Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2090/20.0T8BCL-B.G1
Relator: CONCEIÇÃO BUCHO
Descritores: PARTILHA DOS BENS DO CASAL
VERIFICAÇÃO DO PASSIVO
RECONHECIMENTO DA DÍVIDA
PROVA DOCUMENTAL
LEI N.º 117/2019
DE 13/09
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/01/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO DA CABEÇA-DE-CASAL IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Ao contrário da Lei anterior de harmonia com o modelo do processo de inventário trazido pela lei 117/2019 entrou em vigor 1 de janeiro de 2020, recai sobre os interessados diretos na partilha, na subfase de oposição, um ónus de impugnação, não apenas relativamente à composição do ativo, mas também do passivo, i.e., das dívidas que se mostrem relacionadas, com a cominação de que, não o fazendo nesse momento processual, a dívida se tem, em regra, por reconhecida (art.º 1104.º, n.º 1, c), n.º 1, do CPC).
A nova lei antecipou, em regra, o momento da discussão sobre a verificação do passivo, deslocando a controvérsia para a fase dos articulados (artigos 1104.º, n.º 1, e), e 1097.º, n.º 3, do Código de Processo Civil), retirando-a da Conferência de Interessados.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães.

Proc. n.º 2090/20.0T8BCL-B.G1

Nos presentes autos de inventário para partilha de bens comuns na sequência de divórcio, de AA e BB foi proferida a seguinte decisão:

(…) Nestes termos e pelos fundamentos expostos, julgando pela parcial procedência da reclamação, decido:
a) Que sejam eliminadas da relação de bens as verbas nºs 4 e 5, bem como os bens móveis descritos sob as verbas nºs 19, 20, 22, 23 e 24;
b) Que sejam também eliminadas da relação de bens as benfeitorias descritas sob as verbas nºs 33 e 34;
c) Que seja aditado à relação de bens o veículo da marca ..., modelo ..., com a matrícula ..-..-MS;
d) Não declarar reconhecida a dívida de € 30.000,00 descrita pela cabeça-de-casal sob a verba nº 2 do passivo, ordenando que a mesma seja eliminada da relação de bens;
e) Determinar que seja corrigida a verba nº 1 do passivo relacionada pela cabeça-de-casal, e que sejam aditados à relação os créditos a compensação reclamados pelo interessado BB, nos termos acima expostos.

Inconformada a cabeça-de-casal CC interpôs recurso, cujas alegações terminam com as seguintes conclusões:

a) - Os concretos pontos de facto que a Recorrente considera incorrectamente julgados são os constantes do ponto 5 dos factos provados, e do ponto f) dos factos não provados. b) - Os meios de prova que impunham decisão diversa da recorrida são os depoimentos das testemunhas AA e DD.
c) - Refere o Tribunal a quo que o facto elencado sob o n.º 5 decorre dos depoimentos prestados pelas testemunhas DD e AA.
d) - Começa o Tribunal a quo por considerar que as referidas testemunhas apresentam razão de ciência relativamente à existência, à data do casamento, dos bens móveis relacionados nas verbas nºs 19, 20 22, 23 e 24, uma vez que são irmãs, respectivamente, do Reclamante e da Cabeça-de-Casal.
e) - Dos depoimentos prestados retira-se precisamente a conclusão inversa.
f) - Por um lado, a testemunha DD refere expressamente que não consegue discriminar quais os electrodomésticos que efetivamente existiam na habitação, questão essa que lhe "passa um bocadinho ao lado".
g) - Também a testemunha AA, apesar de ir mais longe no seu depoimento do que a testemunha antecedente, apenas refere que ACHA que aquando do casamento a casa de morada de família tinha o quarto e a cozinha completa.
h) - Do depoimento conjugado das mencionadas testemunhas, apenas resulta de forma genérica que a casa efetivamente estaria habitável aquando do casamento do extinto casal, o que permitiu que fossem de imediato para lá residir, não especificando, no entanto, quais os concretos electrodomésticos se encontravam na habitação.
i) - No limite, aquilo que se pode retirar dos referidos depoimentos é que a casa de morada de família à data do casamento estaria mobilada, porém, o que aqui se discute não é se a casa estaria ou não mobilada, mas sim se a casa estava mobilada com os electrodomésticos especificamente relacionados.
j) - Ora, face à manifesta insuficiência da prova produzida, entende a Recorrente que, salvo melhor opinião, não havia razões para o Tribunal a quo dar como provado que os móveis relacionados pela Cabeça-de-CasaI sob as verbas nºs 19, 20, 22, 23 e 24 se encontravam à data do casamento na casa de morada de família.
k) - O Tribuna a quo deu como não provado que no decurso da obra de construção da casa de morada de família, a Cabeça-de-Casal tenha contribuído para a execução da mesma, com a quantia de 30.000,00€, considerando manifestamente insuficiente o depoimento de AA.
l) - A referida testemunha, ouvida na sessão de 13/02/2023, referiu, em suma, que a Recorrente viveu consigo durante o namoro que teve com o Reclamante, época em que tudo o que ganhava ia diretamente para a construção da casa de morada de família, tendo contribuído direta e continuamente para a construção da mesma, tendo contribuído mesmo com 30.000 OO€, o que chegou a ser dito pelo próprio Reclamante. m) - Do referido depoimento, e contrariamente ao entendimento do Tribunal a quo, resulta de forma clara e objetiva que a Cabeça-de-Casal contribuiu para a construção da casa de morada de família, pelo menos no valor de 30.000,00€, o que, aliás, é consentâneo e vai ao encontro das regras da experiência comum.
n) - Não obstante, mesmo que no entendimento do Tribunal a quo não tivesse ficado suficientemente demonstrado qual o efectivo valor entregue pela Recorrente a título de contribuição para a mencionada construção, sempre se teria de fixar como provado o facto de a Recorrente ter contribuído para a construção da casa de morada de família.
o) - Quanto ao valor específico da contribuição, deveria ser remetido para incidente de liquidação, ou, no limite remeter as partes para os meios comuns.
p) - Ora, face ao conjunto da prova produzida, entende a Recorrente que, salvo melhor opinião, não havia razões para o Tribunal a quo ter dúvidas quanto à efectiva contribuicão da Cabeca-de-Casal para a construção da casa de morada de família.
q) - Atento a acabado de verter, a não correspondência entre a prova invocada pelo Tribunal e a decisão sobre a matéria de facto que sobre ela assentou traduz uma violação e uma interpretação inconstitucional do preceituado no artigo 653°, n° 2 do Código de Processo Civil e viola o artigo 2050 da Constituição da República Portuguesa, o que desde já se deixa invocado.
r) - Devendo, no entender da Recorrente, proceder a impugnação da decisão sobre a matéria de facto quanto ao ponto 5 dos factos provados, deve desde logo concluir-se que as verbas nºs 19, 20 22, 23 e 24 são bens comuns, devendo manter-se na relação de bens.
