Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2983/22.0T8BRG.G1
Relator: MARIA AMÁLIA SANTOS
Descritores: CAUSA DE PEDIR
FACTOS ESSENCIAIS
FACTOS COMPLEMENTARES E CONCRETIZADORES
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
REMISSÃO PARA DOCUMENTOS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/01/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO DA AUTORA PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- Tendo o legislador, no âmbito do art.º 581º do CPC, feito clara opção pela teoria da substanciação da causa de pedir, incumbe ao autor articular os factos jurídicos concretos dos quais deriva a sua pretensão, cabendo às partes alegar os factos essenciais que constituem o núcleo identificador da causa de pedir (art.º 5º nº1 do CPC).
II- Devem ainda ser considerados pelo tribunal, para além de outros, os factos (essenciais) que sejam complemento ou concretização dos alegados pelas partes, e que resultem da instrução da causa, desde que sobre eles as partes tenham tido a possibilidade de se pronunciar (art.º 5º nº 2, al. b) do CPC).
III- A insuficiente alegação de factos concretizadores ou complementares de factos essenciais pode ser suprida, ou na sequência de um convite ao aperfeiçoamento, ou em consequência da aquisição processual daqueles factos, se revelados no decurso do processo, designadamente na fase da instrução.
IV- É prematura a decisão de “manifesta improcedência da ação” no despacho saneador, por falta de alegação dos factos complementares ou concretizadores (dos factos essenciais da causa de pedir).
Decisão Texto Integral:
Relatora: Maria Amália Santos
1ª Adjunta: Mara da Conceição Sampaio
2ª Adjunta: Paula Ribas
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EMP01..., UNIPESSOAL, LDA, com sede na Avenida ..., ..., vem Intentar contra EMP02..., LDA., com sede na Rua ..., ... ..., Ação declarativa sob a forma de processo comum, pedindo a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de 65.588,14 €, acrescida dos juros moratórios legais desde a data de vencimento das faturas até efetivo e integral pagamento.
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Alega para tanto, que no normal desenrolar da sua atividade comercial alugou vários veículos automóveis à Ré, tendo sido o seu custo devidamente faturado, como descrimina nas faturas que junta, pelo que é credora daquela no montante de € 23.082,00, acrescido dos juros de mora à taxa legal já vencidos, desde a data do vencimento das faturas, até à data da entrada da ação, que se computam em € 1 299,44.
Acrescenta que se encontrava definido entre Autora e Ré que os danos verificados nos veículos automóveis, durante o período de aluguer, seriam da exclusiva responsabilidade da Ré, tendo a Autora procedido à sua reparação e faturação, que a Ré aceitou, pelo que a Autora é também credora da Ré no montante de 34.888,89€, acrescido dos juros de mora à taxa legal já vencidos, desde a data de vencimento daquelas faturas até à data da entrada da presente ação, que se computam em € 1 785,96.
Relativamente aos seguros das viaturas alugadas, as partes convencionaram que as apólices eram realizadas pela Ré em nome da Autora, por ser esta a proprietária dos veículos, tendo ficado estipulado que a Autora as pagaria e as faturaria à Ré, como fez.
Assim, o valor global das faturas relativas ao seguro automóvel das várias viaturas alugadas pela Autora à Ré é do montante global de 7.617,25€.
A Autora interpelou sucessivamente a Ré para fazer face aos montantes em dívida, no montante global de 65.588,14 €, o que a mesma não fez.
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A ré veio contestar a ação, começando por arguir a Ineptidão da petição inicial, dizendo que a Autora alega ter celebrado consigo vários contratos de aluguer, que foram restituídos alguns veículos danificados, e que foram celebrados contratos de seguro em nome da Autora, mas cujas apólices seriam pagas pela Ré, peticionado a final a sua condenação no pagamento de uma alegada divida.
Sucede que a Autora não alega na sua causa de pedir que contratos de aluguer foram celebrados, quais as condições dos mesmos, por que período foram celebrados, qual o preço devido pelos mesmos, ficando a Ré sem saber efetivamente que contratos de aluguer são esses a que a Autora se refere, e quais os veículos, períodos e preço em causa.
Da mesma forma, a Autora alega que alguns veículos foram entregues com vários danos e que a Ré é a responsável pelos menos.
No entanto, a Autora não identifica os veículos que foram entregues danificados, não concretiza que danos é que os veículos apresentavam, nem os valores de reparação, nem se fica a saber, da leitura da petição, que a Autora suportou o pagamento das reparações.
Por último, a Autora alega a celebração de contratos de seguro em seu nome e por conta da Ré, e a responsabilidade da Ré em efetuar o pagamento de tais apólices.
No entanto, mais uma vez, não identifica as concretas apólices em causa, termos do contrato de seguro, quais os veículos segurados, duração do seguro, de onde emerge a obrigação da Ré de proceder ao pagamento das apólices, etc.
Pelo exposto, a falta de causa de pedir gera a ineptidão da petição inicial e a consequente nulidade de todo o processo, o que constitui uma exceção dilatória, de conhecimento oficioso, e determinante da absolvição da Ré da instância (cfr. artigos 186.º, nºs 1 e 2, al. a), 278.º, n.º 1, al. b), 576.º, n.º 2, 577.º, al. b) e 578.º, do CPC).
Invocou ainda a sua ilegitimidade passiva, e impugnou parte dos factos alegados, assim como os documentos apresentados.
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A A. veio responder à matéria das exceções invocadas, e a Ré veio pronunciar-se sobre os documentos juntos.
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Foi então proferido nos autos o seguinte despacho:
“A A. alega de forma insuficiente os factos que integram a causa de pedir. Efectivamente, a A. alegou a celebração de contratos de aluguer com a R. e a restituição dos veículos com danos, fazendo-o de forma conclusiva e recorrendo a conceitos de direito, não concretizando os factos pertinentes.
Assim, e ao abrigo do disposto no art. 590º, n.ºs 2, al. b), e 4, do CPC, convida-se a A. a aperfeiçoar a petição inicial, suprindo as insuficiências na concretização da matéria de facto no que respeita aos contratos que alega e aos danos que exigiram reparação, mediante a junção de novo articulado…”.
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A A veio então apresentar novo articulado.
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Notificada da apresentação do novo articulado, veio a ré arguir novamente a sua ineptidão, invocando essencialmente os mesmos factos que já havia invocada relativamente à petição inicialmente apresentada.
Invoca ainda a sua ilegitimidade e impugna parte da factualidade alegada.
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A A veio responder às exceções invocadas pela ré, pugnando pela sua improcedência.
