Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2481/19.0T8GMR.G1
Relator: ALDA MARTINS
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO LABORAL
DIREITO DE AUDIÇÃO
OMISSÃO DE INDICAÇÃO DO ELEMENTO SUBJECTIVO DA CONTRA-ORDENAÇÃO LABORAL
PRESUNÇÃO DE NEGLIGÊNCIA
FALTA DE CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE DO FACTO POR ERRO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/05/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário:
1. O “Assento” do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2003, publicado no Diário da República n.º 21/2003, Série I-A, de 25/01/2003, tendo-se pronunciado sobre o art. 50.º – direito de audição e defesa do arguido previamente à aplicação de uma coima ou de uma sanção acessória – do Regime Geral do Ilícito de Mera Ordenação Social, aprovado pelo DL n.º 433/82, de 27 de Outubro, não releva em sede de procedimento por contra-ordenações laborais, posto que o Regime Processual Aplicável às Contra-ordenações Laborais e de Segurança Social, aprovado pela Lei n.º 107/2009, de 14 de Setembro, contém norma própria sobre a matéria, concretamente o seu art. 17.º, conjugadamente com o estabelecido no seu art. 15.º sobre os requisitos que deve observar o auto de notícia a notificar ao arguido.

2. A prévia audição do arguido, nos termos conjugados dos citados arts. 15.º e 17.º do Regime Processual Aplicável às Contra-ordenações Laborais e de Segurança Social, não impõe a concretização do elemento subjectivo da contra-ordenação que lhe é imputada.

3. Quer na decisão final da autoridade administrativa, quer na decisão judicial proferida no recurso de impugnação judicial daquela, a verificação objectiva da conduta que integra a descrição típica do ilícito contra-ordenacional permite concluir, por presunção natural, judicial ou de experiência, que o agente agiu, por acção ou por omissão, pelo menos negligentemente.

4. Estando em causa uma contra-ordenação, ao existir um erro sobre a proibição, nos termos do art.º 8.º do Regime Geral do Ilícito de Mera Ordenação Social, existe necessariamente falta de consciência da ilicitude do facto, nos termos do art. 9.º do mesmo diploma, mas, se a conduta for punível a título de negligência, como ressalvado no n.º 3 daquela primeira norma, a mesma só se tem por excluída se o erro não for censurável, nos termos do n.º 1 da segunda norma.

5. Considerando que as contra-ordenações laborais são sempre puníveis a título de negligência, ainda que a arguida não tivesse consciência da ilicitude da sua conduta, tal falta seria censurável, pois, tratando-se de uma sociedade por quotas, dedicada à actividade de fabricação de betão pronto, com um volume de negócios de 4.175.890,00 € (RU 2015), que tinha um trabalhador seu a laborar na obra em causa, era-lhe exigível que averiguasse e apreendesse as obrigações legais a que estava sujeita, na medida em que as empresas, se querem operar no mercado, têm o dever ético-jurídico de diligenciar por colmatar as lacunas de conhecimento, informando-se e esclarecendo-se em matéria de deveres inerentes à utilização de recursos humanos, em geral, e de segurança e saúde no trabalho, em particular.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Guimarães:

1. Relatório

O presente recurso foi interposto pela arguida X - Betão e Pavimentos Industriais, Lda., por não se conformar com a sentença que julgou improcedente o recurso de impugnação judicial por ela interposto e que confirmou a decisão da Autoridade para as Condições do Trabalho – Centro Local ..., que a havia condenado na coima de 4.284,00 €, pela prática, com negligência e em comparticipação com uma outra arguida (“Y – Pavimentos, Lda.”, que não impugnara a respectiva condenação), de uma contra-ordenação muito grave, prevista e punível pelos art. 40.º do Regulamento de Segurança no Trabalho da Construção Civil, aprovado pelo DL n.º 41.821, de 11-08-1958, art. 11.º da Portaria n.º 101/96, de 3-04, arts. 2.º, n.º 2, al. c), 22.º, n.º 1, al. m), e 25.º, n.º 4, do DL n.º 273/2003, de 29-10, art. 60.º da Lei n.º 107/2009, arts. 8.º, n.º 1, e 16.º do DL n.º 433/82, de 27-10, e arts. 550.º, 554.º, n.º 4, als. b) e c), e 556.º, n.º 1, do Código do Trabalho.

Formula as seguintes conclusões:

«1. Vem o presente recurso interposto da sentença do Juiz 2 do Juízo do Trabalho de Guimarães do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, que julgou improcedente a Impugnação Judicial apresentada pela Recorrente e, em consequência, decidiu manter a decisão proferida, condenando a recorrente no pagamento de uma coima no montante de 4.284,00 €, pela prática da contraordenação prevista e punível pelos artigos 40º do Regulamento de Segurança no Trabalho da Construção Civil aprovado pelo Dec. nº 41.821, de 11-8-1958, art. 11º da Portaria nº 101/96, de 3-4, arts. 2º, nº 2, al. c), 22º, nº 1, al. m), e 25º, nº 4, do D.L. nº 273/2003, de 29-10, art. 60º da Lei nº 107/2009, arts. 8º, nº 1, e 16º do Dec. nº 433/82, de 27-10 e arts. 550º, 554º, nº 4, al. c), e 556º, nº 1, do Código do Trabalho.
2. A Recorrente não se conforma com o sentido da decisão do Tribunal a quo e por isso vem dela interpor o presente recurso.
3. O processo contraordenacional é nulo dado que violou o disposto no artigo 50.º do RGIMOS.
4. O Tribunal de 1ª Instância julgou improcedente a nulidade invocada, alegando que a que a notificação da recorrente foi feita com observância das formalidades legais.
5. No entanto, da comunicação efectuada para exercer o direito de audição resulta uma completa omissão dos factos integradores do tipo subjectivo.
6. É referido na douta sentença recorrida que:
- “contrariamente ao invocado pela mesma arguida - não falta o elemento subjectivo na decisão impugnada por não constar dela, expressamente, que esta arguida tenha agido com negligência.
Pois, tal elemento subjectivo resulta dos dizeres da decisão administrativa, da qual se depreende a forma negligente dessa actuação infracional nos termos dos arts. 550º e 551º, nº 1, do Código do Trabalho em conjugação com o arts. 8º, nºs 1 e 3, e 32º do D.L. nº 433/82, de 27-10 e com o art. 15º do Código Penal”.
7. Entende a Recorrente que o elemento subjetivo do ilícito, atendendo à importância que o mesmo assume na imputação que é feita ao arguido, não pode de modo algum ser depreendido do que quer que seja, e tem necessariamente de resultar EXPRESSAMENTE da notificação que é feita ao arguido.
8. Não é admissível que se imponha ao arguido a tarefa de depreender a que título uma qualquer infração lhe é imputável.
9. A vertente subjetiva de tal imputação tem de ser clara e tem forçosamente de resultar da notificação que é dirigida ao arguido.
10. De referir que esta necessidade é claramente imposta por lei, designadamente do artigo 50.º do RGIMOS. Sem a referência a esta vertente subjetiva do ilícito a notificação efetuada ao arguido é NULA – cfr. Assento n.º 1/2003 do Supremo Tribunal de Justiça.
11. Não é possível estabelecer a imputação objectiva sem ter em conta a intencionalidade da Recorrente.
12. Pelo exposto resulta que a comunicação a que alude o artigo 50.º do RGIMOS efectuada à Recorrente é completamente omissa no que concerne ao elemento subjectivo da infração que é imputada ao Recorrente.
13. Deste modo, estamos perante uma nulidade processual, nos termos dos artigos 283.º n.º 3 do CPP, 41.º do RGIMOS e 120.º n.º 2 al. d) do CPP. Acresce que,
14. Devidamente analisada a douta sentença recorrida, logo se constante que também ela é omissa no que respeita à imputação subjetiva que é feita à Recorrente.
15. Não se referindo se foi a título de dolo ou a título de negligência.
16. E, sem este elemento, entende a Recorrente que se verifica uma nulidade insanável da douta sentença, a qual se invoca para os devidos e legais efeitos e se requer seja decretada.
17. Como resultou perfeitamente demonstrado através da prova produzida em juízo, a Recorrente, enquanto empregadora, e dentro das suas responsabilidades, assegurou que os seus trabalhadores trabalhassem em condições de segurança.
18. No local da obra, existiam guarda corpos, os quais foram colocados pelo empreiteiro geral da obra.
19. O estaleiro de construção civil sito na Rua …, Guimarães, para edificação de um pavilhão industrial pertence à dona de obra W – Comércio e Indústria de Confecções SA.
20. A obra de ampliação da unidade Fabril pertencente à W- Comércio e Indústria de Confecções S.A. está a cargo da Empreiteira Geral K -CONTRUÇÕES IMOBILIÁRIAS E TURISTICAS S.A.
21. A organização e manutenção em funcionamento do estaleiro está a cargo da Empreiteira Geral K - CONTRUÇÕES IMOBILIÁRIAS E TURISTICAS S.A.
22. A Recorrente nunca teve qualquer estaleiro montado em obra.
23. A intervenção da Recorrente resumiu-se à deslocação, pontual, de uma equipa de colaboradores e respetivos equipamentos/ferramentas, com vista a proceder à betonagem de uma parcela de pavimento, não havendo em qualquer momento a necessidade de levar a cabo a instalação e manutenção de um qualquer estaleiro.
24. A Recorrente e a sua subcontratada Y, serviram-se das instalações montadas e geridas pela Empreiteira-geral.
25. Aliás, a Empreiteira Geral, enquanto empresa de construção civil, teve e tem a seu cargo, entre muitos outros trabalhos, a execução de todos os trabalhos de construção civil inerentes à execução da estrutura portante do edifício (fundações, pilares, vigas, pré-lages, etc.)
26. Quando a Recorrente iniciou os seus trabalhos, no alinhamento 3 da fachada sul do edifício (entre os alinhamentos verticais L e M), e em resultado dos trabalhos prévios mencionados no ponto anterior, já haviam passado pelo referido local dezenas de outros trabalhadores.
27. Quando o representante da Recorrente se deslocou ao estaleiro, verificou que nas aberturas internas da laje haviam sido construídos guarda-corpos em madeira.
28. O representante da Recorrente não é perito em segurança e saúde no trabalho, mas sabia que não bra existia um Coordenador de Segurança e Saúde, assim como um Diretor Técnico, aos quais cabe velar que na execução dos trabalhos sejam disponibilizados aos trabalhadores condições adequadas de proteção coletiva e individual que previnam riscos de acidentes de trabalho.
29. Perante esta circunstância, jamais poderia a Recorrente suspeitar ou prever que os guarda-corpos existentes no local não cumpriam com “requisitos de estabilidade, resistência e eficácia para prevenção do risco de queda”.
30. Era a entidade executante - K - CONTRUÇÕES IMOBILIÁRIAS E TURISTICAS S.A. – que tinha o domínio da organização e da direcção globais do estaleiro, cabendo-lhe a ela promover e implementar o plano de segurança e saúde na execução da obra - Plano este que existia à data dos factos e que foi junto aos presentes autos.
31. Cabendo ao coordenador de segurança em obra verificar e velar pelo cumprimento do plano de segurança na execução da obra.
32. Em sede de audiência de julgamento, todas as testemunhas inquiridas atestaram estes factos, chegando mesmo a identificar a pessoa da K que era responsável pela segurança na execução da obra.
33. A Recorrente celebrou com a Empreiteira-geral um contrato de subempreitada pelo qual se obrigou à realização de “obras em betão”, obrigando-se a “fornecer todos os materiais, mão-de-obra, meios auxiliares de equipamentos e transportes, ou outros que sejam necessários para a execução e conclusão das obras no prazo contratado. Cumprirá também com as especificações do projecto, com a legislação aplicável, com as obras da boa execução, e com as instruções dadas pelo Empreiteiro”.
34. Antes da sua entrada em obra, vários outros trabalhos haviam já sido levados a cargo pela Empreiteira-geral (tais como a aplicação da armadura de reforço do betão que viria a ser posteriormente aplicado pela arguida/subempreiteira, a execução das paredes divisórias aí existentes, etc.)
35. Nestes termos, entende a Recorrente que não lhe pode ser assacada a prática de qualquer infração, concretamente, do artigo 40.º do Regulamento de Segurança no Trabalho da Construção Civil aprovado pelo Decreto n,º 41821 de 11/08/1958.
36. Todos estes factos ficaram perfeitamente claros aquando da produção de prova em audiência de julgamento.
37. Não se compreendendo como pode o douto Tribunal recorrido decidir como decidiu.
38. Assim, a Recorrente não se conforma com a douta decisão do Tribunal a quo, a qual viola e não faz uma correta apreciação, entre outros, do artigo 50.º do RGIMOS e dos artigos arts. 550º e 551º, nº 1, do Código do Trabalho em conjugação com o arts. 8º, nºs 1 e 3, 32º, 41º do D.L. nº 433/82, de 27-10 e com o art. 15º, 283.º n.º 3 e 120.º n.º 2 al. d) do CPP.
39. Nestes termos, deve aquela sentença ser revogada e a Recorrente absolvida de todas as infrações que lhe são imputadas.»