s) - Com efeito, não tendo o Reclamante logrado demonstrar que os referidos bens foram por si adquiridos a expensas suas antes do casamento, tem aplicação in casu o disposto no artigo 1725.° do Código Civil, preceito violado pela douta decisão do Tribunal a quo.
t) - Ainda atento o alegado em sede de impugnação da decisão de facto, no que concerne ao ponto f) dos factos não provados, deve ser reconhecido o crédito de 30.000 OO€ a favor da Cabeça-de-Casal sobre o património comum.
u) - Com efeito, tendo em conta que a benfeitoria - casa de morada de família - foi levada a cabo em bem próprio do Reclamante as contribuições feitas pela Cabeça-de¬Casal para a respetiva construção, anteriores e posteriores ao casamento, e sempre tendo em vista o mesmo, geram um crédito a favor desta nos termos do artigo 169r, n." 1 do Código Civil.
v) - Defende o Tribunal a quo, no entanto, que tendo a benfeitoria sido levada a cabo previamente ao casamento, não deve ser relacionada nos presentes autos de inventário. w) - Entendimento que a Recorrente não aceita, desde logo, porque as contribuições para a casa de morada de família são anteriores e posteriores ao casamento.
x) - Por outro lado, o artigo 1697°, n.? 2 do Código Civil consagra o direito de compensação nas hipóteses em que bens comuns respondem por dívidas da exclusiva responsabilidade de um dos cônjuges.
y) - Por conseguinte, e por maioria de razão, o referido direito de compensação tem aplicação in casu, onde temos o património próprio da Cabeça-de-Casal a responder por uma benfeitoria levada a cabo em bem próprio do Reclamante, isto é, temos o bem próprio de um cônjuge a responder por "dívida" da responsabilidade exclusiva do outro cônjuge.
z) - Caso contrário, com a liquidação do património comum verificar-se-ia um claro enriquecimento do património do Reclamante em relação à Recorrente, a qual, note-se, realizou contribuições sempre em vista do casamento.
aa) - Só será possível restabelecer as forças dos patrimónios, corrigindo os desequilíbrios através do reconhecimento de crédito de compensação em favor do património empobrecido - o da Recorrente -, sendo precisamente esta a finalidade subjacente ao direito de compensação regulado pelo n.? 2 do artigo 1697° do Código Civil.
bb) - Da douta decisão do Tribunal a quo resulta ainda que o passivo reclamado pelo Interessado BB nos pontos 4. e 5. do artigo 30.° da reclamação à relação de bens, não tendo sido impugnado, deverá considerar-se reconhecido.
cc) - Estabelece o artigo 1106.° n.º 1 do Código de Processo Civil que "as dívidas não relacionadas que não hajam sido impugnadas pelos interessados diretos consideram-se reconhecidas, sem prejuízo do disposto no n. 02 do artigo 574. o ... ".
dd) - Estabelece o artigo 574.°, n.º 2 do Código de Processo Civil que "consideram-se admitidos por acordo os factos que não forem impugnados, salvo se estiverem em oposição com a defesa considerada no seu conjunto ... ".
ee) - Em causa está o valor de 11.371,81 € referente ao pagamento das prestações do crédito hipotecário referido na Verba n.? 1 do Passivo relacionado pela Cabeça-de-Casal na relação de bens.
dd) - Analisada a resposta apresentada pela aqui Recorrente, no artigo 12° refere expressamente que "não reconhece e nem aceita a justificação relativamente ao empréstimo no valor de € 65. 000, 00 (descrita na verba n. o 1 do passivo) ".
ee) - Ora, têm as partes litigantes posições diametralmente opostas quanto a esta verba do passivo, pelo que, na posição vertida pela Cabeça-de-Casal na sua resposta, e olhando para ela no seu todo, resulta de forma nítida a sua oposição quer ao valor alegadamente em dívida à data da produção de efeitos do divórcio, quer ao facto de o valor já pago ter sido suportado pelo Reclamante.
ff) - Não obstante, sempre se diga que todo o passivo alegado pelo Reclamante, em face do momento processual em que se encontra a lide, nunca poderia ser, desde já, dado como assente.
gg) - Com efeito, o momento processual adequado à discussão do passivo é apenas na conferência de interessados, conforme resulta do disposto no n. o 3 do artigo 1111.º do Código de Processo Civil.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II – É pelas conclusões do recurso que se refere e delimita o objecto do mesmo, ressalvadas aquelas questões que sejam do conhecimento oficioso – artigos 635º e 639º Código de Processo Civil -.

