dívidas contraídas e reconhecidas antes da declaração da insolvência e reconhecidas naqueles autos, revertido para a esfera» dela própria, «designadamente as dívidas ao Estado»; e que «estes factos foram ocultados» por ela «nestes autos» (pertinentes à sua própria insolvência).
Mais se verifica que, com base no referido, considerou existir o fundamento de indeferimento liminar (do seu pedido de exoneração restante) previsto na al. b) do n.º 1 do art.º 238.º, do CIRE.

Contudo, e salvo devido respeito por opinião contrária, sem razão.
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4.3.1.2. Juízo do Tribunal ad quem
Com efeito, e antes de mais, dir-se-á que a Insolvente (AA) afirmou expressamente na sua petição inicial, logo no seu artigo 4.º, resultarem a «maior parte» das suas «diversas dívidas» de «reversões fiscais por ter sido gerente da sociedade comercial EMP01... Unipessoal, Lda», declarada insolvente, reiterando depois no artigo 7.º seguinte que, «por falta de cumprimento das obrigações fiscais daquela empresa, tais dívidas reverteram para a Apresentante, por ser, naquela data, a gerente da sociedade».
Verifica-se ainda que, nos artigos 12.º e 15.º da mesma petição inicial, a Insolvente (AA) revelou ter sido a insolvência de EMP01... Unipessoal, Limitada  qualificada como culposa e ela própria afectada por essa qualificação, já que no primeiro refere que nesse processo «foi declarada a inibição da aqui Apresentante, para o exercício, pelo período de dois anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa»; e no segundo refere que «no âmbito da declaração da insolvência como culposa da sociedade comercial EMP01... Unipessoal, Limitada, foi a aqui Apresentante condenada a indemnizar os credores da devedora, no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças dos respetivos patrimónios, sendo tal responsabilidade solidária».
Por fim, verifica-se que a Insolvente (AA), com a mesma petição inicial, juntou um documento, epigrafado «DECLARAÇÃO NOS TERMOS DO ART. 24.º DO CIRE», onde firma que: «nos últimos três anos foi gerente a empresa EMP01..., Confeções Unipessoal, Lda., até ao momento de encerramento da mesma»; e no «que se refere às causas da situação em que se encontra, tal estado deveu-se ao facto da empresa da qual a Requerente era gerente (…) ter contraído diversas dívidas junto do Instituto da Segurança Social e Autoridade Tributária, dívidas essas que reverteram para a Requerente» e que «não consegue liquidar», «não só por dificuldades financeiras, como por ausência de património».
Assim, a afirmação do Tribunal a quo de que tais factos «foram ocultados» pela Insolvente (AA) nestes autos não podia ser mais destituída de fundamento.

Dir-se-á ainda que, mesmo a ter ocorrido aqui aquela ocultação, não estaria com esse comportamento preenchida a al. b) do n.º 1 do art.º 238.º, desde logo porque a mesma  se reporta a comportamentos activos do insolvente (fornecimento, por escrito, de informações) e não a comportamentos meramente omissivos; e exige que as informações falsas ou incompletas prestadas, sobre as respectivas circunstâncias económicas, visem obter crédito ou subsídios de instituições públicas ou evitar pagamentos a instituições dessa natureza, o que apoditicamente deixa de suceder com a apresentação do próprio à insolvência (que não afecta a exigência e o pagamento dos créditos tributários e dos créditos da segurança social a que o insolvente esteja obrigado).

Mostra-se, assim, nesta parte fundado o recurso da Insolvente (AA), por não se encontrar verificada nos autos a previsão da al. b) do n.º 1 do art.º 238.º do CIRE (não se podendo, assim, justificar com ela o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante que apresentou).
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4.3.2. Culpa do devedor na criação ou agravamento da respectiva insolvência
4.3.2.1. Juízo do Tribunal a quo
Concretizando novamente, verifica-se que, no despacho de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, o Tribunal a quo declarou que: foi «junta certidão da (…) decisão (ref. ...12)», isto é, da sentença que, em 24 de Abril de 2023,  transitada «em julgado em 09-05-2023», declarou «culposa a insolvência de EMP01... Unipessoal, Lda», afectando «pela qualificação como culposa, a sócia gerente (de facto e de direito) AA»; e, por isso, declarando-a «inibida para o exercício do comércio pelo período de dois anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa», determinando «a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou massa insolvente por parte do referido sócio-gerente», e condenando-a «a restituir os bens ou direitos que tenha recebido em pagamento de créditos» e «a indemnizar os créditos não satisfeitos desta insolvência nas forças do seu património pessoal».
Mais se verifica que, com base no referido, considerou existir o fundamento de indeferimento liminar (do seu pedido de exoneração restante) previsto na al. e) do n.º 1 do art.º 238.º do CIRE.

Com efeito, a qualificação como culposa da insolvência de EMP01... Unipessoal, Limitada radicou na violação simultânea das obrigações que decorriam para do disposto: no art.º 186.º, n.º 2, al. h), primeira parte, do CIRE (considera-se «sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham» incumprido «em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada»); e no art.º 186.º, n.º 3, al. a), do CIRE (presume-se «unicamente a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido» o «dever de requerer a declaração de insolvência»), conjugado com o n.º 1, do mesmo preceito («a situação [de insolvência] tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação» (..) do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto») e com o art.º 18.º, n.º 1, do mesmo diploma (o «devedor deve requerer a declaração da sua insolvência dentro dos 30 dias seguintes à data do conhecimento da situação de insolvência, (…) ou à data em que devesse conhecê-la»).
Logo, considerou-se ali que, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência de EMP01... Unipessoal, Limitada, a Insolvente (AA), então como sua gerente, com dolo ou culpa grave, incumpriu: em termos substanciais a obrigação de manter a respectiva contabilidade organizada (fazendo, desse modo, actuar a presunção absoluta de insolvência culposa [56] prevista na al. h), do n.º 2, do art.º 186.º, do CIRE [57]); e o dever de a apresentar à insolvência, nos trinta dias posteriores ao conhecimento da mesma (fazendo, de modo, actuar a presunção relativa da respectiva culpa nesse incumprimento, prevista na al. a) do n.º 3 do art.º 186.º do CIRE, que não ilidiu [58]), o que agravou a dita insolvência.

Ora, estando indiscutivelmente em causa comportamentos censuráveis e comportamentos imputáveis à Insolvente (AA), foi a mesma quem, logo na sua petição inicial, afirmou resultar a sua insolvência pessoal, não só da reversão para si própria dos débitos tributários e dos encargos para com a segurança social de EMP01... Unipessoal, Limitada, como ainda por ter sido responsabilizada pelo pagamento dos créditos sobre a insolvência da dita Sociedade, mercê da afectação que registou da qualificação da mesma como culposa. Foi esta a causa (a si própria imputável) que apresentou para a respectiva (e posterior) insolvência, desse modo se compreendendo que a tenha requerido em 18 de Maio de 2023, decorridos que estavam apenas 9 dias sobre o trânsito em julgado daquela decisão (ocorrido em 09 de Maio de 2023).
Dir-se-á ainda que, considerando, quer a data da prática daqueles factos (incumprimento em termos substancias da obrigação de manter a contabilidade da Sociedade organizada e incumprimento do dever de a apresentar oportunamente à insolvência), que se mantinham operantes quando EMP01... Unipessoal, Limitada se apresentou (em Outubro de 2021) à insolvência, quer a data do trânsito em julgado da sentença que qualificou como culposa a insolvência da dita Sociedade (09 de Maio de 2023), verifica-se que, quando a aqui Insolvente (AA) se apresentou, ela própria, à insolvência (em 18 de Maio de 2023) ainda não tinham decorrido três anos sobre qualquer uma daquelas duas datas.

Terá sido deste modo que, provavelmente, o Tribunal a quo ajuizou do reflexo da afectação da agora Insolvente (AA) - pela qualificação como culposa da prévia insolvência da sociedade de que era então sócia e gerente - na sua própria e posterior insolvência singular.
Contudo, e salvo devido respeito por opinião contrária, sem razão.
*
4.3.2.2. Juízo do Tribunal ad quem
Com efeito, crê-se não ser essa a intenção da lei, quando no art.º 238.º, n.º 1, al. e), do CIRE, remete para o art.º 186.º do mesmo diploma, isto é, impor que a afectação de um administrador pela qualificação como culposa de sociedade que administrava se converta, ipso facto, em motivo de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante na posterior insolvência pessoal a que se apresente.