O Ministério Público apresentou resposta ao recurso, pugnando pela sua improcedência.
Admitido o recurso pelo tribunal recorrido, com efeito meramente devolutivo, subiram os autos a este Tribunal da Relação, onde o Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
Colhidos os vistos, teve lugar a conferência.
Cumpre apreciar e decidir.

2. Objecto do recurso

De acordo com o art. 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, aplicável ex vi art. 50.º, n.º 4, do regime processual das contra-ordenações laborais e de segurança social, aprovado pela Lei n.º 107/2009, de 14 de Setembro, o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

Assim, as questões a decidir são:

- Nulidade da notificação efectuada pela ACT à arguida, ao abrigo do disposto no art. 50.º do RGCO, por ausência de indicação do elemento subjectivo da contra-ordenação;
- Nulidade da sentença, igualmente por omissão quanto à imputação subjectiva à arguida da prática da contra-ordenação;
- Erro sobre a ilicitude.

3. Fundamentação de facto

Os factos relevantes para a decisão da causa são os seguintes:

1 - A arguida “Y-Pavimentos, Lda.”, NIPC …, volume de negócios € 981.089,00 (RU 2015), é uma sociedade por quotas, dedicada à actividade de revestimentos de pavimentos e de paredes (CAE …), com sede na Travessa …;
2 - A arguida “X, Lda.”, NIPC …, volume de negócios € 4.175.890,00 (RU 2015), é uma sociedade por quotas, dedicada à actividade de fabricação de betão pronto (CAE …), com sede na Avenida …;
3 - Verificou o inspector autuante de forma mediata, pessoal e directamente, pela consulta de comunicação de acidente de trabalho, remetida pela arguida Y-PAVIMENTOS, Lda. para o Centro Local ... da ACT, a 24 de Fevereiro de 2016, que o seu trabalhador A. G. tinha sofrido a 23 de Fevereiro de 2016, pelas 5H30, um acidente de trabalho grave, na obra de ampliação de uma unidade fabril-fiação, sita na Rua …, cujo dono da obra era a entidade W - Comércio e Indústria de Confecções;
4 - No decurso da visita inspectiva ao local de trabalho, no dia 23 de Fevereiro de 2016, foi a infractora notificada para que fosse possível recolher os elementos documentais necessários à realização do inquérito de acidente de trabalho;
5 - A 11 de Março de 2016, a arguida “Y - Pavimentos, Lda.” entregou nos Serviços do Centro Local ... da ACT os documentos requeridos, entre eles o relatório de análise de acidente de trabalho ocorrido a 23 de Fevereiro de 2016;
6 - Nesse relatório foi indicado como testemunha do acidente de trabalho o trabalhador G. M.;
7 - O trabalhador G. M., naquele dia e hora do acidente no local de trabalho, pelas 5H30 de 23 de Fevereiro de 2016, estava ao serviço da arguida X, Lda., sob a sua direcção, responsabilidade e mediante retribuição;
8 - Na visita inspectiva efectuada, logo pelas 10H30, do dia 23 de Fevereiro de 2016, observaram-se as condições de trabalho em que aqueles dois trabalhadores envolvidos no referido acidente de trabalho umas horas antes, o sinistrado A. G. e a testemunha G. M., tinham executado as tarefas que lhes tinham sido determinadas;
9 - Na execução de tais trabalhos, não tinham sido disponibilizadas a estes trabalhadores as condições adequadas de protecção colectiva e/ou individual que prevenissem o risco de queda em altura para o exterior da laje do 2.º piso do edifício em construção;
10 - As bordaduras da referida laje onde e por onde os trabalhadores tinham circulado com os materiais, e tinham executado as suas funções de cimenteiros, quer as aberturas interiores da laje, a uma altura de 7,5 metros para o exterior, não estavam dotadas de guarda-corpos duplo, ou protecção equivalente, com requisitos de estabilidade e resistência adequados;
11 - Devido à ausência de uma protecção colectiva e/ou protecção individual que efectivamente prevenisse o risco de queda em altura existente na laje, foi determinada a suspensão imediata dos trabalhos ao nível da laje;
12 - As arguidas laboravam no estaleiro de construção civil, sito na Rua …, Guimarães, para ampliação de um pavilhão industrial, com desrespeito pelas prescrições de segurança e regras técnicas de segurança e saúde no trabalho;
13 - A arguida Y - Pavimentos, Lda. obteve um volume de negócios de € 981.089,00 (RU 2015);
14 - A arguida X, Lda. obteve um volume de negócios de € 4.175.890,00 (RU 2015).

4. Apreciação do recurso

4.1. Conforme se referiu, a 1.ª questão suscitada pela Recorrente é a da nulidade da notificação efectuada pela ACT à arguida, ao abrigo do disposto no art. 50.º do Regime Geral do Ilícito de Mera Ordenação Social, aprovado pelo DL n.º 433/82, de 27 de Outubro, por ausência de indicação do elemento subjectivo da contra-ordenação, sustentando a Recorrente, inclusive, que foi violado o «Assento» n.º 1/2003.
Estabelece tal norma, sob a epígrafe «Direito de audição e defesa do arguido», que não é permitida a aplicação de uma coima ou de uma sanção acessória sem antes se ter assegurado ao arguido a possibilidade de, num prazo razoável, se pronunciar sobre a contra-ordenação que lhe é imputada e sobre a sanção ou sanções em que incorre.
Antes de mais, importa não olvidar que o Regime Processual Aplicável às Contra-ordenações Laborais e de Segurança Social, aprovado pela Lei n.º 107/2009, de 14 de Setembro, contém norma própria sobre o direito de audição e defesa do arguido previamente à aplicação de uma coima ou de uma sanção acessória, o qual estabelece o seguinte:

Artigo 17.º
Notificação ao arguido das infracções laborais

1 - O auto de notícia, a participação e o auto de infracção são notificados ao arguido, para, no prazo de 15 dias, proceder ao pagamento voluntário da coima.
2 - Dentro do prazo referido no número anterior, pode o arguido, em alternativa, apresentar resposta escrita ou comparecer pessoalmente para apresentar resposta, devendo juntar os documentos probatórios de que disponha e arrolar ou apresentar testemunhas, até ao máximo de duas por cada infracção.
3 - Quando tiver praticado três ou mais contra-ordenações a que seja aplicável uma coima única, o arguido pode arrolar até ao máximo de cinco testemunhas por todas as infracções.

