Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2955/21.2T8BCL.G1
Relator: ALEXANDRA ROLIM MENDES
Descritores: CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
MEDIDA CAUTELAR PROVISÓRIA
ATRIBUIÇÃO A TÍTULO GRATUITO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/22/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1 – A atribuição da casa de morada de família no âmbito da medida cautelar provisória prevista no art. 931º, nº 7 do C. P. Civil, para vigorar até à partilha ou venda do bem comum, é diversa da atribuição a título definitivo prevista no art. 1793º do C. Civil.
2 – A atribuição a título provisório não esta sujeita a critérios de legalidade estrita, mas a critérios casuísticos de oportunidade, equidade e justiça, devendo ser efetuada em função das necessidades de cada um dos cônjuges e, havendo filhos menores, deve ter-se em atenção o interesse destes.
3 – Tendo a atribuição da casa de morada de família sido efetuada no âmbito de uma medida cautelar provisória, pode ser determinada a título gratuito, em face da valoração das circunstâncias de vida dos cônjuges e por razões de equidade ou justiça material.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

Relatório:

AA, casada, residente na Rua ..., ... ..., ..., intentou a presente ação especial de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, requerendo a UTILIZAÇÃO PROVISÓRIA DA CASA DE MORADA DE FAMILIA contra BB, casado, residente na Rua ..., ... ..., concelho ..., pedindo, com os fundamentos constantes da Petição Inicial, se decrete a dissolução, por divórcio, do seu casamento com o réu.
Para fundamentar o pedido de atribuição provisória da casa de morada de família, referiu não auferir quaisquer rendimentos e que, devido a ter sido vítima de atropelamento, tem dificuldades de locomoção, movimentando-se com a ajuda de canadianas, subsiste com ajuda de terceiros, nomeadamente dos filhos. O Réu possui rendimentos e é o causador do divórcio.
O Réu apresentou contestação e reconvenção.
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Realizou-se o julgamento na sequência do qual foi proferida sentença que julgou a ação nos seguintes termos:

Pelo exposto, julgo a ação procedente, pelos fundamentos invocados pela A. e, em consequência, decreto o divórcio entre a autora e o réu com a consequente dissolução do seu casamento.
Mais se decide pela atribuição provisória da casa de morada de família à A., sem a fixação de uma compensação monetária ao Réu.”
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Inconformado veio o R recorrer formulando as seguintes conclusões:

1. Na douta decisão em recurso decidiu-se: Por conseguinte e sem necessidade de outras considerações, decide-se pela atribuição provisória da casa de morada de família à A., sem a fixação de uma compensação monetária ao Réu.
2. Todavia em nenhum momento dos factos provados resulta que a Autora não aufere quaisquer rendimentos.
3. Na matéria de facto dada como provada diz-se ”9.º- Há cerca de três anos sofreu uma trombose venosa (tromboflebite) que a deixou impossibilitada de exercer qualquer actividade profissional.”, não querendo isto dizer que aquela não aufere rendimentos já que o pode fazer através da obtenção de subsídios, reforma, pensão.
4. Resulta assim que a Meritíssima Juiz a quo baseia-se para a decisão tomada na ausência de rendimentos da Autora para não fixar qualquer tipo de compensação ao Réu, quando tais elementos não resultam do processo, nem foram considerados provados.
5. Ocorre assim vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando esta se mostra exígua para fundamentar a solução de direito encontrada, quando da factualidade vertida na decisão se colhe faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para que se possa formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição.
6. Estamos assim perante um erro ou vício da decisão de facto nos termos do art.º 662.º do C.P.C. relativamente à modificabilidade da decisão de facto, devendo a decisão ser anulada o que desde já se requer.
7. Ou caso assim não se entenda verifica-se uma nulidade da sentença uma vez que os fundamentos estão em oposição com a decisão nos termos do artº 615º do CPC na sua alínea c), já que a Meritíssima Juiz a quo baseou a sua decisão em factos que não se encontram provados ou demonstrados, o que desde já se invoca.
8. Acresce que não pode o recorrente conforma-se com a decisão de atribuição da casa de morada de família à Autora já que dos factos provados consta que: “11º o R. padece de psicose esquizoafectiva e juízo crítico diminuído. 12º- O R. conta com a ajuda do seu filho CC que é quem providencia pela gestão da sua reforma, no montante de €429,07 mensais.”
9. Tais factos são demostrativos do grave estado de saúde do Réu, e das suas parcas condições económicas que não foram tidas em conta na aliás douta decisão em recurso.
10. O direito do Réu a habitação face ao seu grave estado de saúde e baixos rendimentos implicam que o mesmo deva permanecer na habitação.
11. Caso o mesmo tenha que sair da habitação, sempre terá que ser fixada compensação pecuniária ao cônjuge privado do uso daquele bem comum do extinto casal, por aplicação analógica do regime que está previsto para a atribuição definitiva da casa de morada de família (art.º 931º, n.º 7, do CPC).
12. Até porque após o trânsito em julgado da sentença de divórcio, os ex- cônjuges só podem aspirar à atribuição definitiva do direito de utilização da casa de morada de família, segundo as regras do arrendamento, a título oneroso, ou seja, através da fixação de uma compensação pecuniária ao cônjuge privado do uso daquele bem comum do extinto casal (art.ºs 990.º do CPC e 1793.º do CC).
13. A decisão recorrida viola entre outros o disposto nos artigos, 607º n3, 615 nº1 al c),662º, º 931º, n.º 7,990º todos do Código de Processo Civil e 1793 do Código Civil.

