Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
4296/22.9T8VCT-A.G1
Relator: JORGE SANTOS
Descritores: DEPOIMENTO DE PARTE
INDICAÇÃO DOS FACTOS OBJETO DO DEPOIMENTO
DEVER DE GESTÃO PROCESSUAL
PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/15/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO DA RÉ IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
- Perante o requerimento probatório apresentado pela Ré/Recorrente, em que se “requer a prestação de depoimento de parte do Legal Representante da Autora relativamente a todos os factos sobre os quais possa recair, nomeadamente a matéria vertida nos artigos desta Contestação”, resulta evidente que a mesma não observou a exigência de indicação discriminada dos factos sobre que deve recair o depoimento em causa, prevista no citado art. 452º, nº 2, do CPC.

- Daí que, não podemos concluir como na decisão recorrida, para sustentar o indeferimento em apreço, que “os factos em causa não são pessoais, nem são factos de que o depoente deva ter conhecimento”.

- Por isso, de harmonia com as disposições legais acima citadas e, ainda, ao abrigo do disposto no art. 590º do CPC, podia e devia o Tribunal a quo ter decidido de outro modo, cumprindo e observando o dever de gestão processual e princípio da cooperação, dirigir um convite à parte para indicar de forma discriminada os factos sobre os quais pretende que a parte deponha. E, com isso, evitar também uma decisão surpresa em que se traduz a decisão recorrida, atento o disposto no art. 3º, nº 3 do CPC
Decisão Texto Integral:
Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I – RELATÓRIO

EMP01..., S.A., sociedade comercial anónima de direito francês registada junto do Registo Comercial ... sob número ...60, contribuinte fiscal n.º FR ...60, com sede social sita em 313, ... de ..., ..., move contra,
EMP02... – SOCIEDADE DE DISTRIBUIÇÃO, S.A., sociedade comercial anónima registada junto da Conservatória de Registo Comercial sob o número único de pessoa colectiva n.º ...93, com sede social sita em Quinta ... ...;
EMP03... – COMPANHIA DE SEGUROS DE RAMOS REAIS, S.A., sociedade comercial anónima por acções registada junto da Conservatória de Registo Comercial sob o número único de pessoa colectiva n.º ...89, com sede social sita em Rua ... ..., acção declarativa comum, pedindo:

A) Condenação da 2.ª R. a pagar à A. a quantia de EUR 1.447.273,00 (um milhão quatrocentos e quarenta e sete mil duzentos e setenta e três euros), à qual acrescem os juros de mora à taxa legal, desde a data da citação e até efectivo e integral pagamento, bem como nas custas, incluindo as de parte, e demais legal; subsidiariamente,
B) Condenação da 2.ª R. a pagar à A., até ao valor que estiver seguro, e a 1.ª R. no valor remanescente, tudo até perfazer a quantia total de EUR 1.447.273,00 (um milhão quatrocentos e quarenta e sete mil duzentos e setenta e três euros), acrescida de juros de mora à taxa legal desde a data da citação e até efectivo e integral pagamento, bem como nas custas, incluindo as de parte, e demais legal;
subsidiariamente,
C) Condenação da 1.ª R. a pagar à A. a quantia de EUR 1.447.273,00 (um milhão quatrocentos e quarenta e sete mil duzentos e setenta e três euros), à qual acrescem os juros de mora à taxa legal, desde a data da citação e até efectivo e integral pagamento, bem como nas custas, incluindo as de parte, e demais legal.
Alega para tanto, em síntese, além do mais, a existência de responsabilidade civil decorrente da ocorrência de um sinistro – incêndio no prédio urbano que identifica, a existência de danos nesse prédio decorrentes desse sinistro e o valor que pagou à dona do prédio relativo à reparação desses danos, na qualidade de entidade seguradora daquela, bem como a sub-rogação da Autora no direito indemnizatório que satisfez à proprietária e senhoria do Prédio, a EMP04..., direito que esta era titular contra a arrendatária (a primeira Ré).