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Foi então proferido o seguinte Despacho (do qual se recorre):
“Da ineptidão da petição inicial
A R. arguiu a ineptidão da petição inicial, por falta de indicação da causa de pedir. Respondeu a A.
ABRANTES GERALDES escreveu que “não é fácil o estabelecimento da linha divisória entre a causa de pedir imperfeita, mas meramente deficiente, e aquela que provoca a ineptidão da petição, nomeadamente, nas acções integradas por causa de pedir de natureza complexa (“Temas da Reforma do Processo Civil”, Volume I, 2ª Edição, Almedina, Coimbra, 1999, pp. 208 e 209).
Como ensina A. dos Reis, são os casos em que o autor faz na petição afirmações mais ou menos vagas e abstractas, que umas vezes descambam na ineptidão por omissão da causa de pedir, outras na improcedência por falta de matéria de facto sobre que haja de assentar o reconhecimento do direito.
A ineptidão da petição inicial constitui nulidade absoluta afectando todo o processo e conduzindo à absolvição da instância no despacho saneador (art. 278º, n.º 1, al. b), enquanto que a petição inviável poderá determinar uma decisão que conheça do mérito da causa (art. 595º, n.º 1, al. b).
Quando a causa de pedir é indicada, em resultado da articulação do núcleo essencial dos factos constitutivos do direito invocado, mas falta a alegação de algum facto necessário para que a pretensão possa ser julgada procedente consideramos que deve qualificar-se como inviável a petição”.
No caso dos autos, a A. descreveu os factos essenciais em que assenta o seu pedido e a R. apresentou contestação, demonstrando ter entendido bem o que se alega e pede no articulado da A. Pelo exposto, indefere-se a invocada ineptidão da petição inicial.
No entanto, não sendo a petição inicial inepta, a verdade é que a causa de pedir não está suficientemente concretizada, tendo a A. alegado de forma conclusiva e de direito e remetendo quanto a factos complementares para os documentos que juntou.
Assim, e ao abrigo do disposto no art.º 590º, n.ºs 2, al. b), e 4, do CPC, foi dirigido à A. um convite ao aperfeiçoamento, que a A. não aproveitou, juntando novo articulado, mas remetendo novamente para os documentos, nomeadamente, facturas.
Como bem se explica no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 13/07/2021 (relatado por Micaela Sousa, publicado in www.dgsi.pt.), “o art.º 5º, n.º 1, do CPC, impõe às partes o ónus de alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções invocadas, ou seja, quanto aos primeiros, devem ser alegados os factos essenciais à procedência do pedido, aqueles que são constitutivos do direito do autor.
Distingue-se, dentro dos factos integradores da procedência do pedido, o núcleo essencial, constituído pelos factos principais, ou seja, os elementos típicos do direito que se pretende fazer valer, e os factos acessórios ou complementares, aqueles que concretizam ou qualificam os primeiros, conforme previsto na norma de procedência (processualmente, são aqueles que integram a causa de pedir mas não individualizam a causa nem a sua omissão determina a ineptidão da petição), sendo, como aqueles, decisivos para a viabilidade ou procedência da acção/reconvenção/defesa por excepção (…).
Torna-se útil convocar a distinção que o Prof. Miguel Teixeira de Sousa efectua quanto aos factos necessários à procedência da acção, que qualifica de factos principais e que abrangem os factos essenciais e os factos complementares, sendo que os primeiros permitem individualizar a situação jurídica alegada na acção ou na excepção e os segundos são indispensáveis à procedência dessa acção ou excepção, mas não integram o núcleo essencial da situação jurídica alegada pela parte – cf. op. cit., pág. 71.
Assim, os factos essenciais são os necessários à identificação da situação jurídica invocada pela parte e que, como tal, relevam na viabilidade da acção ou da excepção. Deste modo, se os factos alegados pela parte não forem suficientes para se perceber qual a situação que se pretende fazer valer em juízo, existe um vício que afecta a viabilidade da acção ou da excepção.
Já os factos complementares não são necessários à identificação da situação jurídica alegada pela parte, mas são indispensáveis à procedência da acção ou da excepção.
Em consonância, a falta de alegação dos factos essenciais acarreta a ineptidão da petição inicial por inexistência de causa de pedir (cf. art.º 186º, n.º 2, a) do CPC); a ausência de um facto complementar não implica qualquer inviabilidade ou ineptidão, mas importa a improcedência da acção – cf. M. Teixeira de Sousa, op. cit., pág. 72”
A A. descreve a sua actividade e a da R., alega que que celebrou contratos de aluguer de veículos automóveis com a R., que facturou esses serviços, identificando as facturas, com o valor, início e fim; os veículos alugados foram devolvidos com danos, que a A. reparou, tendo facturado o valor da reparação à R.; a A. pagou as apólices de seguros dos veículos à seguradora escolhida pela R. e facturou à R., conforme acordado entre ambas, a R. não pagou os valores das facturas identificadas.
A R. não descreveu, com a pertinente alegação de factos, os contratos de aluguer que mencionou, recorrendo logo à qualificação jurídica dos contratos sem os concretizar factualmente; a R. não concretizou, com a necessária alegação de factos, os danos verificados nos veículos e as reparações necessárias; a R. não identificou as apólices dos seguros, apesar de ter sido convidada a aperfeiçoar a petição inicial.
A R. remeteu quanto a esses factos complementares dos factos essenciais para as muitas facturas que juntou aos autos.
Ora, a remissão para documentos não desonera a parte de alegar na petição inicial os factos complementares necessários à procedência da acção, porquanto as facturas não são factos, mas meios de prova dos factos.
Como se refere no acórdão citado acima, “o convite ao aperfeiçoamento pressupõe a existência de causa de pedir e a falta de suprimento das insuficiências na exposição dos factos determinará uma possível pronúncia antecipada, no despacho saneador, quanto ao mérito da causa, ou influenciará a fixação dos temas da prova ou reflectir-se-á apenas na decisão final, onde se retirarão as consequências derivadas das falhas não supridas, mas não conduz à nulidade de todo o processo por ausência de causa de pedir – cf. A. Abrantes Geraldes, Temas…, pág. 90”.
Assim, e por a A. não ter suprido, como lhe incumbia, as insuficiências na exposição dos factos na petição inicial, conhece-se antecipadamente do mérito da causa, considerando-se a acção manifestamente improcedente, e, em consequência, absolvendo-se a R. do pedido. Custas pela A. (art. 527º, n.ºs 1 e 2, do CPC)…”.