Termos em que, deverá ser julgado procedente por provado o presente recurso, anulada, ou então e revogada a decisão recorrida na parte em que atribui provisoriamente a casa de morada de família à Autora sem a fixação de compensação monetária ao Réu, fazendo, deste modo, Vossas Excelências, como sempre, inteira
JUSTIÇA           
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A Recorrida apresentou contra-alegações, com as seguintes conclusões:

1. Vem o recorrente insurgir-se contra a parte da douta sentença que decidiu pela atribuição provisória da casa de morada de família à A., sem a fixação de uma compensação monetária ao Réu.
2. A apelante sustenta que não ficou provada a ausência de rendimentos da recorrida.
3. A autora alega na douta PI que não aufere quaisquer rendimentos.
4. A recorrente impugnou esse facto em sede contestação, mas não fez juntar meios de prova, nem tampouco requereu a realização de diligências probatórias a fim de aferir os rendimentos da recorrida, sendo que os factos impeditivos ou modificativos do direito são prova da parte que os invoca ou deles beneficia.
5. É facto notório e do conhecimento do recorrente que a recorrida não aufere quaisquer rendimentos, não possuindo rendimentos que lhe permitam suportar qualquer compensação ao recorrente.
6. Por outro lado resulta prova bastante da inexistência de rendimentos por parte da requerida, conforme factos provados nos artigos 9º e 10.º.
7. Estes factos provados são suficientes para se aferir da falta de rendimentos da recorrida, já que se a filha provê a suas necessidades é porque esta não aufere qualquer rendimento que lhe permitem satisfazer as suas necessidades, pois que se assim não fosse outra coisa resultaria provada, nomeadamente que a recorrida estava a ser ajudada pela filha e não a seu cargo.
8. Na fundamentação da matéria de facto o tribunal para além da prova documental junta socorre-se do depoimento do filho de recorrente e recorrido, CC, que presta auxílio ao pai e gere a sua reforma.
9. Nem o tribunal necessitou para a formação da sua convicção de obter junto da SS elementos sobre os rendimentos da requerida, pela maioria de razão porque o recorrente, apesar de impugnar a declaração da recorrida de que não possuía rendimentos, não ter declarado a sua existência e origem.
10. Sabe pois o recorrente que se escuda no recurso em sem fundamento sério e que, com isso, protela a ação da justiça.
11. Está a decisão em perfeita harmonia com a justiça do caso concreto, não violando qualquer disposição legal.

