Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
233/15.5T8VFL.G1
Relator: JOSÉ FLORES
Descritores: INSOLVÊNCIA
EXTINÇÃO
INUTILIDADE SUPERVENIENTE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/05/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (do relator):

- A fim de que a prestação efectuada por terceiro seja considerada como extintiva de determinada obrigação, é necessário que se verifique alguma das excepções previstas no art. 770º, do Código Civil;

- Se tal não sucede, é inviável a extinção da instância, por via do art. 277º, al. e), do Código de Processo Civil, ou seja, por inutilidade superveniente, pelo facto de algum terceiro entretanto ter entregue ao lesado quantia equivalente à reclamada naquela;

- Assim como é impróprio subsumir tal circunstância à previsão do art. 242º, do CIRE;

- A possibilidade de se discutir as excepções previstas na primeira parte da al. g), do art. 729º, do Código de Processo Civil, está dependente da demonstração de que o facto é posterior ao encerramento da discussão no processo de declaração e fazer do mesmo prova por documento (ou confissão);

- O denominado fresh start garantido pelo regime de exoneração do passivo restante, estabelecido CIRE, fica salvaguardado, na perspectiva do legislador, com as exclusões mencionadas no dispositivo do art. 239º, nº 3, do CIRE, durante o chamado período de cessão e, a final, com o efeito extintivo de todos os créditos da insolvência que subsistam, ressalvados os já mencionados no art. 245º, nº 2, do mesmo CIRE;

- Não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objecto de apreciação da decisão recorrida;

- Constitui comportamento abusivo, subsumível à previsão do art. 334º, do Código Civil, o do reclamante de crédito indemnizatório em insolvência que insiste na sua cobrança na medida em que, por via de outro processo judicial contra terceiro, viu entretanto efectivamente reconstituído o seu património ou reparado o mesmo dano que se pretendeu ressarcir com aquele;

- Trata-se de abuso de direito reconduzível ao tipo que a doutrina vem denominando como desequilíbrio, em especial do subtipo identificado pelo brocardo dolo agit qui petit quod statim redditurus est, significando que é contrário à boa-fé exigir o que de seguida se deva restituir.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes na 1ª Secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

1. RELATÓRIO

Por sentença de 4.1.2016, o aqui Recorrente (…) foi declarado insolvente nos presentes autos.
Em 25.2.2016, foi deferido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, ressalvados os créditos previstos no art. 245º, nº 2, do CIRE, fixando em 1 salário mínimo o montante necessário para o sustento do insolvente, valor que veio a ser aumentado em 17.4.2018, para 696€.
Em 3.5.2018 (fls. 719), o insolvente apresentou requerimento nos autos em que pedia a sustação dos pagamentos a efectuar pelo fiduciário ao credor J. F., enquanto representante da herança de M. G., e a restituição à massa de qualquer quantia que lhe tenha sido entregue pelo fiduciário, em sequência dos rateios parciais, e pagamentos efectuados no âmbito destes Autos de Insolvência.
Em despacho proferido em 01-04-2019 ainda se insistia por informação sobre tal pagamento, a pedido do insolvente de alguns credores, tendo sido determinada a notificação da Caixa ..., S.A. no sentido de informar os presentes autos se já efectuou a restituição do valor de €61.000,00 acrescido de juros vencidos e vincendos, à taxa civil de 4%, até efectivo pagamento, devidos desde 15.01.2008, à herança/herdeiros por óbito de M. G., representada por J. F., e outro(s), e em resultado da condenação do Tribunal da Relação de Lisboa – 6.a Secção, de 23/02/2017, confirmada por Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, de 28/09/2017 – Proc.º 659/12.6TVLSB.L1.
Tendo, de igual forma sido ordenada a notificação do credor reclamante J. F., enquanto herdeiro da falecida M. G., no sentido de informar os presentes autos se já foi restituída, por parte da Caixa ..., a quantia de €61.000,00 acrescido de juros vencidos e vincendos, à taxa civil de 4%, até efectivo pagamento, devidos desde 15.01.2008, à herança/ herdeiros por óbito de M. G., representada por J. F., e outro(s) e em resultado da condenação do Tribunal da Relação de Lisboa – 6.ª Secção, de 23/02/2017, confirmada por Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, de 28/09/2017 – Proc. 659/12.6TVLSB.L1.
Em cumprimento do determinado veio o credor reclamante J. F., por correio electrónico datado de 11-04-2019, informar os presentes autos que foi restituído pela Caixa ..., S.A. na quantia mencionada, acrescida de juros.
A Caixa ..., S.A. nada disse até hoje.