Por seu turno, havendo lugar a auto de notícia, nos termos do art. 13.º, como é o caso dos autos, o mesmo deve mencionar especificadamente, de acordo com o art. 15.º, os factos que constituem a contra-ordenação, o dia, a hora, o local e as circunstâncias em que foram cometidos e o que puder ser averiguado acerca da identificação e residência do arguido, o nome e categoria do autuante, e, ainda, quando o responsável pela contra-ordenação seja uma pessoa colectiva ou equiparada, sempre que possível, a sede da pessoa colectiva e a identificação e a residência dos respectivos gerentes, administradores ou directores, bem como, no caso de subcontrato, a identificação e a residência do subcontratante e do contratante principal.

Ora, compulsado o auto de notícia que deu início aos presentes autos, constata-se que o mesmo contém todos estes elementos, sendo certo que, no que respeita ao elemento subjectivo da infracção, refere-se que:

«(…)
Com esta conduta, as infractoras Y-Pavimentos, Lda. e X, Lda., atuaram, no mínimo, com negligência, omitindo um dever objectivo de cuidado e diligência adequados, no sentido de evitar a produção daquele resultado, não procedendo com o cuidado a que, de acordo com as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz; uma vez que:

4.1. não implementaram as medidas de protecção colectiva adequadas para a prevenção eficaz do risco de queda em altura de 7,5 metros, existente na referida laje e local de trabalho, onde os trabalhadores A. G. e G. M., desempenhavam as funções determinadas pelas suas entidades empregadoras, a saber, o polimento mecânico dessa laje, nem, tão-pouco, promoveram a utilização de protecção individual que substituísse aquela com os mesmos requisitos de eficácia.»

Ao referir-se expressamente que a arguida actuou, pelo menos, com negligência, omitindo um dever objectivo de cuidado e diligência adequado a evitar o risco de queda em altura, nomeadamente não promovendo as medidas descritas, a que, de acordo com as circunstâncias, estava obrigada e de que era capaz, o elemento subjectivo da infracção está suficientemente indicado e, tendo em conta que o elemento objectivo descrito também o está, e, ainda, estão enunciadas as normas violadas e as que prevêem a respectiva punição, a arguida dispunha de conhecimento de tudo o que era indispensável ao exercício do respectivo direito de defesa.

Acresce que, quando usou do mesmo, a arguida optou por se defender por escrito, alegando, em suma: que o planeamento e implementação das medidas de segurança na obra em questão estavam a cargo de outras entidades; que a sua intervenção se resumiu à deslocação, pontual, de uma equipa de colaboradores e respectivos equipamentos e ferramentas, com vista a proceder à betonagem de uma parcela de pavimento, não havendo em qualquer momento a necessidade de levar a cabo a instalação e manutenção de um qualquer estaleiro, tendo-se servido das instalações montadas e geridas pela Empreiteira Geral; que, quando o representante da arguida se deslocou ao estaleiro, verificou que nas aberturas internas da laje haviam sido construídos guarda-corpos em madeira; que jamais poderia a arguida suspeitar ou prever que os guarda-corpos existentes no local não cumpriam requisitos de resistência e eficácia adequados à prevenção do risco de queda em altura, tendo confiado que os mesmos preenchiam todos os requisitos de resistência e estabilidade adequados.
Conclui-se, pois, que o auto de notícia continha todos os elementos necessários – inclusive o elemento subjectivo da infracção – ao exercício do direito de defesa pela arguida, e que esta, ao usar do mesmo, não só não arguiu a nulidade da respectiva notificação, como respondeu exaustivamente ao seu conteúdo, designadamente na parte mencionada.

Nessa sequência, a autoridade administrativa proferiu decisão final em que condenou a arguida numa coima, pelos factos aí descritos, correspondentes, na essência, aos constantes do auto de notícia, designadamente no que concerne ao elemento subjectivo, referindo, além do mais:

«Resulta, assim, que as arguidas praticaram os factos descritos no auto de notícia, em comparticipação, pelo que cometeram a infração muito grave de que vêm acusadas.
Não resultam, porém, dos autos indícios que levem a concluir terem agido com dolo No entanto, face ao descrito nos autos de notícia, há que concluir que as arguidas não agiram com o cuidado e zelo que lhe eram exigíveis na organização e manutenção em funcionamento do estaleiro de construção civil, enquanto entidades empregadoras.
As arguidas, devendo saber que o Regulamento da Segurança na Construção Civil e demais disposições legais, lhe impunham o respeito por prescrições de segurança e regras técnicas de segurança e saúde no trabalho, que prevenissem o risco para a segurança e saúde dos seus trabalhadores não as acataram, demonstrando despreocupação e desleixo pelas questões fulcrais da segurança e saúde no trabalho, potenciando com a sua conduta o risco para a vida ou integridade dos seus trabalhadores supra identificados nos autos.
As arguidas, enquanto entidades empregadoras, bem conheciam as suas obrigações, podiam e deviam agir diversamente do modo como o fizeram, mostrando-se indiferentes ao grau de ilicitude das suas condutas omissivas, arriscando a integridade física e a vida dos seus trabalhadores.»