Dir-se-á, a propósito, que a previsão de «culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência», prevista no art.º 238.º, n.º 1, al. e), do CIRE, se reporta à actuação do mesmo relativamente ao universo dos seus próprios credores, nomeadamente ao cumprimento dos deveres decorrentes de relações (v.g. contratuais) que com eles estabeleceu, e não ao cumprimento de quaisquer outros deveres, nomeadamente dos que assumiu na sua qualidade de administrador de uma qualquer sociedade (terceira face àqueles outros).
O exemplo dos autos é, aliás, paradigmático deste juízo, já que, como pessoa singular, e perante os seus credores, a Insolvente (AA) não estava minimente obrigada a manter a contabilidade de EMP01... Unipessoal, Limitada organizada, nem de a apresentar prontamente à insolvência, uma vez verificada a mesma (isto é, não sendo os ditos credores titulares de quaisquer posições jurídicas que os legitimassem a exigir o cumprimento daquelas obrigações).
Reitera-se, terá que ser relativamente aos credores que serão potencialmente afectados pela exoneração do passivo restante que seja concedida ao insolvente que deverá ser aferido se o mesmo se comportou com rectidão e honestidade, nomeadamente cumprindo com o rigor, a transparência e a boa fé que lhe eram exigíveis e acessíveis as obrigações para com eles assumidas, e não em face de quaisquer outros, não afectados por essa exoneração. É precisamente este último o caso dos credores titulares de créditos pelos quais a Insolvente (AA) ficou responsável, no âmbito da prévia insolvência de EMP01... Unipessoal, Limitada, que apenas terão de os reclamar no âmbito da sua insolvência pessoal para que fiquem salvaguardados do âmbito da eventual exoneração do passivo restante que lhe venha a ser deferida, conforme art.º 245.º, n.º 2, al. b), do CIRE.

Mais se dirá que o legislador, quando entendeu que os comportamentos assumidos pelo requerente da exoneração do passivo restante em anteriores insolvências deveriam ser causa de indeferimento liminar deste benefício (face à sua especial censurabilidade), disse-o expressamente na al. f) do n.º 1 do art.º 238.º do CIRE.
Com efeito, aí se afirma que é causa do dito indeferimento liminar o ter sido o devedor «condenado por sentença transitada em julgado por algum dos crimes previstos e punidos nos artigos 227.º a 229.º do Código Penal nos 10 anos anteriores à data da entrada em juízo do pedido de declaração da insolvência ou posteriormente a esta data». Estão aqui em causa, e respectivamente, os crimes falimentares de insolvência dolosa (art.º 227.º), frustração de créditos (art.º 227.º- A), de insolvência negligente (art.º 228.º) e de favorecimento de credores (art.º 229.º).
Ora, podendo, então, tê-lo feito, o legislador não consagrou igualmente a prévia afectação, do agora insolvente pessoa singular, pela qualificação como culposa de anterior insolvência de sociedade que então administrasse, o que também se compreende face aos diferentes graus de censurabilidade ínsitos na prática de um crime e de um ilícito comercial.

Dir-se-á, ainda, que outro entendimento se traduziria numa dupla valoração de uma mesma conduta incumpridora, isto é, primeiro impondo a qualificação como culposa da sociedade administrada pelo insolvente e a afectação do próprio por ela; e depois, automaticamente (mas desde que respeitado o período de três anos exigido pelo art.º 186.º, n.º 1, para que remete o art.º 238.º, n.º 1, al. e), ambos do CIRE), o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante que apresentasse na sua própria insolvência pessoal.

Dir-se-á, por fim, que o entendimento contrário deixaria sem justificação a exigência da al. e) do n.º 1 do art.º 238.º do CIRE, de constarem do processo, em momento anterior à prolação de qualquer decisão de qualificação dessa insolvência como culposa (o que se compreende, face à fase inicial do mesmo) «elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186.º»: dificilmente a responsabilização de devedor pessoa singular por créditos não satisfeitos, em prévia insolvência de sociedade de que então fosse gerente, não criará, ou não agravará, a sua própria insolvência (como, mais uma vez, o caso dos autos é paradigmático).
A ser assim, estaria imediatamente vedado ao tribunal que apreciasse a sua própria insolvência pessoal um juízo casuístico (embora ainda em termos de «toda a probabilidade») sobre a concreta culpa do devedor na sua criação ou agravamento, já que o mesmo lhe seria automaticamente imposto pela pretérita violação por ele de outros deveres (distintos daqueles que lhe caberia avaliar), para com outros credores (distintos daqueles a que lhe caberia atender), feito antes por outro tribunal (vedando-lhe definitivamente a consideração, para este efeito, do único recto e honesto  agir do insolvente que lhe caberia apreciar).  
*
Mostra-se assim, e também nesta parte, fundado o recurso da Insolvente (AA), por igualmente não se encontrar verificada nos autos a previsão da al. e) do n.º 1 do art.º 238.º do CIRE (não podendo, por isso, justificar-se com ela – e como o fez o Tribunal a quo - o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante que apresentou).
*
Importa, pois, decidir em conformidade, pela total procedência do recurso de apelação da Insolvente (AA), revogando-se a decisão recorrida.
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V - DECISÃO

Pelo exposto, e nos termos das disposições legais citadas, acordam as Juízas deste Tribunal da Relação em julgar totalmente procedente o recurso de apelação interposto pela insolvente AA e, em consequência, em

· Revogar o despacho recorrido (que indeferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, formulado por ela) e ordenar ao Tribunal a quo que profira um outro, de admissão liminar do pedido de exoneração do passivo restante, nos termos e com os efeitos prevenidos na lei para o efeito (nomeadamente, com a devida fundamentação de facto e com a determinação do rendimento disponível para cedência pela Insolvente aos seus credores).
*
Custas pela Massa Insolvente (art.º 304.º do CIRE).
*
Guimarães, 15 de Fevereiro de 2024.

O presente acórdão é assinado electronicamente pelos respectivos

Relatora - Maria João Marques Pinto de Matos;
1.ª Adjunta - Alexandra Maria Viana Parente Lopes;
2.ª Adjunta - Lígia Paula Ferreira de Sousa Santos Venade.