Notificados para se pronunciarem, os credores R. R. e J. L., por requerimento de 06-05-2019, vieram requerer a exclusão do referido crédito da presente insolvência e, em consequência, a elaboração de novo mapa de rateio com vista ao pagamento aos credores remanescentes em função do rendimento já cedido pelo insolvente, sem prejuízo da salvaguarda dos montantes necessários para assegurar as custas do processo.
Por requerimento de 08-05-2019, veio o insolvente invocar que, tendo o referido credor J. F. confirmado a restituição integral, pela Caixa ..., da quantia por si reclamada nestes autos, não fará sentido que o mesmo integre os mapas de rateio, devendo, por isso, ser excluído dos mesmos, sob pena de vir a receber a quantia reclamada em duplicado, prejudicando o aqui insolvente e os demais credores, devendo ainda, eventualmente, ser ordenada a restituição das quantias que haja recebido na sequência de rateios parciais, no âmbito destes autos, caso tenham ocorrido.
Em requerimento datado de 31-05-2019 veio o Sr. Administrador da Insolvência/Fiduciário informar que, relativamente aos credores J. F., V. F. e R. T., aguarda informação por parte dos autos a confirmar ou não se o crédito já foi liquidado através da Caixa ..., sendo que, caso já tenha sido pago entende o Sr. AI não haver lugar a rateio a distribuir pelos referidos credores, devendo ser devolvidas ao insolvente as quantias entregues e suspensa a apreensão do vencimento.
Por requerimento datado de 07-06-2019, vieram os credores reclamantes J. F., V. F. e R. T. alegar, em síntese, que os mesmos instauraram uma acção declarativa de condenação contra a Caixa ..., que correu os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa com o processo n.º659/12.6TVLSB, tendo sido proferido acórdão transitado em julgado em 2017.
Que a causa de pedir na dita acção civil se concretizava no facto de a Caixa ... ter pago ao aqui insolvente um cheque em que a assinatura da sacadora era falsificada, no valor de 61.000,00 €, no âmbito de um contrato de depósitos à ordem que mantinha com a falecida tia dos exponentes, D. M. G., faltando pois culposamente ao cumprimento das suas obrigações e incorrendo na obrigação de indemnizar por responsabilidade civil contratual.
E que, na sequência do trânsito em julgado do referido acórdão, que condenou a Ré CAIXA ..., vieram os aqui exponentes a ser pagos pela mesma.
Não obstante, os referidos credores reclamantes explicaram que o crédito reclamado pelos mesmos, no âmbito do presente processo de insolvência, não se extinguiu pelo pagamento que vieram a receber da Caixa ..., uma vez que o insolvente é devedor dos referidos credores reclamantes em virtude da sua responsabilidade civil por facto ilícito e criminal.
Mais concretizam que, o crédito reclamado e reconhecido aos referidos credores reclamantes resulta de condenação do insolvente pela prática de um crime e da responsabilidade civil extracontratual daí decorrente, que fez o insolvente incorrer na obrigação de indemnizar, sendo a causa de pedir, neste último caso, os factos constitutivos da prática dos crimes de burla, falsificação de documento e furto simples em que o insolvente foi condenado.
Assim, os mesmos concluem que demandaram a Caixa ... por incumprimento contratual culposo, obtiveram ganho de causa e foram por aquela pagos. Contudo, tal nada tem a ver com a responsabilidade civil por facto ilícito que fundamenta o crédito que aqui lhes foi reconhecido na presente insolvência, sendo duas obrigações distintas, que não se confundem ou se extinguem mutuamente pelo pagamento de uma delas, com sujeitos jurídicos passivos distintos bem como causas de pedir distintas.
Pugnam que os reclamantes continuam a ser credores reconhecidos e com direito a receber a sua quota-parte resultante da liquidação efectuada nos presentes autos de insolvência.
Tendo sido solicitado aos autos de processo n.º659/12.6TVLSB, certidão do acórdão aí proferido, com menção do respectivo trânsito em julgado, a mesma veio a ser junta, conforme consta de fls. 813 e seguintes, cujo teor sustenta o alegado pelos credores reclamantes.
Tendo sido notificado para se pronunciar sobre o teor da certidão junta aos autos, por requerimento datado de 19-09-2019, veio o Sr. AI/Fiduciário manifestar que mantem a opinião anteriormente assumida.

Procedeu-se a julgamento do incidente suscitado, que culminou com o seguinte dispositivo.
“Em face do exposto, deve haver lugar a rateio a distribuir também pelos credores J. F., V. F. e R. T., nos termos em que o seu crédito lhes foi reconhecido, verificado e graduado no âmbito dos presentes autos de insolvência.”

Inconformada com essa decisão, o Recorrente acima identificada apresentou recurso da mesma, que culmina com as seguintes
conclusões.

I – O Apelante contesta o Douto Despacho que determinou dever haver lugar a rateio também a distribuir pelos credores J. F., V. F. e R. T., infirmando dessa forma a pretensão do Insolvente (e de outros credores), de ver excluído o crédito que aqueles haviam reclamado nestes autos, e elaborado novo mapa de rateio com vista ao pagamento aos credores remanescentes em função do rendimento já cedido pelo insolvente, ora recorrente;
II – A questão que aqui se coloca, é a de se saber se o crédito reclamado nestes Autos de Insolvência, pelos credores J. F., V. F. e R. T., deverá ou não ser excluído do mapa de rateio, considerando que os mesmos credores receberam, na pendência deste processo de insolvência uma indemnização, por parte terceiro aos Autos, em sequência de decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa – 6.ª Secção, de 23/02/2017, confirmada por Acórdão do Supremo Tribunal de justiça, de 28/09/2017 659/12.6TVLSB.L1), com o mesmo escopo, visando a restituição da mesma quantia que foi subtraída de conta da falecida M. G., e inerentemente à herança dos aqui reclamantes;
III - Entende o Apelante que a decisão em crise padece de ERRO DE JULGAMENTO!
IV - O facto dos herdeiros/aqui reclamantes, terem recebido uma quantia de um terceiro (Caixa ...), que teve em vista, unicamente, a finalidade de restituir aos herdeiros de M. G., a quantia que lhe fora subtraída por acção do insolvente, e, simultaneamente, por omissão (do dever de zelo) da Caixa ..., afecta, de sobremaneira, o crédito reclamado;
V – Que, apesar de diferente natureza (proveniente de condenação civil de pedido enxertado em processo crime), e contra diferente sujeito passivo, não deixa de ter a mesma única finalidade, ou seja, a restituição da quantia subtraída à herança;
VI – Tendo tal quantia sido já restituída àqueles credores deverá considerar-se extinto o crédito reclamado, por inutilidade superveniente da lide (cfr. arts. 277.º, al. e) e 849.º, do CPC, ex-vi art.º 17.º do CIRE), e consequentemente serem os mesmos excluídos do rateio a distribuir;
VII - A inutilidade superveniente da lide ocorre, neste caso, porque o escopo visado com a acção foi atingido por outro meio;
VII - A decisão recorrida, implica uma duplicação de quantias;
VIII - Aos herdeiros foi-lhes restituída, pela Caixa ..., a quantia que lhes fora indevidamente subtraída, quantia, essa, que também reclamam nestes Autos ao Insolvente;
IX - Salvaguardando o devido respeito, entendemos que os credores em causa, estão a fazer uso indevido do Direito, para à custa do locupletamento de património do insolvente, e em prejuízo dos restantes credores, enriquecerem, através da duplicação de uma quantia que já lhe foi restituída;
X - A decisão recorrida não salvaguarda os princípios da unidade do nosso ordenamento jurídico (e mesmo da Ordem Moral), nem os princípios da igualdade entre credores, e da adesão (do processo civil ao processo criminal – art. 71.º do CPP).
XI - Coloca em causa o princípio da unidade do nosso ordenamento jurídico, porque não se deverá permitir que alguém fazendo uso de dois institutos jurídicos diferentes, e de diferente natureza (acção cível tendo por base responsabilidade civil contratual, e pedido cível enxertado em processo criminal), possa vir a ser restituído da mesma quantia em duplicado, e por diferentes sujeitos;
XII - Não respeita o princípio da igualdade dos credores (cfr. art.º 242,º do CIRE), por entendermos estarem estes credores a beneficiar de vantagens especiais em relação aos outros credores, pois já lhes foi restituída na íntegra (por terceiro – Caixa ...) a quantia que reclamaram (restituição da quantia subtraída à herança), e aos demais credores reclamantes não, como também não recebem em duplicado;
XIII - A este respeito, os efeitos da insolvência "têm subjacente o princípio da par conditio creditorum, dirigindo-se, basicamente, a impedir que algum credor possa obter, por via distinta do processo de insolvência, uma satisfação mais rápida ou mais completa, em prejuízo dos restantes credores" (Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, Coimbra: Almedina, 2018, p. 196);
XIV - Coloca-se em causa o princípio da adesão, consagrado no art.º 71.º do CPP, porque, com base nele, pretendeu o legislador proteger o património do demandado, e concentrar num único processo as responsabilidades civis quando provenientes da prática de factos ilícitos (criminais);
XV - A decisão recorrida se coaduna com espírito do legislador, e com o direito do insolvente (e seu agregado) a ter uma vida digna, e a um fresh start, impondo-lhe, necessariamente, sacrifícios e restrições económicas que vão afectar, não só o modo de vida do insolvente, mas também do seu agregado familiar por mais anos para além do razoável;
XVI - Permitir-se nova restituição aos herdeiros/reclamantes do dinheiro subtraído à herança, poderá configurar um enriquecimento sem causa (cfr. art 473.º e ss. do Cód. Civ.), por recebimento de uma quantia injustamente recebida (considerando já lhes ter sido restituída a quantia que lhes fora subtraída);
XVII - Ou até abuso de direito (cft. Art.º 334.º Cód. Civ.), por poderem tais credores a exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, e o fim económico do seu direito (de restituição da quantia integral que lhes foi subtraída);
XVIII – Em face do exposto, deverá ser revogado o despacho em crise, e proferido outro em consonância com o requerido a fls.., por requerimento de 08-05-2019, que exclua do rateio a distribuir os credores J. F., V. F. e R. T., em virtude de a estes já lhes ter sido restituída (por terceiro à insolvência) a quantia, aqui reclamada de € 61.000,00, correspondente à quantia que lhe foi subtraída enquanto herdeiros de M. G., havendo lugar, em relação a estes credores à extinção superveniente da lide, porque o escopo visado com a acção foi atingido por outro meio (acção responsabilidade contratual intentada contra a Caixa ...).