Acresce que, em sede de impugnação judicial, não obstante a Recorrente tenha arguido a nulidade de que se vem tratando, voltando a invocar o «Assento» n.º 1/2003, como se constata das conclusões b) a h) daquele recurso, mais uma vez se pronunciou exaustivamente sobre os elementos objectivo e subjectivo da infracção que lhe foi imputada, conforme se constata das conclusões i) a gg), em que praticamente repete os argumentos da resposta ao auto de notícia, acima sumariados.
Ora, para além de o “Assento” do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2003, publicado no Diário da República n.º 21/2003, Série I-A, de 25/01/2003, visar uma norma do Regime Geral do Ilícito de Mera Ordenação Social, relativa a matéria sobre a qual o Regime Processual Aplicável às Contra-ordenações Laborais e de Segurança Social contém normas especiais, acima transcritas, é manifesto que nenhuma violação ocorreu do que ali se decidiu, a saber:

«Quando, em cumprimento do disposto no artigo 50.º do regime geral das contra-ordenações, o órgão instrutor optar, no termo da instrução contra-ordenacional, pela audiência escrita do arguido, mas, na correspondente notificação, não lhe fornecer todos os elementos necessários para que este fique a conhecer a totalidade dos aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito, o processo ficará doravante afectado de nulidade, dependente de arguição, pelo interessado/notificado, no prazo de 10 dias após a notificação, perante a própria administração, ou, judicialmente, no acto de impugnação da subsequente decisão/acusação administrativa.»

Com efeito, essa jurisprudência foi fixada em função das concretas questões aí abordadas, aí se referindo, em sede de fundamentação, além do mais:

“12.3 - «Neste domínio são de realçar os deveres de diligência e de boa-fé processuais [...]. O segundo impede que os sujeitos processuais possam 'aproveitar-se de alguma omissão porventura cometida ao longo dos actos processuais em que tiveram intervenção, guardando-a como um trunfo para, em fase ulterior do processo, se e quando tal lhes pareça conveniente, a suscitarem e obterem a destruição do processado' (Tribunal Constitucional, acórdão n.º 429/95, de 6 de Julho, Diário da República, 2.ª série, de 10 de Novembro de 1995). [...] O legislador português [...] criou um sistema responsabilizador e progressivo, onde os sujeitos processuais são convidados a participar na marcha processual e a denunciar, com prontidão, as infracções cometidas e onde as possibilidades de sanação do vício vão aumentando à medida que o processo se afasta do acto imperfeito e se aproxima do seu epílogo [...]. No fundo, o legislador estruturou o processo penal em etapas sucessivas que servem de barreiras à propagação de certos defeitos do acto processual penal. Ultrapassados aqueles prazos fica precludida a possibilidade de invocar a infracção cometida e os efeitos produzidos pelo acto processual imperfeito sofrem uma modificação, passando de precários a definitivos. Regime que, embora seja uma clara manifestação do princípio da conservação dos actos imperfeitos, se destina também a evitar que o interessado, em vez de arguir de imediato a nulidade, guarde esta possibilidade para utilizar no momento mais oportuno, se e quando for necessário. Conduta processual que, para além de ser muito reprovável, teria como consequência necessária a inutilização de todo o processado posterior, muitas vezes apenas na sua fase decisiva e no fim de uma longa marcha, que só com muito custo poderia ser refeita» (João Conde Correia, ob. cit., pp. 146, nota 328, e 177 a 179).”

Tendo, também, sido formuladas diversas conclusões, designadamente a seguinte:

“IV - Se a notificação, tendo lugar, não fornecer (todos) os elementos necessários para que o interessado fique a conhecer todos os aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito, o vício será o da nulidade sanável (artigos 283.º, n.º 3, do Código de Processo Penal e 41.º, n.º 1, do regime geral das contra-ordenações), arguível, pelo interessado/notificado (artigos 120.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e 41.º, n.º 1, do regime geral das contra-ordenações), no prazo de 10 dias após a notificação (artigos 105.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e 41.º, n.º 1, do regime geral das contra-ordenações), perante a própria administração ou, judicialmente, no acto da impugnação [artigos 120.º, n.º 3, alínea c), e 41.º, n.º 1, do regime geral das contra-ordenações] (ver nota 53). Se a impugnação se limitar a arguir a nulidade, o tribunal invalidará a instrução administrativa, a partir da notificação incompleta, e também, por dela depender e a afectar, a subsequente decisão administrativa [artigos 120.º, n.ºs 2, alínea d), e 3, alínea c), e 122.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e 41.º, n.º 1, do regime geral das contra-ordenações]. Todavia, se o impugnante se prevalecer na impugnação judicial do direito preterido (abarcando, na sua defesa, os aspectos de facto ou de direito omissos na notificação mas presentes na decisão/acusação), a nulidade considerar-se-á sanada [artigos 121.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal e 41.º, n.º 1, do regime geral das contra-ordenações].”

O “Assento” foi, inclusive, objecto de aclaração, em termos relevantes para a questão em apreço, a saber:

“O assento - ao facultar a arguição da nulidade decorrente do deficiente cumprimento pela administração do disposto no artigo 50.º do RGC-O, quer, logo, junto da própria administração quer, judicialmente, no acto de impugnação da decisão condenatória - quis dizer isso mesmo: o arguido poderá: a) prevalecer-se dessa nulidade processual intercalar desde logo, concitando a administração a reconhecer ela própria a invalidade do acto praticado e, nessa hipótese, a repeti-lo; ou b) na expectativa de uma decisão administrativa absolutória, deixar correr o processo até final, sem prejuízo de, sobrevindo condenação, a arguir (não já, propriamente, como tal mas no seu reflexo, por omissão de diligência essencial, na decisão administrativa), na impugnação judicial desta. Daí a redacção disjuntiva utilizada na formulação do texto do assento: «o processo ficará doravante afectado de nulidade, dependente de arguição, pelo interessado/notificado, no prazo de 10 dias após a notificação, perante a própria administração, ou, judicialmente, no acto de impugnação da subsequente decisão/acusação administrativa». Mas, atenção: «Se a impugnação se limitar a arguir a nulidade, o tribunal invalidará a instrução administrativa, a partir da notificação incompleta, e também, por dela depender e a afectar, a subsequente decisão administrativa [...]. Todavia, se o impugnante se prevalecer na impugnação judicial do direito preterido (abarcando, na sua defesa, os aspectos de facto ou de direito omissos na notificação mas presentes na decisão/acusação), a nulidade considerar-se-á sanada» (cf. conclusão IV do acórdão aclarando).”

