Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
808/18.0T8VNF-A.G1
Relator: JOSÉ AMARAL
Descritores: ADMISSÃO DO RECURSO
FALTA DE REQUERIMENTO DE INTERPOSIÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/19/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECLAMAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (do relator)

1) Em contexto de impugnação de decisão judicial que julgou prescrito certo direito, dizendo apenas, a recorrente, num requerimento separado, em que identifica o processo, tribunal, acção e partes e se dirige ao juiz respectivo, que: “... Distribuição – Energia, SA […] notificada da sentença com a referência 160605518, vem, muito respeitosamente, requerer a junção aos autos das suas alegações de recurso” e, juntando estas, dirigidas aos Desembargadores do Tribunal da Relação de Guimarães, dizendo que “A recorrente insurge-se contra a decisão…”, “pretende ver alterada a decisão … considerando que o direito não se encontrava prescrito”, constando do capítulo intitulado “A motivação do recurso”, referência, além do mais, a que “De acordo com a douta sentença de que se recorre…” e expondo, de seguida, as razões pelas quais se entende não estar prescrito o direito e, ainda, no capítulo intitulado “Conclusões”, elencando tais fundamentos sob alíneas e terminando com o pedido de revogação da “decisão recorrida” e que se ordene por acórdão o prosseguimento do processo, não tem qualquer mérito e, por isso, não merece procedência, a pretensão da recorrida que, nas suas contra-alegações, sustenta que aquela “não apresenta qualquer requerimento de interposição de recurso”, conforme exige o artº 637º, nº 1, e pressupõe o artº 641º, CPC, mas apenas “um requerimento em que requer a junção aos autos das suas alegações de recurso”, pelo que “o pretenso recurso pretendido pela A. apenas pode ser rejeitado, tanto mais que não é possível ao julgador admitir algo que nem sequer lhe foi requerido e, consequentemente revela-se uma impossibilidade de proferir despacho a que se refere o nº 1 do artº 641º, uma vez que a A. nem sequer manifestou a sua vontade de recorrer” e, enfim, que nem sequer é possível convite ao aperfeiçoamento, por nada existir susceptível de o ser.

Este entendimento não é conforme aos princípios fundamentais e regras pertinentes que prevalecem na actual lei processual civil – privilegiando a substância ou o fundo dos actos e questões em detrimento da sua forma –, nem mesmo ao senso da comunidade jurídica
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO

A recorrida (...) SA, requereu ao abrigo do artº 643º, nº 4 – sem nada acrescentar à sua resposta à reclamação deduzida, nos termos do artº 643º, CPC, pela parte contrária do despacho proferido em 1ª instância que a esta indeferira um recurso – que recaísse um Acórdão sobre a matéria objecto da seguinte decisão singular proferida em 28-02-2019:

1. – Relatório

Proc. nº 808/18.0T8VNF – A.G1
Tribunal: Vila Nova de Famalicão
Acção: declarativa de condenação, forma comum
Valor: 33.189,03€

Autora: “(..) SA”,
: “(…) , SA”

Pedido: pagamento da quantia de 33.198,03€ e juros

Causa de pedir: adulteração do dispositivo de ligação, controlo e fornecimento de energia eléctrica, de modo a permitir consumo a uma potência superior à contratada e consequente prejuízo causado pela ré à autora (responsabilidade civil extracontratual e enriquecimento sem causa).

Contestação: por impugnação e excepção de prescrição.

Sentença proferida em 04-11-2018: nela foi apreciada e julgada procedente esta excepção peremptória, consequentemente improcedente a acção, e absolvida a ré do pedido.

Requerimento da autora apresentado em 07-12-2018, identificando o processo, tribunal, acção e partes, dirigindo-se ao juiz respectivo e dizendo: “(..) SA … notificada da sentença com a referência 160605518, vem, muito respeitosamente, requerer a junção aos autos das suas alegações de recurso”.