Disposições violadas ou inadequadamente aplicadas:

- art.º 242.º do CIRE;
- arts. 277.º al. e), e 849.º do CPC, ex-vi art.º 17. º do CIRE; e
- arts. 473.º e ss., e 334.º do Cód. Civil.

TERMOS EM QUE:
Deverá o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser revogado o despacho recorrido, e proferido outro em consonância com o requerido a fls.., por requerimento de 08-05-2019, que exclua do rateio a distribuir os credores J. F., V. F. e R. T., em virtude de a estes já lhes ter sido restituída (por terceiro à insolvência) a quantia, aqui reclamada de € 61.000,00, correspondente à quantia que lhe foi subtraída enquanto herdeiros de M. G., havendo lugar, em relação a estes credores à extinção superveniente da lide, porque o escopo visado com a acção foi atingido por outro meio (acção responsabilidade contratual intentada contra a Caixa ...),…

Os Recorridos não apresentaram alegações.

2. QUESTÕES A DECIDIR

Nos termos dos Artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de actuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial.(1) Esta limitação objectiva da actividade do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº 3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas (2) que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas. (3)

As questões enunciadas pela recorrente podem sintetizar-se da seguinte forma:

- Se os credores J. F., V. F. e R. T. devem ou não ser excluídos do rateio determinados nos autos.

Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.

3. FUNDAMENTAÇÃO

3.1. FACTOS A CONSIDERAR

Os acima relatados e ainda os tidos em conta pela decisão impugnada, infra considerados e complementados pelo que documental os autos (cf. art. 663º, nº 6, do Código de Processo Civil).

3.2. DO DIREITO APLICÁVEL

De acordo com a decisão impugnada, em suma, não há lugar a qualquer modificação do julgado no apenso de reclamação de créditos que reconheceu crédito, sic, reclamado pelos credores J. F., V. F. e R. T., e posteriormente reconhecido em lista de créditos elaborada pelo Sr. AI, conforme consta de fls. 3 e 4 do apenso de reclamação de créditos, bem como, verificado e graduado, conforme consta da sentença proferida em 05-04-2016, como consta de fls.17 e seguintes do referido apenso.
Esse crédito, tal como disse o Tribunal a quo e também não foi questionado pelo Recorrente (cf. art. 640º, do C.P.C.), tem como fonte, sic, um pedido de indemnização civil, deduzido no âmbito de um processo-crime, com o n.º3835/08.2TAVNG, que correu os seus termos na 2.ª Vara de Competência Mista do Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia, no qual o aqui insolvente era arguido, e no âmbito do qual, por sentença e posterior acórdão transitado em julgado o arguido, agora insolvente, foi condenado, na acção cível enxertada, a pagar a J. F., na qualidade de herdeiro de M. G., a quantia de 61.000,00 Euros, a título de danos patrimoniais, acrescidos de juros de mora à taxa legal até efectivo e integral pagamento. Estes juros seriam devidos desde 13.1.2008, como fixou essa sentença, transitada em 26.3.3014, e esse crédito foi relacionado pelo Administrador da presente insolvência como crédito comum, num valor total de 73969,21€ (61000€+12969,21€ de juros), em lista de credores homologada por sentença proferido no apenso A destes autos, em 5.4.2016. (4)
Já o crédito satisfeito pela Caixa ... e que é apontado pelo Apelante como razão da sua pretensão, tem por fonte o julgado no processo n.º659/12.6TVLSB, maxime a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 23.2.2017, transitado em 16.10.2017, que deferiu aos mesmos credores indemnização emergente de responsabilidade contratual, no valor correspondente ao montante do cheque indevidamente pago por aquela instituição bancária e cuja assinatura havia sido imitada pelo aqui apelante ou alguém a seu mando (61000€), acrescido de juros devidos desde 15.1.2008 (5).

