Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
647/21.1PCBRG.G1
Relator: ISILDA PINHO
Descritores: DOLO
ELEMENTO INTELECTUAL
AGIR DE FORMA LIVRE E CONSCIENTE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/06/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSOS PENAIS
Decisão: PROCEDENTES
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I- Embora na acusação particular não tenha sido expressamente alegado que a arguida agiu de forma consciente, ou seja, sabendo o que estava a fazer, com conhecimento das circunstâncias da factualidade típica, tal elemento intelectual “está contido na alegação de que pretendeu atingir o assistente na sua honra e consideração, o que pressupõe lógica e necessariamente que tinha conhecimento do potencial ofensivo das palavras que proferiu, pois quem pretende deliberadamente ofender outrem na sua honra com determinadas palavras, conhece e pressupõe necessariamente o potencial ofensivo das mesmas”
II- Se a arguida pretendeu, se quis lesar o assistente na sua honra e consideração social é porque tinha o poder de decidir por si própria, de agir de forma livre, não monopolizada, independente.
Decisão Texto Integral:
Acordaram, em conferência, na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I- RELATÓRIO

I.1 No âmbito do processo comum singular n.º 647/21.... que corre termos pelo Juízo Local Criminal ... - Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., remetidos os autos para julgamento, a 25 de maio de 2023, foi proferido despacho, nos termos do artigo 311.º, do Código de Processo Penal, retificado mediante despacho de 29 de maio de 2023, que, no que agora releva, é do seguinte teor [transcrição]:

“(…)
Da rejeição das acusações pública e particular:
Nos termos do disposto na al. a), do n.º 2, do art.º 311.º, do Código de Processo Penal, “Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:
a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;”
Esclarecendo as als. b) e c), do n.º 3, do mesmo artigo, que se considera a acusação manifestamente infundada quando não contenha a narração dos factos ou se os factos não constituírem crime.
No que respeita à narração dos factos, preceitua a al. b), do n.º 3, do artigo 283.º, do Código de Processo Penal, que a acusação deve conter a “narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;”.
Para que se preencha o requisito da narração dos factos, é necessário que a acusação contenha a “descrição dos factos imputados”, e acrescenta-se, “todos” os factos imputados, uma vez que o artigo 13.º, do Código Penal, dispõe que “Só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência”, sendo que a acusação tem de descrever os factos provados relativos ao elemento subjetivo. Isto porque não se pode presumir que o agente agiu nem com dolo, nem com negligência.
O que atrás fica dito é corroborado pela jurisprudência dos nossos tribunais superiores. De facto, a título de exemplo pode ler-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 17/06/2003 (processo 10164/02-5, publicado no sítio www.dgsi.pt), que, “sendo a decisão omissa de factualidade provada quanto ao elemento subjectivo do ilícito contra-ordenacional imputado à ora recorrente, não poderia esta ter sido sancionada, impondo-se a respectiva absolvição”.
A indicação precisa e discriminada dos elementos indicados na norma do art. 283.º, n.º 3, do Código Penal, constitui, também, elemento fundamental para garantia do direito de defesa do arguido, que só poderá ser efetivo com o adequado conhecimento dos factos imputados, das normas que integrem e das consequências sancionatórias que determinem.
A indicação dos factos imputados com menção das provas obtidas é uma exigência em tributo aos mais elementares princípios que devem reger um direito de carácter sancionatório e que têm a ver sobretudo com garantias mínimas relacionadas desde logo com o direito de defesa, consagrado na Constituição da República Portuguesa – cfr. art.º 32.°.
Entre essas garantias mínimas de defesa, avulta, a de “serem conhecidos os factos que são imputados ao arguido, pois sem que os mesmos estejam estabelecidos não é possível avaliar a justiça da condenação, fica inviabilizado o direito ao recurso e não há salvaguarda do ne bis in idem” - cf. Ac. deste STJ de 21-09-2006, Proc. n.º 3200/06 - 5.ª.
Descendo ao caso dos presentes autos, verifica-se que as acusações pública/particular deduzidas contra a arguida não contêm a descrição de todos os factos no que concerne ao elemento subjetivo do ilícito.
De facto, analisadas as mesmas à luz dos considerandos supra expostos, verifica-se que não indicam todos os factos dos quais se possa concluir pelo preenchimento do dolo.
Convocando-se a jurisprudência consagrada no Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 1/2015, de 20 de novembro, poderá ler-se. relativamente ao dolo, que a sua alegação deverá ser feita através de uma «fórmula em que se imputa ao agente o ter atuado de forma livre (isto é, podendo ele agir de modo diverso, em conformidade com o direito ou o dever ser jurídico), voluntária ou deliberadamente (querendo a realização do facto), conscientemente (isto é, tendo representado na sua consciência todas as circunstâncias do facto) e sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei (consciência da proibição como sinónimo de consciência da ilicitude).».
O dolo como elemento subjetivo - enquanto vontade de realizar um tipo legal conhecendo o agente todas as suas circunstâncias fácticas objetivas – constitutivo do tipo legal, será, então, em definitivo, um dos elementos que o artigo 283.º, n.º 3, do C.P.Penal, impõe que seja incluído na acusação.
No que se refere ao seu elemento subjetivo, os crimes de ofensa à integridade física simples e de injúria em causa são dolosos, bastando, para uma plena imputação subjetiva, o mero dolo eventual, como resulta da conjugação do artigo 14.º do C.P. com o artigo 291.º, do mesmo diploma legal.
Nestes termos, entende-se que não constam, nas acusações, a descrição de todos os factos pelos quais se possa concluir pelo preenchimento do elemento subjetivo.
Efetivamente, na acusação pública deduzida, nada se diz quanto à liberdade da ação.
Como se pode ler no ac. T.R.E., pr. n.º 967/19.5T8ABT.E1, disponível in www.dgsi.pt:
“Convoquemos novamente a este propósito o Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 1/2015, de 20 de Novembro, no qual podemos ler relativamente ao dolo, que a sua alegação deverá ser feita através de uma «fórmula em que se imputa ao agente o ter atuado de forma livre (isto é, podendo ele agir de modo diverso, em conformidade com o direito ou o dever ser jurídico), voluntária ou deliberadamente (querendo a realização do facto), conscientemente (isto é, tendo representado na sua consciência todas as circunstâncias do facto) e sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei (consciência da proibição como sinónimo de consciência da ilicitude).»
(…)
Somos assim a concluir que a factualidade imputada à arguida na acusação particular deduzida nos autos pela assistente não preenche a totalidade dos elementos do tipo penal do crime de injúria, pois que, no que diz respeito ao elemento subjetivo, apenas se alegam factos que se traduzem no elemento cognitivo do dolo – conhecimento e consciência da arguida de que os factos que as palavras que dirigia à ofendida eram ofensivos da sua honra ou consideração – faltando na referida peça processual os factos que corporizariam o elemento volitivo do dolo – a vontade livre da arguida de praticar os factos.”.
É que o arguido pode querer agir mas não de forma livre, pelo que, sem a alegação desse facto, não se poderá inferir pela culpa do mesmo e, consequentemente, pela existência de um ilícito penal.
Sumaria aquele douto acórdão:
“I - Não decorrendo da acusação particular deduzida pela assistente que a arguida tivesse agido voluntariamente e que tivesse sido livre no seu processo de decisão, não poderá tal facto extrair-se indiretamente dos restantes factos alegados na acusação.
II - Face à falta de integração na acusação particular da vontade livre de praticar os factos, ainda que viessem a ser dados como provados em sede de julgamento todos os factos aí imputados à arguida, não estaria o julgador habilitado a concluir ter a mesma praticado o crime de injúria simples previsto e punido pelo artigo 181.º, n.º 1 do Código Penal de que vem acusada, pelo que deverá a acusação ser rejeitada nos termos do disposto no artigo 311.º, n.º 2, al. a) e n.º 3, al. d) do Código de Processo Penal.”.
Por outro lado, no que à acusação particular concerne, também nada se diz quanto à liberdade da ação, bem como quanto à atuação consciente por parte da arguida.
Por fim, cumpre referir que não é admissível ao juiz ordenar qualquer convite ao aperfeiçoamento ou correção de uma acusação, formal ou substancialmente deficiente (neste sentido, Acórdão da Relação de Lisboa, de 10/10/2002, Col. de Jur., ano XXVII, tomo IV, pág. 132).
Pelo exposto, e ao abrigo do disposto no artigo 311º, nº2, alínea a) e nº3, alínea b), considero as acusações pública/particular apresentadas manifestamente infundadas e, consequentemente, rejeito as mesmas.
(…) ”.

I.2 Recurso da decisão

Inconformados com tal decisão, dela interpuseram recurso o Ministério Público e o assistente AA para este Tribunal da Relação, com os fundamentos expressos na respetiva motivação, da qual extraíram as seguintes conclusões [transcrição]:

Recurso do Ministério Público:
“(…)
1. No dia 25 de Outubro de 2022, o Ministério público deduziu acusação pública contra a arguida BB imputando-lhe a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143º, nº 1, do Código Penal.
2. E no dia 14 de Novembro de 2022, o assistente AA apresentou acusação particular contra a mencionada arguida imputando-lhe a prática de um crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181º, do Código Penal.
3. Por despacho proferido no dia 23 de Novembro de 2022, o Ministério Público acompanhou a referida acusação particular.
4. Sucede porém, que remetidos os autos à distribuição, por despacho proferido no dia 29 de Maio de 2023, o Tribunal a quo rejeitou as ditas acusações pública e particular, nos termos do disposto no artigo 311º, nº 2, alínea a) e nº 3, alínea
b), do Código de Processo Penal, por entender que ambas eram manifestamente infundadas na medida em que o elemento subjectivo se mostra insuficientemente narrado, porquanto “na acusação deduzida, nada se diz quanto à liberdade da ação” e relativamente à acusação particular também nada se diz “quanto à atuação consciente por parte da arguida”.
5. Todavia, no caso em apreço, as acusações pública e particular deduzidas possuem todos os factos necessários à subsunção aos crimes de ofensa à integridade física simples e de injúria imputados à arguida, encontrando-se todos os elementos, objectivo e subjectivo, destes ilícitos penais suficientemente narrados.
6. De facto, no que concerne ao elemento subjectivo, resulta da acusação pública proferida nos autos que “A arguida BB ao agir como se descreveu, representou e quis molestar o corpo e a saúde de AA, o que logrou conseguir.
7. g) A arguida sabia que a sua conduta era criminalmente proibida e punida, tinha capacidade de se determinar de acordo esse conhecimento, o que não a demoveu de actuar como actuaram.”.
8. Por outro lado, resulta da acusação particular apresentada pelo assistente que “a Arguida dirigiu-se ao Assistente e insultou-o, publicamente e de viva voz, chamando-lhe “filho da puta, e “ladrão”.
9. Ao insultar daquele modo o Assistente, pretendeu a Arguida lesar aquele na sua honra e consideração social.
10. Além disso, a Arguida bem sabia que a sua conduta era proibida por lei, o que não a impediu de praticar tais actos.”.
11. Ou seja, resulta da dita acusação pública que a arguida previu e quis molestar fisicamente o assistente, desiderato que alcançou, resultando da acusação particular que a arguida actuou com vontade de apelidar o assistente de “filho da puta” e “ladrão” e que o fez com o fito de ofender a sua honra e consideração,
12. Isto é, resulta das acusações em causa que a arguida agiu por determinação da sua vontade, da sua escolha, dos seus motivos, com determinada intenção, de forma resoluta, da sua decisão, não obstante saber que tal colocaria em causa o corpo e a saúde do assistente bem como a sua dignidade e integridade moral como ser humano e que ao actuar desse modo estava ciente da censurabilidade da sua conduta, que a mesma não era permitida e que incorria na prática de crime, estando, por conseguinte, suficientemente descritos os elementos volitivo, intelectual e emocional do dolo dos dois tipos de crime imputados à arguida.
13. O que vale por dizer que resulta das acusações apresentadas que a arguida sabia o que fazia, queria fazê-lo e agiu com a consciência de que praticou um crime e que tal só poderia ter ocorrido de forma livre.
14. Veja-se, a propósito, o que ficou decidido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 28 de Março de 2019, proferido no âmbito do Processo nº 373/15.0JACBR.C1.S1, no qual se decidiu que “I- Ao nível do que a doutrina de referência designa por dolo do tipo expresso na formulação “conhecimento e vontade de realização do tipo subjectivo de ilícito” assume-se uma decomposição em dois “momentos” que são o intelectual e o volitivo.
15. II-Como se extrai da leitura do AFJ 1/2015, não há fórmulas sacramentais sendo possível transmitir o “dolo de culpa” ou “tipo-de-culpa dolosa” de diferentes formas desde que inequivocamente signifique, uma atitude, revelada no facto, de contrariedade ou indiferença do agente perante o dever ser jurídco-penal.
16. III-Incorre em contradição o Acórdão da Relação na analise semântica que faz do facto 18 dado como provado (“Agiram os referidos arguidos deliberada, voluntária e conscientemente, porquanto sabiam que tais condutas eram proibidas e punidas por lei penal”), pois embora reconheça que não há “fórmulas sacramentais” acaba por “exigir” a costumeira fórmula “agiu livre” alegando que o agente pode agir de forma consciente e voluntária e, no entanto, a sua conduta não decorrer com liberdade, sugerindo que disso é exemplo uma actuação devida a coacção moral, concluindo pela nulidade contemplada na al. b) do nº 3 do art. 311º do CPP, por falta de descrição na acusação dos elementos subjectivos do crime.
17. IV-Um acto voluntário é um acto que se faz sem constrangimento, sem limitação. E se se age deliberadamente, age-se com o propósito de praticar o acto, com resolução prévia, o que é incompatível com um acto “forçado”, um acto praticado por uma qualquer imposição exógena.
18. V- Agir voluntariamente é agir como se quer, e não por imposição, é agir de um modo livre e agir deliberadamente é agir como se decidiu agir. Por conseguinte, o entendimento que se perfilha é o de que o ponto 18 dos factos provados contém a cabal descrição dos elementos subjectivos do crime de tráfico de estupefaciente de menor gravidade (…)”.
19. Ademais, sempre se dirá que a arguida ao ser confrontada com o teor das acusações pública e particular em questão percebe perfeitamente o que lhe está a ser imputado e do que está a ser acusada, não se vislumbrando que resultem coartados quaisquer direitos de defesa.
20. Nesta senda, urge concluir que a decisão recorrida não se afigura correcta, tanto mais que o julgador apenas deve rejeitar a acusação quando seja de todo inviável a condenação do arguido e, por isso, quando seja de evitar que seja sujeito injustificadamente à “violência” de um julgamento, o que não é, claramente, o caso dos autos, pois a mesma contém a narração dos factos imputados.
21. Neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 11 de Julho de 2017, proferido no âmbito do Processo nº 649/16.0T9BRG.G1 (disponível in www.dgs.pt), no qual ficou exarado que “ainda que a matéria alegada no RAI possa não ter sido descrita de forma exemplar, se tal peça permitir aferir da verificação dos elementos objectivos e subjecivos do crime, o RAI não deverá ser rejeitado”.
22. Pelo que se entende que o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 14º, 26º, 143º, nº 1 e 181º, nº1, todos do Código Penal, e 311º, nº 2, alínea a) e nº 3, alínea b), do Código de Processo Penal.
23. Não obstante, caso assim não se entenda, deverá ser permitida a dedução de novas acusações, em que repare as omissões apontadas, na esteira do que foi defendido no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 246/2017, publicado no DR, II Série, de 25/7/2017, que assim decidiu: “Em face do exposto, na improcedência do recurso, decide-se não julgar inconstitucional a norma extraída da conjugação dos artigos 311.º, n.ºs 1, 2, alínea a), e 3, alínea d), e 283.º, todos do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual, tendo sido deduzida acusação contra um arguido, imputando-lhe a prática de um crime, e tendo esta acusação sido liminarmente rejeitada por insuficiente descrição de um elemento típico, poder vir a ser validamente deduzida nova acusação pela prática, nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, do mesmo crime, suprindo a omissão da descrição do sobredito elemento típico, sujeitando-se a julgamento e condenando-se o arguido pelos factos e qualificação jurídica dela constantes.”.