Alegações juntas: dirigidas aos Desembargadores do Tribunal da Relação de Guimarães, dizendo que “A recorrente insurge-se contra a decisão…”, “pretende ver alterada a decisão … considerando que o direito não se encontrava prescrito”. No capítulo intitulado “A motivação do recurso”, refere-se, além do mais, que “De acordo com a douta sentença de que se recorre…” e expõem-se, de seguida, as razões pelas quais se entende não estar prescrito o direito. No capítulo intitulado “Conclusões”, elencam-se tais fundamentos sob alíneas e termina-se pedindo a revogação da “decisão recorrida” e que se ordene por acórdão o prosseguimento do processo.

Contra-alegações, apresentadas em 03-01-2019: nelas sustenta a ré que a autora “não apresenta qualquer requerimento de interposição de recurso”, conforme exige o artº 637º, nº 1, e pressupõe o artº 641º, CPC, mas apenas “um requerimento em que requer a junção aos autos das suas alegações de recurso”, pelo que “o pretenso recurso pretendido pela A. Apenas pode ser rejeitado, tanto mais que não é possível ao julgador admitir algo que nem sequer lhe foi requerido e, consequentemente revela-se uma impossibilidade de proferir despacho a que se refere o nº 1 do artº 641º, uma vez que a A. Nem sequer manifestou a sua vontade de recorrer”. Nem sequer é possível convite ao aperfeiçoamento, por nada existir susceptível de o ser.

Requerimento da autora de 09-01-2019: a autora pediu a rectificação do seu “requerimento de interposição de recurso”, coim fundamento em lapso.

Despacho de 29-01-2019:

“[…] Vejamos. Dispõe o artigo 637.º, n.º 1 do Código de Processo Civil que “Os recursos interpõem-se por meio de requerimento dirigido ao tribunal que proferiu a decisão recorrida, no qual se indica a espécie, o efeito e o modo de subida do recurso interposto”, acrescentando, o n.º 2, que esse requerimento deve incluir, além do mais, a alegação do recorrente.

Ora, como se considerou no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22.11.2011 (processo 126/09.5TBVPA-A.P1), disponível em www.dgsi.pt (numa situação semelhante à dos autos, mas a que era aplicável o regime de recurso anterior – cujas normas em causa na apreciação da questão suscitada não sofreram alterações), a apresentação do requerimento de interposição de recurso, no prazo legal, o qual deve incluir ou ser acompanhado da correspondente alegação, é indispensável, integrando a manifestação de vontade da parte inconformada com a decisão proferida e constituindo um pressuposto legal da prolação do despacho a que alude o artigo 641.º do Código de Processo Civil.

Escreveu o Prof. Alberto dos Reis: “Qual é a essência do acto de interposição dum recurso?

Reduzido à última expressão, o acto define-se assim: declaração de vontade do vencido. O que há de típico e de característico no acto da interposição é simplesmente isto: a parte vencida significa que não se conforma com a decisão e que a impugna por meio de recurso.

Trata-se, pois, de um acto da parte, destinado a dar determinado impulso processual; o impulso, na espécie, consiste em submeter a tribunal superior a apreciação da decisão impugnada. Ora os actos das partes revestem três modalidades: requerimentos, articulados, alegações …. É evidente que a modalidade que se ajusta ao caso é o requerimento; é o acto idóneo para o impulso processual das partes” (cfr. Código de Processo Civil anotado, vol. V, reimpressão de 1981, págs. 326 e 327).

O Prof. Castro Mendes também ensinava que o requerimento de interposição de recurso deve conter, além do mais que aqui não releva, “manifestação da vontade de recorrer, sem o que o requerimento é inepto e não deve ser atendido (não se sabe o que o requerente quer)” – cfr. Recursos, edição da AAFDL, 1980, pág. 135.

Cremos não haver dúvidas acerca da indispensabilidade de apresentação do requerimento de interposição de recurso, porquanto é através dele que a parte vencida manifesta a sua vontade de recorrer.

Tal requerimento constitui um pressuposto legal da prolação do despacho a que alude o art.º 685.º-C do CPC sobre a admissibilidade ou inadmissibilidade do recurso.