Perante tal factualidade e argumentação da sentença em crise, o Apelante defende, em primeiro lugar (item VI. das suas conclusões), que tendo tal quantia sido já restituída àqueles credores, ainda que por terceiro e por efeito de acção em que se discutia obrigação de diversa natureza, deverá considerar-se extinto o crédito reclamado, por inutilidade superveniente da lide (cfr. arts. 277.º, al. e) e 849.º, do CPC, ex-vi art.º 17.º do CIRE), e consequentemente serem os referidos credores excluídos do rateio deferido na apontada decisão de 5.4.2016.
De acordo com a al. e) desse art. 277º, do Código de Processo Civil, a instância extingue-se com: (e) A impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide.
Por sua vez, o citado art. 849º, do mesmo Código, reporta-se especialmente às causas de extinção de processo de execução, incluindo a sua inutilidade superveniente, e o art. 17º do CIRE, manda aplicar aos processos por si regulados o Código de Processo Civil, em tudo o que não contrarie as disposições do primeiro.
Como ainda recentemente ficou dito em Ac. desta Relação de Guimarães (6): A inutilidade superveniente da lide, como causa de extinção da instância, prevista na al. e), do art. 277º, do CPC, dá-se quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não possa subsistir seja por motivos atinentes ao sujeito, seja por razões ligadas ao objecto do processo, seja porque foi, entretanto, satisfeita fora do esquema da providência pretendida (7).
A inutilidade superveniente da lide pode verificar-se porque, por facto ocorrido na pendência da causa, a continuação da lide não tenha qualquer utilidade, se extinguiu o sujeito, porque se extinguiu o objecto ou, ainda, porque se extinguiu a causa de pedir. (8)
O termo da lide por força da al. e), do art. 277º, do CPC, na inutilidade superveniente, supõe a ulterior ocorrência de circunstância que notoriamente retire às partes o interesse em agir, aferido em função da necessidade de tutela judicial e da adequação do meio em curso, ou seja, se as partes forem privadas daquele pressuposto processual (9).
Ora, no caso em apreço, está fora de questão cessar neste momento, ainda que parcialmente, a instância – Apenso A – onde se reconheceu e homologou o crédito agora posto em causa pelo Apelante, dado que a mesma há muito se extinguiu, por outra causa, neste caso, por julgamento (cf. art. 277º, al. a), do Código de Processo Civil).
Por isso, tal como se subentende da decisão recorrida, o julgado aí firmado é incontornável, nos termos e com a abrangência prevista no art. 619º, nº 1 (10), do mesmo Código.
Desde logo, não encontramos viabilidade, ainda que se considerasse aqui aplicável a norma do art. 849º, do C.P.C., em considerar que ocorreu facto superveniente que extinguiu a obrigação do Insolvente para com os credores do citado crédito de 73969,21€.
Para tanto, haveria que considerar que na pendência do processo em curso – exoneração do passivo restante, onde se procura, além de mais, anualmente, proceder à distribuição do remanescente (dos pagamentos referidos no art. 241º, nº 1, als. a) a c), do CIRE) pelos credores da insolvência, nos termos prescritos para o pagamento aos credores no processo de insolvência (cf. al. d), desse mesmo nº 1), teria ocorrido, na perspectiva da Apelante, a extinção, por pagamento, do crédito comum reclamado e acima identificado.
Acontece que tal solução hipotética seria, desde logo, nula, de acordo com a previsão do art. 242º, nº 1, do CIRE, que prevê tal invalidade para a concessão de vantagens especiais a um credor da insolvência pelo devedor ou por terceiro.
Acresce que, como resulta patente do acima exposto e já disse a decisão recorrida, estamos perante obrigações de pessoas distintas, com fontes dissemelhantes, pelo que a confusão pretendida pelo Recorrente carece de sustento.
Mais reforça essa carência, a circunstância de estarmos perante facto protagonizado por terceira pessoa, alheia à relação discutida nestes autos, em concreto o crédito reclamado pelos herdeiros da falecida M. G.. Nesse quadro, para que a prestação efectuada pela Caixa ..., por consequência do direito declarado no processo n.º659/12.6TVLSB, fosse alguma vez considerada como extintiva do débito do Apelante, era necessário que se verificasse alguma das excepções previstas no art. 770º, do Código Civil, ou seja, esse facto só poderia ser considerado como tal: a) Se assim foi estipulado ou consentido pelo credor; b) Se o credor a ratificar; c) Se quem a recebeu houver adquirido posteriormente o crédito; d) Se o credor vier a aproveitar-se do cumprimento e não tiver interesse fundado em não a considerar como feita a si próprio; e) Se o credor for herdeiro de quem a recebeu e responder pelas obrigações do autor da sucessão; f) Nos demais casos em que a lei o determinar. Sucede que, nem existe norma que o determine neste caso particular, nem a situação apurada cabe em alguma dessas outras previsões excepcionais.
De tudo isto resulta que é impossível afirmar que o direito de crédito reclamado pelos referidos credores nestes autos se extinguiu, por pagamento, na pendência destes autos, o que inviabiliza o raciocínio do Apelante e torna improcedente a referida inutilidade superveniente.

Chegados aqui, é necessário salientar que estamos perante direito reconhecido aos mencionados credores que decorre ou tem como título pelo menos duas decisões judiciais transitadas: a do processo-crime que fixou a indemnização cível em causa e a que, já nestes autos, homologou a reclamação desse crédito nos termos acima expostos.
Deste modo, considerando que nestes autos e relativamente ao direito declarado e agora questionado estamos perante uma fase executiva, que visa cobrar, nos moldes admitidos pelos art. 239º a 241º, do CIRE, o respectivo valor, julgamos ser aqui aplicável, ex vi do seu art. 17º, o regime do processo executivo e, nessa medida, deixar claro que nesta fase é inadmissível considerar relevante qualquer facto que não se inclua na previsão do art. 729º, do Código de Processo Civil, onde se estabelecem os fundamentos de oposição à execução baseada em sentença.
Nessa linha de pensamento, a única possibilidade de discutir os restantes argumentos do Apelante é a prevista no al. g), desse art. 729º, ou seja, procurando neles qualquer facto extintivo ou modificativo da obrigação que: seja posterior ao encerramento da discussão no processo de declaração e se prove por documento.
No que diz respeito a este último requisito, apesar das indagações feitas pelo Tribunal a quo, não foi junto aos autos qualquer documento que atestasse o alegado facto extintivo, no caso, o pagamento posterior, feito por terceiro, que teria reposto o património dos credores na medida do que se exige no crédito aqui reclamado.
No entanto, no incidente suscitado, e em articulado subscrito pelo mandatário dos credores (fls. 809), foi judicialmente confessada a matéria acima enunciada: o recebimento da quantia fixada no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, após o seu trânsito, o que, como resulta do disposto no art. 364º, nº 2, do Código Civil, é prova bastante para se considerar tal facto à luz do citado art. 729º. (11)
No que toca ao primeiro requisito da citada al. g), desse mesmo artigo, está igualmente satisfeita essa exigência na medida em que, conforme decorre da factualidade considerada, o pagamento feito pela Caixa ... foi feito depois de Outubro de 2017, muito depois de encerrado o julgamento do crédito em apreço, no apenso A desta insolvência.