As Rés contestaram, além do mais, impugnando a versão dos factos constante da petição inicial.
A Primeira Ré/Recorrente alegou a existência de uma causa prejudicial e requereu a suspensão da instância.
A primeira Ré, ora Recorrente, apresentou com a contestação o seu requerimento probatório, no qual, sob a alínea C. consta:
- “Prova por confissão das partes: nos termos dos artigos 452.º e seguintes do CPC, requer-se a prestação de depoimento de parte do Legal Representante da Autora relativamente a todos os factos sobre os cais possa recair, nomeadamente a matéria vertida nos artigos desta Contestação.”

Foi proferida decisão na qual se conclui pela inexistência de causa prejudicial e se indeferiu a requerida suspensão da instância.
Mais foi proferida decisão sobre o requerido depoimento de parte nos seguintes termos:
- “Indefiro o depoimento de parte do representante legal da Autora, requerido pela primeira Ré, uma vez que os factos em causa não são pessoais, nem são factos de que o depoente deva ter conhecimento – cfr. artigo 454º, nº 1, do Código de Processo Civil.”

Inconformada com tais decisões, delas veio recorrer a primeira Ré, formulando as seguintes conclusões:

I. INTRÓITO
A. A Recorrente não se conforma com o teor do Despacho Saneador proferido nos presentes autos, cuja notificação data do passado dia 04 de Outubro de 2023, designadamente no que tange i) ao indeferimento da prestação do depoimento de Parte do Legal Representante da Autora e ii) ao indeferimento da suspensão da instância requerida pela Recorrente por ter entendido (erroneamente no nosso entender) não existir, no caso em apreço, causa prejudicial.

Escalpelizando:
B. a Autora intentou Acção Declarativa de Condenação, visando a condenação da Recorrente e da Co-Ré EMP03... – Companhia de Seguros de Ramos Reais, S.A. no pagamento de €1.447.273,00 (um milhão, quatrocentos e quarenta e sete mil, duzentos e setenta e três euros) no seguimento de um sinistro ocorrido no passado dia 06 de Novembro de 2018.

C. Regularmente citada, a Recorrente apresentou a sua Contestação, tendo apresentado defesa por excepção e por impugnação, tendo também apresentado o seu requerimento de prova, no qual pediu, entre outros, que fosse tomado o Depoimento de Parte do Legal Representante da Autora.

I) QUANTO AO DEPOIMENTO DE PARTE DO LEGAL REPRESENTANTE DA AUTORA

Sucede que
D. o Tribunal a quo, no Despacho Saneador de que se apela, pugnou pela inadmissibilidade do depoimento de parte do Legal Representante da Autora “uma vez que os factos em causa não são pessoais, nem são factos de que o depoente deva ter conhecimento – cfr. artigo 454º, nº 1, do Código de Processo Civil.”.

E. Acontece que a Recorrente, sem quebra do devido respeito por opinião diversa, entende que o Despacho proferido não se afigura ajustado com os normativos legais aplicáveis, designadamente os artigos 453.º e 454.º do Código de Processo Civil.

F. O Tribunal da Relação de Lisboa, no seu Acórdão de 11 de Março de 201010, assinalou que os factos de que a parte deva ter conhecimento são aqueles que é de presumir que ela tenha conhecido, devendo os preceitos aplicáveis serem interpretados no sentido de um juízo de probabilidade psicológica e não de conduta ética.

G. No caso em apreço, o depoimento de parte do Legal Representante da Autora afigura-se essencial, mormente tendo em conta a matéria sobre a qual (sendo admitido) este incidirá e relativamente à qual se pretende obter a confissão da Autora (na pessoa do seu Legal Representante). 10 Processo n.º 180/09.0TVLSB-A.L1-6, disponível em http://www.dgsi.pt.

H. Ademais, e na senda do entendimento assente na jurisprudência, o indeferimento, pelo Tribunal, do depoimento de parte do responsável máximo de uma parte será inadmissível quando baseado numa mera suposição ou crença do Tribunal, sem justificação de que aquele não tem conhecimento da matéria sobre a qual deporá – é precisamente o que sucede neste caso concreto.

I. Nesta ordem de ideias, e vertendo ao caso concreto, a mera crença ou suposição, sem que sejam apresentados quaisquer argumentos no sentido de que o depoente não tem conhecimento da matéria sobre a qual deporá é inválida e insuficiente para consubstanciar um autêntico juízo de probabilidade psicológica, capaz de afastar a admissibilidade do Depoimento de Parte oportunamente requerido.