Basta atentar na epígrafe desse mesmo artigo “Despacho sobre o requerimento”.

Parece-nos evidente que, na falta de requerimento a manifestar a vontade de recorrer, não pode ser proferido despacho a admitir um recurso que nem sequer foi interposto.

É certo que naquele normativo não consta como fundamento de indeferimento a falta de requerimento, por razões óbvias, já que não pode ser indeferido o que não foi requerido.

Todavia, na alínea b) do seu n.º 2 prevê-se o indeferimento do requerimento quando “Não contenha ou junte a alegação do recorrente ou quando esta não contenha conclusões”.

Estes fundamentos são, sem dúvida alguma, menos gravosos do que a ausência absoluta do requerimento de interposição de recurso, através do qual a parte vencida declara que não se conforma com a decisão e que a impugna por meio de recurso.” (cfr. Acórdão citado)

No caso dos autos, a Autora não apresentou requerimento de recurso, limitando-se a requerer a junção aos autos das alegações (que são peças distintas, dirigidas a tribunais diferentes), o que a própria confessa ao requerer a rectificação do lapso.

Acresce que, conforme se expôs no mesmo Acórdão “Com o devido respeito por opinião contrária, afigura-se-nos que o aludido requerimento, de 29/6/2011, é inepto, pelo que não deve ser atendido como manifestação de vontade de recorrer.

Como tal, a sua apresentação também não demandava qualquer despacho de aperfeiçoamento, por não estar previsto na lei para a presente situação, nem resultar de algum princípio processual, nomeadamente dos, agora invocados, deveres de esclarecimento e de prevenção.”

Por fim, também se afigura inviável a rectificação do lapso cometido pela Autora. “É que, para haver lugar à rectificação ao abrigo deste normativo, é necessário que o erro de escrita seja de tal modo ostensivo que resulte do próprio contexto do documento, o que não é o caso. Apesar de ser aplicável a todos os actos jurídicos, nomeadamente aos praticados no processo civil, para poderem ser rectificados nos termos e condições daquele artigo, teria de ocorrer um “erro manifesto” ou “erro ostensivo” (cfr. acórdão desta Relação de 10/1/95, CJ, ano XX, tomo 1, pág. 193).

Além disso, por esta via, não é possível “complementar as puras e simples omissões ou corrigir peças processuais” (cfr. Prof. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, vol. I, tomo I, 2.ª ed., pág. 612, e acórdãos da Relação de Lisboa de 18/3/1992, CJ, ano XVII, tomo 2, pág. 194 e de 14/5/1998, CJ, XXIII, 3, 98).
Não se trata de erro de escrita, manifesta ou ostensivamente, revelado no próprio contexto da alegação, nem o mesmo permite suprir a falta do requerimento de interposição de recurso, pela simples razão de que não existe erro, mas ausência de declaração.” (Acórdão citado)

Face ao exposto, indeferindo-se a requerida rectificação, e considerando a inexistência de qualquer requerimento de interposição de recurso no articulado de 7 de Dezembro de 2018 -, indefere-se o requerido pela Autora, não se admitindo o recurso que – a ter sido requerido em 9 de Janeiro de 2019 – se afigura manifestamente extemporâneo.
Notifique. ”.

Reclamante: a Autora
Reclamada: a Ré

Despacho objecto da reclamação: o de 29-01-2019

Teor da reclamação: praticamente igual aos das conclusões, ou seja:

“A. Nos presentes autos foi pela aqui Autora, ora Reclamante, intentada ação declarativa de processo comum contra a sociedade Ré “... – Industri Portuguesa de Porcelana S.A.”.
B. O processo correu os seus termos, tendo a Meritíssima Juiz do Tribunal a quo, em 08 de dezembro de 2018, proferido sentença, a qual foi notificada as partes em 06 de novembro de 2018.
C. No entanto, não se conformando com o teor da decisão proferida pelo Tribunal a quo, em 07 de dezembro de 2018 a Autora, ora Reclamante, apresentou junto do mesmo o respetivo recurso sob referência 30934295.
D. Sucede que, por manifesto lapso, do qual a Reclamante apenas se veio a aperceber posteriormente, no requerimento de interposição de recurso apresentado não foi indicado a espécie, o efeito e modo de subida do recurso.
E. Concomitantemente, uma vez detetado tal lapso a Reclamante prontamente diligenciou o envio de requerimento aos autos, no transato dia 09 de janeiro de 2019, solicitando a retificação do requerimento de interposição de recurso anteriormente remetido, ao abrigo do preceituado no artigo 641.º do Código de Processo Civil.
F. Porém, por despacho proferido em 29 de janeiro de 2019, sob ref.ª 161695182, decidiu a Mm.ª Juiz do Tribunal a quo rejeitar a retificação requerida, rejeitando assim liminarmente o recurso interposto pela Reclamante, em 07 de dezembro de 2018.
G. Assim, a presente reclamação incide sobre o teor de tal despacho, matéria em que, salvo o devido respeito por melhor entendimento, muito mal andou o Tribunal a quo.
H. Para ancorar a sua decisão de indeferimento da retificação solicitada e, consequentemente, o recurso interposto, o Tribunal a quo, alicerçou-se, sem mais, no entendimento de que a Reclamante, aquando da interposição do recurso, não apresentou qualquer requerimento de interposição de recurso.
I. Posição com a qual não pode a Reclamante concordar pois, em boa verdade, aquela não só apresentou o requerimento de interposição de recurso como, ao apresentar e juntar as suas alegações de recurso, manifestou a sua vontade de recorrer da decisão em causa.
J. Ora, se atentarmos ao requerimento junto aos autos pela Reclamante resulta clarividente que foi ali manifestada a vontade de recorrer, bem como devidamente identificada a decisão que se pretendia impugnar, como infra se transcreve: «... DISTRIBUIÇÃO – ENERGIA S.A., Autora no processo supra identificado, em que é Ré ... – Industria Portuguesa de Porcelena S.A., notificada da sentença com referência 160605518, vem, muito respeitosamente, Requerer a junção aos autos das suas alegações de recurso»
K. Pelo que, forçoso será então concluir que a Reclamante não só apresentou requerimento de interposição como, no mesmo, manifestou sua vontade de recorrer da sentença proferida nos autos.
L. Ademais, contrariamente ao que consta no despacho em causa, a Reclamante, no requerimento junto aos autos ref.ª 31163511, apenas reconheceu junto do Tribunal a quo que – por manifesto lapso – não indicou a espécie, o efeito e o modo de subida do recurso, nada mais.
M. Ausência essa que, como esclareceu o Tribunal da Relação do Porto, em acórdão de 03 de abril de 2014, nos autos do processo 4949/10.4TBVFR.P12 não se reconduz a qualquer um dos fundamentos para rejeição do recurso, não sendo a exigência de menção á espécie, efeito e modo de recurso obrigatória, tanto mais condição da admissibilidade de recurso, nos casos em que a decisão recorrida não se encontre abrangida pelas regras gerais da recorribilidade.
N. Sendo certo que a considerar-se que a ausência de tais menções revestia uma irregularidade – o que não se concebe porquanto ter a Reclamante expresso a sua vontade de recorrer – sempre competia ao Tribunal a quo, ao abrigo do dever de gestão processual e princípio geral da cooperação, e tendo em consideração as disposições conjugadas do artigo 641.º e 6.º do Código de Processo Civil, convidar a parte, no caso a Reclamante, a aperfeiçoar o seu requerimento de interposição de recurso.
O. Pelo que impunha ao Tribunal a quo suprir a irregularidade detetada, o que não sucedeu no caso concreto.
P. Nestes termos, deve a presente reclamação ser julgada procedente e, em consequência, deverá ser revogada a decisão sub judice, e substituída por outra que admita a retificação requerida e admita o recurso de apelação tempestivamente interposto pela Reclamante.