Pelo exposto, deverá ser concedido provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida que deverá ser substituída por outra que receba as acusações pública e particular apresentadas pelo Ministério Público e pelo assistente e determine o prosseguimento dos autos, nos termos do disposto no artigo 311º-A, do Código de Processo Penal.
(…)”.

Recurso do assistente AA:

“(…)
1 - O recorrente não se conforma com a douta decisão em crise, por entender, salvo o devido respeito pela Meritíssima Julgadora “a quo” que, tanto acusação pública como a particular, não enfermam das deficiências apontadas no douto despacho recorrido, que determinou a sua rejeição.
2 – Com efeito, em ambas as peças, constam de forma expressa, a descrição dos elementos subjectivo dos respectivos crimes, de forma clara  e inequívoca, nos termos acima citados e descritos, respectivamente, tendo sido assim cumprido tal ónus acusatório, tanto na douta acusação pública, como na particular.
3 – Encerra assim e com todo o respeito, a douta decisão em crise um contradição insanável da fundamentação e entre a fundamentação e a decisão (artigo 410º-2-b e c) do Código de Processo Penal), pelo facto do que se decide não ter qualquer correspondência nos textos acusatórios para que remete e que, por isso, acabam por ser rejeitados sem o menor fundamento legal.
4 - Deste modo, ao decidir como o fez, agiu a Meritíssima Julgadora “a quo”, além do mais, com violação do disposto no artigo o 311º, nº 2, alínea a) e nº 3, alínea b), do Código de Processo Penal.

TERMOS EM QUE,
deverá ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a Douta
Decisão recorrida, e ser proferido Douto Acórdão que decida aceitar a douta acusação pública, bem como a particular, POR TAL SER DE JUSTIÇA.
(…)”.

I.3 Resposta ao recurso

Efetuadas as legais notificações, apenas a Ex.mª Sr.ª Procuradora da República junto da 1.ª instância respondeu ao recurso interposto pelo assistente, remetendo para a motivação do recurso por si apresentado, por versar sobre a mesma questão.

I.4 Parecer do Ministério Público

Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, nesta instância o Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da procedência do recurso no que respeita à acusação pública e da improcedência do recurso no que respeita à acusação particular deduzida pelo assistente, entendendo, quanto a esta última, ser “(…) omissa na imputação à arguida, de ter agido voluntariamente (ou deliberadamente) e conscientemente (tendo representado na sua consciência todas as circunstâncias do facto). (…)”.

I.5. Resposta

Pese embora tenha sido dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta ao sobredito parecer.

I.6. Concluído o exame preliminar, prosseguiram os autos, após os vistos, para julgamento do recurso em conferência, nos termos do artigo 419.º do Código de Processo Penal.
Cumpre, agora, apreciar e decidir.