Posto isto, qual a viabilidade das restantes excepções adiantadas pelo Recorrente.

Além do acima discutido, o Apelante esgrime o argumento da violação do princípio da unidade do nosso ordenamento jurídico, defendendo novamente que se está a falar da mesma quantia, sem deixar de reconhecer que estamos perante fontes jurídicas de diversa natureza (cf. item XI.).
Sendo certo que estamos perante indemnizações deferidas aos mesmos credores, que tem por base, em parte, o mesmo facto histórico, em concreto o desapossamento da quantia de 61000 euros que a falecida M. G. (da qual os mencionados credores são herdeiros), titular da conta bancária na Caixa ..., detinha nessa instituição, certo é que a fonte de cada uma das obrigações em confronto é complexa, envolve outra factualidade e tem propósitos distintos. No caso do crédito reclamado no apenso A desta insolvência estamos perante crédito emergente de responsabilidade civil extracontratual do aqui insolvente e Apelante, em que a ilicitude, elemento cumulativo da respectiva causa de pedir, se relaciona com a violação de normas penais, e, no âmbito do processo em que foi envolvida a Caixa ..., estamos perante responsabilidade contratual desta.
Destarte, não vemos como essa diversidade, acolhida pelo nosso ordenamento jurídico, pode permitir a conclusão da Apelante.
E essa afirmação mantém-se quando analisamos as normas que cita para precisar a alegada violação dessa unidade.
O art. 9º do Código Civil, estipula, é certo, que (1.) a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada. (2.) Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso. (3.) Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.

No que respeita ao citado art. 242º, do CIRE, como acima expusemos, não é viável supor que o pagamento feito pelo aqui terceiro, a Caixa ..., pode alguma vez ser considerado liquidação do crédito reclamado nestes autos, pelo que não encontramos nessa norma viabilidade para a interpretação feita pela Apelante que sugere alguma violação do princípio da igualdade dos credores nesta insolvência.

Menos compreensível se torna a posição do Recorrente quando invoca uma suposta violação do princípio da adesão, estabelecida no art. 71º (12), do Código de Processo Penal. Há com certeza um grande equívoco da sua parte em querer que alguma vez essa norma fosse interpretada com o sentido de impor aos referidos credores que a responsabilidade contratual que motivou a demanda e responsabilização da Caixa ... fosse confundida com responsabilidade criminal ou sequer com responsabilidade extracontratual que possibilitaria (cf. art. 73º, do Código de Processo Penal), mas nunca imporia, a sua intervenção em alguma instância cível conexa com processo-crime. Estamos, perante interpretação inconsistente, que não colhe qualquer equivalência verbal com a letra dessa norma (cf. supra citado art. 9º, nº 2, do C.C.).

Adicionalmente, o Apelante encontra na decisão recorrida erro de julgamento fundado na violação do espírito do legislador na previsão do regime de exoneração do passivo restante que está em curso nos presentes autos.
Como se menciona no Acórdão desta Relação de 4.4.2017 (13), essa exoneração do passivo restante proporciona ao insolvente, findo o período de cessão, um "fresh start", uma possibilidade de recomeçar a sua vida do ponto de vista económico-financeiro, liberto de todas as suas dívidas.
Contudo, pelas consequências que da exoneração do passivo restante advêm para os credores - não incluídos no art. 245.º/2 do CIRE -, o legislador sujeitou a possibilidade da sua concessão à observância de determinadas condições, previstas nos artºs 238º e 239º do CIRE, entre elas a de durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência (período da cessão), o devedor entregar ao fiduciário o rendimento disponível, fixado judicialmente, integrando o conceito de "rendimento disponível" todos os rendimentos referidos no art. 239.º/3 CIRE.
Conclui-se assim que durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência (período de cessão) é exigido ao insolvente um esforço económico-financeiro elevado, para que os seus credores sejam satisfeitos na maior medida possível (até porque nas mais das vezes a admissão liminar do pedido de exoneração do passivo restante é efectuada contra vontade expressa dos credores), já que, findo esse período, os créditos que não tiverem logrado pagamento ficarão por liquidar.
Ora, desde logo, este efeito renovador do balanço financeiro do insolvente tem excepções, que incluem, como bem saberá, os créditos previstos no art. 245º, nº 2, do CIRE, onde por sinal se incluem as indemnizações devidas por factos ilícitos dolosos praticados pelo devedor, que hajam sido reclamados nessa qualidade, e este é precisamente o caso dos crime de burla e falsificação pelos quais o Apelante foi condenado e serviram de causa de pedir do crédito indemnizatório reclamado nestes autos pelos credores cujo rateio impugna.
Adicionalmente, é preciso relembrar que o fresh start garantido pelo regime dos citados normativos do CIRE fica salvaguardado, na perspectiva do legislador (cf. art. 9º, do C.C.), com as exclusões mencionadas no dispositivo do art. 239º, nº 3, do CIRE, durante o chamado período de cessão (durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência – cf. nº 1, desse art. 239º) e, a final, com o efeito extintivo de todos os créditos da insolvência que subsistam, ressalvados os já mencionados no art. 245º, nº 2, do mesmo CIRE.
Dito de forma prático, o regime em causa permite ao insolvente o recomeço, com determinadas garantias e diversas condições, entre as quais não se encontra a isenção do pagamento de obrigações oportunamente reclamadas, entre as quais as dos herdeiros da falecida M. G., inexistindo qualquer violação das normas que o estabelecem (cf. art. 9º, nº 2, do C.C.) pelo simples facto de, repete-se, noutra acção, terceiro, ter, por diversa razão, sido obrigado a indemnizar estes mesmos e entretanto ser pago o respectivo montante.