Nestes termos e nos melhores de Direito, sempre com o mui douto suprimento de V. Exas., deverá ser revogado o despacho proferido pelo tribunal a quo, e substituído por outro que admita a retificação apresentada e, consequentemente, o recurso apresentado, com o que se fará a SÃ E COSTUMEIRA JUSTIÇA!”.

Resposta à reclamação: a ré sustenta que deve ser indeferida a reclamação e mantido o despacho reclamado, por não haver requerimento de interposição de recurso, que o acórdão invocado pela reclamante não respeita a questão semelhante e remete para o que referiu nas suas contra-alegações.

2. – A questão

Consiste em saber se, na sequência da sentença que julgou improcedente a acção, apresentando a autora requerimento onde apenas diz “requerer a junção aos autos das suas alegações de recurso” tal satisfaz o exigido no artº 637º, do CPC.

3. – Fundamentação

A norma referida dispõe, no seu nº 1, que: “Os recursos interpõem-se por meio de requerimento dirigido ao tribunal que proferiu a decisão recorrida, no qual se indica a espécie, o efeito e o modo de subida do recurso interposto”.

Em geral, o requerimento constitui a expressão, por regra formalizada num documento escrito, de algo que se quer e pede à entidade, através dele, para tal instada.

No fundo, é um acto que exprime uma declaração de vontade.

No caso, o requerimento de interposição de recurso é o meio através do qual a parte interessada numa certa decisão judicial proferida manifesta, no processo respectivo e ante o tribunal que a proferiu, em termos formais adequadamente significativos, o seu inconformismo com a mesma e a vontade de prosseguir a discussão da questão decidida, de a levar a instância superior e sujeitar à reapreciação desta.

Ele serve também de veículo para, nos termos do nº 2, carrear as alegações, nele incorporadas ou adjuntas.

Neste sentido, ele constitui peça única.

Ora, no caso, é inquestionável que aquelas foram apresentadas.

E que o foram, por sinal, com um requerimento formalmente separado em que se anuncia a sua junção.

Acontece, porém, que, como se verifica dos seus termos supra referidos, nele se pedindo a junção aos autos daquelas, omitiram-se outras expressões verbais concomitantes, de índole formulária, usualmente nele vertidas e com que a parte recorrente manifesta a sua insatisfação, exprime a sua vontade de recorrer e afirma interpor o recurso, indicando o tribunal que, para apreciar os respectivos fundamentos e eventualmente acolher o seu pedido de alteração, pretende instar e outros elementos relativos à sua espécie, modo de o processar e consequentes efeitos.

Ora, há muito que a falta de indicação destes últimos é considerada mera irregularidade, insancionável. (1)

Quanto aos demais, é de afirmar afoitamente entendimento semelhante.

Embora a norma preconize que o recurso se interpõe “por meio de requerimento”, nenhuma consequência estipula para o caso de nele não constarem formalmente aquelas indicações expressivas da vontade de recorrer (artº 217º, nº 1, CC).

O entendimento que subjaz à decisão reclamada, face aos princípios e regras adjectivos e seu balanceamento obrigatório com os interesses da realização da justiça material e com o princípio da prevalência do fundo sobre a forma, não resiste à crítica de que se apresenta como tributário de uma perspectiva e aplicação casuística excessivamente rigorosa e já ultrapassada da lei processual.

De facto, cotejando os termos do requerimento apresentado com o das alegações ao mesmo juntas, afigura-se-nos que nem sequer se coloca qualquer dúvida sobre a motivação e objectivos da reclamante – ou seja, sobre a sua declaração.

Mas mesmo que se colocasse e se entendesse, para a interpretar ou até integrar, ser necessário recorrer às regras dos artºs 236º, 238º e 239º, em conjugação com os artºs 217º e 221º, do Código Civil, facilmente se concluiria que é certa e inequívoca a vontade de a autora interpor recurso, senão expressa pelo menos tácita.