[1] O Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas - doravante CIRE - foi aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/04, de 18 de Março, e objecto desde então de sucessivas alterações.
[2] «Trata-se, aliás, de um entendimento sedimentado no nosso direito processual civil e, mesmo na ausência de lei expressa, defendido, durante a vigência do Código de Seabra, pelo Prof. Alberto dos Reis (in Código do Processo Civil Anotado, Vol. V, pág. 359) e, mais tarde, perante a redação do art. 690º, do CPC de 1961, pelo Cons. Rodrigues Bastos, in Notas ao Código de Processo Civil, Vol. III, 1972, pág. 299» (Ac. do STJ, de 08.02.2018, Maria do Rosário Morgado, Processo n.º 765/13.0TBESP.L1.S1, nota 1 - in www.dgsi.pt, como todos os demais citados sem indicação de origem). 
[3] Neste sentido, numa jurisprudência constante, Ac. da RG, de 07.10.2021, Vera Sottomayor, Processo n.º 886/19.5T8BRG.G1, onde se lê que questão nova, «apenas suscitada em sede de recurso, não pode ser conhecida por este Tribunal de 2ª instância, já que os recursos destinam-se à apreciação de questões já levantadas e decididas no processo e não a provocar decisões sobre questões que não foram nem submetidas ao contraditório nem decididas pelo tribunal recorrido».
[4] Neste sentido, Ac. da RG, de 26.01.2012, Conceição Bucho, Processo n.º 4147/11.0TBBRG-D.G1, onde se lê que o «deferimento liminar previsto no artigo 238º do CIRE pressupõe a avaliação conjunta e em concreto dos requisitos aí referidos, devendo a decisão proferida fundamentar de facto e de direito a razão do deferimento ou indeferimento», sendo, por isso, nulo.
[5] Neste sentido, Ac. da RG, de 17.05.2018, Maria João Matos, Processo n.º 2056/14.0TBGMR-A.G1; ou Ac. do STJ, de 30.11.2021, Maria da Graça Trigo, Processo n.º 1854/13.6TVLSB.L1.S1.
[6] Lê-se no art.º 662.º, n.º 2, al. c), do CPC, que a Relação deve, mesmo oficiosamente, anular «a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta».
[7] Neste sentido, Ac. da RC, de 19.02.2013, Virgílio Mateus, Processo n.º 618/12.9TBTNV.C1, onde se lê que, faltando «a especificação dos factos provados na sentença que indeferiu o pedido de exoneração do passivo restante, ao abrigo do disposto no artigo 238º do CIRE, o Tribunal da relação pode e deve anular, mesmo oficiosamente, a decisão proferida pela 1ª instância», já que a lei lhe «concede tal poder nos casos em que a decisão sobre a matéria de facto é meramente deficiente ou escassa para decisão de todos os pontos controvertidos da questão de direito, por maioria de razão também o concede quando se verifique uma total ausência da fixação da matéria de facto na sentença». 
[8] Neste sentido, de que os factos constantes da fundamentação de facto da decisão judicial deverão ser apresentados segundo uma ordenação sequencial, lógica e cronológica (e não de forma desordenada, consoante os articulados de onde tenham sido extraídos e reproduzindo ipsis verbis a sua redacção, incluindo interjeições coloquiais), na doutrina:
. Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, I Volume, 2013, Almedina, Outubro de 2013, pág. 543 - onde se lê que os «factos que constituem fundamentação de facto devem ser integralmente descritos. O juiz deve aqui relatar a realidade histórica tal como ela resultou demonstrada da produção de prova. (…)
Não há aqui qualquer fundamento para o juiz se cingir aos enunciados verbais adotados pelas partes. O que importa é o facto, e este pode ser descrito de diversas formas. Ele é aqui o cronista, o tecelão da narrativa fiel à prova produzida, não devendo compô-la com fragmentos literais de frases articuladas, fabricando uma desconexa manta e retalhos».
. Manuel Tomé Soares Gomes, «Da Sentença Cível», Jornadas de Processo Civil, e-book do Centro de Estudos Judiciários, Lisboa, Janeiro de 2014, página 22 (in https://elearning.cej.mj.pt/mod/folder/view.php?id=6202) - onde se lê que, na sentença, os «enunciados de facto devem também ser expostos numa ordenação sequencial lógica e cronológica que facilite a conjugação dos seus diversos segmentos e a compreensão do conjunto factual pertinente, na perspetiva das questões jurídicas a apreciar. Com efeito, a ordenação sequencial das proposições de facto, bem como a ligação entre elas, é um fator de inteligibilidade da trama factual, na medida em que favorece uma interpretação contextual e sinótica, em detrimento de uma interpretação meramente analítica, de enfoque atomizado ou fragmentário. Por isso mesmo, na sentença, cumpre ao juiz ordenar a matéria de facto - que se encontra, de algum modo parcelada, em virtude dos factos assentes por decorrência da falta de impugnação - na perspetiva do quadro normativo das questões a resolver».
. António Santos Abrantes Geraldes, «Sentença Cível», Jornadas de Processo Civil, e-book do Centro de Estudos Judiciários, Lisboa, Janeiro de 2014, páginas 10 e 11 (in https://elearning.cej.mj.pt/mod/folder/view.php?id=6425) - onde se lê que, na sentença, «na enunciação dos factos apurados o juiz deve usar uma metodologia que permita perceber facilmente a realidade que considerou demonstrada, de forma linear, lógica e cronológica, a qual, uma vez submetida às normas jurídicas aplicáveis, determinará o resultado da acção. Por isso é inadmissível (tal como já o era anteriormente) que se opte pela enunciação desordenada de factos, uns extraídos da petição, outros da contestação ou da réplica, sem qualquer coerência interna.
Este objectivo - que o bom senso já anteriormente deveria ter imposto como regra absoluta - encontra agora na formulação legal um apoio suplementar, já que o art. 607º, nº 4, 2ª parte, impõe ao juiz a tarefa de compatibilizar toda a matéria de facto adquirida, o que necessariamente implica uma descrição inteligível da realidade litigada, em lugar de uma sequência desordenada de factos atomísticos».
. Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, 2014, Almedina, Junho de 2014, pág. 322 - onde se lê que, «depois de concluída a produção de prova e quando elaborar a sentença, é função do juiz relatar - e relatar de forma expressa, precisa e completa - os factos essenciais que se provaram em juízo. Tal relato haverá de constituir uma narração arrumada, coerente e sequencial (lógica e cronologicamente), na certeza de que isso deve ser feito “compatibilizando toda a matéria de facto adquirida”, como prescreve a parte final do nº 4 do ar. 607º».
Na jurisprudência mais recente: Ac. da RL, de 24.04.2019, Laurinda Gemas, Processo n.º 5585/15.4T8FNC-A.L1-2; ou Ac. da RL, de 02.07.2019, José Capacete, Processo n.º 1777/16.7T8LRA.L1-7.
[9] Neste sentido, Letícia Marques Costa, A Insolvência de Pessoas Singulares, Almedina, Teses, Maio de 2021, pág. 36, onde se lê que o «consumo preenche uma dupla função, do ponto de vista do indivíduo: a satisfação de necessidades e a realização de desejos Assim, o crédito aos consumidores contribui para a realização pessoal, expressa simbolicamente por um nível de vida melhorado. Simultaneamente, permite a criação de novas identidades culturais e de novas oportunidades de participação social, distintas do sistema leitoral e do político, dando origem à denominada “democracia do gasto”».
[10] Neste sentido, Letícia Marques Costa, A Insolvência de Pessoas Singulares, Almedina, Teses, Maio de 2021, pág. 41, onde se lê que o «sobreendividamento constitui a outra face da moeda da democratização do crédito, variando a dimensão e os contornos do fenómeno de Estado para estado, conforme a literacia financeira, o sistema de segurança Social e o comportamento do mercado de trabalho».   
[11] Neste sentido, Maria Manuel Leitão Marques e Catarina Frade, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Comunicações sobre o anteprojecto de código, Ministério da Justiça, Gabinete de Justiça e Planeamento, Coimbra Editora, pág. 89, onde se lê que «o sobreendividamento» é «um risco natural da economia de mercado, particularmente associada à expansão do mercado de crédito - o crédito é uma actividade que se faz com risco e, por isso, o sobreendividamento é um risco antecipado e calculado pelos credores: o consumidor que ousa recorrer ao crédito e é mal sucedido não deve ser, por isso, excessivamente penalizado e, sobretudo, não deve ser excluído do mercado por um tempo demasiado longo».