Nos termos, e nos demais de Direito que V.exa. doutamente suprirá, deverá ser julgado totalmente improcedente o recurso de apelação interposto pelo Réu / Recorrente, e em consequência ser confirmada a douta decisão proferida pelo Tribunal recorrido, com todos os efeitos legais.
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Questões a decidir:

- Da nulidade da sentença por contradição entre os fundamentos;
- Da alegada insuficiência da matéria de facto provada para fundamentar a solução jurídica encontrada;
- Caso não se verifiquem os vícios enumerados nos pontos anteriores, verificar se o direito foi bem aplicado aos factos provados.
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Os factos considerados provados na 1ª instância são os seguintes:

1.º - Autora e réu contraíram casamento no dia ../../1983, no regime de comunhão de adquiridos.
2.º- Desde o início do casamento sempre existiram contendas entre os cônjuges, porquanto o réu adotava comportamentos violentos e assumia consumos excessivos de álcool.
3.º- Injuriando e maltratando a autora frequentemente apelidando-a de “ladra” e acusando-a de andar na “má vida” e de ter amantes.
4.º- O que fez com que a A. em novembro de 2021, tivesse que recorrer às autoridades policiais, vendo-se obrigada a sair de casa e refugiar-se numa casa abrigo.
5.º- O R. foi condenado no âmbito do processo que correu termos, sob o n.º 1113/21...., no Juízo Local Criminal ... – Juiz ... – pela prática de um crime de violência doméstica, p.p. pelo art.º 152.º, n.º 1, al. a) e n.º 2 al. a) do C. Penal na pena de dois anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de três anos, perpetrado na pessoa da autora, e na pena acessória de por qualquer forma contactar ou se aproximar desta a menos de 300 metros ou se aproximar da sua residência – cfr. art.º 152., n.ºs 4 e 5 do mesmo diploma legal.
6.º- Há vários anos que a A. e R. não partilham mesa e leito, apesar de residirem na mesma habitação.
7.º- A A. mantém o propósito de não retomar a vida em comum com o Réu como se de marido e mulher se tratassem.
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8.º- A Autora padece de doença depressiva e encontra-se medicada.
9.º- Há cerca de três anos sofreu uma trombose venosa (tromboflebite) que a deixou impossibilitada de exercer qualquer atividade profissional.
10º- Encontra-se a residir com a sua filha, que provém às suas necessidades, numa habitação que apenas possui um quarto e sem condições condignas para acolher a mãe.
11º- O R. padece de psicose esquizoafectiva e juízo crítico diminuído.
12º- O R. conta com a ajuda do seu filho CC que é quem providencia pela gestão da sua reforma, no montante de €429,07 mensais.

2. Factos não provados

- Os comportamentos da autora designadamente controlando a vida do réu, desinteressando-se da vida deste e apoderando-se do seu dinheiro, comprometeram a vida conjugal.
- A A. desde ../../2021, por diversas vezes, obrigou o Réu a dormir na rua.
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Cumpre apreciar e decidir:

Da invocada nulidade da sentença:

Invoca o Recorrente a existência de contradição entre os fundamentos de facto e a decisão, o que a existir poderia consubstanciar ininteligibilidade da sentença e, por isso a sua nulidade por aplicação do art. 615º, nº 1 – c) do C. P. Civil.
Diz-nos o art. 615º, nº 1 – c) que a sentença é nula quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou quando ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
Alberto dos Reis (in Código de Processo Civil anotado, volume V, pág. 151) refere que a sentença é obscura quando contém algum passo cujo sentido seja ininteligível e é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes. E acrescenta que, num caso não se sabe o que o juiz quis dizer, no outro hesita-se entre dois sentidos diferentes e porventura opostos.
Para fundamentar a alegação de nulidade da sentença, diz o Recorrente que a Srª Juiz baseou a sua decisão em factos que não se encontram provados.
Ora, tal fundamento não se enquadra na nulidade acima caracterizada, mas sim no eventual erro de direito.
Como se afirma no sumário do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03/03/2021 (Processo n.º 3157/17.8T8VFX.L1.S1, Relatora Conselheira Leonor Cruz Rodrigues, disponível em www.dgsi.pt) “I. Há que distinguir as nulidades da decisão do erro de julgamento seja de facto seja de direito. As nulidades da decisão reconduzem-se a vícios formais decorrentes de erro de actividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal; trata-se de vícios de formação ou actividade (referentes à inteligibilidade, à estrutura ou aos limites da decisão) que afectam a regularidade do silogismo judiciário, da peça processual que é a decisão e que se mostram obstativos de qualquer pronunciamento de mérito, enquanto o erro de julgamento (error in judicando) que resulta de uma distorção da realidade factual (error facti) ou na aplicação do direito (error juris), de forma a que o decidido não corresponda à realidade ontológica ou à normativa, traduzindo-se numa apreciação da questão em desconformidade com a lei, consiste num desvio à realidade factual -nada tendo a ver com o apuramento ou fixação da mesma- ou jurídica, por ignorância ou falsa representação da mesma.
Por sua vez Antunes Varela (in Manuel de Processo Civil, pág. 686) diz-nos que “não se inclui entre as nulidades da sentença o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, o erro na construção do silogismo judiciário”.
Ora, tendo em conta o que se expôs, vemos que o que que foi alegado pelo Recorrente não se enquadra na invocada nulidade da sentença, representando sim, um descontentamento relativamente aos fundamentos fáticos e jurídicos da sentença recorrida, o que não configura qualquer nulidade da mesma.
Improcede, pois, a invocada da nulidade da sentença.
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Do pedido de “anulação” da sentença por alegada insuficiência da matéria de facto:

Refere o Recorrente que a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a decisão de direito encontrada e que deveriam ter sido indagados mais elementos “para que se possa formar um juízo seguro de condenação ou absolvição”. Diz que, “Estamos assim perante um erro ou vício da decisão de facto nos termos do art.º 662.º do C.P.C. relativamente à modificabilidade da decisão de facto, devendo a decisão ser anulada o que desde já se requer.”
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Resulta do disposto no art. 662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Ora, para que seja reapreciada a matéria de facto fixada na sentença recorrida, é necessário que o Recorrente a impugne, cumprindo os ónus previstos no art. 640º do C. P. Civil, já que, neste âmbito vigora o princípio do dispositivo, a não ser que existam vícios da matéria de facto que cumpra ao Tribunal da Relação apreciar oficiosamente, como nos casos em que haja violação de prova vinculada, ou utilização de meios de prova proibidos (v. neste sentido Ac. desta Relação de 21/11/19 in www.dgsi.pt ).
No caso, não existe qualquer motivo para este Tribunal alterar oficiosamente a matéria de facto fixada na decisão recorrida.
Se a mesma é ou não suficiente para sustentar as conclusões jurídicas expostas naquela decisão, é questão de mérito que analisaremos de seguida.
           
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Da atribuição da casa de morada de família:

A Requerente, no âmbito do processo de divórcio, requereu que lhe fosse provisoriamente atribuída a casa de morada de família, nos termos do nº 7, do art, 931º do C. P. Civil.
Está prevista nesta norma uma medida meramente provisória relativamente à utilização da casa de morada de família.
Este procedimento é diverso do pedido de atribuição da casa de morada de família a título definitivo, previsto no nºs 1 do art. 990º do C. P. Civil e regulado no art. 1793º do C. Civil.
“Este último visa a definição duradoura do regime de ocupação da morada do extinto casal, a vigorar subsequentemente à decisão final de divórcio; aquele destina-se apenas a acautelar a proteção da habitação de um dos cônjuges durante o processo de divórcio, em função do condicionalismo que a lei tem por pertinente” (v. Ac. R. P. de 19/05/22 in www.dgsi.pt ).

A atribuição da casa de morada de família no âmbito de uma medida cautelar provisória, para vigorar até à partilha ou venda do bem, não se encontra regulada de forma específica, podendo o juiz socorrer-se para resolução desta questão dos critérios previstos no art. 1793º do C. Civil, ponderando as necessidades de cada um dos cônjuges, em função da respetiva situação patrimonial, profissional, de saúde, etc., conjugada, se for o caso, com o interesse dos filhos menores. (cfr. Ac. STJ de 26/04/12 e Ac. desta Relação de 18/01/18, ambos in  www.dgsi.pt).

No caso, a atribuição da casa de morada de família foi efetuada no âmbito de uma medida cautelar provisória, não estando, pois, sujeita a critérios de legalidade estrita, mas a critérios casuísticos de oportunidade, equidade e justiça (cfr. Ac. STJ de 13/10/16 in www.dgsi.pt ).
A casa de morada de família deverá ser atribuída em função das necessidades de cada um dos cônjuges e, havendo filhos menores, deve ter-se em atenção o interesse destes.