J. O Tribunal a quo, ao decidir como decidiu, fez tábua rasa da última reforma do Processo Civil e da descoberta da verdade material dos enunciados fácticos trazidos a juízo.

K. A decisão recorrida, ao não admitir o depoimento de parte, viola o direito de defesa e do contraditório, na modalidade de direito à prova, que resulta dos artigos 3.º e 4.º do Código de Processo Civil.

L. Na senda do disposto no n.º 1 do artigo 342.º do Código Civil, as partes podem oferecer ou requerer quaisquer provas que entendam necessárias para provar os factos que alegam em sustentação dos direitos afirmados ou para realizar a contraprova dos factos aduzidos pela contraparte que ponham em crise os invocados direitos.

M. A decisão proferida e a interpretação normativa nela contida violam o direito (fundamental) à prova, constitucionalmente consagrado nos artigos 20.º e 202.º da Constituição da República Portuguesa, restringindo-o desproporcionalmente, o que expressamente se invoca para todos os efeitos.

N. Ademais, no momento processual em que os presentes autos se encontram, é impossível ao Tribunal pugnar e decidir, desde já, pela impertinência do depoimento de parte.

O. O direito fundamental à prova implica que as partes tenham liberdade para demonstrar quaisquer factos, mesmo que não possuam o respectivo ónus da prova, desde que entendam que a sua comprovação diminuirá os seus riscos processuais.

P. O direito à prova é um corolário das garantias à via judiciária e ao processo justo e equitativo, constitucionalmente consagrados.

Q. Por via do direito à prova “há que facultar às partes a possibilidade de utilizarem em seu benefício todos os meios de prova que considerarem os mais adequados a fazerem valer a sua pretensão. Seja para a demonstração dos factos cujo ónus de alegação e prova lhe pertencem, sejam para a contraprova dos factos que lhe são desfavoráveis e que querem contrariar.”11

R. Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo fez interpretação normativa claramente inconstitucional dos citados preceitos legais, em clara violação do disposto no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, que prevê o direito fundamental a um processo equitativo de que deriva o direito fundamental à prova, com isso restringindo injustificadamente o direito de defesa da Recorrente.

S. No caso em apreço, estamos diante de uma violação do direito à prova da Recorrente com a inerente derrogação do direito à tutela jurisdicional efectiva, tendo em conta a essencialidade do depoimento no caso em apreço.

T. Assim, deve o douto despacho ser revogado, admitindo-se, por conseguinte, o peticionado depoimento de parte, o que expressamente se requer. 11 Acórdão do Tribunal Central Administrativo, proferido no âmbito do Proc. n.º 11154/14, disponível em www.dgsi.pt

EM TODO O CASO, PARA A EVENTUALIDADE DE ASSIM NÃO SE ENTENDER, O QUE NÃO SE CONCEDE E POR MERO DEVER DE PATROCÍNIO SE EQUACIONA, SEMPRE SE DIGA O SEGUINTE:

• DA PROIBIÇÃO DAS DECISÕES-SURPRESA

U. Se o Tribunal a quo entendia que “os factos em causa não são pessoais, nem são factos de que o depoente deva ter conhecimento”, dever ter endereçado à Recorrente um convite ao aperfeiçoamento no momento processualmente oportuno, designadamente no sentido de corrigir a matéria a indicar a propósito do referido Depoimento de Parte.

V. perante a suposta indicação errónea dos factos sobre os quais o depoimento de parte incidiria, deveria o Juiz a quo ter convidado a Recorrente ao aperfeiçoamento ou, pelo menos, a pronunciar-se sobre o indeferimento daquele meio de prova – o que não fez.

W. Ao não ter procedido desse momento, proferiu uma decisão surpresa, proibida entre nós.

X. Nada fazia prever que o Tribunal a quo iria determinar o indeferimento do depoimento de parte do Legal Representante da Autora, sendo certo que, nunca tinha sido proferido qualquer despacho nesse sentido, e nada o fazia prever…

Y. Em consequência, cometeu o Tribunal a quo uma nulidade, que expressamente se invoca para os devidos efeitos, violando o Despacho Saneador em crise, também, entre outras normas jurídicas, o n.º 2 do artigo 608.º, a alínea d) do n.º 2 do artigo 615.º e o artigo 590.º do CPC.
* *
*
II) QUANTO À EXISTÊNCIA DE CAUSA PREJUDICIAL
Z. Na Contestação apresentada nos autos, a Recorrente pugnou, entre outros, pela existência de causa prejudicial, tendo concluído pela suspensão da instância nos autos aqui em causa.