Ela diz, no requerimento apresentado, que reage à sentença de que foi notificada e que apresenta as “suas alegações de recurso”. Juntou-as e pagou a taxa de justiça correspondente. Dirige-se, nelas, a este Tribunal de Relação. Diz que se insurge contra a decisão, pretende vê-la alterada e revogada. Apresenta a sua motivação para tal. Esquematiza as conclusões do recurso.

Que diferença há entre isso e afirmar, segundo o formulário usual em tal tipo de requerimentos, que “não se conformando com a decisão, dela vem interpor recurso para o Tribunal da relação, que é de apelação”, etc.?

Na forma, uma diferença despicienda, juridicamente irrelevante, resultante, como se nos afigura óbvio, de mero lapso, já que outra explicação razoável se não encontra para tal falha quando cometida e subscrita por Advogado tecnicamente experimentado que não descurou o essencial e apenas omitiu expressões formulárias triviais, falha que tantas vezes a informática promove – que o digam os Juízes – mas não supre.

Na substância, nenhuma. A postura, motivação, vontade e objectivos da recorrente foram claramente manifestados perante o tribunal a quo e perante o tribunal ad quem. Não se vislumbra a lesão de qualquer regra preclusiva. Nenhum prejuízo para a tramitação, muito menos para a parte contrária. Todos os sujeitos processuais perceberam a postura e desígnio da autora com o requerimento de apresentação das alegações. Nesta está o substrato do seu apelo.

Fez fé na bondade e estribou-se aquele no Acórdão da Relação do Porto, de 22-11-2011 (2), considerado precedente em caso similar, e cujo texto, aliás, citou longamente.

Porém, sendo bom conhecer-se e ponderar-se a jurisprudência, não deve esquecer-se, primeiro, que os contornos de cada caso contêm especificidades próprias a que nem sempre se ajustam as soluções do anterior, aparentemente igual; e, depois, que aquela não é estática nem se cristaliza, sobretudo porque, exprimindo a concretização, nos casos que vão sendo submetidos a julgamento, da vontade legislativa, não só ela mesma mas sobretudo esta, alteram-se com o decurso do tempo.

Ora, analisando-se, com cuidado e detalhe, o caso apreciado naquele acórdão, constata-se que, no requerimento apresentado como de recurso aparente da última decisão proferida no respectivo processo e em que a parte se limitou a apresentar alegações, não só fazia referência expressa a uma outra decisão primitiva – no emaranhado notório dos autos ali detalhado – como terá sido motivado por outro despacho que, face a vicissitudes da gravação, concedia prazo para aquelas, nenhuma alusão contendo à decisão então susceptível de ser impugnada.

Foi nesse contexto, consideradas extemporâneas (por ultrapassado o prazo há muito) tais alegações, julgadas até inúteis (por entretanto anulado e substituído o despacho que nelas era referido como alvo e objecto de recuso anterior) e, ainda, observando-se que não se identificar nele a decisão impugnável, que se entendeu inexistir requerimento de interposição de recurso quanto a esta última.

Logo, as situações são diversas, dificultando a importação da solução de uma para a outra.

Além disso, em 2011, ainda vigorava o anterior CPC hoje revogado. Apesar de estarmos diante de norma com letra idêntica, a sua interpretação e aplicação concreta têm de ser compaginadas com princípios e regras adoptados no Código actual, cada vez mais enraizados e desenvolvidos na cultura jurídica e que privilegiam a justiça material sobre a formal e a prevalência do fundo sobre a forma, ao ponto de se estabelecer até o dever de o tribunal promover o suprimento de certas falhas das partes, como se extrai dos artºs 6º, 7º, 146º, 547º e 590º.

“Deve o juiz admitir, a requerimento da parte, o suprimento ou a correcção de vícios ou omissões puramente formais de atos praticados, desde que a falta não deva imputar-se a dolo ou culpa grave e o suprimento ou a correcção não implique prejuízo relevante para o regular andamento da causa” – dispõe o nº 2, do novo artº 146º.

Daí que o regime de rectificação seja diverso e hoje mais lato.