II- FUNDAMENTAÇÃO

II.1- Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objeto do recurso:

Conforme decorre do disposto no n.º 1 do art.º 412.º do Código de Processo Penal, bem como da jurisprudência pacífica e constante [designadamente, do STJ[1]], são as conclusões apresentadas pelo recorrente que definem e delimitam o âmbito do recurso e, consequentemente, os poderes de cognição do Tribunal Superior, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a que alude o artigo 410º do Código de Processo Penal[2].

Assim, face às conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação do respetivo recurso interposto nestes autos, as questões a apreciar e decidir são as seguintes:

® Saber se o despacho recorrido padece de contradição insanável da fundamentação e entre a fundamentação e a decisão [vício ínsito no artigo 410.º, n.º2, alínea b), do Código de Processo Penal][3].
® Saber se as acusações pública e particular [esta última deduzida pelo assistente AA], são, ou não, omissas quanto à descrição dos factos que permitem integrar na sua plenitude o elemento subjetivo, respetivamente, do crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal e do crime de injúria, previsto e punido pelo artigo 181.º do Código Penal imputados à arguida[4].

II.2- Apreciação do recurso

Saber se o despacho recorrido padece do vício ínsito no artigo 410.º, n.º 2, alíneas b) do Código de Processo Penal:

Invoca o assistente/recorrente que a decisão recorrida enferma do vício de contradição insanável da fundamentação e entre a fundamentação e a decisão pelo facto do que se decide não ter qualquer correspondência nos textos acusatórios para que remete e que, por isso, acabam por ser rejeitados sem o menor fundamento legal.
Porém, os vícios previstos no n.º 2, do artigo 410.º, do Código de Processo Penal [os denominados vícios decisórios] não são suscetíveis de abalar o despacho em apreço, pela simples razão de que são vícios que se reportam à sentença/acórdão como meio de impugnação da matéria de facto ali vertida, o que, evidentemente, não é o caso.
A sua sindicância, no que se reporta a tal questão [da fundamentação], teria de passar pelo regime das invalidades [nulidades ou irregularidades processuais], e não pela via da arguição dos vícios decisórios[5].
Consequentemente, sem necessidade de quaisquer outras considerações, improcede tal argumentação com vista a alcançar o efeito propugnado pelo assistente/recorrente.

Do elemento subjetivo dos crimes de ofensa à integridade física simples e de injúria, imputados à arguida:

Insurgem-se ambos os recorrentes contra o facto de o tribunal a quo ter rejeitado as acusações pública e particular deduzidas nos autos contra a arguida BB, argumentando, para o efeito, em suma, que nem uma, nem outra, são totalmente omissas quanto ao relato dos factos que integram o dolo do agente e a sua liberdade de ação, pelo que, ao invés da sua rejeição, deveriam ter sido admitidas e determinado o prosseguimento dos autos nos termos do artigo 311.º-A, do Código de Processo Penal.
Cumpre, então, apreciar se as referidas acusações pública e particular contêm o relato dos factos necessários à integração do elemento subjetivo dos crimes imputados à arguida, a fim de serem recebidas, com o inerente prosseguimento dos autos, com vista ao julgamento da arguida quanto à respetiva imputação criminal.

Vejamos:

Conforme decorre do artigo 283.º, n.º 3, alínea b), do Código de Processo Penal:
“(…)
3- A acusação contém, sob pena de nulidade:
b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;
(…)”.
E, cfr. resulta do nº 3, do artigo 285º, do Código de Processo Penal, tal disposição é correspondentemente aplicável à acusação particular.
Ou seja, impõe-se que a acusação, seja ela pública ou particular, contenha os factos concretos suscetíveis de integrar todos os elementos objetivos e subjetivos do tipo criminal que o Ministério Público, no que se reporta à acusação pública, e o assistente, no que se reporta à acusação particular, considera terem sido preenchidos.

Por sua vez, sob a epígrafe “saneamento do processo”, dispõe o artigo 311.º do Código de Processo Penal, no que aqui releva, o seguinte:
“(…)
2 - Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:
a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;
(…)
3 - Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:
(…)
b) Quando não contenha a narração dos factos;
(…)”.

A cominação de nulidade feita no artigo 283.º Código de Processo Penal visa não deixar seguir para a fase de julgamento uma acusação “deficiente” e trata-se de uma nulidade que deve ser arguida no prazo indicado na alínea c), do n.º 3, do artigo 120.º [não havendo lugar a instrução, até cinco dias após a notificação do despacho que tiver encerrado o inquérito], não o tendo sido, nem tendo sido requerida a instrução, o processo segue para a fase de julgamento, onde as “deficiências” da acusação podem ser conhecidas oficiosamente no momento do saneamento do processo - artigo 311.º, do Código de Processo Penal -, já não enquanto nulidades, mas enquanto circunstâncias suscetíveis de conduzir à rejeição da acusação por manifestamente infundada.