No caso, na fundamentação da atribuição da casa de morada de família à Recorrida pode ler-se, nomeadamente, o seguinte:

“Na avaliação da premência da necessidade da casa deve o tribunal ter em conta, em primeiro lugar, justamente estes dois elementos. Trata-se, quanto à situação patrimonial dos cônjuges ou ex-cônjuges, de saber quais são os rendimentos e proventos de um e outro, uma vez decretado o divórcio ou a separação judicial de pessoas e bens, assim como os respetivos encargos; no que se refere ao “interesse dos filhos” há que saber a qual dos cônjuges ou ex-cônjuges ficou a pertencer a guarda dos filhos menores ... e se é do interesse dos filhos viverem na casa que foi do casal com o progenitor a quem foram confiados.
Mas o juízo sobre a necessidade ou premência da necessidade da casa não depende apenas destes dois elementos. Haverá que considerar ainda as demais “razões atendíveis”: a idade e o estado de saúde dos cônjuges ou ex-cônjuges, a localização da casa relativamente ao local de trabalho de um e de outro, o facto de algum deles dispor eventualmente de outra casa em que possa estabelecer a sua residência.
Quando possa concluir-se, em face destes elementos, que a necessidade ou a premência da necessidade de um dos cônjuges é consideravelmente superior à do outro, julgamos que o tribunal deve atribuir o direito ... àquele que mais precise dela.
Só quando as necessidades de ambos os cônjuges ou ex-cônjuges forem iguais ou sensivelmente iguais haverá lugar para considerar a “culpa” que possa ser ou tenha efetivamente sido imputada a um ou outro na sentença de divórcio».
(…)

In casu, quer a A., quer o R., apresentam uma situação económica precária.
Ambos carecem da ajuda de terceiros para que possam ter uma segunda habitação.
Sucede que, in casu, há que atender que o R. foi condenado pela prática de um crime de violência doméstica e na pena acessória de contactar com a autora e/ou aproximar-se da sua residência.
Acresce que esta vive de favor com a filha que não tem condições para a acolher e não aufere quaisquer rendimentos.
O R., por sua vez aufere uma pensão, ainda que exígua e pode ter o apoio do seu filho.
Logo, como decorre dos respectivos articulados, para além do mais, as partes alegaram diversos factos no que concerne à situação patrimonial/económica e pessoal de cada um deles.
Porém, atentas as circunstâncias, acima descritas afigura-se-nos que a situação da A. é mais periclitante, sendo esta obrigada a afastar-se da sua residência, não auferindo quaisquer rendimentos.”

Concordamos em absoluto com estas considerações e entendemos que, ao contrário do que refere o Recorrente nas suas alegações, a matéria de facto provada é suficiente para formular tal juízo.
Assim, analisando a matéria de facto vemos que, não obstante, ambos os cônjuges terem uma situação económica difícil, a situação da Recorrida, não só económica, mas também de saúde é mais frágil e merecedora de proteção.
Desta forma, concorda-se com a decisão da primeira instância ao atribuir a utilização da casa de morada de família, até à partilha ou venda do bem comum, à Autora/Recorrida.
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Do pagamento de uma compensação pecuniária:

Insurge-se o Recorrente contra o facto de não ter sido fixada qualquer contrapartida pecuniária pela utilização pela Recorrida da casa de morada de família.
No caso - em que a atribuição é definitiva – a atribuição fica sujeita às regras do arrendamento e, naturalmente, ao pagamento de uma contrapartida pecuniária mensal a título de renda, ao cônjuge que não é beneficiário da atribuição e, portanto, privado do uso de um bem comum do extinto casal.
Quando a atribuição é provisória, não se encontra prevista tal fixação.

Assim, quid iuris? Há ou não lugar à fixação de uma contrapartida ao cônjuge que não usufrui da sua quota-parte do imóvel comum?