Em 1ª instância foi considerada como provada e não provada a seguinte matéria de facto:

1. AA e BB contraíram casamento, um com o outro, no dia 19 de Maio de 2001, sem precedência de convenção antenupcial.
2. Esse casamento foi dissolvido por divórcio decretado por sentença proferida a 27 de Maio de 2021, pacificamente transitada em julgado.
3. Nessa sentença foi ainda decidido fazer retroagir os efeitos do divórcio a 1 de Janeiro de 2019, data aí fixada como a da separação de facto entre autora e réu.
4. À data de 1 de Janeiro de 2019, a conta de depósitos à ordem com o nº ...000, titulada pelo interessado BB na Banco 1..., S.A., apresentava um saldo negativo de € 400,00.
5.  A mesa de refeição com oito cadeiras, o fogão a gás, o forno, o frigorífico e a máquina de lavar louça – relacionadas, respectivamente, sob as verbas nºs 19, 20, 22, 23 e 24 – já se encontravam na casa de morada de família quando os interessados casaram e foram para ali morar, tendo sido adquiridos antes do casamento.
6. Por escritura pública outorgada no dia 11 de Março de 1999, EE e esposa FF declararam doar ao interessado BB, que declarou aceitar, um terreno de ... situado no lugar ... ou ..., da freguesia ..., com a área de 880 m2, omisso na matriz, a desanexar do descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...10, do Livro ...43, e do inscrito na antiga matriz ...58....
7. Nesse terreno, construiu o interessado BB, antes de contrair casamento com a cabeça-de-casal, aquela que foi a casa de morada de família, composta por casa de ..., andar e cave, sita no lugar ..., concelho ..., actualmente inscrita na matriz predial urbana da União de Freguesias ... e Feitos sob o artigo ...49º e descrita na Conservatória do Registo Predial ... sob a ficha nº ...39/freguesia ....
8. Na pendência do casamento, os interessados adquiriram um veículo automóvel da marca ..., modelo ..., com a matrícula ..-..-MS.
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Não se provaram outros quaisquer factos com relevância para a decisão a proferir e, designadamente, que:

a) O fogão a lenha relacionado sob a verba nº 21 já se encontrava na casa de morada de família quando os interessados casaram e foram para ali morar, tendo sido adquirido pelo interessado GG e a suas expensas antes do casamento.
b) A caldeira, o balão de água e o motor do poço de água – relacionados, respectivamente, sob as verbas nºs 29, 31 e 32 – foram colocados no imóvel pelo interessado GG, e por si adquiridos a expensas suas, antes do casamento.
c) O pavilhão/estaleiro destinado a indústria, situado no lugar e freguesia ... – referido na verba nº 34 da relação de bens – foi construído pelos interessados, na pendência do casamento, com recurso ao empréstimo no valor de € 65.000,00 contraído junto da Banco 1..., S.A..
d) Esse pavilhão está implantado em dois terrenos: no terreno em que foi construída a casa de morada de família e num terreno pertencente aos herdeiros de HH.
e) O pavilhão referido na verba nº 34 do activo da relação de bens como benfeitoria, foi construído pela empresa “EMP01... & C.ª, Lda.”, com mão de obra e materiais desta empresa, e está implantado num terreno que pertence aos herdeiros de EE.
f) No decurso da obra de construção daquela que foi a casa de morada de família, a cabeça-de-casal contribuiu para a execução da mesma com a quantia de € 30.000,00, trazida por si de solteira.
g) O veículo automóvel da marca ..., modelo ..., com a matrícula ..-..-MS, foi entregue pela cabeça-de-casal para a sucata em 28 de Outubro de 2021.
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A apelante impugna a matéria que consta  como provada no ponto 5, e a matéria que foi considerada como não provada na alínea f) dos factos não provados.
Invoca o depoimento das testemunhas AA, e DD.
O que foi considerado provado no referido ponto 5 foi  o seguinte:

5.  A mesa de refeição com oito cadeiras, o fogão a gás, o forno, o frigorífico e a máquina de lavar louça – relacionadas, respectivamente, sob as verbas nºs 19, 20, 22, 23 e 24 – já se encontravam na casa de morada de família quando os interessados casaram e foram para ali morar, tendo sido adquiridos antes do casamento.
E o que foi considerado não provado foi o seguinte:
f) No decurso da obra de construção daquela que foi a casa de morada de família, a cabeça-de-casal contribuiu para a execução da mesma com a quantia de € 30.000,00, trazida por si de solteira.
Diversamente do que acontece no sistema da prova legal, em que a conclusão probatória é prévia e legalmente fixada, no sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objecto do julgamento, com base apenas no juízo que fundamenta no mérito objectivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, adquirido representativamente no processo.
O juiz, no seu livre exercício de convicção, tem de
indicar os fundamentos que, segundo as regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa sindicar da razoabilidade da decisão sobre o julgamento do facto como provado ou não provado (neste sentido, Miguel Teixeira de Sousa, in Estudos Sobre o Novo Código de Processo Civil, Lex, 1997, pg. 348). Na verdade, o art. 607º, nº4, do Código de Processo Civil, prevê expressamente a exigência de objectivação, através da imposição da fundamentação da matéria de facto, devendo o tribunal analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador.