Ora, em suma, na situação sub judice, ao tomar conhecimento do auto de notícia, na notificação que lhe foi feita ao abrigo do disposto no art. 17.º do Regime Processual Aplicável às Contra-ordenações Laborais e de Segurança Social, a arguida ficou ciente de todos os elementos exigidos pelo art. 15.º do mesmo diploma legal, e ainda do elemento subjectivo da infracção imputada, nos termos sobreditos, e, não só não arguiu qualquer (inexistente) nulidade na resposta, como, inclusive, usou esta para rebater a verificação daquele elemento, sendo certo que, na impugnação judicial da decisão administrativa, apesar de ter arguido a (inexistente) nulidade decorrente da pretensa omissão do elemento subjectivo aquando daquela notificação, voltou a refutar exaustivamente a verificação do mesmo, como já fizera na resposta ao auto de notícia, estando por tal razão (duplamente) sanada a alegada nulidade, se porventura se verificasse, o que – repete-se – não era o caso. (1)

Acresce que, ainda que devesse entender-se que o elemento subjectivo não foi devidamente descrito no auto de notícia nem na decisão final da autoridade administrativa – o que não se concede –, sempre seria de inferir o mesmo da factualidade descrita (2), nos termos abaixo melhor explicitados no ponto 4.2..

Finalmente, cumpre dizer que se acolhe o entendimento dominante na jurisprudência no sentido de que, em atenção à natureza específica dos ilícitos contra-ordenacionais, a prévia audição do arguido, quanto à infracção que lhe é imputada, não carece, sequer, de que seja feita menção ao respectivo elemento subjectivo.

Neste sentido, veja-se o Acórdão da Relação de Guimarães de 1 de Dezembro de 2014, proferido no processo n.º 36/14.4TBPCR.G1, em que se entendeu que “[n]o cumprimento do dever de audição pela entidade administrativa, indispensável é que o arguido passe a conhecer os factos que lhe são imputados, não sendo necessária qualquer referência aos elementos subjetivos da infração”, e o Acórdão da Relação de Guimarães de 28 de Outubro de 2019, proferido no processo n.º 4963/18.1T8GMR.G1, em que se entendeu que “[o] facto de, no direito de audição e defesa conferido nos termos do previsto no art.º 50º R.G.C.O. não constar o elemento volitivo não se traduz em qualquer nulidade, bastando tão-só ao direito de defesa a descrição naturalística dos factos, para que o arguido possa defender-se, exercendo o contraditório.” (3)

Improcede, pois, o recurso nesta parte.

4.2. A Recorrente suscita igualmente a nulidade da sentença, por também esta ser omissa quanto à imputação subjectiva à arguida da prática da contra-ordenação.

Estabelece o art. 39.º, n.º 4 do Regime Processual Aplicável às Contra-ordenações Laborais e de Segurança Social que o juiz fundamenta a sua decisão, tanto no que respeita aos factos como no que respeita ao direito aplicado e às circunstâncias que determinaram a medida da sanção, podendo basear-se em mera declaração de concordância com a decisão condenatória da autoridade administrativa.

Na sentença recorrida foram considerados provados os factos acima descritos, designadamente: que, na execução dos trabalhos, não tinham sido disponibilizadas aos trabalhadores as condições adequadas de protecção colectiva e/ou individual que prevenissem o risco de queda em altura para o exterior da laje do 2.º piso do edifício em construção; que as bordaduras da referida laje onde e por onde os trabalhadores tinham circulado com os materiais e tinham executado as suas funções de cimenteiros, quer as aberturas interiores da laje, a uma altura de 7,5 metros para o exterior, não estavam dotadas de guarda-corpos duplo, ou protecção equivalente, com requisitos de estabilidade e resistência adequados; que as arguidas laboravam no estaleiro de construção civil em causa, para ampliação de um pavilhão industrial, com desrespeito pelas prescrições de segurança e regras técnicas de segurança e saúde no trabalho.
Por outro lado, a sentença considerou como factos não provados: que o representante da ora Recorrente se tivesse deslocado ao estaleiro; que não seja perito em segurança e saúde no trabalho; que não tivesse suspeitado ou previsto que os guarda-corpos já instalados não cumprissem os requisitos de segurança.
A factualidade dada como assente importa objectivamente a violação das disposições legais consideradas na sentença recorrida, em termos que não foram questionados.

Assim, desde logo, foram violados os princípios gerais prescritos pelo art. 281.º do Código do Trabalho, nomeadamente:

- que o trabalhador tem direito a prestar trabalho em condições de segurança e saúde;
- que o empregador deve assegurar aos trabalhadores condições de segurança e saúde em todos os aspectos relacionados com o trabalho, aplicando as medidas necessárias tendo em conta princípios gerais de prevenção;
- que os empregadores que desenvolvam simultaneamente actividades no mesmo local de trabalho devem cooperar na protecção da segurança e da saúde dos respectivos trabalhadores, tendo em conta a natureza das actividades de cada um.

Nos termos do art. 548.º do mesmo diploma, constitui contra-ordenação laboral o facto típico, ilícito e censurável que consubstancie a violação de uma norma que consagre direitos ou imponha deveres a qualquer sujeito no âmbito de relação laboral e que seja punível com coima. E, de acordo com o art. 550.º, a negligência nas contra-ordenações laborais é sempre punível.

Ora, nos termos do art. 15.º do Código Penal, aplicável, com as necessárias adaptações, por força dos regimes contra-ordenacionais acima identificados, age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz:

a) Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de contra-ordenação mas actuar sem se conformar com essa realização; ou
b) Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto.