[12] Neste sentido, Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 3.ª edição, Almedina, 2011, pág. 322, onde se lê que «a concessão de uma nova oportunidade às pessoas singulares justifica-se, até porque a insolvência pode ter causas que escapam ao seu controlo, como as perdas de rendimento resultantes de desemprego, doença, ou divórcio, nos trabalhadores subordinados, ou o lançamento de um novo negócio, que se revelou não rentável, nos trabalhadores independentes, desempenhando muitas vezes os hábitos de consumo desenfreados também um papel, podendo o devedor muitas vezes recompor a sua situação económica se lhe derem a oportunidade de começar de novo».
[13] Neste sentido, Luís M. Martins, Recuperação de Pessoas Singulares, Volume I, 2.ª edição, Almedina, 2013, pág. 104, onde se lê que, «em regra, as pessoas singulares, micro-empresas e empresários em nome individual, carecem de falta de informação contratual ao que acresce um país dado a irrealismos e enfermo de iliteracia financeira. Tudo apimentado por uma política de crédito predatório e tentacular praticada pelas instituições financeiras. Nos contratos entre as instituições financeiras e os clientes, a posição daquelas é sempre mais forte e preponderante prevalecendo sempre o seu interesse».
[14] Lê-se expressamente no Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 53/04, de 18 de Março (recorda-se, que aprovou o CIRE), que o «Código conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. O princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa fé incorridas em situação de insolvência, tão difundido nos Estados Unidos e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência, é agora também acolhido entre nós, através do regime da “exoneração do passivo restante”».
[15] Compreende-se que as pessoas colectivas estejam excluídas do procedimento da exoneração do passivo restante, uma vez que «nem sequer dela efectivamente necessitam, na medida em que se dissolvem com a declaração de insolvência e veem a sua personalidade jurídica definitivamente extinta com o registo do encerramento da liquidação» (Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 3.ª edição, Almedina, 2011, pág. 323).
[16] Apud Marco Carvalho Gonçalves, Processo de Insolvência e Processos Pré-Insolvenciais, Almedina, Outubro de 2023, págs. 614-616.
No mesmo sentido, Ana Filipa Conceição, «Disposições específicas da insolvência de pessoas singulares no Código da Insolvência e Recuperação de Empresas», I Congresso de Direito da Insolvência, Almedina, 2013, págs. 29-62 (com bold apócrifo), onde se lê que, no instituto da exoneração do passivo restante, o legislador procurou conciliar os incontornáveis direitos dos credores a verem satisfeitos os seus créditos, com direitos de personalidade do devedor, desde que não haja dolo ou culpa grave da sua parte na situação em que se encontra e desde que não seja reincidente. No regime instituído foram nitidamente ponderadas, ainda, questões de política social geral. Estão presentes as ideias de socialização do risco do mercado de crédito, repartindo-o entre credores e devedores, e de prevenção da exclusão social do devedor.
[17] Neste último sentido:
. Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 3.ª edição, Almedina, 2011, pág. 322 - onde se lê que, «após o encerramento do processo de insolvência, e portanto esgotada a função do administrador de insolvência com a repartição do saldo do património actual (Ist-Vermögen) pelos devedores, ainda se efectua a cessão do rendimento disponível do devedor a um fiduciário durante cinco [hoje três] anos, com a função de o repartir pelos credores (art. 239º), colocando-se assim também o património a adquirir futuramente pelo devedor (Soll-Vermögen) durante um longo período igualmente afecto à satisfação dos seus credores».
. Letícia Gomes Marques, «O regime especial de insolvência de pessoas singulares», Revista de Direito e Ciência Política da Universidade Lusófona do Porto, 2013, n.º 2, pág. 137, in https://revistas.ulusofona.pt/index.php/rfdulp/article/view/3260, para quem a exoneração constituiu uma dupla oportunidade de satisfação dos seus créditos, isto é, durante o processo de insolvência e durante o período de cessão.
[18] Neste sentido, Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, op. cit., págs. 858 e 868, onde se lê que, do prazo fixo do período de cessão se retira o ser «manifestamente estabelecido em benefício dos credores», constituindo «o período que o legislador entendeu adequado para lhes assegurar uma razoável satisfação dos seus créditos».
Ponderam ainda que o nº 2, do art.º 243.º, e o n.º 1, do art.º 244.º, ambos do CIRE, dos quais decorre que a cessação antecipada do procedimento de exoneração, quando não fundada em situações relativas ao devedor, só se verifica se se mostrarem totalmente satisfeitos os créditos sobre a insolvência», «satisfazendo-se, assim, o fim que preside ao instituto», ocorrendo então «uma situação equivalente à inutilidade superveniente da lide». 
[19] Neste sentido, Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, Fevereiro de 2021, págs. 612 e 614, onde se lê que, embora a exoneração seja, «antes de tudo, uma medida de protecção do devedor», as suas «maiores vantagens não respeitam (…) aos interesses privados de nenhum sujeito ou grupo de sujeitos», sendo de alcance mais geral»: «constituindo um estímulo à diligência processual do devedor, ela permite o início mais atempado do processo de insolvência, ajudando a atenuar uma das maiores preocupações do legislador»; «permite a tendencial uniformização dos efeitos da declaração de insolvência, mais particularmente dos efeitos do encerramento do processo de insolvência, estendendo o benefício exoneratório a todos os devedores»; e, apesar de «provocar uma contracção imediata do crédito, ela acaba por produzir um impacto positivo na economia», já que, «quanto mais restrito é o acesso ao crédito - mais “exigente” quem o concede e mais “responsável” quem o pede - menor é o risco de sobreendividamento e menos provável a insolvência dos consumidores e dos empresários em nome individual».
[20] Neste sentido, Assunção Cristas, «Exoneração do passivo restante», Themis, Edição Especial - Novo Direito da Insolvência, 2005, pág. 167.
[21] Neste sentido, Alexandre de Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, 2.ª edição, Almedina, 2016, pág. 584.
Na jurisprudência: Ac. da RP, de 05.11.2007, Pinto Ferreira, Processo n.º 0754986; ou Ac. da RP, de 12.05.2009, Henrique Araújo, Processo n.º 250/08.1TBVCD-C.P1.
Contudo, considerando que nem sempre será uma boa decisão (quando tenha sido «o devedor que se colocou intencionalmente na situação e insolvência - que ele planeou apresentar-se à insolvência absolutamente desprovido de bens»), além de que, «sempre que a exoneração prossiga, os custos da exoneração transferem-se integralmente para os credores, o que não é fácil de aceitar», Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, Fevereiro de 2021, pág. 612.
[22] Neste sentido: Ac. da RP, de 18.06.2009, José Ferraz, Processo n.º 3506/08.0TBSTS-A.P1; Ac da RC, de 23.02.2010, Alberto Ruço, Processo n.º 1793/09.5TBFIG-E.C1; Ac. da RG, de 07.04.2011, Augusto Carvalho, Processo n.º 1101/10.2TBVVD-A.G1; ou Ac. da RG, de 04.03.2021, Ramos Lopes, Processo n.º 3872/19.9T8STS.G1.
[23] Explicando-o, e lembrando que, com a exoneração, cada um dos credores fica novamente sujeito a um rateio, restrito para os credores da insolvência ao remanescente do pagamento dos credores da massa (conforme art.º 241.º, n.º 1, al. d), do CIRE), Catarina Serra afirma que, se «não houvesse exoneração, não haveria rateio; a satisfação do credor dependeria apenas da sua diligência processual e da data de prescrição do seu crédito, o que não poucas vezes representaria um aumento do prazo para agir executivamente contra o devedor. O período de cinco anos [hoje reduzido para três] não é, além do mais, suficientemente longo para que seja frequente o devedor reconstituir-se in bonis de forma a pagar, dentro desse período, de formas satisfatória, a todos os que permanecessem seus credores» (Lições de Direito da Insolvência, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, Fevereiro de 2021, pág. 614).
No mesmo sentido, Ac. da RG, de 23.11.2023, Gonçalo Oliveira Magalhães, Processo n.º 3833/22.4T8VCT-H.G1.
[24] Neste sentido:
.  Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, Fevereiro de 2021, pág. 611 - onde se lê que «podem identificar-se hoje dois modelos para o tratamento da insolvência da pessoa singular: o modelo a que pode chamar-se modelo (puro) do fresh start e o modelo (derivado) do earned start ou da reabilitação. O primeiro baseia-se ma ideia de que a liquidação patrimonial e o pagamento das dívidas devem ter lugar no curso do processo de insolvência, sendo que, uma vez concluído este, restem ou não dívidas por pagar, o devedor deverá ser libertado de forma a poder retomar, com tranquilidade, a sua vida. O modelo da reabilitação assenta ainda no fresh start mas desenvolve um raciocínio diferente: o raciocínio de que o devedor não deve ser exonerado em quaisquer circunstâncias pois, em princípio, os contratos são para cumprir (pacta sunt servanda). Em conformidade com isto, o devedor deve passar por uma espécie de período de prova, durante o qual parte dos seus rendimentos é afectada ao pagamento das dívidas remanescentes. Só findo este período, e tendo ficado demonstrado que o devedor merece (earns) a exoneração, deverá ser-lhe concedido o benefício. Este é, indiscutivelmente, o modelo de que mais se aproxima a lei portuguesa».
. Letícia Marques Costa, A Insolvência de Pessoas Singulares, Almedina, Teses, Maio de 2021, págs. 41-41 - onde se lê que, segundo «o modelo do fresh start, o sobreendividamento é encarado como um mero risco que está associado à expensão do mercado financeiro, atribuindo-se uma responsabilidade limitada ao sobreendividado. Desta forma, a insolvência é perspetivada como a consequência de uma opção falhada do sujeito enquanto agente económico»: «o perdão será concedido ao devedor que, independentemente das causas que o conduziram a tal circunstancialismo, teve a infelicidade de cair numa situação de insolvência. Assim sendo, os riscos decorrentes desta, bem como os consequentes efeitos, deverão também ser repartidos pelos seus credores».
Já «no modelo de reeducação/reabilitação, a situação a que o devedor chegou será imputada unicamente a si mesmo, em virtude da sua falta de previsão ou de mera negligência acerca do rumo que se encontrava a trilhar para a sua vida. Deste modo, o devedor deverá renegociar as suas dívidas, com os respetivos credores, através de um plano de pagamentos, alcançar pela via judicial ou extrajudicial».  
[25] Neste sentido (de um referencial de merecimento), na doutrina:
. Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 6.ª edição, Almedina, 2016, pág. 321 - onde se lê expressivamente que que poderão beneficiar da exoneração do passivo restante os «devedores pessoas singulares (…) que se tenham “portado bem”» (bold apócrifo).
. Marco Carvalho Gonçalves, Processo de Insolvência e Processos Pré-Insolvenciais, Almedina, Outubro de 2023, pág. 619 - onde se lê que, «tratando-se de um mecanismo de exceção, o benefício da exoneração do passivo restante só pode ser concedido desde que o devedor demonstre que é, efetivamente, digno e merecedor dessa “segunda oportunidade”, em face, nomeadamente, do honeste vivere por si adotado no período que antecedeu a declaração da sua insolvência».
Na jurisprudência (expressivamente):
. Ac. da RC, de 02.03.2010, Gonçalves Ferreira, Processo n.º 331/09.4 TABAND-F.C1 - onde se lê que o «prosseguimento do pedido de exoneração do passivo restante pressupõe, além do mais, a rectidão do comportamento anterior do insolvente no que respeita à sua situação económica».
. Ac. da RL, de 29.09.2011, Teresa Prazeres Pais, Processo n.º 12140/10.3T2SNT-E.L1-8 - onde se lê que a «exoneração do passivo é uma medida extremamente gravosa para os credores e, como tal, deve ser analisada cuidadosamente, nomeadamente atentando-se no comportamento do devedor, na transparência e boa fé que demonstrou desde o vencimento dos débitos».
. Ac. do STJ, de 24.01.2012, Fonseca Ramos, Processo n.º 152/10.1TBBRG-E.G1.S1 - onde se lê que, sendo a exoneração «“uma segunda oportunidade” (fresh start), só deve ser concedida a quem a merecer; a lei exige uma actuação anterior pautada por boa conduta do insolvente, visando evitar que o prejuízo, que já resulta da insolvência, não seja incrementado por actuação culposa do devedor que, sabendo-se insolvente, permanece impassível, avolumando as suas dívidas em prejuízo dos seus credores e, não obstante, pretende exonerar-se do passivo residual requerendo a exoneração».
. Ac. da RC, de 06.03.2012, Arlindo Oliveira, Processo n.º 2461/10.0TBPBL-G.C1 - onde se lê que a «figura da exoneração do passivo restante tem de ser vista como uma excepção e não a regra. Como um benefício que só se pode basar num comportamento do devedor que se viu incorrer numa situação de insolvência, não obstante ter pautado a sua conduta por regras de rectidão, honestidade, transparência e boa fé».
. Ac. da RC, de 03.07.2012, Fonte Ramos, Processo n.º 1779/11.0T2AVR-C.C1 - onde se lê que só é merecedor da exoneração do passivo restante o devedor que demonstre ter adoptado um comportamento «honesto, lícito, transparente e de boa fé».
. Ac. da RC, de 07.03.2017, Jorge Manuel Loureiro, Processo n.º 2891/16.4T8VIS.G1 - onde se lê que a «exoneração do passivo restante corresponde a um instituto jurídico de excepção, pois que por via do mesmo se concede ao devedor o benefício de se libertar de algumas das suas dívidas e de por essa via se reabilitar economicamente, inteiramente à custa do património dos credores»; e a «excepcionalidade deste instituto exige que o recurso ao mesmo só possa ser reconhecido ao devedor que tenha pautado a sua conduta por regras de transparência e de boa-fé, no tocante às suas concretas condições económicas e padrão de vida adoptado, à ponderação e protecção dos interesses dos credores, e ao cumprimento dos deveres para ele emergentes do regime jurídico da insolvência, em contrapartida do que se lhe concede aquele benefício excepcional».
. Ac. da RG, de 08.02.2018, Ana Cristina Duarte, Processo n.º 896/16.4T8VRL-H.G1 - onde se lê que  os «requisitos impostos pelo artigo 238.º destinam-se a decidir liminarmente sobre se o devedor não merece aquela segunda oportunidade, praticando actos que revelam, em relação à sua situação económica e aos deveres associados ao processo de insolvência uma conduta ilícita, desonesta, pouco transparente e de má fé».
. Ac. da RG, de 16.02.2023, Maria Gorete Morais, Processo n.º 60/17.5T8ALJ.G1 - onde se lê que a «exoneração do passivo restante corresponde a um instituto jurídico de exceção, através do qual se concede ao devedor o benefício de se libertar de algumas das suas dívidas e de, por essa via, se reabilitar economicamente, inteiramente à custa do património dos credores».
Logo, a «excecionalidade desse instituto exige que o recurso ao mesmo só possa ser reconhecido ao devedor que tenha pautado a sua conduta por regras de transparência e de boa-fé, no tocante às suas concretas condições económicas e padrão de vida adotado, à ponderação e proteção dos interesses dos credores e ao cumprimento pontual das injunções impostas no despacho inicial a que alude o artigo 239º do Código da Insolvência e da Recuperação das Empresas».
. Ac. da RG, de 16.10.2023, Gonçalo Oliveira Magalhães, Processo n.º 172/22.3T8MDL.G1 - onde se lê que a «exoneração do passivo restante, enquanto específico modo de extinção das obrigações além do cumprimento, de natureza legal e concretização judicial, cujo âmbito subjetivo se limita ao devedor singular declarado insolvente, tendo em vista a sua reabilitação financeira (o denominado “fresh start”), constitui um instituto jurídico de exceção».
Assim, «o recurso a tal instituto apenas pode ser reconhecido ao insolvente que tenha pautado a sua conduta pelo cumprimento rigoroso dos deveres de informação, apresentação e colaboração», «transversais a todas as fases do processo de insolvência, incluindo a dos articulado».
[26] Precisa-se que, em qualquer deles, o juiz tem de fazer a avaliação do preenchimento, quer de requisitos processuais, quer de requisitos substantivos (Ac. da RP, de 09.05.2019, Aristides Rodrigues de Almeida, Processo n.º 2873/15.3T8VNG.P1).
[27] Precisa-se, porém, que, no «pedido de exoneração do passivo restante, a genérica declaração imposta pelo nº 3 do art. 236º do CIRE, não assume, substancialmente, cariz determinante para se aferir da (in)existência dos legais requisitos e condições, o que, em última análise, compete ao juiz averiguar e decidir» (Ac. da RC, de 17.05.2011, Carlos Moreira, Processo n.º 479/10.2TBMGL-A.C1).
[28] Pronunciando-se em particular sobre o concreto âmbito deste dever de informação, e consequências da sua violação, Maria do Rosário Epifânio, «A Exoneração do Passivo Restante - Algumas Questões», Julgar, N.º 48 (2022), págs. 50 a 54.
[29] Dir-se-á que, sendo todas as obrigações, «de alguma forma, instrumentais ao procedimento de exoneração», destaca-se, porém, «a última [não fazer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar qualquer vantagem especial para algum desses credores], que se destina, além do mais, a assegurar o respeito pela igualdade de tratamento dos credores» (Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, Fevereiro de 2021, pág. 622).