Vejamos então se os depoimentos foram assim tão dissonantes do que foi considerado provado e não provado.
A este propósito a apelante considera que o depoimento das referidas testemunhas foi insuficiente.
Nesta sede o tribunal recorrido referiu que a convicção do julgador fundou-se nos depoimentos prestados pelas testemunhas DD, arrolada pelo reclamante, e AA, arrolada pela cabeça-de-casal. Essas duas testemunhas são irmãs, respectivamente, do reclamante e da cabeça-de-casal, revelando, por isso, razão de ciência sobre essa matéria. Disseram ambas que na data do casamento dos interessados, altura em que foram viver para a casa de morada de família, esta casa estava já acabada e pronta a ser habitada, afirmando também, em moldes essencialmente concordantes, que nessa ocasião a cozinha se encontrava mobilidade e equipada com electrodomésticos.
É certo que a testemunha DD não foi muito precisa na discriminação dos electrodomésticos, mas ambas as testemunhas acabaram por referir que a casa estava acabada e equipada.com todos os electrodomésticos.
No que respeita à alínea f) apesar da testemunha AA ter referido que a sua  irmã contribuiu ainda antes do casamento para a construção da  habitação, não soube dizer qual o montante da contribuição, pelo que o seu depoimento  não permite,  sem mais qualquer elemento de prova, concluir que contribuiu com a referida quantia.
Os meios probatórios têm por função a demonstração da realidade dos factos, sendo que, através da sua produção não se pretende criar no espírito do julgador uma certeza absoluta da realidade dos factos, o que, obviamente implica que a realização da justiça se tenha de bastar com um grau de probabilidade bastante, em face das circunstâncias do caso, das regras da experiência da comum e dos conhecimentos obtidos pela ciência.
Tendo em consideração os depoimentos ouvidos concordamos com a convicção do Tribunal recorrido quando considerou que os mesmos eram suficientes para dar a matéria do ponto n.º 5 como provada. Se o tribunal recorrido entendeu valorar diferentemente da ora apelante  tais depoimentos, não pode esta Relação pôr em causa, sem mais, a convicção daquele, livremente formada, tanto mais que dispôs de outros mecanismos de ponderação da prova global que este tribunal ad quem não detém .
A  prova não é a certeza lógica mas tão só um alto grau de probabilidade, suficiente para as necessidades práticas da vida (M. Andrade in Noções Elementares de Processo Civil, 1976, pág. 190/191), e no que toca aos factos descritos naqueles pontos esse patamar de segurança mostra-se alcançado.
E o mesmo se diga em relação à matéria não provada na alínea f), em relação à qual não houve qualquer prova da matéria aí referida.
Improcede nesta sede, o recurso.
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Mantendo-se a matéria de facto como consta da decisão , mantém-se no mais a mesma, uma vez que o apelante não põe em causa a decisão do Tribunal de 1ª instância proferida com base nos factos que julgou provados, antes a sua alteração passava necessariamente pela alteração da decisão sobre a matéria de facto, confirmando-se nesta parte a decisão recorrida.
A apelante insurge-se também pelo facto de a decisão recorrida ter determinado a eliminação das verbas n.ºs 33 e 34.
Nessas verbas tinham sido relacionados pela cabeça de casal como benfeitorias a casa de morada de família – verba n.º 33 - e um pavilhão/estaleiro  destinado à indústria – verba n.º 34.
A partilha do casal desdobra-se em três operações distintas: a)- a entrega dos bens próprios; b)- a conferência das dívidas dos cônjuges à massa comum, a fim de apurar o valor activo comum líquido, o que envolve operações de cálculo das compensações e de contabilização das dívidas a terceiros e entre os cônjuges; c)- a partilha do activo comum líquido, ou seja, a partilha em sentido restrito, concretizada em atribuições de carácter patrimonial. As operações devem processar-se por esta ordem – cf. Pires de Lima e Antunes Varela, op. cit., Código Civil Anotado”, vol. IV, 2ª ed. revista e actualizada, Coimbra Editora, 1992, p. 322.
Cessadas então as relações patrimoniais, os cônjuges recebem os seus bens  próprios e a sua meação no património comum, conferindo cada um deles o que dever a este património – cf. art. 1689º, nº 1, do Código Civil.