Cumulativamente, o Recorrente invoca a existência de um enriquecimento sem causa (Item XVII).
Dita o citado art. 473º, do Código Civil, que (1.) aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou.
O instituto do enriquecimento sem causa surge-nos como fonte autónoma das obrigações, sendo certo que, de acordo com o princípio da subsidiariedade, o empobrecido só pode recorrer à acção de enriquecimento à custa de outrem, quando não tenha outro meio para cobrir os seus alegados prejuízos.
O Apelante/Requerente não estruturou a seu pedido incidental de 8.5.2019 com base no enriquecimento sem causa, antes, invocando, sem qualquer referência legal ou factual minimamente exaustiva, o recebimento de quantia reclamada em duplicado, em seu prejuízo, pelo que esse argumento não pode ser tema deste recurso, pelas razões acima assinaladas em 2.. Sem prejuízo do exposto, sempre se dirá que nunca teria viabilidade dado que, para beneficiar do instituto previsto no art. 473º e ss., do Código Civil, competia-lhe alegar e provar os respectivos pressupostos cumulativos, ou seja: a) a existência de um enriquecimento; b) a obtenção desse enriquecimento à custa de outrem; c) a ausência de causa justificativa para o enriquecimento. Ocorre que, como repetidamente se enunciou supra, ambos os créditos em causa estão sustentados em decisões judiciais transitadas e inconfundíveis, pelo que esse último pressuposto não se encontra presente nos factos a considerar, antes pelo contrário.

Por fim (item XVII.), no que concerne ao alegado abuso de direito, rege o disposto no art. 334º, do Código Civil, onde se estabelece que é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
O Apelante entende, em suma, que permitir aos mencionados Credores a restituição do dinheiro subtraído à falecida integra comportamento subsumível a essa previsão.
Vejamos se assim acontece.
A figura do abuso de direito surge como uma forma de adaptação do direito à evolução da vida, serve como válvula de escape a situações que os limites apertados da lei não contemplam por forma considerada justa pela consciência social vigorante em determinada época, evitando que, observada a estrutura formal do poder que a lei confere, se excedam manifestamente os limites que se devem observar tendo em conta a boa fé e o sentimento de justiça em si mesmo. (14)
A ordem jurídica protege os interesses dos membros da comunidade, enquanto entre si se harmonizam e coexistem; isto é, protege-os enquanto são dignos de protecção e necessitados dela. (15)
Como refere Meneses Cordeiro (16): O abuso do direito apresenta-se, afinal, como uma constelação de situações típicas em que o Direito, por exigência do sistema, entende deter uma actuação que, em princípio, se apresentaria como legítima. (…) Surgem situações atípicas, ocorrências de sobreposição e ocorrências desfocadas, em relação aos núcleos duros dos diversos tipos.
No entender deste mesmo Professor, podem encontrar-se cinco subinstitutos, ausentes dos nossos manuais até há bem pouco tempo: venire contra factum proprium, inalegabilidade formal, suppressio, tu quoque e desequilíbrio no exercício. Todos eles traduzem concretizações de uma ideia tradicional: a da proibição do abuso do direito. Finalmente: todos apelam ao adensamento de um princípio clássico: a boa fé. (17)
Como já defendemos nesta matéria, a figura do abuso do direito está ligada à actuação da boa-fé, tributária do princípio da confiança, e daí que quem age violando tais princípios e o faz de maneira clamorosa, chocante do sentimento de justiça prevalente na comunidade, deve ver o seu direito paralisado, ou seja, não merece a protecção da lei.
O instituto do abuso do direito visa obtemperar a situações em que a invocação ou exercício de um direito que, na normalidade das situações seria justo, na concreta situação da relação jurídica se revela iníquo e fere o sentido de justiça dominante.
O abuso de direito pressupõe a existência da uma contradição entre o modo ou fim com que a titular exerce o direito e o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito aos casos em que se excede os limites impostos pela boa-fé.- Ac. do STJ, de 28.11.96, in CJSTJ, 1996, III, 117.
A parte que abusa do direito atua a coberto de um poder legal, formal, visando resultados que clamorosamente violam os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes, ou pelo fim económico ou social do direito.
Uma das vertentes em que se exprime tal actuação, manifesta-se, quando tal conduta viola o princípio da confiança, revelando um comportamento com que, razoavelmente, não se contava, face à conduta anteriormente assumida e às legítimas expectativas que gerou-“venire contra factum proprium”.
No âmbito da fórmula “manifesto excesso” cabe a figura da conduta contraditória “venire contra factum proprium” que se inscreve no contexto da violação do princípio da confiança, que sucede quando o agente adopta uma conduta inconciliável com as expectativas adquiridas pela contraparte, em função do modo como antes actuara.
Há abuso do direito, segundo a concepção objectiva aceite no artigo 334º do Código Civil sempre que o titular o exerce com manifesto excesso dos limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes, ou pelo fim económico ou social desse direito.
Não é necessária a consciência, por parte do agente, de se excederem com o exercício do direito os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito; basta que, objectivamente se excedam tais limites.-“Das Obrigações em Geral”, 7ª edição, pág. 536, Antunes Varela.
Para que se possa considerar abusivo o exercício do direito, importa demonstrar factos, através dos quais se possa considerar que, ao exercê-lo se excede, manifestamente, clamorosamente, o seu fim social ou económico, ou que a pretensão viola sérias expectativas incutidas na contraparte, assim traindo o investimento na confiança, o que exprime violação da regra da boa-fé.
O art.º 334º do Código Civil acolhe uma concepção objectiva do abuso do direito, segundo a qual não é necessário que o titular do direito actue com consciência de que excede os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico ou social do direito.
A lei considera verificado o abuso, prescindindo dessa intenção, bastando que a actuação do abusante, objectivamente, contrarie aqueles valores.