Na sentença recorrida, entendeu-se que, «(…) se a arguida, pura e simplesmente, violou aqueles normativos legais e regulamentares aplicáveis (enquanto empregadora do trabalhador G. M. que se encontrava a laborar naquela obra de ampliação fabril a seu mando e a si subordinado, jurídica e economicamente), omitindo uma obrigação que lei lhe impõe (de zelar pela segurança e saúde dos seus trabalhadores aquando da execução de trabalho a seu mando enquanto sua empregadora), mesmo sabendo dessa obrigação ou se não soubesse dessa sua obrigação, enquanto empregadora daquele trabalhador, tão pouco lhe aproveitaria tal ignorância (face ao disposto no art. 6º do Código Civil), depreende-se a forma negligente dessa actuação e não há necessidade de mais invocações ou alegações na fundamentação de facto – contrariamente ao que sucederia no caso de uma forma dolosa de actuação, essa sim, que exigiria a explicitação do elemento subjectivo.»
E bem, uma vez que, ao contrário do que pretende a Recorrente, a matéria de facto dada como assente permite, efectivamente, concluir pela verificação do elemento subjectivo da infracção.
Com efeito, nos termos supra mencionados, a negligência supõe o poder/dever de o responsável, embora não pretendendo cometer a infracção, ter a possibilidade de actuar de modo a impedir que ela se verifique, e, ainda assim, omitir tal actuação. Não é necessário, sequer, que o agente tenha conhecimento de que a infracção possa ser cometida, se tal falta de conhecimento resultar do facto de o mesmo se ter demitido dum dever que lhe incumba (negligência inconsciente), designadamente, no caso em apreço, o dever de o empregador assegurar que o trabalho do seu trabalhador era executado com observância das condições de segurança previstas na lei, através das medidas adequadas a tanto, acima mencionadas, dever esse que não estava excluído pelo facto de haver vários empregadores a desenvolver simultaneamente actividades no mesmo local de trabalho, conforme decorre do acima citado art. 281.º do Código do Trabalho.
A violação do dever de cuidado objectivamente devido é, assim, o elemento essencial e característico do tipo de ilícito negligente, entendendo-se como tal a violação de exigências de comportamento cuja observância, na situação concreta, evitaria o preenchimento de certo tipo objectivo de ilícito.
Por outro lado, o cuidado exigível há-de ser determinado pela capacidade de cumprimento do agente, que deve partir do que seria razoavelmente de esperar de um homem com as qualidades e capacidades daquele, sendo esse o elemento revelador de que na conduta ou omissão se exprimiu uma personalidade leviana ou descuidada perante o dever legalmente imposto.

Em suma, a negligência determina-se com recurso a uma dupla averiguação:
por um lado, há que procurar saber que comportamento era objectivamente devido em determinada situação, em ordem a evitar a violação não querida do direito; e, por outro lado, se esse comportamento podia ser exigido do agente, atentas as suas características e capacidades individuais.

Posto isto, cumpre ter presente que, conforme se refere no Acórdão da Relação de Lisboa de 8 de Dezembro de 2012, proferido no processo 272/11.5TTBRR.L1-4 (4), “[q]uer a prova direta, quer a prova indireta são modos, igualmente legítimos, de chegar ao conhecimento da realidade (ou verdade) do factum probandum: pela primeira via ou método, a perceção dá imediatamente um juízo sobre um facto principal, ao passo que na segunda a perceção é racionalizada numa proposição, prosseguindo silogisticamente para outra proposição, à base de regras gerais que servem de premissas maiores do silogismo, e que podem ser regras jurídicas ou máximas da experiência. A esta sequência de proposição em proposição chama-se presunção (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 1993, 79).
(…)
O sistema probatório alicerça-se em grande parte neste tipo de raciocínio (indutivo) e, não havendo confissão, a prova dos elementos subjetivos do tipo (doloso ou negligente) não poderá fazer-se senão por meio de prova indireta.
Como ensinava Cavaleiro Ferreira (“Curso de Processo Penal”, II, 1981, pág. 292), existem elementos do crime que, no caso da falta de confissão, só são suscetíveis de prova indirecta, como são todos os elementos de estrutura psicológica.
(…)
Por isso, verificada a materialidade da infração e conhecida a proibição legal, segundo as regras da experiência comum, podemos deduzir que aquela foi cometida com dolo ou, pelo menos, com negligência.
(…)
No sentido de que uma presunção ilidível de dolo ou de negligência não viola a presunção de inocência, pode ver-se a jurisprudência do TEDH citada por Paulo Pinto de Albuquerque in “Comentário do Código de Processo Penal”, 2.ª edição atualizada, UCE, anotação ao artigo 127.º, pág. 334.
Se é assim no âmbito criminal, pelo menos, por identidade de razão, também deve sê-lo em matéria de contraordenações.
Assim, a verificação objetiva da conduta que integra a descrição típica do ilícito contraordenacional permite concluir, por presunção natural, judicial ou de experiência que o agente agiu, por acção ou por omissão, pelo menos, negligentemente.”

Em suma, a verificação objectiva da conduta que integra a descrição típica do ilícito contra-ordenacional permite concluir, por presunção natural, judicial ou de experiência, que o agente agiu, por acção ou por omissão, pelo menos negligentemente, tudo sem prejuízo da possibilidade de demonstração, designadamente pelo agente, de que o mesmo agiu sem culpa, sendo certo que essa presunção mínima e ilidível de negligência não viola a presunção de inocência. (5)

Ora, no caso em apreço, a arguida não assegurou que fossem ou estivessem implementadas as medidas de segurança legalmente impostas que eram susceptíveis de evitar o risco de queda em altura, acima concretizadas, sendo certo que, tratando-se de uma sociedade por quotas, dedicada à actividade de fabricação de betão pronto, com um volume de negócios de 4.175.890,00 € (RU 2015), que tinha um trabalhador seu a laborar na obra em causa, lhe era exigível que tivesse esse cuidado.

Em face do exposto, não pode senão inferir-se da factualidade provada que a arguida agiu com negligência.

4.3. A Recorrente invoca erro sobre a ilicitude, mas, na realidade, limita-se a invocar factos, uns provados e outros não provados, que, na sua perspectiva, infirmam que lhe possa ser imputada uma conduta negligente, designadamente que a K é que era a responsável pela segurança na execução da obra e que nesta já existiam guarda-corpos colocados por outrem, sem que a arguida soubesse ou suspeitasse que não cumpriam os parâmetros legais.

Isto é, a arguida nega que tivesse a obrigação legal de actuar diferentemente, o que parece implicar que não possa coerentemente invocar um pretenso desconhecimento dessa obrigação legal, mas, de qualquer modo, o erro sobre a proibição apenas exclui o dolo, nos termos do art. 8.º, n.º 2, do Regime Geral do Ilícito de Mera Ordenação Social, ficando, todavia, ressalvada a punibilidade da negligência nos termos gerais, por força do n.º 3.

Com efeito, como refere Cavaleiro de Ferreira, “(…) o conhecimento da proibição (norma incriminadora) não é necessário relativamente aos crimes, para se verificar a consciência da ilicitude, quando não seja razoavelmente indispensável para esse conhecimento, e é de considerar sempre indispensável quanto a contra-ordenações. É a consequência de uma incriminação menos natural, e por isso não é de presumir que o agente tenha conhecimento da anti-socialidade ou ilegalidade do facto que comete, sem conhecimento da própria lei.” (6)

Isto é, estando em causa uma contra-ordenação, ao existir um erro sobre a proibição, nos termos do citado art.º 8.º, existe necessariamente falta de consciência da ilicitude do facto, nos termos do art. 9.º, mas, se a conduta for punível a título de negligência, como ressalvado no n.º 3 daquela primeira norma, a mesma só se tem por excluída se o erro não for censurável, nos termos do n.º 1 da segunda norma.