Simultaneamente com a reposição do que cada um dos cônjuges estiver a dever ao património comum, havendo passivo a liquidar, são pagas em primeiro lugar as dívidas comunicáveis até ao valor do património comum, e só depois as restantes – art.º 1689º, n.º 2 do Código Civil.

No âmbito do regime de bens supletivo legal, todos os bens adquiridos depois do casamento a título oneroso comunicam-se a ambos os cônjuges, ou seja, todos os valores que constituam contrapartida da realização de uma prestação por parte de um dos cônjuges em que ele aplique as suas capacidades físicas ou intelectuais integrarão o património comum, prescrevendo o art.º 1724.º do Código Civil que fazem parte da comunhão, não só o produto do trabalho dos cônjuges, mas ainda os bens adquiridos por eles na constância do casamento.


Na falta de uma norma que determine a qualificação de um determinado bem como bem próprio de um dos cônjuges, tal bem será qualificado como comum. Daqui resulta, como refere Rute Teixeira Pedro, “uma presunção de comunhão (em que terceiros confiam) que vale para os bens adquiridos na constância do casamento, na medida em que caberá ao cônjuge que pretenda demonstrar a qualidade de bem próprio o ónus de provar o contrário por verificação de uma das excepções previstas na lei
(arts. 1722º, 1723º, 1726º, p. ex.).” – cf. Código Civil Anotado, Volume II, 2017, Ana Prata (Coord.), pág. 632.

Ora, de entre as mencionadas excepções figuram as consignadas no art.º 1722º do Código Civil, onde se exclui da comunhão três espécies de bens: os bens de que cada um dos cônjuges seja titular ao tempo da celebração do casamento, qualquer que seja a natureza (gratuita ou onerosa) do título com base no qual a aquisição ocorreu; os bens que cada um dos cônjuges adquira, a título gratuito, depois da celebração do casamento; e os bens que sejam adquiridos, na constância do matrimónio, ainda que onerosamente, e por virtude de direito próprio anterior.

Assim, e como já se referiu de acordo com o disposto no artigo 1722º, nº 1, do Código Civil, no regime de comunhão de bens adquiridos são considerados próprios dos cônjuges “os bens que cada um deles tiver ao tempo da celebração do casamento” (alínea a)), “os bens que lhes advierem depois do casamento por sucessão ou doação” (alínea b)), e “os bens adquiridos na constância do matrimónio por virtude de direito próprio anterior” (alínea c))
Por sua vez dispõe o artigo 1724.º: “Fazem parte da comunhão: a) O produto do trabalho dos cônjuges; b) Os bens adquiridos pelos cônjuges na constância do matrimónio, que não sejam excetuados por lei.”
Rege o artigo 1725.º do Código Civil: Quando haja dúvidas sobre a comunicabilidade dos bens móveis, estes consideram-se comuns.
Nessa medida são considerados bens comuns do casal todos os bens adquiridos pelos cônjuges durante o casamento, mesmo os que sejam titulados por apenas um deles.
Decorre da previsão da alínea c) do n.º 1 do artigo 1723º do Código Civil que são considerados bens próprios dos cônjuges os “adquiridos na constância do matrimónio por virtude de direito próprio anterior”.
O critério decisivo é, nessa sede, o da anterioridade, em relação à data do casamento, do momento do encabeçamento na titularidade do direito.

O n.º 2 do mesmo preceito legal concretiza, de modo meramente exemplificativo, diversas situações em que se consideram os bens como tendo sido adquiridos por virtude de direito próprio anterior, sem prejuízo da compensação eventualmente devida ao património comum.

.São benfeitorias, de acordo com o nº 1 do artigo 216º do Código Civil, todas as despesas feitas para conservar ou melhorar a coisa.