[30] Esta «cessão determinada no despacho judicial inicial constitui uma cessão de créditos de bens futuros»; e encontra na lei a sua fonte directa, não sendo o devedor quem, por acto voluntário, cede aquele rendimento disponível, já que o fiduciário tem direito, nos termos do art. 241.º, n.º 1 do CIRE, a «haver» directamente o mesmo, o qual, porém, só pode afectar às finalidades previstas na lei (Alexandre de Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, 2.ª edição, Almedina, 2016, págs. 601 e 606).
No mesmo sentido: Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, 8.ª edição, Almedina, 2015, pág. 255; Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 3.ª edição, Almedina, 2011, pág. 327; Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 6.ª edição, Almedina, 2016, pág. 327; e Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3.ª edição Quid Juris, Lisboa 2015, pág. 860.
«Em consequência, os rendimentos auferidos durante este período transferem-se no momento em que são adquiridos e independentemente do consentimento dos devedores dos rendimentos (art. 577º, nº 1, do CCivil), sendo acompanhados das garantias e outros acessórios dos créditos que não sejam inseparáveis da pessoa do cedente (art. 582º, nº 1, do CCivil)» (Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 6.ª edição, Almedina, 2016, pág. 327).
[31] Compreende-se, por isso, que se afirme que a «autonomia patrimonial» do instituto justifica que, durante o período da cessão, os credores não possam executar o património que lhe está afecto, proibindo-se ainda a concessão de vantagens especiais a credores (Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, 8.ª edição, Almedina, 2015, pág. 257).
«Visa-se, por um lado, assegurar a efetiva realização dos fins da cessão, pelo que respeita aos rendimentos cedidos, não os distraindo da sua afectação»; e a «restrição, quanto a outros bens do devedor, também se revela adequada, quer por a sua execução poder afetar a fonte desses rendimentos, quer por esses bens constituírem a base da vida económico-social do devedor» (Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2.ª edição Quid Juris, Lisboa 2013, pág. 912).
[32] Lê-se expressivamente Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 53/04, de 18 de Março, que a «ponderação dos requisitos exigidos ao devedor e da conduta recta que ele teve necessariamente de adoptar justificará, então, que lhe seja concedido o benefício da exoneração, permitindo a sua reintegração plena na vida económica» (bold apócrifo).
[33] Catarina Serra (in Lições de Direito da Insolvência, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, Fevereiro de 2021, pág. 623) vê na extinção dos créditos que não tenham sido reclamados e verificados a comprovação da «ideia de que o processo de insolvência é um processo com eficácia externa ou erga omnes».
[34] Compreende-se, por isso, que se afirme que, rigorosamente, «a exoneração qualifica-se como uma (nova) causa de extinção das obrigações - extraordinária ou avulsa relativamente ao catálogo de causas tipificado no Código Civil (cfr. arts. 837.º a 874.º)»; e, «ao contrário do que sucede no Direito Civil, no Direito da Insolvência a exoneração aparece - deliberadamente - como uma faculdade natural do devedor» (Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, Fevereiro de 2021, pág. 613).
[35] Precisa-se que estão apenas aqui em causa «os credores da insolvência, ou seja, os titulares de créditos de natureza patrimonial sobre o insolvente, ou garantidos por bens integrantes da massa insolvente, cujo fundamento seja anterior à data da declaração de insolvência (art. 47º, nº 1). (…) Já os novos credores, cujos créditos se tenham constituído após a declaração da insolvência, não são abrangidos pelo art. 242º, podendo em consequência executar livremente os bens do devedor. Essa faculdade de execução apresenta-se, no entanto, como destituída de efeito prático, uma vez que o devedor não terá em princípio bens penhoráveis, dado que todo o seu activo patrimonial é cedido ao fiduciário, que o afecta à satisfação dos credores da insolvência» (Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 3.ª edição, Almedina, 2011, pág. 332, com bold apócrifo)
[36] Neste sentido:
. Alexandre de Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, 2.ª edição, Almedina, 2016, pág. 591 - onde se lê que a «razão de ser das exclusões reside na fonte dos créditos em causa, pois estamos a flar de situações em que os titulares dos créditos não puderam optar por não estar nessa posição».
. Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, Fevereiro de 2021, págs. 627 e 628, onde se lê que os «créditos que têm fonte legal são excluídos da exoneração; os que derivam de contrato ou são de origem negocial ficam, em contrapartida, sujeitos a ela. Por trás da regra estará, assim, a convicção de que, ao realizar um negócio jurídico, os credores assumem uma parte do risco da insolvência do devedor e, quando este risco se concretiza, devem participar nos sacrifícios que a situação impõe. Inversamente, os credores que, em virtude de o seu crédito ter origem legal, não tiveram oportunidade de “avaliar” o devedor são “credores involuntários” e não devem fiar sujeitos aos efeitos da exoneração - por outras palavras: o ordenamento não pode impor-lhes os custos de uma insolvência com que eles não podiam legitimamente contar, por não terem consentido na constituição da relação creditícia». 
[37] Neste sentido:
. Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3.ª edição Quid Juris, Lisboa 2015, pág. 871- onde se lê que alguma «dúvida nos suscita a al. b), que afasta da extinção os créditos relativos a indemnizações por factos ilícitos do devedor. É certo que essa norma só lhes concede esta tutela quando sejam dolosos e tenham sido reclamados no processo de insolvência com essa qualidade. Todavia, a formulação ampla da lei compreende tanto os ilícitos contratuais como extracontratuais e aí reside a causa do nosso reparo. Temos por excessivo atribuir ao crédito de indemnização por ilícito contratual, mesmo doloso, um tratamento mais favorável do que ao crédito emergente de um negócio jurídico - como seja o preço devido, numa compra e venda».
. Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, Fevereiro de 2021, pág. 627 - onde se lê que «é excessivo tratar mais favoravelmente os créditos de indemnização por ilícito contratual do que os créditos emergentes de negócios jurídicos - tratar mais favoravelmente os créditos de indemnização por incumprimento dos negócios jurídicos do que os créditos resultantes dos próprios negócios jurídicos. Por essa razão, tem sido defendido que a norma seja interpretada restritivamente de forma a aplicar-se apenas aos ilícitos extracontratuais. A responsabilidade extracontratual pressupõe, além do mais, uma lesão mais grave, respeitando, a maioria das vezes, a bens jurídicos como a pessoa ou o património e isso justifica seguramente uma tutela diferenciada, que privilegie os créditos derivados deste tipo de responsabilidade relativamente aos derivados de responsabilidade contratual».
[38] Neste sentido: Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3.ª edição Quid Juris, Lisboa 2015, pág. 871; e Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, Fevereiro de 2021, pág. 626.
[39] Neste sentido:
. Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3.ª edição Quid Juris, Lisboa 2015, pág. 871- onde se lê que «a não extinção de tais créditos, em particular dos relativos a multas, coimas e outras sanções por crimes ou contravenções, retira significado relevante à exoneração do passivo restante».
.  Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 3.ª edição, Almedina, 2011, pág. 336 - onde se lê que se consagraram «exclusões muito amplas, especialmente a que abrange os créditos tributários, o que poderá diminuir consideravelmente o interesse da exoneração do passivo restante».
. Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, Fevereiro de 2021, págs. 625-626 - onde se lê que «há créditos que a lei poupa aos efeitos da exoneração», com justificações «variadas - e porventura discutíveis - mas o certo é que a medida pode prejudicar, a final, o objectivo do fresh start», reduzindo «consideravelmente o alcance da exoneração como instrumento e extinção da generalidade das dívidas do devedor».