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Não se conformando com a decisão proferida, dela veio a A interpor o presente recurso de Apelação, apresentando alegações e formulando as seguintes conclusões:

“1ª. Não se conforma a Recorrente com a sentença proferida nos presentes autos que decidiu pela improcedência da ação e subsequente absolvição da Recorrida, por ter entendido que, em face do convite ao aperfeiçoamento que havia sido dirigido ao abrigo do art. 590º, nº2, al. b) e 4 do CPC, a Recorrente não o aproveitou, remetendo a alegação de factos para documentos juntos.
2ª. Embora o tribunal recorrido tenha entendido que a Recorrente não descreveu, nem concretizou os factos associados aos contratos de aluguer, os danos dos veículos e as apólices dos seguros, no entanto, não concorda a Recorrente com tal interpretação e análise restritiva.
3ª. Na verdade, em sede de aperfeiçoamento da petição inicial, a Recorrente indicou que celebrou com a Recorrida um acordo para aluguer de veículos automóveis, verbalmente, altura na qual ficaram estabelecidos os preços em função do volume e tipo de veículos alugados.
4ª. E concretizou ainda que a Recorrida sempre aceitou o aluguer das viaturas, bem como os termos entre ambas acordadas, o que ficou tudo devidamente refletido e documentado nas faturas emitidas e remetidas pela Recorrente à Recorrida.
5ª. Não se limitando a este teor, bem como não se limitando a remeter para as faturas (como diz o tribunal a quo), a Recorrente descriminou todo o conteúdo das faturas na sua peça processual, identificando o número, NIF, valor total, a matrícula de cada um dos veículos e ainda o período temporal do aluguer – data de início e fim.
6ª. Esclareceu ainda a Recorrente que existiam faturas que apenas se referiam a uma prestação mensal já que entre as partes também havia sido acordado que os pagamentos seriam prestacionais – faturas essas que estão todas devidamente identificadas, com referência à prestação, na mesma petição inicial, conforme descrito nos artigos 10º e 11º da petição inicial aperfeiçoada.
7ª. Disse a Recorrente ainda que os contratos de aluguer foram entregues em mão ao representante legal da Recorrida, que, por sua vez, nunca os devolveu devidamente assinados à Recorrente, apesar de os executar nos termos que haviam sido acordados.
8ª Mas, ainda assim, a relação entre as partes sempre esteve documentada nas faturas que eram emitidas pela Recorrente, de tal forma que a Recorrente juntou à petição comunicações entre as partes e reproduziu inclusive na petição inicial que a Recorrida até solicitou a celebração de um acordo de pagamentos já que “nunca teve intenção de não pagar” – veja-se o artigo 15º da petição inicial aperfeiçoada.
9ª. Acresce que, alegou ainda a Recorrente que alguns veículos eram devolvidos com danos visíveis e complementou que a Recorrida tinha ficado como única e exclusiva responsável por qualquer dano causado nas viaturas decorrente da sua utilização ao longo do aluguer.
10ª. Danos esses que, novamente ao contrário do alegado na sentença, foram documentados pela Recorrente, bem como os pedidos feitos à Recorrida para a sua reparação. De facto, a Recorrente juntou comunicações e reproduziu as mesmas, feitas por e-mail nos quais identifica as matrículas das viaturas afetadas e reitera que danos se verificam nas mesmas, com registo fotográfico, orçamentos de reparação e identificação da mão-de-obra e peças necessárias para o efeito.
11ª. A Recorrente acabou ainda por vir demonstrar que, face à inércia da Recorrida, se viu forçada a promover e efetuar as reparações e que, uma vez que tal não era da sua responsabilidade, procedeu à sua faturação e envio à Recorrida para pagamento. E, mais uma vez, descriminou fatura a fatura com identificação da mesma e total despendido.
12ª. Ora, a tese sobre a qual se alicerçou o tribunal a quo foi a de que os documentos são meros meios de prova e por isso não desoneram a parte de alegar os factos complementares essenciais.
13ª. Discorda-se em absoluto de tal entendimento já que a Recorrente alegou todos os factos, principais, instrumentais e complementares necessários.
14ª. E conforme é entendimento do Supremo Tribunal de Justiça (proc. nº 04ª3451): “«os documentos não exercem apenas a função de prova, podem, no campo processual, ainda ter a de complemento da alegação de certos factos articulados quando juntos à peça processual onde o autor expõe a sua pretensão e respetivos fundamentos (a petição inicial) ou o réu deduz a sua defesa (a contestação)».”. E continua: “seria grande rigorismo impedir que a exposição dos factos se fizesse por via indireta, por remissão para documentos, sem uma clara indicação da lei em tal sentido”.
15ª. É igualmente entendimento na demais jurisprudência que a remissão efetuada na petição inicial para documentos deve ser admitida quando sirva para complementar o que se encontra alegado e que, nestes casos, os documentos juntos com os articulados são parte integrante do mesmo.
16ª. Que, compulsados os presentes autos, é o que a Recorrente fez relativamente aos factos que não se revelavam necessários para, exaustivamente, serem descritos na petição inicial.
17ª. Mas na certeza de que a Recorrente teve o cuidado de fazer o enquadramento fáctico necessário, explicar como os alugueres foram feitos, quando foram feitos, sobre que veículos, os preços acordados… Documentou e juntou ao processo registos de todos os danos verificados juntamente com os orçamentos e reparações efetuadas e faturadas à Recorrida.
18ª. Acresce que, conforme é sustentado pelo entendimento sufragado pelo Tribunal da Relação de Guimarães, no Acórdão de 30.06.2016 (proc. nº 1564/14.7T8VCT.G1), o tribunal a quo, ao proferir o saneador-sentença, nos moldes em que o fez, antecipou-se e limitou a Recorrente no seu direito a recorrer à justiça e sobretudo a efetuar a sua prova, nomeadamente em sede de audiência final.
19ª. Ainda que se colocasse a hipótese de, nesta fase, faltarem factos complementares ou concretizadores (o que não se concede, nem se concebe), a verdade é que poderia sempre a Recorrente vir alegar os mesmos ou até os introduzir nos autos até à decisão final.
20ª. Como resulta do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 17.01.2017 (proc. nº 3161/12.2TBLRA-A.C1) onde se pode ler: “na sentença podem ter assento factos não alegados que, embora ainda essenciais, não são os nucleares, mas antes complemento ou concretização dos alegados, desde que resultem da instrução da causa e sobre eles tenha havido a possibilidade de as partes se pronunciarem, mesmo que nenhuma delas manifeste vontade de os aproveitar.”