Ora, no caso em apreço, a infracção imputada à Recorrente é punível a título de negligência, e, por outro lado, na sequência das considerações já expendidas, afigura-se que, ainda que a arguida não tivesse consciência da ilicitude da sua conduta, tal falta seria censurável, pois, tratando-se de uma sociedade por quotas, dedicada à actividade de fabricação de betão pronto, com um volume de negócios de 4.175.890,00 € (RU 2015), que tinha um trabalhador seu a laborar na obra em causa, era-lhe exigível que averiguasse e apreendesse as obrigações legais a que estava sujeita, na medida em que as empresas, se querem operar no mercado, têm o dever ético-jurídico de diligenciar por colmatar as lacunas de conhecimento, informando-se e esclarecendo-se em matéria de deveres inerentes à utilização de recursos humanos, em geral, e de segurança e saúde no trabalho, em particular.

Em face do exposto, conclui-se que o erro da arguida sempre seria censurável, e, assim, se mostra adequada a sua punição a título de negligência, nos sobreditos termos.

5. Decisão

Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso, e, em consequência, manter a sentença recorrida.
Custas pela arguida, fixando-se a taxa de justiça em 5 UC.
Guimarães, 5 de Março de 2020

Alda Martins
Vera Sottomayor

Sumário (elaborado pela Relatora):

1. O “Assento” do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2003, publicado no Diário da República n.º 21/2003, Série I-A, de 25/01/2003, tendo-se pronunciado sobre o art. 50.º – direito de audição e defesa do arguido previamente à aplicação de uma coima ou de uma sanção acessória – do Regime Geral do Ilícito de Mera Ordenação Social, aprovado pelo DL n.º 433/82, de 27 de Outubro, não releva em sede de procedimento por contra-ordenações laborais, posto que o Regime Processual Aplicável às Contra-ordenações Laborais e de Segurança Social, aprovado pela Lei n.º 107/2009, de 14 de Setembro, contém norma própria sobre a matéria, concretamente o seu art. 17.º, conjugadamente com o estabelecido no seu art. 15.º sobre os requisitos que deve observar o auto de notícia a notificar ao arguido.
2. A prévia audição do arguido, nos termos conjugados dos citados arts. 15.º e 17.º do Regime Processual Aplicável às Contra-ordenações Laborais e de Segurança Social, não impõe a concretização do elemento subjectivo da contra-ordenação que lhe é imputada.
3. Quer na decisão final da autoridade administrativa, quer na decisão judicial proferida no recurso de impugnação judicial daquela, a verificação objectiva da conduta que integra a descrição típica do ilícito contra-ordenacional permite concluir, por presunção natural, judicial ou de experiência, que o agente agiu, por acção ou por omissão, pelo menos negligentemente.
4. Estando em causa uma contra-ordenação, ao existir um erro sobre a proibição, nos termos do art.º 8.º do Regime Geral do Ilícito de Mera Ordenação Social, existe necessariamente falta de consciência da ilicitude do facto, nos termos do art. 9.º do mesmo diploma, mas, se a conduta for punível a título de negligência, como ressalvado no n.º 3 daquela primeira norma, a mesma só se tem por excluída se o erro não for censurável, nos termos do n.º 1 da segunda norma.
5. Considerando que as contra-ordenações laborais são sempre puníveis a título de negligência, ainda que a arguida não tivesse consciência da ilicitude da sua conduta, tal falta seria censurável, pois, tratando-se de uma sociedade por quotas, dedicada à actividade de fabricação de betão pronto, com um volume de negócios de 4.175.890,00 € (RU 2015), que tinha um trabalhador seu a laborar na obra em causa, era-lhe exigível que averiguasse e apreendesse as obrigações legais a que estava sujeita, na medida em que as empresas, se querem operar no mercado, têm o dever ético-jurídico de diligenciar por colmatar as lacunas de conhecimento, informando-se e esclarecendo-se em matéria de deveres inerentes à utilização de recursos humanos, em geral, e de segurança e saúde no trabalho, em particular.

Alda Martins


1. Neste sentido, vide o Acórdão da Relação de Lisboa de 10 de Abril de 2018, proferido no processo n.º 447/17.3Y4LSB.L1-5, e o Acórdão da Relação de Coimbra de 18 de Maio de 2018, proferido no processo n.º 101/17.6T8CDR.C1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt..
2. Neste sentido, pelo estudo exaustivo da questão, salienta-se o Acórdão da Relação do Porto de 11 de Abril de 2012, proferido no processo n.º 2122/11.3TBPVZ.P1, disponível em www.dgsi.pt, com o seguinte sumário: “I – Na decisão da autoridade administrativa, o elemento subjetivo da conduta pode presumir-se da descrição do elemento objetivo. II – O regime geral das contraordenações e coimas [DL n.º 433/82 de 27-10] apresenta uma nítida autonomia face ao Código Penal, decorrente da valoração e opção política do legislador em resultado da diversidade ontológica entre o direito de mera ordenação social e o direito penal, da natureza da censura ético-penal correspondente a cada um e da distinta natureza dos órgãos decisores.”
3. Ambos disponíveis em www.dgsi.pt. No mesmo sentido, disponíveis no mesmo sítio, cfr. o Acórdão da Relação de Lisboa de 6 de Dezembro de 2017, proferido no processo n.º 746/17.4T8LSB.L1-4, e o Acórdão da Relação de Guimarães de 20 de Fevereiro de 2018, proferido no processo n.º 167/17.9T8VNC.G1.
4. Disponível em www.dgsi.pt.
5. Cfr. o Acórdão da Relação de Coimbra de 15 de Junho de 2018, proferido no processo n.º 1208/17.5T8LMG.C1; em sentido semelhante, o Acórdão da Relação de Lisboa de 22 de Março de 2017, proferido no processo n.º 4948/16.2T8LSB.L1-4, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
6. Lições de Direito Penal, Parte Geral, Editorial Verbo, 1992, p. 123.