Não cremos, por isso, que, como ali se entendeu e a decisão ora reclamada acolheu, não pudesse haver lugar a rectificação, nem a convite a aperfeiçoamento e que o requerimento fosse inepto.

Sendo a irregularidade, consistente na omissão de expressões literais alusivas à discordância com a decisão proferida e vontade de dela recorrer, manifestamente resultante de um lapso desculpável, ela é suprível a requerimento, até porque não prejudicial (3), ou aperfeiçoável mediante convite, não se crendo que possa considerar-se inepto o requerimento apresentado uma vez que, conjugado com as alegações juntas, não lhe falta nem é ininteligível o pedido de reapreciação pelo tribunal superior e de revogação, nem este contraria os fundamentos esgrimidos e nada mais cumula de incompatível, além de que foi convenientemente interpretado e eficientemente contraditado, nas suas contra-alegações, pela parte contrária.

Sendo certo que, como referiram – segundo citação do referido Acórdão transcrita na sentença – os Profs. Alberto dos Reis e Castro Mendes o essencial do conteúdo do requerimento de interposição de recurso radica na manifestação ou declaração da vontade de recorrer, nem o mais formalista dos processualistas poderá dizer que não se sabe o que a autora, no caso, queria, ao juntar as alegações com o requerimento e nos termos em que o fez, ou sequer pôr em dúvida que a sua vontade era recorrer, muito menos que tal vontade não resulta inequívoca e eficazmente manifestada nele.

Daí que se nos afigure insustentável a afirmação de que, para efeitos do nº 1, do artº 641º, inexista requerimento a apreciar, tanto mais que nem sequer colhe o argumento de que se trata de duas peças distintas, dirigidas a tribunais diferentes, faltando uma delas.

É que, requerimento e alegações, mesmo que repartidos por duas, constituem, funcionalmente, um acto processual único. Sendo embora apresentadas no tribunal que proferiu a decisão recorrida, têm, pelo menos em parte, de ser apreciados por esse e pelo tribunal de recurso, como resulta do regime arquitectado nos artºs 641º, nºs 1 e 5, 652º a 654º, 613º, n º 2, e 617º, nºs 1 e 5.

Divergindo-se, pois, do entendimento sufragado na decisão reclamada e considerando-se o mesmo desconforme aos princípios processuais a que deve obedecer a interpretação de normas que, como o nº 1, do artº 637º, são de feição meramente regulamentar, conclui-se, sem necessidade de mais considerações, por despiciendas, que o despacho reclamado não pode ser mantido e que, nenhum outro motivo de indeferimento existindo, o recurso deve ser admitido, devendo atender-se a reclamação.

4. – DECISÃO

Termos em que, decidindo, considera-se sem efeito o despacho reclamado, admite-se o recurso, como ordinário, de apelação, a subir imediatamente, nos autos, com efeito devolutivo (artºs 644º, nº 1, alínea a), 645º, nº 1, alínea a), e 647º, nº 1, do CPC).
*
Custas do incidente pela reclamada. Taxa: 2 (duas) UC´s.
*
Notifique.

Decorrido o prazo de 10 dias, comunique esta decisão ao tribunal a quo e requisite-se-lhe, nos termos do artº 643º, nº 6, CPC, o processo principal.

Uma vez remetido à Relação e cá recebido, o recurso ser-nos-á distribuído e carregado, por averbamento, como Relator.”
A parte contrária nada disse sobre o requerimento de intervenção colegial.

Uma vez resolvida a reclamação entretanto atravessada pela ora requerente de acto tributário praticado pela Secretaria relacionado com o pagamento de Taxa de Justiça, cumpre apreciar e decidir, uma vez que, corridos os vistos, nenhum obstáculo se detecta para tal.

II. APRECIAÇÃO

Tudo reapreciado, discutido e ponderado, concluiu-se, sem a menor sombra de dúvida, que a pretensão da ora requerente não justifica qualquer alteração ao já decidido.