21ª. Ao proferir a sentença nestes moldes, na fase processual que o fez, o tribunal não permitiu sequer à Recorrente a possibilidade de, ao longo do decurso do processo, ter todos os factos necessários à boa decisão da causa e, bem assim, à sua procedência introduzidos no processo.
22ª. Concluir, por fim, que também não se pode concordar com o referido na sentença quanto à falta de identificação das apólices de seguro dos veículos em causa, porquanto a Recorrente cuidou de explicar o enquadramento envolvido com a apólice de seguro e a juntar a documentação necessária a sustentar tais factos.
23ª. Designadamente, de que foi a Recorrida que ficou responsável por celebrar os seguros automóveis com o seu parceiro de seguros, exatamente pelo facto de ter como escopo habitual e lucrativo serviços de aluguer de viaturas e que, quem pagava as apólices era, inicialmente, a Recorrente, que depois imputava o custo à Recorrida, remetendo-lhe sempre comprovativo de pagamento antecipado e respetiva fatura.
24ª. A Recorrente inclusive identificou a seguradora – EMP03... – Companhia de Seguros, S.A.– e todas as faturas nas quais se encontra discriminado o valor pago, o número de apólice, a que veículo se refere e as datas do mesmo.
25ª. Não pode assim a Recorrente concordar que, em momento algum, não tenha concretizado todos os factos necessários ao prosseguimento dos autos, sejam eles principais, sejam eles concretizadores ou complementares. E, deste modo, não pode concordar que não tenha procedido ao aperfeiçoamento determinado nestes autos.
26ª. Por fim, colocando-se a mera hipótese académica de se entender que se verifica a referida deficiência ou insuficiência da petição inicial quanto aos factos complementares, como vem vertido na sentença, sempre teria que ser proferida uma decisão de absolvição da instância ao invés do pedido.
27ª. A inexistirem os factos concretizadores suficientes que permitam a boa decisão da causa e o prosseguimento dos autos, então verifica-se, no fundo, uma recusa de julgamento do mérito da causa devido a uma suposta irregularidade processual.
28ª. Só caso se verificasse a análise e conhecimento do mérito dessa pretensão e se concluísse, com todos os elementos, que à Recorrente não assistia razão, é que poderia levar a que se ponderasse a absolvição do pedido.
29ª. E, ainda assim, nunca poderia ter-se decidido, nesta fase processual e com a fundamentação que foi aplicada, pela manifesta improcedência do pedido, algo que é descrito nos Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 01.06.2010, e do Tribunal da Relação de Guimarães de 07.12.2017, como sendo um conceito ostensivo, evidente, irrecusável, o que nunca seria o caso.
30ª. Não só porque se discorda que não tenha sido alegado qualquer elemento essencial, até porque a petição inicial foi devidamente concretizada e acompanhada de todos os elementos de prova que a sustentam, mas, ainda que assim não se entendesse, é evidente que não se afigura existir qualquer improcedência manifesta.
31ª. Pelo que, também por isto se verifica a necessidade de revogação da sentença, sobretudo no que diz respeito à absolvição do pedido, decisão essa que se nos afigura inadmissível e excessiva.
Termos em se requer seja revogada a sentença e substituída por outra que profira o despacho saneador com fixação dos temas de prova e, deste modo, determine o prosseguimento dos autos para audiência de julgamento…”.
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Dos autos não consta que tenha sido apresentada Resposta ao recurso.
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Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente (acima transcritas), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso (artigos 635º e 639º do CPC), a questão a decidir no presente recurso de Apelação é apenas a de saber se a ação é manifestamente improcedente, por falta de alegação de factos na petição inicial.
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Os factos a considerar para a decisão da questão colocada são os seguintes:

Após ter sido convidada a aperfeiçoar a petição inicial, veio a A apresentar novo articulado, no qual alega o seguinte:
“1º A Autora é uma sociedade comercial anónima que, com escopo lucrativo e habitual, se dedica ao aluguer de veículos automóveis, autocaravanas e veículos comerciais.
2º Por seu turno, a Ré é uma sociedade comercial por quotas que, com escopo lucrativo e habitual, se dedica ao aluguer de veículos automóveis.
3º No normal desenrolar das suas atividades comerciais, a Sociedade Autora e Ré estabeleceram um acordo para aluguer de veículo automóveis da Autora à Ré,
4º Tendo determinado verbalmente o estabelecimento de preços especiais em função do volume de aluguer de veículos, e, claro, em função do tipo de veículo automóvel.
(…)
6º No seguimento deste acordo verbal, a Autora, mediante prévia solicitação da Requerida, alugou vários veículos automóveis do seu comércio à Requerida, sendo que a Ré sempre aceitou os valores e os pagou.