[40] Neste sentido, Letícia Marques Costa, A Insolvência de Pessoas Singulares, Almedina, Teses, Maio de 2021, pág. 111, onde se lê que, se «num período inicial da vigência do CIRE, o recurso a esta medida foi muito reduzido, por desconhecimento ou por temor quanto à sua efetividade, após os anos 2008/2009, com o aumento dos processos de insolvência de pessoas singulares, a tendência foi invertida. Atualmente raro é o processo deste tipo de devedor que não contém um pedido de exoneração do passivo restante formulado (restringindo-se as exceções aos casos de insolvências requeridas por terceiros em que, por qualquer motivo, o requerido não teve apoio judiciário)».  
[41] No mesmo sentido:
. Assunção Cristas, «Exoneração do devedor pelo passivo restante», Themis, Edição Especial - Novo Direito da Insolvência, 2005, págs. 170-172 - onde se lê que, para o insolvente, o despacho inicial ainda «não é a oportunidade de iniciar a vida de novo, liberado de dívidas, mas a oportunidade de se submeter a um período probatório que, no final, pode resultar num desfecho que lhe seja favorável».
. Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3.ª edição Quid Juris, Lisboa 2015, pág. 853 - onde se lê que o benefício final pretendido pelo insolvente (isto é, a concessão efectiva da exoneração do seu passivo restante) depende ainda do preenchimento inicial de determinados requisitos, e fica subordinado ao cumprimento de determinadas obrigações, pelo que o despacho inicial «só promete conceder a exoneração efectiva», e não a garante.
. Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 6.ª edição, Almedina, 2016, pág. 324 - onde se lê que o despacho inicial determina a abertura «do período de cessão, ou seja, o período dentro do qual, por forma a revelar-se merecedor da concessão da exoneração do passivo restante, o devedor é posto à prova, através da cessão do rendimento disponível, e da imposição e um conjunto de obrigações».
. Letícia Marques Costa, A Insolvência de Pessoas Singulares, Almedina, Teses, Maio de 2021, pág. 119 - onde se lê que no despacho inicial «apenas se irá aferir o preenchimento de requisitos substantivos que se destinam a apurar se o devedor merecerá ou não uma segunda oportunidade».
[42] Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda (in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3.ª edição Quid Juris, Lisboa 2015, pág. 854) arrumam estes requisitos de cuja verificação, embora pela negativa, depende a concessão da exoneração em três grupos: comportamentos  do devedor relativos à sua situação de insolvência e que para ela contribuíram de algum modo ou a agravaram (als. b), d) e e)); situações ligadas ao passado do insolvente (als. c) e f)); e condutas adotadas pelo devedor que consubstanciam a violação de deveres que lhe são impostos no decurso do processo de insolvência (al. g)).
[43] Precisa-se que, as mais das vezes, não se estará perante situações de indeferimento liminar, já que será necessário produzir prova sobre os factos em causa.
Neste sentido: Assunção Cristas, «Exoneração do devedor pelo passivo restante», Themis, Edição Especial - Novo Direito da Insolvência, 2005, pág. 169; Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2015-8.ª edição, Almedina, Julho de 2015, pág. 253; Alexandre de Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, 2.ª edição, Almedina, 2016, pág. 591; e Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, Fevereiro de 2021, págs. 616.
Na jurisprudência, Ac. da RC, de 27.09.2011, Teles Pereira, Processo n.º 575/10.6TBSRT-E.C1.
[44] Neste sentido, Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3.ª edição Quid Juris, Lisboa 2015, pág. 854. 
[45] Neste sentido, na doutrina: José Gonçalves Ferreira, A Exoneração do Passivo Restante, Coimbra Editora, 2013, pás. 51-52; e Marco Carvalho Gonçalves, Processo de Insolvência e Processos Pré-Insolvenciais, Almedina, Outubro de 2023, págs. 629 e 630.
Na jurisprudência: Ac. da RC, de 12.06.2012, Artur Dias, Processo n.º 1034/11.5T2AVR-C.C1; Ac. da RG, de 03.12.2020, José Flores, Processo n.º 1851/20.5T8VNF.G1; Ac. da RG, de 04.03.2021, Ramos Lopes, Processo n.º 3872/19.9T8STS.G1; Ac. da RP, de 12.04.2021, Miguel Baldaia de Morais, Processo n.º 519/20.7T8STS-D.P1; ou Ac. da RG, de 23.11.2023, Gonçalo Oliveira Magalhães, Processo n.º 3833/22.4T8VCT-H.G1.
[46] Neste sentido, na doutrina: Luís M. Martins, Recuperação de Pessoas Singulares, Volume I, 2.ª edição, Almedina, 2013, pág. 98; Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3.ª edição Quid Juris, Lisboa 2015, pág. 855; Marco Carvalho Gonçalves, Processo de Insolvência e Processos Pré-Insolvenciais, Almedina, Outubro de 2023, págs. 621-622.
Parecendo conformar-se com este entendimento, mas propondo a alteração da redacção do art.º 238.º, do CIRE (por forma a que os requisitos de admissão liminar do pedido de exoneração do passivo restante passassem a ser formulados pela positiva), Letícia Marques Costa, A Insolvência de Pessoas Singulares, Almedina, Teses, Maio de 2021, págs. 133-138.
Na jurisprudência: Ac. do STJ, de 21.10.2010, Oliveira Vasconcelos, Processo n.º 3850/09.9TBVLG-D.P1.S1; Ac. do STJ, de 06.07.2011, Fernandes do Vale, Processo n.º 7295/08.0TBBRG.G1.S1; Ac. da RP, de 27.09.2011, Maria do Carmo Domingues, Processo n.º 3713/10.5TBVLG-E.P1; Ac. da RC, de 25.10.2011, Isaías Pádua, Processo n.º 96/11.0T2AVR-D.C1; Ac. da RL, de 17.11.2011, Isoleta Almeida Costa, Processo n.º 921/11.5TJLSB-E.L1-8; Ac. da RL, de 15.12.2011, Jerónimo Freitas, Processo n.º 23553/10.0T2SNT-B.L1-6; Ac. da RP, de 20.12.2011, M. Pinto dos Santos, Processo n.º 740/10.6TBPVZ-D.P1; Ac. da RC, de 17.01.2012, Carlos Querido, Processo n.º 165/11.6TBACN-G.C1; Ac. da RL, de 19.04.2012, Esagüy Martins, Processo n.º 1005/10.9TBBRR-F.L1-2; Ac. do STJ, de 19.04.2012, Oliveira Vasconcelos, Processo n.º 434/11.5TJCBR-D.C1.S1; Ac. da RL, de 24.04.2012, Maria João Areias, Processo n.º 14725/11.1T2SNT-C.L1-7; Ac. da RC, de 12.06.2012, Artur Dias, Processo n.º 1034/11.5T2AVR-C.C1; Ac. da RE, de 12.07.2012, José Lúcio, Processo n.º 9/12.1TBENT-C.E1; Ac. da RE, de 12.07.2012, António Manuel Ribeiro Cardoso, Processo n.º 5241/11.2TBSTB-D.E1;  Ac. da RP, de 19.12.2012, Maria João Areias, Processo n.º 3087/11.7TBVCD.P1; Ac. da RC, de 19.02.2013, Virgílio Mateus, Processo n.º 618/12.9TBTNV.C1; Ac. da RL, de 21.02.2013, Ana de Azeredo Coelho, Processo n.º 542/10.0TBLNH.L1-6; Ac. do STJ, de 14.02.2013, Hélder Roque, Processo n.º 3327/10.0TBSTS-D.P1.S1; Ac. da RC, de 26.02.2013, Jacinto Meca, Processo n.º 423/12.2TBVIS.C1; Ac. da RC, de 16.04.2013, José Avelino Gonçalves, Processo n.º 2488/11.5TBFIG-J.C1; Ac. da RL, de 28.11.2013, Ferreira de Almeida, Processo n.º 9507/12.6TBCSC-C.L1-8; Ac. da RL, de 12.12.2013, Maria Manuela Gomes, Processo n.º 1367/13.6TJLSB-C.L1-6; Ac. da RG, de 16.01.2014, Manuela Fialho, Processo n.º 1409/12.2TBVVD-B.G1; Ac. da RL, de 20.02.2014, Jorge Leal, Processo n.º 4233/12.9TJLSB-C.L1-2; Ac. do STJ, de 17.06.2014, Fernandes do Vale, Processo n.º 985/12.4T2AVR.C1.S1; Ac. da RL, de 05.03.2015, Jorge Leal, Processo n.º  247/13.0TJLSB-C.L1-2; Ac. da RG, de 15.09.2016, António Beça Pereira, Processo n.º 273/14.1TBCBT.G1; Ac. da RC, de 07.03.2017, Jorge Manuel Loureiro, Processo n.º 2891/16.4T8VIS.C1; Ac. da RG, de 08.06.2017, Maria de Fátima Almeida Andrade, Processo n.º 3481/16.7T8VNF-C.G1; Ac. da RG, de  23.11.2017, Alcides Rodrigues, Processo n.º 7111/15.6T8VNF-G.G1; Ac. da RG, de 19.11.2020, Lígia Venade, Processo n.º 3755/19.5T8GMR-D.G1; Ac. da RG, de 03.12.2020, José Flores, Processo n.º 1851/20.5T8VNF.G1; Ac. da RP, de 12.04.2021, Miguel Baldaia de Morais, Processo n.º 519/20.7T8STS-D.P1; Ac. da RL, de 08.07.2021, Paula Cardoso, Processo n.º 2475/20.2T8VFX-B.L1-1; Ac. da RG, de 17.02.2022, Rosália Cunha, Processo n.º 2628/19.6T8VNG-D.G1; ou Ac. da RG, de 23.11.2023, Gonçalo Oliveira Magalhães, Processo n.º 3833/22.4T8VCT-H.G1.
[47] Neste sentido (da consideração do princípio do inquisitório no incidente de exoneração do passivo restante), na doutrina: Adelaide Menezes Leitão, «Pré-condições para a exoneração do passivo restante (Anotação ao acórdão do TRP de 28/09/2010, Proc. 995/09)», CDP, n.º 35, Julho/Setembro (2011), pág. 57; ou Ana Prata, Jorge Morais Carvalho e Rui Simões, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Almedina, Coimbra 2013, pág. 39.
Na jurisprudência: Ac. da RP, de 19.12.2012, Maria João Areias, Processo n.º 3087/11.7TBVCD.P1 ;Ac. da RC, de 16.04.2013, José Avelino Gonçalves, Processo n.º 2488/11.5TBFIG-J.C1; Ac. da RP, de 06.06.2013, Aristides Rodrigues de Almeida, Processo n.º 193/12.4TYVNG-C.P1; Ac. da RP, de 18.11.2013, José Eusébio de Almeida, Processo n.º 2510/13.0TBVFR-C.P1; ou Ac. da RG, de 12.10.2023, Gonçalo Oliveira Magalhães, Processo n.º 172/22.3T8MDL.G1. 
Contudo, em sentido contrário, Ac. da RE, de 12.04.2018, Sílvio Sousa, Processo n.º 569/16.8T8OLH.E1.