Como ensina o Professor Antunes Varela, obra citada, pág. 536:

Para que o exercício do direito seja abusivo, é preciso que o titular, observando embora a estrutura formal do poder que a lei lhe confere, exceda manifestamente os limites que lhe cumpre observar, em função dos interesses que legitimam a concessão desse poder.
É preciso, como acentuava M. de Andrade, que o direito seja exercido, “em termos clamorosamente ofensivos da justiça”.
Como ensina Fernando Cunha e Sá, in “Abuso do Direito”- pág. 640: “O abuso prescinde quer da causação de danos (pode haver um ato abusivo não danoso) quer, quando os haja, qualquer elemento subjectivo, na forma de dolo ou de mera culpa; ora sendo assim, a exigência de culpa requisito da responsabilidade civil por actos abusivos, depende da possibilidade de emitir um juízo de reprovação sobre a conduta do agente, pois nisso mesmo é que consiste a culpa.
Dito por outras palavras, depende da existência de um dever que impenda sobre o titular do direito subjectivo ou da diversa prerrogativa jurídica e que este tenha violado voluntariamente.
Como defende J.M. Coutinho de Abreu de modo incisivo, o abuso de direito deve ser concebido “como um comportamento que, aparentando ser exercício de um direito, se traduz na não realização dos interesses pessoais de que esse direito é instrumento e na negação dos interesses de outrem.” (18) Defende este Autor que o abuso de direito deve ser compreendido, numa tríplice vertente: “1) É abusivo o comportamento emulativo, isto é, o que visa apenas prejudicar outrem; 2) sempre que de um comportamento derivem utilidades actuáveis pelo direito invocado, quando a essas utilidades se juntem (escusadas) desutilidades para outrem (já não cobertas pelo direito), há, nessa medida, abuso de direito; 3) É abusivo o comportamento que se diz exercício de um direito quando – não constituindo tal exercício, mesmo em abstracto uma vantagem objectiva –, se revela resultar dele, em concreto, apenas (ou sobretudo) uma desvantagem para terceiro.”

Na aplicação prática desse instituto há ainda que ter em mente, como afirma Meneses Cordeiro (19), que ela depende de terem sido alegados e provados os competentes pressupostos — salva a hipótese de se tratar de posições indisponíveis. Além disso, as consequências que se retirem do abuso devem estar compreendidas no pedido feito ao Tribunal, em virtude do princípio dispositivo. Verificados tais pressupostos, o abuso do direito é constatado pelo juiz, mesmo quando o interessado não o tenha expressamente mencionado: é, nesse sentido, de conhecimento oficioso. O Tribunal pode, por si e em qualquer momento, ponderar os valores fundamentais do sistema, que tudo comporta e justifica. Além disso, não fica vinculado às alegações jurídicas das partes.
No caso, a factualidade acima exposta e que, de certa forma, se reconduz à alegação original do Requerente/Apelante, revela um duplo ressarcimento de um dano particular, sofrido pela herança da falecida M. G.: a já referida subtracção da quantia pecuniária de que dispunha na referida instituição bancária, acrescida da indemnização por mora, consubstanciada nos respectivos juros à taxa legal. Com efeito, embora por vias jurídicas diversas e visando responsáveis distintos, o dano ou desvalor patrimonial originalmente ressarcido em ambas as instâncias que acima se mencionaram foi, a final, o mesmo e, o que se pretendia em ambas era não mais do que a reconstituição da situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação, tal como dita o disposto no art. 562º, do Código Civil. Por isso, tivesse o pagamento feito pela Caixa ... sido feito na pendência da discussão de alguma das decisões que declararam o crédito dos herdeiros da M. G. sobre o património do aqui insolvente, o seu conhecimento obstaria à sua reparação pelo insolvente, concluindo-se que o património em causa estava reparado ou reconstituído, já que o nosso sistema jurídico não admite, por princípio, o duplo ressarcimento do mesmo dano, que o devedor o repare se ele não subsiste ou que pague duas vezes o mesmo débito.
São exemplo vulgar disso as situações em que os acidentes de viação são, simultaneamente, acidentes de trabalho, em que existe aturada jurisprudência a afirmar que as indemnizações a deferir, ainda que em regimes jurídicos diversos ou por sujeitos diferentes, não se devem cumular, antes complementar (20).
Constituem ainda afloramento desse princípio, as normas acima citadas e outras que regulam o enriquecimento sem causa. É ainda exemplo dessa ideia a regra estabelecida no art.764º, nº 2, do Código Civil, que obsta a uma repetição do pagamento quando na medida do que se comprove ter sido recebido pelo representante ou do enriquecimento do incapaz.
É essa também a matriz que subjaz ao Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, de 13.5.2014, onde se considerou que actua em abuso do direito, na modalidade de venire contra facta propria, o exequente que, depois de se apossar da coisa que, em qualquer caso, já se considera ter-lhe sido entregue, pede, posteriormente, a realização coactiva dessa mesma prestação (21).

A nosso ver, na situação que os factos assentes nestes autos permitem configurar, estamos perante uma situação de desequilíbrio, neste caso praticamente absoluto, no exercício das posições jurídicas em confronto.
Na doutrina exposta por Meneses Cordeiro (22), esse tipo do abuso de direito constitui um tipo extenso e residual de actuações contrárias à boa-fé e comporta diversos subtipos, entre os quais os seguintes: o exercício danoso inútil; dolo agit qui petit quod statim redditurus est (é contrário à boa fé exigir o que de seguida se deva restituir); desproporção grave entre o benefício do titular exercente e o sacrifício por ele imposto a outrem.
Em todas estas hipóteses - afirma o mesmo Professor - podemos considerar que o titular, exercendo embora um direito formal, fá-lo em moldes que atentam contra vectores fundamentais do sistema, com relevo para a materialidade subjacente. (…) O abuso do direito e a boa fé a ele subjacente representam, assim, sempre uma válvula do sistema: permitem corrigir soluções que, de outro modo, se apresentariam contrárias a vectores elementares. (23)
A situação factual que despoleta este incidente insere-se, julgamos, na modalidade dolo agit qui petit quod statim redditurus est, ou seja, consubstancia a cobrança de uma prestação que pode vir a ser restituída, dado que consubstancia um ressarcimento indevido do mesmo dano o que, clamorosamente, viola o princípio da boa fé que norteia o nosso sistema jurídica e bem assim os ditames relacionados com a proibição do duplo ressarcimento e figuras afins acima mencionadas, em suma, excedendo de modo inadmissível o fim económico e social do direito exercido.
Na doutrina enunciada por M. Coutinho de Abreu e acima anotada estaríamos perante uma caso de comportamento emulativo, isto é, o que tem como efeito dominante, objectivamente, prejudicar outrem (enriquecer à custa do património do devedor), já que se pretende a reparação de um desvalor que essencialmente e entretanto deixou de existir na esfera jurídica do credor.
Dando, deste modo, razão a esse argumento da apelação em apreço, a questão seguinte prende-se com a fixação dos efeitos desse abuso neste caso concreto.

As consequências podem ser variadas, como afirma Meneses Cordeiro (24):

— a supressão do direito: é a hipótese comum, designadamente na suppressio;
— a cessação do concreto exercício abusivo, mantendo-se, todavia, o direito;
— um dever de restituir, em espécie ou em equivalente pecuniário;
— um dever de indemnizar, quando se verifiquem os pressupostos de responsabilidade civil, com relevo para a culpa.