7º Sendo que esses serviços foram todos devidamente faturados, como se descrimina nas Faturas que se juntam e dão como integralmente reproduzidas para os devidos efeitos legais – doc. ... a ...7:
Cód.  FaturaTipo Fatura NIF Nome Total Matrícula Inicio fim
41/717 ...93 EMP02..., Lda 307,50 ..-VP-.. 2021-08-25 25/09/2021
41/718 ...93 EMP02..., Lda 344,40 ..-..-MJ 2021-08-25 25/09/2021
41/719 ...93 EMP02..., Lda 307,50 ..-XJ-.. 2021-07-15 15/08/2021
41/721 ...93 EMP02..., Lda 250,00 ..-..-QE 2022-05-06 06/05/2021 Prestação 4/12
41/722 ...93 EMP02..., Lda 500,00 ..-..-HE 2021-08-05 05/09/2021
41/723 ...93 EMP02..., Lda 500,00 ..-..-HE 2021-08-05 05/09/2021
41/724 ...93 EMP02..., Lda 500,00 ..-..-IP 2021-07-12 12/08/2021
41/725 ...93 EMP02..., Lda 500,00 ..-..-IP 2021-07-12 12/08/2021
41/738 ...93 EMP02..., Lda 270,60 ..-..-NO 2021-06-07 07/12/2021 prestação 3/6
41/739 ...93 EMP02..., Lda 270,60 ..-..-NO 2021-06-07 07/12/2021 prestação 3/6
41/741 ...93 EMP02..., Lda 270,60 ..-..-NO 2021-06-09 09/12/2021 prestação 3/6
41/742 ...93 EMP02..., Lda 270,60 ..-..-FE 2021-06-09 09/12/2021 prestação 3/6
41/743 ...93 EMP02..., Lda 270,60 ..-..-FE 2021-06-09 09/12/2021 prestação 3/6
41/747 ...93 EMP02..., Lda 270,60 ..-..-NP 2021-05-12 12/11/2021 prestação 4/6
41/748 ...93 EMP02..., Lda 270,60 ..-..-NO 2021-05-12 12/11/2021 prestação 4/6
41/750 ...93 EMP02..., Lda 270,60 ..-..-NP 2021-05-12 12/11/2021 prestação 4/6
41/753 ...93 EMP02..., Lda 500,00 ..-..-SA 2021-03-12 12/09/2021 prestação 6/6
41/761 ...93 EMP02..., Lda 344,40 ..-..-ID 2021-04-16 16/09/2021 prestação 5/6
41/764 ...93 EMP02..., Lda 307,50 ..-XJ-.. 2021-08-15 15/09/2021
41/766 ...93 EMP02..., Lda 307,50 ..-..-IP 2021-08-12 12/09/2021
41/767 ...93 EMP02..., Lda 500,00 ..-..-IP 2021-08-12 12/09/2021
41/768 ...93 EMP02..., Lda 366,66 ..-..-IP 2021-08-12 03/09/2021
41/779 ...93 EMP02..., Lda 307,50 ..-..-IC 2021-04-19 19/10/2021 prestação 5/6
41/792 ...93 EMP02..., Lda 270,60 ..-..-NP 2021-05-21 22/11/2021 prestação 4/6
41/816 ...93 EMP02..., Lda 270,60 ..-..-NO 2021-05-24 24/11/2021 prestação 4/6
41/817 ...93 EMP02..., Lda 270,60 ..-..-NO 2021-05-24 24/11/2021 prestação 3/6
41/824 ...93 EMP02..., Lda 393,00 ..-..-XV 2021-04-28 28/10/2021 prestação 5/6
41/869 ...93 EMP02..., Lda 250,00 ..-..-QE 2021-05-06 06/05/2022 prestação 5/12
41/916 ...93 EMP02..., Lda 307,50 ..-..-IP 2021-09-12 12/10/2021
41/917 ...93 EMP02..., Lda 500,00 ..-..-IP 2021-09-12 12/10/2021
41/932 ...93 EMP02..., Lda 270,60 ..-..-NO 2021-05-21 22/11/2021 prestação 5/6
41/948 ...93 EMP02..., Lda 199,92 ..-..-IP 2021-09-03 15/09/2021
41/949 ...93 EMP02..., Lda 250,00 ..-..-JR 2021-04-23 23/04/2022 prestação 6/12
41/970 ...93 EMP02..., Lda 270,60 ..-..-NO 2021-05-24 24/11/2021 prestação 5/6
41/971 ...93 EMP02..., Lda 270,60 ..-..-NO 2021-05-24 24/11/2021 prestação 4/6
41/972 ...93 EMP02..., Lda 344,40 ..-..-MJ 2021-05-25 25/10/2021 prestação 7/8
41/977 ...93 EMP02..., Lda 270,60 ..-..-NO 2021-05-24 24/12/2021 prestação 4/6
41/978 ...93 EMP02..., Lda 393,00 ..-VP-.. 2021-04-28 28/10/2021 prestação 6/6
41/1005 ...93 EMP02..., Lda 51,25 ..-VP-.. 2021-09-25 30/09/2021
41/1032 ...93 EMP02..., Lda 200,00 ..-..-FG 2021-09-03 15/09/2021
41/1035 ...93 EMP02..., Lda 307,50 ..-XJ-.. 2021-10-15 15/10/2021
41/1036 ...93 EMP02..., Lda 250,00 ..-..-QE 2021-05-06 06/05/2022 prestação 6/12
41/1038 ...93 EMP02..., Lda 270,60 ..-..-NO 2021-06-07 07/12/2021 prestação 5/6
41/1039 ...93 EMP02..., Lda 270,60 ..-..-NO 2021-06-07 07/12/2021 prestação 5/6
41/1051 ...93 EMP02..., Lda 270,60 ..-..-NO 2021-06-09 09/12/2021 prestação 5/6
41/1052 ...93 EMP02..., Lda 270,60 ..-..-FE 2021-06-09 09/12/2021 prestação 5/6
41/1053 ...93 EMP02..., Lda 270,60 ..-..-FE 2021-06-09 09/12/2021 prestação 5/6
41/1054 ...93 EMP02..., Lda 270,60 ..-..-NP 2021-06-09 09/12/2021 prestação 5/6
41/1055 ...93 EMP02..., Lda 270,60 ..-..-NO 2021-05-12 12/11/2021 prestação 6/6
41/1056 ...93 EMP02..., Lda 270,60 ..-..-NP 2021-05-12 12/11/2021 prestação 6/6
41/1076 ...93 EMP02..., Lda 30,75 ..-..-IP 2021-10-12 15/10/2021
41/1077 ...93 EMP02..., Lda 500,00 ..-..-SA 2021-09-12 12/10/2021
41/1078 ...93 EMP02..., Lda 57,40 ..-..-ID 2021-09-16 21/09/2021
41/1079 ...93 EMP02..., Lda 174,25 ..-..-IC 2021-09-19 06/10/2021
41/1080 ...93 EMP02..., Lda 104,80 ..-..-XV 2021-10-28 06/10/2021
41/1081 ...93 EMP02..., Lda 221,28 ..-..-NO 2021-09-12 06/10/2021
41/1082 ...93 EMP02..., Lda 221,28 ..-..-NO 2021-09-12 06/10/2021
41/1083 ...93 EMP02..., Lda 126,28 ..-..-NP 2021-09-21 06/10/2021
41/1084 ...93 EMP02..., Lda 108,24 ..-..-NO 2021-10-24 06/10/2021
41/1098 ...93 EMP02..., Lda 307,50 ..-XJ-.. 2021-10-15 15/11/2021
41/1100 ...93 EMP02..., Lda 500,00 ..-..-HE 2021-10-01 31/10/2021
41/1101 ...93 EMP02..., Lda 500,00 ..-..-HE 2021-10-01 31/10/2021
41/1117 ...93 EMP02..., Lda 250,00 ..-..-JR 2021-04-23 23/04/2022
41/1122 ...93 EMP02..., Lda 270,60 ..-..-NO 2021-05-24 24/11/2021
41/1181 ...93 EMP02..., Lda 250,00 ..-..-QE 2021-05-06 06/05/2022 prestação 7/12
41/1190 ...93 EMP02..., Lda 283,33 ..-..-SA 2021-10-12 29/10/2021
41/1191 ...93 EMP02..., Lda 114,80 ..-..-MJ 2021-10-25 04/11/2021
41/1192 ...93 EMP02..., Lda 91,70 ..-VP-.. 2021-10-28 04/11/2021
41/1199 ...93 EMP02..., Lda 270,60 H-70-... 2021-06-09 09/06/2021 prestação 6/6
41/1246 ...93 EMP02..., Lda 27,06 ..-..-NO 2021-11-09 12/11/2021
41/1247 ...93 EMP02..., Lda 81,18 ..-..-NO 2021-11-07 16/11/2021
41/1265 ...93 EMP02..., Lda 250,00 ..-..-JR 2021-04-23 23/04/2022 prestação 8/12