Como resulta do artigo 216º, nº 3, do Código Civil, as benfeitorias classificam-se em necessárias (as que têm por fim evitar a perda, destruição ou deterioração da coisa); úteis (as que, não sendo indispensáveis para a sua conservação, lhe aumentam, todavia, o valor) e voluptuárias (as que, não sendo indispensáveis para a sua conservação nem lhe aumentando o valor, servem apenas para recreio do benfeitorizante).
No caso, em relação à verba n.º 33 como resultou provado, o prédio onde foi implantada a habitação, que mais tarde veio a ser casa de morada de família foi doado ao apelado, antes da constância do matrimónio.
Também nesse terreno o apelado construi a casa de morada de família, antes da constância do matrimónio.
Nesse sentido, a casa que mais tarde veio a ser a casa de morada de família constitui um bem próprio do apelado.
Como se decidiu na decisão recorrida, quanto a eventuais beneficiações que foram realizadas no imóvel e que teriam sido suportados por recurso a meios económicos do casal, (o apelado fala em recurso a um empréstimo contraído depois do casamento) foram os interessados remetidos para os meios comuns, razão pela qual deste inventário foi excluída a referida verba n.º 33, com o que concordamos.
No que concerne à verba n.º 34 - pavilhão destinado à indústria – também concordamos com a decisão recorrida .
A cabeça de casal relacionou-o como benfeitoria. O apelado alegou que o mesmo não foi construído pelo casal, nem em qualquer terreno pertencente ao casal ou a qualquer dos cônjuges.
Conforme foi decidido uma vez que não está demonstrado que o pavilhão foi construído pelo casal, ou com dinheiro do casal nem que está implantado em terreno do casal ou de um dos cônjuges, o mesmo teria que ser excluído da relação de bens.
A apelante discorda da decisão relativa ao passivo descrito na relação de bens.
A questão suscitada pela apelante é que é ainda extemporânea a apreciação do passivo.
A Lei n.º 117/2019 entrou em vigor 1 de janeiro de 2020 e passou a reger os processos de inventário intentados a partir dessa data e aqueles que, pendentes nos cartórios notariais, sejam remetidos aos tribunais nos termos do disposto nos seus artigos 11.º a 13.º.
O inventário iniciou-se após o decretamento do divórcio que ocorreu em 27 de Maio de 2021 e  é-lhe aplicável o processo de inventário desenhado pela Lei n.º 117/2019 e inserido no Código de Processo Civil.
Estamos perante um inventário na sequência de divórcio, previsto no artigo 1133º do Código de Processo Civil, o qual é regido, por força do estabelecido no artigo 1084.º, n.º 2, desse código, pelas disposições gerais do processo de inventário (artigos 1082º a 1096º deste diploma), mas também pelo disposto nos seus artigos 1097.º a 1130.º.
No regime processual anterior, os actos relativos à verificação e aprovação do passivo tinham lugar na conferência de interessados, o que originava, não raro, a prolongadas e vivas discussões entre os conferentes e exigia uma deliberação dos interessados, desde logo sobre a aprovação do passivo e, no caso de se manter a divergência, total ou parcial, sobre esse passivo, reclamava uma decisão judicial acerca da dívida ou dívidas, decisão que, muitas vezes, não podia ser proferida de imediato, e implicava a interrupção dos trabalhos da conferência, até que o juiz, em face das provas disponíveis, conhecesse da questão (artigos 1352.º, n.º 3, 1355.º e 1356.º do CPC de 1961).
Para obviar a estes inconvenientes e assegurar uma maior eficiência e economia de meios e a recondução da conferência de interessados à sua verdadeira finalidade – a realização e concretização da partilha – a nova lei antecipou, em regra, o momento da discussão sobre a verificação do passivo, deslocando a controvérsia para a fase dos articulados (artigos 1104.º, n.º 1, e), e 1097.º, n.º 3, do Código de Processo Civil).
De harmonia com o modelo do processo de inventário trazido pela lei nova, recai sobre os interessados directos na partilha, na subfase de oposição, um ónus de impugnação, não apenas relativamente à composição do activo, mas também do passivo, i.e., das dívidas que se mostrem relacionadas, com a cominação de que, não o fazendo nesse momento processual, a dívida se tem, em regra, por reconhecida (art.º 1104.º, n.º 1, c), n.º 1, do CPC).