AA. Encontra-se, actualmente, a correr termos junto do Juízo Central Cível ... – Juiz ..., o Proc. n.º 3131/19...., em que é a Autora a 1.ª Ré e Ré a 2.ª Ré – acção em que se discute o incêndio ocorrido no dia 06 de Novembro de 2018 nas instalações em que a 1.ª Ré exerce a sua actividade e que são propriedade da empresa EMP04..., SOCIEDADE UNIPESSOAL LDA.

BB. A esse propósito, entendeu erradamente o Tribunal a quo que “No nosso caso, a questão que se decide no processo nº 3131/19...., onde se julga a resolução do contrato de seguro titulado pela apólice nº ...96 de Riscos Industriais, não tem qualquer ligação aos presentes autos, uma vez que, nestes, o contrato de seguro que está em causa diz respeito ao contrato de seguro titulado pela apólice nº ...57 de Responsabilidade Civil Empresarial, tal como assumido pela segunda Ré nos artigos 2º e 4º da contestação.”

CC. A causa prejudicial corresponde àquela onde se discute e pretende apurar um facto/situação que se afigura como elemento ou pressuposto da pretensão formulada na causa dependente.

DD. A ingerência entre as acções há-de ser tão forte que a resolução da questão que está a ser apreciada e discutida na causa prejudicial irá interferir e influenciar a causa dependente, influenciando os fundamentos em que esta se baseia – é como sucede no caso em apreço.

EE. Independentemente da responsabilidade inerente ao sinistro se referir, em cada um dos processos, a uma Apólice distinta, o certo é que está em causa, em cada um dos processos, o MESMO sinistro!!!

FF. Pelo que a decisão a proferir no âmbito do Proc. n.º 3131/19.... (a correr termos junto do Juízo Central Cível ... – Juiz ...) pode (e irá!!) afectar os presentes autos!

GG. Pelo que deveria o Tribunal a quo ter concluído pela suspensão dos presentes autos por via da existência de causa prejudicial – garantido, desse modo, a coerência de julgamentos e evitando a prolação de decisões incompatíveis em matérias que são conexas.

HH. No caso em apreço, a ligação entre as acções é tal que os Temas da Prova de ambas chegam a ser coincidentes.