Neste caso, o Apelante, pedia originalmente que se restituísse o indevidamente pago e se excluísse o credor J. F., enquanto representante da herança titular do crédito, dos mapas de rateio e se restituíssem os valores eventualmente pagos.
Neste recurso, insiste apenas na primeira parte desta pretensão.
Por essa razão (de qualquer modo inexistem factos alegados e/ou demonstrados que suportassem esse segundo pedido), o efeito a aplicar no caso em apreço deverá ser, dada a natureza do procedimento em curso e do incidente em apreciação, a cessação do concreto exercício abusivo nestes autos, em concreto, a exclusão do crédito reclamado do rateio a efectuar, na medida em que não exceda o montante já pago pela Caixa ... no âmbito do referido processo conexo, isto porque desconhecemos o seu valor exacto e porque, do simples confronto de decisões, resulta que o crédito aqui homologado abrange mais dois dias de juros de mora do que os deferidos no processo cível em que foi demandada essa Caixa (haverá, por isso, que ressalvar a possibilidade de o valor pago ser efectivamente inferior ao que é devido nesta insolvência, ou seja, o pagamento aqui do que crédito excedente àquele).
É nesta medida, parcial, que procede a presente apelação.

4. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente a apelação, revogando-se parcialmente a decisão recorrida e determinando-se que o crédito reclamado por J. F., V. F. e R. T. seja excluído dos pagamentos/rateio a efectuar nos presentes autos, no valor que não exceda o que já foi pago aos mesmos pela Caixa ..., S.A..
Custas da Apelação pelo Recorrente e pelos Recorridos, na proporção de, respectivamente 1/10 e 9/10 (art. 527º, n.º 1, do C. P. Civil).
*
Guimarães, 05.12.2019

Assinado digitalmente por:
Rel. – Des. José Flores
1º Adj. - Des. Sandra Melo
2º - Adj. - Des. Conceição Sampaio



1. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2017, pp. 106.
2. Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, «Efetivamente, e como é entendimento pacífico e consolidado na doutrina e na Jurisprudência, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação». No mesmo sentido, cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 4.10.2007, Simas Santos, 07P2433, de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13.
3. Abrantes Geraldes, Op. Cit., p. 107.
4. Cf. fls. 17 e ss. desse apenso A
5. Cf. cópias e certidões juntas ao Apenso de originais das reclamações de créditos.
6. De 18.12.2017, in http://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/fe1713b4069aad728025824700359037?OpenDocument
7. Cf. Lebre de Freitas e outros, in Código de Processo Civil Anotado, vol. 1º, 1999, e Acórdãos da Relação de Lisboa de 18/11/2008 in CJ 2008, 5º, 91 e da Relação de Coimbra de 15/5/2007, Processo 80/1995.C1 e da Relação de Lisboa de 26/3/2009, Processo 927/07.9TBBNV.L1-8, ambos in dgsi.net.
8. Acórdãos da Relação de Lisboa de 20/5/2010, Processo 2541/03.9TCLRS.L1-6 e da Relação de Coimbra de 5/12/2012, Processo 1124/11.4TBTMR.C1, ambos in dgsi.net.
9. Acórdão do STJ de 21/5/2009, Processo 692-A/2001.S1 in dgsi.net
10. Transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 702.º.
11. Cf. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 4.7.2019, in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/ac694437401280638025842d0054a2fc?OpenDocument III III- O facto extintivo ou modificativo da obrigação a que se reporta a alínea g) do art. 729.º do C.P.C. só pode ser atendido nos embargos à execução se estiver provado por documento (ou por confissão do exequente). IV - Deste modo, a invocação de um pretenso abuso do direito por parte do exequente não pode levar à extinção da execução sob o argumento de se tratar de facto extintivo ou modificativo da obrigação. V - O executado que não tenha documento que lhe permita opor-se à execução e, no entanto, não deva, terá que propor uma acção declarativa para restituição daquilo que indevidamente pague em consequência do processo executivo. Nesse sentido vide também J. Lebre de Freitas, in A Acção Executiva- À Luz do Código de Processo Civil de 2013, 6ª Ed., p. 198.
12. O pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei.
13. In http://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/aeac46e22fd3179c8025812c0055ed8c?OpenDocument&Highlight=0,CESSA%C3%87%C3%83O,EXONERA%C3%87%C3%83O
14. Cf. Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa, de 23.9.2014, in http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/e6e1f17fa82712ff80257583004e3ddc/f285bfded8457ba180257d780050d7c6?OpenDocument
15. Pontes de Miranda, apud Judith Martins-Costa, in http://www.fd.ulisboa.pt/wp-content/uploads/2014/12/Costa-Judith-Os-avatares-do-Abuso-do-direito-e-o-rumo-indicado-pela-Boa-Fe.pdf
16. In Do abuso do direito: estado das questões e perspectivas, p. 9/10, https://portal.oa.pt/comunicacao/publicacoes/revista/ano-2005/ano-65-vol-ii-set-2005/artigos-doutrinais/antonio-menezes-cordeiro-do-abuso-do-direito-estado-das-questoes-e-perspectivas-star/
17. Ibidem, p. 1
18. In Do abuso de Direito – ensaio de um critério em direito civil e nas deliberações sociais, 1983, p. 43 e s., citado no Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 24.3.2015, in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/b8e799a5065a869a80257e120054bfc9?OpenDocument
19. Ibidem, p. 24
20. Cf., v.g., Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 29.4.2016, in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/-/B60A08B08E93EFC080257715003B1E68 - 1. Sendo simultaneamente de viação e de trabalho o mesmo acidente, não pode o lesado cumular duas indemnizações para ressarcimento do mesmo dano, uma ao abrigo do contrato de seguro do empregador, outra no âmbito do seguro do responsável pelo acidente. 2. O lesado tem o direito de optar pela indemnização que se lhe afigurar mais conveniente. 3. Entende-se que o lesado que, estando a receber a pensão arbitrada na acção por acidente de trabalho, pede e recebe uma indemnização atribuída pela perda de capacidade de ganho do sinistrado no processo relativo ao acidente de viação, opta por esta última, devendo restituir à companhia de seguros do empregador o que lhe tiver sido pago em duplicado.
21. In http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/f1c7694a6ae4050a80257cde003402e1?OpenDocument
22. Ibidem, p. 15
23. Ibidem, p.16
24. Ibidem, p. 24