In casu, entendeu o tribunal a quo que as acusações pública e particular deduzidas contra a arguida não contêm a descrição de todos os factos no que concerne ao elemento subjetivo do ilícito, não indicam todos os factos dos quais se possa concluir pelo preenchimento do dolo, faltando quer na acusação pública quer na acusação particular qualquer referência quanto à liberdade da ação, ao que acresce, quanto a esta última, a ausência de qualquer referência quanto à atuação consciente por parte da arguida.

Ora, as acusações que foram rejeitadas pelo tribunal a quo são do seguinte teor [transcrição da parte que aqui releva]:

Acusação pública:

“(…)
Porquanto indiciam suficientemente os autos que:
a) No dia 16 de Setembro de 2021, cerca das 19:00h, quando AA se dirigia para a habitação da sua filha sita na Rua ..., freguesia ..., em ..., apercebeu-se que se encontrava um tapete de entrada de casa, pertencente a BB, aqui arguida e residente no ...35 da mesma artéria, colocado no muro e a pingar água para a propriedade da sua filha.
b) Perante isto, dirigiu-se à arguida, que ali se encontrava e solicitou-lhe que tirasse o tapete daquele local, ao que a mesma o apelidou de filho da puta e ladrão.
c) Perante esta atitude, AA empurrou o tapete para dentro da propriedade da arguida e a mesma, munida de uma mangueira, lançou um jato de água aos olhos deste, ferindo-o.
d) Como consequência necessária e direta da conduta da arguida, AA sofreu, além de dores, traumatismo ocular, hiperemia conjuntival, lesões essas que lhe provocaram 7 dias para cura, sem afetação da capacidade de trabalho geral.
e) Por conta desta conduta da arguida, AA teve necessidade de receber tratamento hospitalar.
f) A arguida BB ao agir como se descreveu, representou e quis molestar o corpo e a saúde de AA, o que logrou conseguir.
g) A arguida sabia que a sua conduta era criminalmente proibida e punida, tinha capacidade de se determinar de acordo esse conhecimento, o que não a demoveu de actuar como actuaram.

Pelo exposto, incorreu a arguida BB em autoria material, na forma consumada, na prática de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1 do Código Penal.
(…). [sublinhado e negrito nossos]

Acusação particular:
 “(…)
CC, na qualidade de Assistente, nos autos
à margem referenciados, vem deduzir a sua ACUSAÇÃO PARTICULAR contra,
BB, viúva, residente
na Rua ..., ..., ..., com os demais sinais dos autos,
com os fundamentos que seguem:


Mostram os autos com suficiente clareza que, no dia 16 de Setembro  de 2021, pelas dezanove horas, quando o Assistente se encontrava em casa de sua filha, vizinha da Arguida,

Subitamente e sem qualquer razão que o justificasse, a Arguida dirigiu-se ao Assistente e insultou-o, publicamente e de viva voz,

Chamando-lhe "filho da puta" e,

"Ladrão". Ora,
5.º
Ao insultar daquele modo o Assistente, pretendeu a Arguida lesar aquele na sua honra e consideração social. Além disso,

A Arguida bem sabia que a sua conduta era proibida por lei, o que não a impediu de praticar tais actos. Deste jeito,

Cometeu a Arguida, em relação ao Assistente, o crime de injúria, previsto e punido, pelo artigo 181º do Código Penal.
(…)”. [sublinhado e negrito nossos]

E do artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, sob a epígrafe “Ofensa à integridade física simples” decorre que “1 - Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.”, prevendo, por sua vez, quanto ao crime de injúria, o artigo 181.º do Código Penal que:
“1 - Quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 dias.
2 - Tratando-se da imputação de factos, é correspondentemente aplicável o disposto nos n.ºs 2, 3 e 4 do artigo anterior.