[48] Neste sentido, Alexandre de Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, 2.ª edição, Almedina, 2016, pág. 591.
[49] Claro está que se já tiver sido proferida decisão final no incidente de qualificação da insolvência, não poderá deixar a mesma de se repercutir no pedido de exoneração do passivo restante. Assim, e nomeadamente, não deverá ser liminarmente indeferido, com fundamento nesta al. e), do n.º 1, do art.º 238.º, do CIRE, se no processo já tiver sido declarada a insolvência do devedor como fortuita.
Neste sentido: Ac. da RP, de 04.03.2013, Manuel Domingos Fernandes, Processo n.º 1043/12.7TBOAZ-E.P1; Ac. da RG, de 24.04.2014, Isabel Rocha, Processo n.º 159/13.7TBPTB-F.G1; Ac. da RG, de 08.03.2018, Afonso Abndrade, Processo n.º 826/14.8TBGMR-F.G1; ou Ac. da RG, de 23.11.2023, Gonçalo Oliveira Magalhães, Processo n.º 3833/22.4T8VCT-H.G1 (onde se explicita exemplarmente a conciliação do incidente de qualificação da insolvência – nomeadamente, consoantes as decisões que nele venham a ser proferidas - com este juízo de antecipação a fazer pelo juiz, incluindo citação de jurisprudência conforme).
[50] Precisa-se, a propósito, que o legislador reconheceu que o apuramento do carácter doloso ou gravemente negligente da conduta do devedor ou dos seus administradores, e da relação de causalidade entre essa conduta e a criação ou o agravamento da situação de insolvência (de que depende a sua qualificação como culposa), se revelava muitas vezes extraordinariamente difícil.
Assim, e como forma auxiliar de determinação de uma insolvência culposa, a lei entendeu por bem estabelecer um conjunto tipificado (e taxativo) de factos-índices da mesma (reportados a factos/situações tidos como graves), fazendo-o nos números seguintes do artigo 186.º em causa, embora com diferente natureza.
Detalhando a natureza e o funcionamento destes factos índice, Ac da RG, 10.07.2023, Maria João Matos, Processo n.º 4607/21.4T8VNF-A.G1.
[51] Neste sentido:
. Ac. da RG, de 21.10.2021, José Alberto Moreira Dias, Processo n.º  1809/19.7T8VNF-G.C1- onde se lê que o «fundamento de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante previsto na al. e), do n.º 1 do art. 238º do CIRE, carece de ser conjugado com o art. 186º do mesmo Código, resultando dessa conjugação que quando, no momento da prolação do despacho de (in)deferimento liminar do pedido de exoneração, o processo de insolvência já contenha factos e elementos probatórios desses mesmos factos, ou o administrador de insolvência e/ou os credores tenham alegado e provado factos dos quais decorrem encontrar-se preenchida uma das presunções inilidíveis de insolvência culposa previstas nas diversas alíneas do n.º 2 do art. 186º, se tem como preenchido (de forma inilidível) o fundamento de indeferimento liminar do pedido de exoneração previsto na al. e), do n.º 1 do art. 238º».
. Ac. da RG de 25.05.2023, Maria Eugénia Pedro, Processo n.º 4006/20.5T8GMR.G1 - onde se lê que, «caso se verifique alguma das situações elencadas no nº2 do art. 186º do CIRE, que contemplam presunções inilidíveis, quer de culpa, quer de causalidade, necessariamente há-de ter-se como verificada a causa de indeferimento liminar de exoneração do passivo restante prevista na alínea e) do nº1 do art. 238º do CIRE».
[52] Lê-se exactamente no art.º 186.º n.º 4 do CIRE, que o «disposto nos n.os 2 e 3 é aplicável, com as necessárias adaptações, à actuação de pessoa singular insolvente e seus administradores, onde a isso não se opuser a diversidade das situações».
[53] No mesmo sentido, Ac. da RG, de 17.12.2018, José Amaral, Processo n.º 667/18.3T8GMR-B.G1, onde se lê que o que se exige são «indícios (…) da probabilidade» e não a «demonstração da realidade». Com efeito, «na qualificação, está em causa um juízo definitivo sobre a responsabilidade pela insolvência, a fazer e a declarar em sentença, com efeitos pessoais e patrimoniais severos, aliás dependentes da modalidade e grau de culpa considerados, no caso de transitar em julgado a declaração de que foi culposa. Enquanto que, na exoneração, se trata apenas de viabilizar a possibilidade de concessão de um benefício extraordinário ao devedor insolvente, sujeito ainda a prova durante o longo período de cinco anos [hoje três], com todas as implicações que tal duração acarreta, mas que o legislador entendeu logo de impedir e rejeitar ad limine quando se verifiquem circunstâncias que o indiciem como desmerecido ou façam perspetivar como inconsequente e apenas redundantes num perdão da dívida, como é o caso de se perfilarem indícios de que, com toda a probabilidade, existem indícios de culpa na criação ou agravamento da situação de insolvência».
[54]  Neste sentido (do imperativo respeito deste período de três anos), Ac. do STJ, de 18.01.2018, Ana Paula Boularot, Processo n.º 955/13.5TBVFR.P1.S2, onde se lê que, quando o art.º 186.º, n.º 1, do CIRE - para que  remete o art.º 238.º, n.º 1, al. e), do mesmo diploma - «nos fala de um prazo que se situa nos três anos anteriores ao início do processo se insolvência, impõe, por uma questão de certeza e segurança, que os factos susceptíveis de consubstanciar as actuações conducentes à caracterização da insolvência como culposa, tenham efectivamente ocorrido nesse período temporal, não possibilitando quaisquer outras interpretações que conduzam a um alargamento do aludido prazo, sob pena de o mesmo perder qualquer sentido».
[55] Detalhando em particular os requisitos da culpa qualificada e do nexo de causalidade (em moldes que aqui inteiramente se subscrevem), Ac. da RG, de 23.11.2023, Gonçalo Oliveira Magalhães, Processo n.º 3833/22.4T8VCT-H.G1.
[56] Da verificação deste concreto facto-índice de insolvência culposa, resultará inilidivelmente o carácter culposo da insolvência, isto é, não só se prescinde de um juízo de culpa (presumida normativamente), como se torna desnecessário demonstrar a existência do nexo de causalidade entre a conduta culposa e a sua adequação para a criação ou para o agravamento da insolvência: provada a situações enunciada na al. h) do n.º 2 do art.º 186.º do CIRE, estabelece-se de forma automática o juízo normativo de culpa do administrador, sem necessidade de demonstração do nexo causal entre a omissão dos deveres aí discriminados relativos à contabilidade da sociedade e a situação de insolvência ou o seu agravamento.
[57] Parte da doutrina defende que, ao contrário das demais als. do n.º 2 do art.º 186.º do CIRE, que estabelecem verdadeiras presunções inilidíveis de insolvência culposa (partindo de comportamentos que, objectivamente, são idóneos a criar ou agravar a insolvência), na al. h) o que está em causa é uma ficção de insolvência (já que inexiste aquela idoneidade objectiva entre o comportamento e a criação ou o agravação da insolvência).
Ponderou-se, para o efeito, estarem em causa comportamentos do visado que impediram e/ou impedem que se determine o valor da sua contribuição e responsabilidade na produção e/ou agravamento da situação de insolvência (impedem a descoberta da verdade material, fazendo supor que o sujeito tem algo a esconder, que ele terá praticado actos que contribuíram para a insolvência e quis/quer ocultá-los). Logo, estabeleceu-se aqui uma sanção quase directa (com a presunção absoluta de insolvência culposa): deve ser sancionado quem impediu que se desenvolvesse uma normal discussão factual sobre os pressupostos da insolvência como culposa.
Neste sentido: Rui Estrela de Oliveira, «Uma Brevíssima Incursão pelos Incidente de Qualificação da Insolvência», Julgar, n.º 11, Maio-Agosto de 2010, págs. 241 e 242; e Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, Fevereiro de 2021, págs. 301 e 303.
[58] Da verificação deste concreto facto-índice estabelecido na al. a), do n.º 3, do art. 186.º, do CIRE, resultará apenas uma mera presunção ilidível de violação, com culpa grave, da obrigação imposta aos administradores da insolvente de a apresentar à insolvência, a exigir depois a subsequente prova do nexo de causalidade entre aquele seu comportamento e a criação, ou o agravamento, da situação de insolvência.
Não sendo ilidida essa presunção de culpa do administrador decorrente da respectiva conduta, tem-se depois que articular o preceito com o que resulta da cláusula aberta geral do n.º 1: exige-se a prova de que a situação de insolvência tenha sido criada ou agravada pela referida conduta culposa do administrador (que tenha existido um nexo causal entre o comportamento - (presumido - gravemente culposo do devedor ou dos seus administradores e o surgimento ou o agravamento da situação de insolvência).