Relativamente ao reconhecimento de dívidas da herança, existe um outro aspecto em que lei nova também inovou. Ao passo que no regime anterior, a exigência de prova documental apenas obstava à aprovação da dívida pelos representantes dos menores e equiparados, no regime actual a exigência dessa prova foi generalizada, obstando ao reconhecimento da dívida sem o indispensável documento (artigo 1354.º, n.º 2 do CPC de 1961, e 1106.º, n.º 1, do CPC).
A oposição unânime do reconhecimento da dívida, decorrente da sua impugnação por todos os interessados directos, devolve ao juiz a resolução da controvérsia sobre a sua existência e o seu valor, decisão que, em regra, deve ser proferida na fase – instituída pela lei nova - do saneamento do processo (art.ºs 1106.º, n.º 3, 1.ª parte, 1105.º, n.ºs, 1 e 3, e 1110.º, n.º 1, a), do CPC). Assim, não há lugar, na conferência de interessados à aprovação do passivo: esta aprovação teve lugar na fase dos articulados, em consequência da vinculação dos interessados a um ónus de impugnação dos créditos relacionados, ou reclamados, e de outros encargos da herança. Por isso, que a nova lei suprimiu o segmento normativo da lei anterior que se reportava à aprovação do passivo, pelo que o único objecto admissível da deliberação dos interessados é, agora, somente, a forma de pagamento do passivo e de cumprimento dos demais encargos da responsabilidade da herança. Na conferência de interessados deixou, assim, de estar em causa a decisão sobre o reconhecimento da existência e do valor da dívida – mas apenas o modo de satisfação dessa dívida e de cumprimento de qualquer outro encargo pelo qual a herança responda (art.º 1111.º, n.º 3, do CPC).
Mantém-se, todavia, a relevância determinante da prova documental, dado que se continua a exigir que os documentos apresentados forneçam um critério decisório suficiente, que permita uma apreciação, segura e conscienciosa, sobre a dívida; caso isso não suceda, i.e., se a prova documental não convencer sobre a realidade dos factos constitutivos do débito, o juiz deve abster-se de decidir e remeter os interessados para os meios judiciais comuns (art.ºs 1106.º, n.º 3, e 1093.º, n.º 1, do CPC). A exigência da prova documental, não é, contudo, nos termos gerais, inibidora da utilização, pelo juiz, dos seus poderes inquisitórios no domínio da prova, caso não seja exigível documento ad substantiam ou ad probationem; o juiz, pode, portanto, determinar, por exemplo, a produção de provas pessoais – como a testemunhal ou por declarações de parte – destinadas a interpretar, esclarecer ou completar os resultados da prova documental (art.º 411.º do CPC).
Como ocorreu no presente inventário foi ouvido o apelado, e bem assim a apelante, sobre o passivo, a mesma impugnou a versão do apelado e este também a da apelante; foram ouvidas as testemunhas, foram remetidos os interessados para os meios comuns em relação a alguns aspectos e foi decidido qual o passivo a que se alude na verba n.º 1.
Assim, face à alegada dívida relacionada pela cabeça de casal  na verba n.º 2 como dívida do património comum no montante de € 30.000,00, o Tribunal recorrido entendeu que face à ausência de prova neste inventário a questão só pode ser dirimida nos meios comuns.
Quanto à verba n.º1, em que é relacionado o passivo pela cabeça de casal, mas referindo esta que em relação ao empréstimo bancário concedido pela Banco 1... , celebrado em 9/04/2017, não sabe qual o montante em dívida (tendo requerido a notificação do apelado para juntar os documentos)  decidiu, e bem, o tribunal recorrido, face aos esclarecimentos do apelado e aos documentos bancários juntos que a referida verba n.º 1 fosse rectificada referindo-se que o montante da dívida era de € 33.388,11 à data de .../.../2019, data em que a sentença de divórcio fez retroagir os efeitos do divórcio.
Improcede, assim, o recurso interposto.

III – Pelo exposto, acordam os Juízes desta Secção em julgar a apelação improcedente confirmando a decisão recorrida.
Custas pela apelante.
Guimarães, 1 de fevereiro de 2024.