Tal como referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil anotado, vol. II, pág. 376 “Na jurisprudência tem sido discutido se essa atribuição provisória dá azo a que o cônjuge beneficiado compense o outro. A solução para esta questão está devidamente exposta em STJ 13-10-16, 135/12, segundo o qual a norma do nº 7 , ao limitar-se a prescrever a possibilidade de o juiz proferir decisão provisória sobre a utilização da casa de morada de família é suficientemente ampla, indeterminada e flexível para consentir, em função de uma valoração prudencial das circunstâncias pessoais e patrimoniais dos cônjuges, quer a atribuição a título gratuito, quer a título oneroso, fundada em razões de equidade e justiça, estabelecida por analogia com o regime previsto para a atribuição definitiva da casa de morada de família” (no mesmo sentido Acs. deste Tribunal de 15/12/18 e de 18/01/18, Acs. R.L. de 22/02/18 e de 11/03/21 e ainda Nuno Salter de Cid in Sobre a atribuição judicial provisória do direito a utilizar a casa de morada da família, Revista Julgar, nº 40, págs. 63 a 70).
           
Na verdade, tendo a atribuição da casa de morada de família sido efetuada no âmbito de uma medida cautelar provisória, não aludindo aqui o legislador a qualquer contrato de arrendamento, pode ser determinada a título gratuito, em face da valoração das circunstâncias de vida dos cônjuges e por razões de equidade ou justiça material.
Por outro lado, tal como se escreveu no Ac. desta Relação de 18/01/18 “a obrigação de pagamento de compensação também não resulta do regime da compropriedade.
A única norma do regime da compropriedade que releva para o caso é a do n.º 1 do artigo 1406.º do Código Civil, sobre o uso da coisa comum. Segundo o mencionado preceito, “na falta de acordo sobre o uso da coisa comum, a qualquer dos comproprietários é lícito servir-se dela, contando que a não empregue para fim diferente daquele a que a coisa se destine e não prive os outros consortes do uso a que igualmente têm direito”.
Esta norma serviria de amparo à pretensão da recorrente se dela resultasse que o comproprietário que use licitamente e de modo exclusivo a coisa comum está obrigado a indemnizar os outros comproprietários. Sucede que não é este o princípio que resulta da norma. O princípio que dela resulta é que o comproprietário que use a coisa comum está obrigado a indemnizar os outros comproprietários desde que prive ilicitamente os outros consortes de utilizar tal coisa.
Sucede que, no caso, não está preenchida esta condição, ou seja, a privação ilícita do uso da casa de morada de família pelo outro cônjuge. Com efeito, a casa está a ser usada exclusivamente pelo réu, primeiro por tal uso lhe ter sido atribuído por decisão judicial e depois por tal uso lhe ter sido atribuído por acordo estabelecido entre ele e a ora autora. A utilização exclusiva da casa de morada de família pelo réu é, pois, lícita.
Se a utilização exclusiva da coisa comum - casa de morada de família - é lícita; se a indemnização pela prática de actos lícitos só é devida nos casos excepcionais previstos na lei; e se a lei não prevê que o consorte que use exclusivamente, mas licitamente, a coisa comum indemnize os outros consortes, a conclusão a retirar é a de que a obrigação de compensação reclamada pela recorrente não tem amparo no regime da compropriedade.
No caso, a obrigação de compensação também não tem apoio no princípio da proibição do enriquecimento sem causa enunciado no n.º 1 do artigo 473.º do Código Civil. Na verdade, o enriquecimento do réu, consistente na utilização da casa de morada de família, tem como causa uma decisão judicial e um acordo entre os cônjuges quanto à utilização da casa de morada de família.”

Não existe, pois, qualquer obrigação de fixação de uma contrapartida pela utilização da casa de morada de família no âmbito do procedimento como o que está ora em causa.
Assim, ponderadas as circunstâncias pessoais e patrimoniais dos cônjuges que resultam da matéria de facto provada e devidamente analisadas na decisão recorrida, confirma-se também nesta parte tal decisão.
           
Conclui-se, pois, pela improcedência total do recurso.       
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Decisão:

Pelo exposto, acorda-se nesta secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso, confirmando a decisão recorrida
Custas a cargo do Recorrente.           
Guimarães, 22 de fevereiro de 2024

Alexandra Rolim Mendes
Joaquim Boavida
Eva Almeida