41/1290 ...93 EMP02..., Lda 307,50 ..-XJ-.. 2021-11-15 15/12/2021
41/1291 ...93 EMP02..., Lda 270,60 ..-..-NO 2021-11-12 12/12/2021
41/1293 ...93 EMP02..., Lda 117,26 ..-..-FE 2021-11-06 22/11/2021
41/1294 ...93 EMP02..., Lda 135,30 ..-..-NO 2021-11-07 22/11/2021
41/1296 ...93 EMP02..., Lda 234,52 ..-..-NO 2021-10-21 16/11/2021
41/1298 ...93 EMP02..., Lda 117,26 ..-..-NP 2021-11-12 25/11/2021
41/1299 ...93 EMP02..., Lda 90,20 ..-..-NP 2021-11-12 22/11/2021
41/1300 ...93 EMP02..., Lda 166,83 ..-..-HE 2021-10-31 10/11/2021
41/1347 ...93 EMP02..., Lda 250,00 ..-..-QE 2021-05-06 06/05/2022 prestação 8/12
41/1354 ...93 EMP02..., Lda 81,18 ..-..-NO 2021-11-24 03/12/2021
41/1388 ...93 EMP02..., Lda 45,10 ..-..-NO 2021-11-24 03/12/2021
41/1469 ...93 EMP02..., Lda 207,46 ..-..-FE 2021-12-09 14/12/2021
41/1470 ...93 EMP02..., Lda 205,00 ..-..-NO 2021-12-12 04/01/2022
41/1495 ...93 EMP02..., Lda 158,33 ..-XJ-.. 2021-04-15 11/01/2022
41/1496 ...93 EMP02..., Lda 50,00 ..-..-QE 2022-01-06 12/01/2022
8º A Autora é assim credora da Ré no montante de € 22.690,92, acrescido dos juros de mora à taxa legal já vencidos, desde a data de vencimento das mesmas faturas até à data da entrada da presente ação, que se computam em € 1 299,44.
8º Na verdade, convém esclarecer que relativamente a múltiplos alugueres acima referidos, as faturas apenas se referem a 1 mês, quando as mesmas referem prestações,
9º Significando que algum dos alugueres eram pelos períodos vertidos nas mesmas faturas (sempre mais que um mês) mas que as faturas apenas eram lançadas mensalmente tal como acordado entre Autora e Ré, pagando a Ré em prestações.
10º Dai a referência ao número de prestações (art.º 7, coluna do lado direito, prestações x/y), sendo que o x correspondia normalmente ao número do mês a que se refere o pagamento, e y ao número total de meses que o veículo estava alugado.
(…)
16º Dos veículos alugados, aquando da sua devolução, os mesmos eram entregues com danos, em virtude de alguns veículos automóveis terem sido devolvidos à Autora com vários danos, a Autora solicitou a sua reparação,
17º A Ré (ao) alugar os veículos automóveis à Requerente, tinha como obrigação entregar os veículos automóveis no estado em que os mesmos foram entregues,
18º Sendo certo que se encontrava definido entre Autora e Ré que os danos verificados nos veículos automóveis provocados durante o período de aluguer seriam, obviamente, da exclusiva responsabilidade da Requerida,
19º Sendo certo que a Autora, em todas as situações, comunicou via email, com registo fotográfico dos danos e respetivo orçamento, antes da reparação, sem que tenha recebido qualquer reclamação – doc 91 a 112 -, constando dos orçamentos enviados a identificação da mão-de-obra e peças necessárias à reparação.
20º Após envio de toda a identificação dos danos nas pinturas ou mecânicas e sem qualquer reclamação da Ré, a Autora procedeu à reparação dos danos em cada veículo, sendo os mesmos devidamente faturados, nunca tendo essas faturas sido devolvidas ou colocadas em causa pela Ré, tendo sido alvo de aceitação por parte da Requerida,
21º Sendo certo que os custos da reparação foram devidamente faturados à Ré, por ter sido esta a responsável perante a Autora pelos danos, sendo que os orçamentos enviados correspondem ao montante que foi faturado à Ré, conforme se descrimina – doc 113 a 137 com correspondência de valores aos orçamentados e juntos como doc. ...1 a ...12:
Cód. Fatura Tipo Fatura NIF Nome Total Data Emissão
4 41/1125 Fatura ...93 EMP02... – Rent a Car, Lda 540,40 2021-10-25
4 41/1126 Fatura ...93 EMP02... – Rent a Car, Lda 995,76 2021-10-25
4 41/1127 Fatura ...93 EMP02... – Rent a Car, Lda 421,23 2021-10-25
4 41/1128 Fatura ...93 EMP02... – Rent a Car, Lda 832,35 2021-10-25
4 41/1129 Fatura ...93 EMP02... – Rent a Car, Lda 318,26 2021-10-25
4 41/1130 Fatura ...93 EMP02... – Rent a Car, Lda 648,53 2021-10-25
4 41/1131 Fatura ...93 EMP02... – Rent a Car, Lda 589,26 2021-10-25
4 41/1132 Fatura ...93 EMP02... – Rent a Car, Lda 2 894,90 2021-10-25
4 41/1220 Fatura ...93 EMP02... – Rent a Car, Lda 2 724,99 2021-11-11
4 41/1228 Fatura ...93 EMP02... – Rent a Car, Lda 1 000,00 2021-11-12
4 41/1248 Fatura ...93 EMP02... – Rent a Car, Lda 1 848,91 2021-11-17
4 41/1249 Fatura ...93 EMP02... – Rent a Car, Lda 1 007,84 2021-11-17
4 41/1250 Fatura ...93 EMP02... – Rent a Car, Lda 445,75 2021-11-17
4 41/1255 Fatura ...93 EMP02... – Rent a Car, Lda 7 642,42 2021-11-18
4 41/1256 Fatura ...93 EMP02... – Rent a Car, Lda 8 636,63 2021-11-18
4 41/1257 Fatura ...93 EMP02... – Rent a Car, Lda 567,90 2021-11-18
4 41/1295 Fatura ...93 EMP02... – Rent a Car, Lda 581,18 2021-11-30
4 41/1327 Fatura ...93 EMP02... – Rent a Car, Lda 399,23 2021-12-02
4 41/1393 Fatura ...93 EMP02... – Rent a Car, Lda 538,38 2021-12-21
4 41/1394 Fatura ...93 EMP02... – Rent a Car, Lda 98,56 2021-12-21
4 41/1395 Fatura ...93 EMP02... – Rent a Car, Lda 189,33 2021-12-21
4 41/1524 Fatura ...93 EMP02... – Rent a Car, Lda 266,17 2022-01-20
4 41/1525 Fatura ...93 EMP02... – Rent a Car, Lda 364,73 2022-01-20
4 41/1532 Fatura ...93 EMP02... – Rent a Car, Lda 405,75 2022-01-25
4 41/1533 Fatura ...93 EMP02... – Rent a Car, Lda 940,43 2022-01-25
22º A Autora é assim também credora da Ré no montante de 34.888,89€ acrescido dos juros de mora à taxa legal já vencidos, desde a data de vencimento das mesmas faturas até à data da entrada da presente ação, que se computam em € 1 785,96.