II. Nos presentes autos foram definidos os seguintes Temas da Prova:
“III – Temas de prova
a) Circunstâncias de tempo, modo e espaço em que deflagrou o incêndio no edifício ocupado pela primeira Ré;
b) Os concretos comportamentos humanos e/ou ocorrências que provocaram o incêndio;
c) A dimensão do incêndio e os estragos provocados no edifício e nos bens nele existentes;
d) O valor dos prejuízos;
e) As limpezas, reparações, construções e fiscalizações realizadas no edifício após o incêndio e por causa dele;
f) O valor despendido pela EMP04... nas limpezas, reparações, construções e fiscalizações;
g) O valor entregue pela Autora à EMP04... por força do contrato de seguro celebrado entre ambas e respectiva data.”
JJ. Por seu turno, no Despacho Saneador proferido à ordem do Proc. n.º 3131/19.... (a correr termos junto do Juízo Central Cível ... – Juiz ...) figuram como Temas da Prova os seguintes:
“1) A Ré visitou, várias vezes, as instalações da Autora para avaliar os riscos;
2) A Ré sabia que em todas as lojas havia áreas destinadas à manutenção, equipadas com bancadas de trabalho;
3) Relativamente a outro sinistro, a Ré pagou material danificado pelo fogo, entre o qual uma máquina de soldar;
4) O armazém onde ocorreu o sinistro configura uma instalação tecnicamente adequada;
5) A máquina de soldar encontrada no armazém onde deflagrou o incêndio estava avariada;
6) Os deveres da Autora decorrentes do contrato celebrado com a Ré foram pontualmente cumpridos;
7) A origem do sinistro foi acidental;
8) Danos e prejuízos sofridos pela Autora decorrentes do sinistro ocorrido;
9) O prejuízo indemnizável total, referente à ocorrência do sinistro, no que à apólice de riscos industriais diz respeito, cifra-se em 3.331.096,28 €;
10)No que respeita à apólice de perdas de exploração, o valor dos prejuízos indemnizáveis era de 4.794.757,14 €, até .../.../2019;
11)Prejuízos da Autora decorrentes de a Ré não ter assumido a sua obrigação;
12)Danos patrimoniais indirectos da Autora;
13)Prejuízos adicionais englobados na apólice contratada;
14)Abuso de direito da Ré;
15)A Autora, de forma deliberada, não comunicou à Ré que, no interior do edifício onde se encontravam os bens seguros pela apólice estava instalada uma bancada onde ocorriam operações de soldadura, de forma desapropriada;
16)Essas operações foram determinantes para a ocorrência do sinistro;
17)Se a Ré tivesse sido informada da existência dessas actividades, não teria aceitado garantir o risco decorrente da apólice;
18)A combustão teve a sua origem numa única área, ao nível do lado esquerdo do tampo da bancada de reparações existente no canto entre as paredes de delimitação com a área comercial e a lateral direita;
19)O incêndio teve origem negligente;
20)Não obstante a Autora, aquando da subscrição do seguro, ter sido informada da necessidade de informar com exactidão sobre todas as circunstâncias que conhecesse e que tivesse por significativas para a apreciação do risco, a mesma nada referiu acerca da existência de uma bancada no interior do edifício, onde havia produtos com elevado grau de combustão, numa zona não adequada à realização de operações de soldadura;
21)Sabendo do elevado risco de incêndio, a Autora omitiu deliberada e conscientemente, a existência dos trabalhos de soldadura;
22)Nas visitas efectuadas pela Ré, esta nunca se deparou com uma situação igual à existente no local do sinistro;
23)O funcionário da A., não desconhecendo a alta probabilidade de, com a sua conduta, provocar um incêndio, não se coibiu de proceder a soldaduras em local inadequado;
24)Danos reclamados pela Autora e não abrangidos pelo contrato de seguro em causa.”

KK. Se não se concluir pela existência de causa prejudicial (e, consequentemente, pela suspensão da presente instância) duplicar-se-á a prova a produzir quanto ao sinistro do passado dia 06 de Novembro de 2018, podendo inclusivamente chegar-se à produção de prova dissonante nas acções aqui em causa.

LL. O Despacho Saneador em crise viola, também, entre outras normas jurídicas, o artigo 272.º do CPC.
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EXCELENTÍSSIMOS SENHORES
JUÍZES DESEMBARGADORES,
Termos em que, e nos melhores que V. Exas. suprirão, julgando-se procedente o presente recurso, será feita a SÃ E COSTUMEIRA JUSTIÇA!
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Não houve contra-alegações.

Foi proferido despacho a não admitir o recurso relativo à decisão que indeferiu a suspensão da instância.

Foi proferido despacho a admitir, nos termos e com efeito adequados, o recurso sobre o indeferimento da prestação do depoimento de parte.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II – OBJECTO DO RECURSO

A – Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelo recorrente, bem como das que forem do conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando notar que, em todo o caso, o tribunal não está vinculado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, atenta a liberdade do julgador na interpretação e aplicação do direito.

B – Deste modo, considerando a delimitação que decorre das conclusões formuladas pela recorrente, cumpre apreciar se é legalmente admissível o depoimento de parte do Legal Representante da Autora.

III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Com interesse para o presente recurso há a considerar a factualidade constante do relatório supra.