Analisadas, à luz de tais preceitos legais, quer a acusação pública, quer a acusação particular deduzidas nos autos, logo se constata que das mesmas decorre a descrição dos factos tendentes a demonstrar o preenchimento do elemento objetivo dos tipos de crime que imputam à arguida, facto que não é colocado em causa no despacho recorrido pelo tribunal a quo.
E, diga-se, ao contrário do decidido por este, também nada justificava que colocasse em causa a existência de factualidade atinente ao elemento subjetivo.
Com efeito, quer o crime de ofensa à integridade física simples, quer o crime de injúria podem ser cometidos através de qualquer modalidade de dolo genérico [direto, necessário ou eventual] o que será dizer, concretamente no que respeita ao crime de injúria que para o preenchimento do respetivo elemento subjetivo não se exige qualquer dolo específico, ou seja, não se exige a intenção de ofender a honra ou consideração alheias[6].
Segundo os ensinamentos de Figueiredo Dias[7] a culpa jurídico penal revela-se através do tipo de culpa doloso e do tipo de culpa negligente, verificando-se o primeiro quando, perante um ilícito típico doloso, se comprova que o seu cometimento deve imputar-se a uma atitude íntima do agente contrária ou indiferente ao Direito e às suas normas.
Nessa medida, a verificação do tipo subjetivo de ilícito pressupõe a presença do elemento intelectual [traduzido no conhecimento de todas as circunstâncias do facto], do elemento volitivo [traduzido na vontade de realizar o facto típico] e do elemento emocional [traduzido na consciência da ilicitude da atuação, na atitude de indiferença, contrariedade ou sobreposição da vontade do agente aos valores protegidos pela norma].
Temos presente o teor do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 1/2015 de 27 de janeiro[8] citado no despacho recorrido, e deste, além do mais, decorre o seguinte:
 “10.2.4. Em conclusão: a acusação, enquanto delimitadora do objeto do processo, tem de conter os aspetos que configuram os elementos subjetivos do crime, nomeadamente os que caracterizam o dolo, quer o dolo do tipo, quer o dolo do tipo de culpa no sentido referido, englobando a consciência ética ou a consciência dos valores e a atitude do agente de indiferença pelos valores tutelados pela lei criminal, ou seja: a determinação livre do agente pela prática do facto, podendo ele agir de modo diverso; o conhecimento ou representação de todas as circunstâncias do facto, tanto as de carácter descritivo, como as de cariz normativo e a vontade ou intenção de realizar a conduta típica, apesar de conhecer todas aquelas circunstâncias, ou, na falta de intenção, a representação do evento como consequência necessária (dolo necessário) ou a representação desse evento como possível, conformando-se o agente com a sua produção (dolo eventual), atuando, assim, conscientemente contra o direito.” [sublinhado e negrito nosso].
Ora, é precisamente com base nos ensinamentos daí decorrentes que chegamos a conclusão diversa daquela a que chegou o tribunal a quo.
Conforme se referiu no acórdão deste Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 19-06-2017,[9] “todos esses elementos, que constituem os elementos subjetivos do crime, são habitualmente expressos na acusação através da utilização de uma fórmula pela qual se imputa ao agente ter agido de forma livre (isto é, podendo agir de modo diverso, em conformidade com o direito ou dever-ser jurídico), voluntária ou deliberadamente (querendo a realização do facto), conscientemente (isto é, tendo representado na sua consciência todas as circunstâncias do facto) e sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei (consciência da proibição como sinónimo de consciência da ilicitude)”.
E, conforme é defendido pela nossa jurisprudência, segundo cremos de forma unânime, de que é exemplo o recente Acórdão proferido por este Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 14-11-2023[10],
“(…)
II. Não existem fórmulas sacramentais na forma de transmitir os elementos, quer objectivos, quer subjectivos dos crimes.
III. Sendo que a palavra “livre” não é a única que revela a vontade do agente em actuar contra legem, isto é, com a consciência da ilicitude sem constrangimentos exteriores que pudessem implicar uma diminuição ou mesmo anulação da sua culpa.
(…)
V. Afirmar que o arguido age de forma voluntária, equivale, a agir de forma livre e deliberada, pois o agir voluntariamente significa “agir por querer” ou “agir segundo a própria vontade”, sendo sinónimos da palavra voluntariamente as palavras: “deliberadamente”, “espontaneamente”, “intencionalmente”, “livremente” e “propositadamente.
(…)”.

Ora, in casu, no que respeita ao elemento subjetivo, decorre da acusação pública que:
“ f) A arguida BB ao agir como se descreveu, representou e quis molestar o corpo e a saúde de AA, o que logrou conseguir.”.
 Tal relato traduz a factualidade que é necessária para o preenchimento dos elementos intelectual [representou] e volitivo [quis] do tipo – elementos do dolo do tipo de ilícito.

Além disso, da mesma também decorre que:
“g) A arguida sabia que a sua conduta era criminalmente proibida e punida, tinha capacidade de se determinar de acordo esse conhecimento, o que não a demoveu de actuar como actuaram”.
Ou seja, traduz a factualidade necessária ao preenchimento do elemento emocional elemento do dolo do tipo de culpa.
Assim sendo, é inquestionável que a acusação pública contém o relato de toda a factualidade que é necessária ao preenchimento, quer do elemento objetivo, quer do elemento subjetivo, do tipo de crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, que ali vem imputado à arguida, inexistindo, portanto, o invocado fundamento legal para o tribunal a quo a ter rejeitado.