23º Relativamente aos seguros das viaturas alugadas, sendo a Ré uma empresa que presta serviços de aluguer de veículos automóveis, a mesma detinha um parceiro de seguros que fornecia as apólices de seguro aos veículos automóveis que a Ré alugava à Autora,
24º Sendo que as apólices eram realizadas pela EMP02.../Ré em nome da Autora, por ser esta a proprietária dos veículos e porque assim convencionaram Autora e Ré, de forma a facilitar o procedimento,
25º Ficando estipulado que a Autora faturaria essas mesmas apólices de seguros à Ré sobre os veículos automóveis alugados,
26º Sendo certo que acordaram que a Autora pagaria atempadamente essas apólices de seguro à Seguradora escolhida pela Ré, como pagou, e as faturaria à Ré conforme estabelecido entre ambos,
27º Remetendo sempre a Autora à Ré a fatura e o comprovativo do seguro que antecipava e pagava à EMP03....
28º Os valores dos seguros pagos pela Autora em nome da Ré foram devidamente faturados à Requerida, por ser esta a responsável perante a Autora pelos mesmos, conforme se descrimina doc – 138 a 148:
Cód. Fatura Tipo Fatura NIF Nome Total Data Emissão
FT21/...90 Fatura ...93 EMP02... – Rent a Car, Lda 102,75 2021-09-06
FT21/...91 Fatura ...93 EMP02... – Rent a Car, Lda 1393,34 2021-09-06
EMP04..., Lda 1355,55 2021-10-11
FT21/...96 Fatura ...93 EMP02... – Rent a Car, Lda 102,75 2021-10-11
EMP05..., Lda 108,34 2021-11-09
EMP06..., Lda 1407,94 2021-11-09
EMP07..., Lda 102,75 2021-12-14
EMP08..., Lda 1355,65 2021-12-14
EMP04..., Lda 605,88 2021-12-28
FT22/...05 Fatura ...93 EMP02... – Rent a Car, Lda 102,75 2022-01-29
FT22/...06 Fatura ...93 EMP02... – Rent a Car, Lda 979,55 2022-01-29
29º Assim, o valor global das faturas relativas ao seguro automóvel das várias viaturas alugadas pela Ré à Autora são do montante global de 7.617,25€.
30º A Autora interpelou a Ré para esta fazer face aos montantes em dívida, no montante global de 65.588,14 €.
31º Acontece que, a Ré apesar de sucessivamente interpelada para o efeito, não procedeu ao pagamento dos montantes em dívida, nem o pagamento se presume.
32º É assim a Ré devedora à Autora da quantia de 65.588,14€, acrescida dos juros moratórios legais contados desde a data do vencimento das faturas até efetivo e integral pagamento (…).
Termos em que deve a presente ação ser julgada procedente, por provada, e por via dela a Ré condenada ao pagamento da quantia de 65.588,14 €, acrescida dos juros moratórios legais desde a data de vencimento das faturas até efetivo e integral pagamento”.
*
Da manifesta improcedência da ação:

Perante a descrição dos factos acima reproduzidos, considerou o tribunal recorrido que “…a A. descreveu os factos essenciais em que assenta o seu pedido, e a R. apresentou contestação, demonstrando ter entendido bem o que se alega e pede no articulado da A. Pelo exposto, indefere-se a invocada ineptidão da petição inicial…”.
Considerou-se, no entanto, no despacho recorrido, que “…não sendo a petição inicial inepta, a verdade é que a causa de pedir não está suficientemente concretizada, tendo a A. alegado de forma conclusiva e de direito e remetendo quanto a factos complementares para os documentos que juntou.
Assim, e ao abrigo do disposto no art.º 590º, n.ºs 2, al. b), e 4, do CPC, foi dirigido à A. um convite ao aperfeiçoamento, que a A. não aproveitou, juntando novo articulado, mas remetendo novamente para os documentos, nomeadamente, facturas (…).
A A. descreve a sua actividade e a da R., alega que celebrou contratos de aluguer de veículos automóveis com a R., que facturou esses serviços, identificando as facturas, com o valor, início e fim; os veículos alugados foram devolvidos com danos, que a A. reparou, tendo facturado o valor da reparação à R.; a A. pagou as apólices de seguros dos veículos à seguradora escolhida pela R. e facturou à R., conforme acordado entre ambas, a R. não pagou os valores das facturas identificadas.
A R. não descreveu, com a pertinente alegação de factos, os contratos de aluguer que mencionou, recorrendo logo à qualificação jurídica dos contratos sem os concretizar factualmente; a R. não concretizou, com a necessária alegação de factos, os danos verificados nos veículos e as reparações necessárias; a R. não identificou as apólices dos seguros, apesar de ter sido convidada a aperfeiçoar a petição inicial.
A R. remeteu quanto a esses factos complementares dos factos essenciais para as muitas facturas que juntou aos autos.
Ora, a remissão para documentos não desonera a parte de alegar na petição inicial os factos complementares necessários à procedência da acção, porquanto as facturas não são factos, mas meios de prova dos factos (…).
Assim, e por a A. não ter suprido, como lhe incumbia, as insuficiências na exposição dos factos na petição inicial, conhece-se antecipadamente do mérito da causa, considerando-se a acção manifestamente improcedente, e, em consequência, absolvendo-se a R. do pedido…”.