IV – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Do depoimento de parte

Conforme acima se expôs, a primeira Ré, ora Recorrente, apresentou com a contestação o seu requerimento probatório, no qual, sob a alínea C. consta:
- “Prova por confissão das partes: nos termos dos artigos 452.º e seguintes do CPC, requer-se a prestação de depoimento de parte do Legal Representante da Autora relativamente a todos os factos sobre os quais possa recair, nomeadamente a matéria vertida nos artigos desta Contestação.”
Sobre tal requerimento incidiu a decisão recorrida, que indeferiu “o depoimento de parte do representante legal da Autora, requerido pela primeira Ré, uma vez que os factos em causa não são pessoais, nem são factos de que o depoente deva ter conhecimento – cfr. artigo 454º, nº 1, do Código de Processo Civil.”
Alega a Recorrente que o Despacho proferido não se afigura ajustado com os normativos legais aplicáveis, designadamente os artigos 453.º e 454.º do Código de Processo Civil; que o indeferimento, pelo Tribunal, do depoimento de parte do responsável máximo de uma parte será inadmissível quando baseado numa mera suposição ou crença do Tribunal, sem justificação de que aquele não tem conhecimento da matéria sobre a qual deporá – é precisamente o que sucede neste caso concreto; que o Tribunal a quo, ao decidir como decidiu, fez tábua rasa da última reforma do Processo Civil e da descoberta da verdade material dos enunciados fácticos trazidos a juízo; que a decisão recorrida, ao não admitir o depoimento de parte, viola o direito de defesa e do contraditório, na modalidade de direito à prova, que resulta dos artigos 3.º e 4.º do Código de Processo Civil, bem como o direito (fundamental) à prova, constitucionalmente consagrado nos artigos 20.º e 202.º da Constituição da República Portuguesa, restringindo-o desproporcionalmente, o que expressamente se invoca para todos os efeitos.
Mais alega a Recorrente que se o Tribunal a quo entendia que “os factos em causa não são pessoais, nem são factos de que o depoente deva ter conhecimento”, deveria ter endereçado à Recorrente um convite ao aperfeiçoamento no momento processualmente oportuno, designadamente no sentido de corrigir a matéria a indicar a propósito do referido Depoimento de Parte; que perante a suposta indicação errónea dos factos sobre os quais o depoimento de parte incidiria, deveria o Juiz a quo ter convidado a Recorrente ao aperfeiçoamento ou, pelo menos, a pronunciar-se sobre o indeferimento daquele meio de prova – o que não fez; que ao não ter procedido desse momento, proferiu uma decisão surpresa, proibida entre nós.
Concluiu assim a Recorrente pela revogação da decisão recorrida.
Vejamos.
A actividade das partes em processo civil está condicionada a uma série de princípios gerais como:
- Actuação em boa fé (art. 8º do CPC),
- Correcção (art. 9º, do CPC);
- Cooperação (art. 7º do CPC),
- Economia processual e limitação de actos inúteis (art. 130º do CPC),
- Simplicidade (art. 131º, nº1);
- E celeridade ou prazo razoável (art. 2º, nº1, do CPC).
Destes princípios, decorre o dever de os interessados conduzirem o processo assumindo os riscos daí advenientes, devendo deduzir os meios adequados para fazer valer os seus direitos na altura própria, sob pena de sofrerem as consequências (cfr. Ac. STJ de 11.07.2013, Proc. 6961/08.4TBALM.B.L1.S1 e Ac. STJ de 21.01.2014 – Proc. 689/08.2TTFAR.E1.S1).
O dever de gestão processual, previsto no artigo 6.º do CPC, traduz-se em atribuir ao juiz a incumbência de “dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório e, ouvidas as partes, adotando mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável”, bem como atribuir ao juiz a incumbência de providenciar “oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação, determinando a realização dos atos necessários à regularização da instância ou, quando a sanação dependa de ato que deva ser praticado pelas partes, convidando estas a praticá-lo”.
O princípio da cooperação, plasmado no art. 7º do CPC, consiste no dever de “na condução e intervenção no processo, os magistrados, os mandatários judiciais e as próprias partes cooperar entre si, concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio”.
É de salientar, no entanto, que o acentuar dos deveres de cooperação do tribunal, nomeadamente para o juiz, não implica que as partes deixem de ter um dever de auto-responsabilidade e submissão ao princípio da preclusão.
Isto posto, dispõe o artigo 452.º do Cód. Proc. Civil que o juiz pode, em qualquer estado do processo, determinar a comparência pessoal das partes para a prestação de depoimento, informações ou esclarecimentos sobre factos que interessem à decisão da causa.
Quando o depoimento seja requerido por alguma das partes, devem indicar-se logo, de forma discriminada, os factos sobre que há de recair.
Esta exigência não é despicienda ou meramente formal, a mesma resulta desde logo de um dever de cooperação para com o tribunal cuja função não é substituir-se à parte na escolha dos factos a confessar, apenas controlar se os factos escolhidos são efectivamente passíveis de confissão. Depois, essa indicação é ainda necessária para garantir o contraditório, organizar a produção de prova no julgamento e permitir a preparação da pessoa ou ente que irá ser sujeita a esse meio de obtenção da confissão.
Neste sentido e, após a reforma de 1995, Lopes do Rego (in Comentário ao CPC, pág. 387 e nos mesmos termos Lebre de Freitas e outros, Código de Processo Civil Anotado, II, em anotação ao artigo 552), afirma “mantém-se o ónus, que já recaia sobre a parte requerente, de indicar logo discriminadamente os factos sobre que há-de recair. Atenua-se, porém, o efeito preclusivo (…) cumprindo ao juiz convidar a parte a discriminar mais claramente o objecto do depoimento, ao menos quando a falta cometida não traduza culpa grave (…)”.
A última reforma do CPC manteve inalterada essa norma.
No caso vertente, perante o requerimento probatório apresentado pela Ré/Recorrente, em que se “requer a prestação de depoimento de parte do Legal Representante da Autora relativamente a todos os factos sobre os quais possa recair, nomeadamente a matéria vertida nos artigos desta Contestação”, resulta evidente que a mesma não observou a exigência de indicação discriminada dos factos sobre que deve recair o depoimento em causa, prevista no citado art. 452º, nº 2, do CPC..
Daí que, salvo o devido respeito, não podemos concluir como na decisão recorrida, para sustentar o indeferimento em apreço, que “os factos em causa não são pessoais, nem são factos de que o depoente deva ter conhecimento”.
Na verdade, não podemos afirmar com segurança se o depoimento de parte em causa irá versar sobre factos que a parte pode confessar ou não, porquanto a requerente desse depoimento não os discriminou, não se sabendo exactamente quais são.
Por isso, de harmonia com as disposições legais acima citadas e, ainda, ao abrigo do disposto no art. 590º do CPC, podia e devia o Tribunal a quo ter decidido de outro modo, cumprindo e observando esse dever (de gestão processual) e princípio (da cooperação), dirigir um convite à parte para indicar de forma discriminada os factos sobre os quais pretende que a parte deponha. E, com isso, evitar também uma decisão surpresa em que se traduz a decisão recorrida, atento o disposto no art. 3º, nº 3 do CPC