E o mesmo ocorre relativamente à acusação particular, ainda que de forma não tão evidente.
Com efeito, a esse título, na referida acusação particular consta o seguinte:       
“(…)

Ao insultar daquele modo o Assistente, pretendeu a Arguida lesar aquele na sua honra e consideração social. Além disso,

A Arguida bem sabia que a sua conduta era proibida por lei, o que não a impediu de praticar tais actos.
(…)”.
Ou seja, ali refere-se que ao insultar daquele modo o assistente [dirigindo-lhe as expressões “filho da puta” e “ladrão”] a arguida “pretendeu”, isto é, quis, lesar aquele [o assistente] na sua honra e consideração social, o que, indubitavelmente, integra o elemento volitivo do dolo [direto] de injúria, traduzido na vontade do agente de praticar o facto.
Já quanto ao elemento intelectual do dolo, pese embora se reconheça que o mesmo não decorre de forma evidente da acusação particular, pois ali não foi, de facto, expressamente alegado que a arguida agiu de forma consciente, ou seja, sabendo o que estava a fazer, com conhecimento das circunstâncias da factualidade típica, mesmo assim [à semelhança do já foi decidido no citado acórdão deste Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 19-06-2017, que pela similitude das situações aqui se traz novamente à colação], afigura-se-nos defensável considerar que tal elemento intelectual estará contido na alegação de que pretendeu atingir o assistente na sua honra e consideração, o que pressupõe logica e necessariamente que tinha conhecimento do potencial ofensivo das palavras que proferiu, pois quem pretende deliberadamente ofender outrem na sua honra com determinadas palavras, conhece e pressupõe necessariamente o potencial ofensivo das mesmas.[11]
O mesmo será dizer que se a arguida pretendeu, se quis, lesar o assistente na sua honra e consideração social é porque tinha o poder de decidir por si própria, de agir de forma livre, não monopolizada, independente.
 Encontra-se, portanto, descrita na acusação particular factualidade necessária/suficiente ao preenchimento do elemento intelectual do dolo. 
E, finalmente, a verificação do elemento emocional do dolo também é incontestável, perante a factualidade inserta no artigo 6.º da acusação particular [a relembrar: A Arguida bem sabia que a sua conduta era proibida por lei, o que não a impediu de praticar tais actos.].
Assim sendo, é inquestionável que a acusação particular contém o relato de toda a factualidade que é necessária ao preenchimento, quer do elemento objetivo, quer do elemento subjetivo, do tipo de crime de injúria, previsto e punido pelo artigo 181º, do Código Penal, que ali vem imputado à arguida, inexistindo, portanto, também quanto a esta, o invocado fundamento legal para o tribunal a quo a ter rejeitado.

Aqui chegados, só nos resta concluir pela procedência de ambos os recursos.

III- DISPOSITIVO

Pelo exposto, acordam as Juízas Desembargadoras da Secção Penal deste Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente quer o recurso interposto pelo Ministério Público, quer o recurso interposto pelo assistente AA e, em consequência, revoga-se o despacho recorrido que deverá ser substituído por outro que receba ambas as referidas acusações e determine o legal subsequente prosseguimento dos autos.

Sem custas.
Notifique.
Guimarães, 06 de fevereiro de 2024
[Elaborado e revisto pela relatora - artigo 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal]

As Juízas Desembargadoras
Isilda Maria Correia de Pinho [Relatora]
Anabela Varizo Martins [1.ª Adjunta]
Isabel Gaio Ferreira de Castro [2.ª Adjunta]


[1] Indicam-se, a título de exemplo, os Acórdãos do STJ, de 15/04/2010 e 19/05/2010, in http://www.dgsi.pt.
[2] Conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão do STJ n.º 7/95, de 28 de dezembro, do STJ, in DR, I Série-A, de 28/12/95.
[3] Questão restrita ao recurso interposto pelo assistente.
[4] Questão comum a ambos os recursos.
[5] Neste sentido, entre outros:
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 20-06-2002, Processo n.º 014250;
Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 03-07-2012, Processo n.º 4016/08.0TDLSB.E1;
Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 15-02-2012, Processo n.º 918/10.2TAPVZ;
Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 08-11-2023, Processo n.º 421/19.5T9PNI-C.C1,
todos disponíveis in www.dgsi.pt.
[6] Acórdão deste Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 06-11-2017, Processo n.º 86/16.6GDGMR-B.G1, relator Armando Azevedo, in www.dgsi.pt.
[7] Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Questões Fundamentais, A Doutrina Geral do Crime, 2004, Coimbra Editora, pág. 488 e ss..
[8] In DR, 1ª Série, nº 18, de 27 de Janeiro de 2015.
[9] Processo n.º 430/15.3GEGMR.G1, relator Jorge Bispo, publicado in www.dgsi.pt
[10] Processo n.º 3/21.1GCBRG.G1, relatora Florbela Sebastião e Silva, publicado in www.dgsi.pt
[11] Neste sentido, ainda, entre outros, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 06-02-2018, Processo n.º 54/16.8T9CBA.E1, relator António João Latas, in www.dgsi.pt.