Com efeito, aos termos com que a reclamação foi narrada e a questão a nela resolver identificada pelo Relator na decisão singular, aos fundamentos, de facto e de direito, para a mesma por ele erguidos, ao juízo sobre ela empreendido e à decisão nela proferida não se vê que algo mais possa e deva acrescentar-se, retirar-se ou corrigir-se, maxime em relação ao mérito da reclamação apresentada pela recorrente e ao demérito da oposição contraposta pela recorrida (e ora requerente deste julgamento colectivo).

Estabelecendo a lei, aliás, como pressuposto deste, uma pretensa “impugnação” (artº 643º, nº 4) da decisão singular e, como fundamento da intervenção colegial, um sentimento de “prejuízo” por aquela causado, nada foi dito em ordem a tentar aquela nem alegado para justificar este.

Nem a legalidade envolvida nem o senso jurídico com que ela deve ser interpretada e aplicada ao caso, consentem que, a pretexto dos argumentos da recorrida “...”, se enverede pela hipotética consideração, menos ainda pela sua procedência, de que, por não aludir expressis verbis, em termos usuais no meio forense, à intenção de recorrer, inexiste tal vontade e, por isso, em substância, falta de requerimento de interposição de recurso e que este deva ser rejeitado.

Sintomática é, aliás, a constatação de que, apesar do lapso e do relevo que lhe pretendeu atribuir, não deixou a recorrida de bem compreender o sentido do acto, mormente o seu motivo e finalidade, e de exercer o seu consonante direito, contra-alegando proficientemente.

Não resta, pois, senão afirmar inteira concordância com tal decisão e com os seus fundamentos, dá-la aqui – economizando e simplificando – por reproduzida e, assim, unanimemente julgar procedente a reclamação, nos termos em que o foi singularmente, tributando o presente acto e para tal sopesando, de um lado, a sua manifesta falha de razão e, de outro, a sua adoptada simplicidade.

V. DECISÃO

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente a reclamação (artº 643º, CPC), considerar sem efeito o despacho reclamado (proferido em 1ª instância) e admitir o recurso (interposto pela …), como ordinário, de apelação, a subir imediatamente, nos autos, com efeito devolutivo (artºs 644º, nº 1, alínea a), 645º, nº 1, alínea a), e 647º, nº 1, do CPC).
*
Custas do presente incidente pela requerente “…”. Taxa: 2 (duas) UC´s.
*
Notifique.

Decorrido o prazo de 10 dias, comunique esta decisão ao tribunal a quo e requisite-se-lhe, nos termos do artº 643º, nº 6, CPC, o processo principal.

Uma vez remetido à Relação e cá recebido, o recurso será distribuído e carregado, por averbamento, ao mesmo Relator
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Guimarães, 19 de Junho de 2019

Este Acórdão vai assinado digitalmente no Citius, pelos Juízes:

Relator: José Fernando Cardoso Amaral
Adjuntos: Helena Maria de Carvalho Gomes de Melo
Pedro Damião e Cunha


1. Nesse sentido, Alberto dos Reis, CPC Anotado, volume V, 2012, página 327, e, v.g., o Acórdão da Relação do Porto, de 03-04-2014, processo 4949/10.4TBVFR.P1, também subscrito pelo relator deste, no qual, aliás, a propósito do requerimento de interposição de recurso, se observou que “o conteúdo obrigatório do requerimento, sem o qual o recurso deve ser rejeitado sem mais, são as alegações e respectivas conclusões, não mais que isso” e que “Fora das (únicas) situações previstas como sendo fundamento de rejeição imediata do recurso, qualquer falha no cumprimento dos requisitos assinalados ao requerimento constituirá apenas uma irregularidade processual que ou se entende poder condicionar a apreciação do recurso, caso em que deverá ser mandada sanar, ou é mesmo irrelevante para o conhecimento do recurso e não carece sequer de ser suprida, podendo o processo avançar mesma com essa falha.”.
2. Processo 126/09.5TBVPA-A.P1, relatado pelo Desembargador Fernando Samões.
3. A não ser na perspectiva de se obviar a uma “vitória na secretaria” almejada pela ré mas que o Código actual afasta.