Do exposto, somos a concluir que a decisão recorrida não se pode manter, devendo ser revogada e ser proferida decisão a convidar a Ré/Recorrente a indicar de forma discriminada os factos objecto do depoimento de parte em causa.
Procede, pois, a apelação, ficando prejudicado o conhecimento das restantes questões colocadas.
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Sumário:

- Perante o requerimento probatório apresentado pela Ré/Recorrente, em que se “requer a prestação de depoimento de parte do Legal Representante da Autora relativamente a todos os factos sobre os quais possa recair, nomeadamente a matéria vertida nos artigos desta Contestação”, resulta evidente que a mesma não observou a exigência de indicação discriminada dos factos sobre que deve recair o depoimento em causa, prevista no citado art. 452º, nº 2, do CPC.

- Daí que, não podemos concluir como na decisão recorrida, para sustentar o indeferimento em apreço, que “os factos em causa não são pessoais, nem são factos de que o depoente deva ter conhecimento”.

- Por isso, de harmonia com as disposições legais acima citadas e, ainda, ao abrigo do disposto no art. 590º do CPC, podia e devia o Tribunal a quo ter decidido de outro modo, cumprindo e observando o dever de gestão processual e princípio da cooperação, dirigir um convite à parte para indicar de forma discriminada os factos sobre os quais pretende que a parte deponha. E, com isso, evitar também uma decisão surpresa em que se traduz a decisão recorrida, atento o disposto no art. 3º, nº 3 do CPC

DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes desta secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente a apelação e, em consequência, decide-se revogar o despacho recorrido, devendo o Tribunal a quo convidar a Ré/Recorrente a indicar de forma discriminada os factos objecto do do requerido depoimento de parte.
Sem custas.
Guimarães, 15.02.2024

Relator: Jorge Santos
Adjuntos: Conceição Sampaio
Elisabete Alves