É desta decisão que a recorrente discorda, considerando desde logo, que alegou na petição inicial aperfeiçoada, todos os factos essenciais da causa de pedir.
Vejamos:
Resulta do disposto no nº 1 do art.º 5º do CPC, que “às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas”. Nos termos ainda do n.º 1, alínea d), do art.º 552º do mesmo Código, “Na petição com que propõe a acção deve o Autor (…) expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de direito que servem de fundamento à acção”.
Trata-se, como decorre da expressão usada nos preceitos legais transcritos, de um verdadeiro ónus que recai sobre a parte. Ou seja, não basta às partes a invocação de um direito subjetivo e a formulação de um concreto pedido ao tribunal, sendo tão importante como isso a alegação da relação material da qual o autor faz derivar o correspondente direito, e dentro dessa relação, a alegação dos factos constitutivos desse direito (Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa “Código de Processo Civil Anotado”, Vol I, pág 26, 2ª edição, Almedina).
Na verdade, a causa de pedir é entendida legalmente como o facto jurídico de que procede a pretensão deduzida (art.º 581º, nº 4), cumprindo ao autor que invoca a titularidade de um direito, alegar os factos cuja prova permita concluir pela existência desse direito.
Ora, tendo o nosso legislador feito, no âmbito do citado art.º 581º do CPC, clara opção pela teoria da substanciação da causa de pedir, incumbe ao autor articular os factos jurídicos concretos dos quais deriva a sua pretensão. Assim, a causa de pedir, conforme referem os mencionados autores (obra e local citados) “…supõe a alegação do conjunto de factos essenciais que se inserem na previsão abstrata da norma ou normas jurídicas definidoras do direito subjetivo cuja tutela jurisdicional se pretende. A causa de pedir, servindo de suporte ao pedido, é integrada pelos factos (por todos os factos) de cuja verificação depende o reconhecimento da pretensão deduzida…” (no mesmo sentido, José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, I, 3.ª ed., 309, Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 234-235, e Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o novo Processo Civil, 269).
Anselmo de Castro (Direito Processual Civil Declaratório, I, 207 e seg.) afirma que se encontra consagrada na nossa lei processual civil “a teoria da substanciação”, consagrada no n.º 4 do art.º 498.º do anterior CPC (atual nº4 do artigo 581º), tendo o autor, na petição inicial, de expor “os factos e as razões de direito que servem de fundamento à acção”, ou seja, de fazer a indicação dos factos concretos constitutivos do direito, não se podendo limitar à indicação da relação jurídica abstrata.
E compreende-se a exigência legal, porquanto o juiz tem de saber o que está em causa nos autos, isto é, o que as partes pretendem ver dirimido na ação. Além disso, a definição da causa de pedir e do pedido são elementos de primordial importância na delimitação do âmbito do caso julgado e da litispendência (arts. 580º e 581º do CPC), sendo também com recurso à concreta definição da causa de pedir e do pedir que se poderá determinar a possibilidade da sua alteração, em caso de falta de acordo das partes (nos termos previstos no art.º 265º nº1 e 6 do CPC).
Aliás, a relevância da indicação da causa de pedir e do pedido na petição inicial é de tal ordem e tão manifesta, que o legislador sanciona a sua omissão (como já acontecia no anterior código) com a nulidade de todo o processado, por ineptidão da petição inicial (art.º 186º nº1 e 2 al. a) do CPC), nulidade essa que é de conhecimento oficioso (art.º 196 do CPC). Trata-se, além disso, de uma exceção dilatória nominada (art.º 577º al. b) do CPC), que conduz à absolvição do Réu da instância (art.º 576 nº 2 do CPC).
*
Ora, à luz de tudo quanto se afirmou, e dos princípios basilares do nosso direito processual civil, nomeadamente do princípio do dispositivo, da preclusão, e da auto-responsabilidade das partes (analisados pela doutrina citada), não podemos afirmar, com convicção, que a A tenha cumprido – quer com a alegação dos factos na petição inicial, quer no requerimento aperfeiçoado -, os ónus que a lei lhe impõe (tendo sido a essa luz, cremos, que a A foi sancionada pelo tribunal recorrido com a improcedência da ação).
Haverá, no entanto, que ponderar, e ter em consideração, que o novo Código de Processo Civil alterou significativamente o paradigma do Código anterior, atenuando a rigidez daqueles princípios – sem os postergar, no entanto -, e impondo que se faça deles uma nova leitura, conjugados com os princípios da boa gestão processual, da cooperação (do tribunal com as partes), e sobretudo do primado da supremacia da verdade material sobre a verdade formal.

Concretizando:
É seguro que às partes cabe o ónus de alegar os factos que sustentam a sua pretensão (art.º 5.º do CPC), como já acontecia anteriormente, à luz dos artºs 664.º e 264.º do anterior Código, sem prejuízo de, excecionalmente, o tribunal poder considerar factos não articulados pelas partes.
Assim, dispõe o art.º 5.º nº1 que cabe às partes o ónus de alegar os factos essenciais constituintes da causa de pedir e fundantes das exceções deduzidas, mas acrescentando o nº 2 do mesmo preceito que são ainda considerados pelo tribunal, para além de outros, os factos instrumentais que resultem da instrução da causa (al. a)), bem como os (essenciais) que sejam complemento ou concretização dos alegados, e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido as partes a possibilidade de se pronunciar (al. b)).
Como refere Abrantes Geraldes (Recursos no Novo Código de Processo Civil, p. 238) «importa reflectir nas modificações operadas em sede de delimitação dos “temas da prova”, por contraposição com o anterior sistema, assente em “pontos de facto da base instrutória”, ou com o anacrónico sistema dos “quesitos”, impondo-se agora que se atenuem os efeitos de um determinado e frequentemente excessivo rigorismo formal, já criticável perante o sistema anterior», determinando o novo sistema «que a produção de prova em audiência tenha por objeto “temas da prova”(art. 596.º) enunciados na audiência prévia, em vez de incidir sobre “factos” sincopados, tendo-se optado por inscrever a decisão da matéria de facto no âmbito da própria sentença (art.º 607.º, n.º 3)”, perante o que será de admitir “uma maior liberdade no que concerne à descrição da realidade litigada, a qual não deve ser imoderadamente perturbada por juízos lógico-formais que deixem a justiça à porta do tribunal».
Aliás, bem vistas as coisas, o próprio CPC revogado – já desde a redação que lhe foi dada pela Lei n.º 180/96, de 25-09 – previa a “consideração, mesmo oficiosa, de factos instrumentais que resultem da instrução e discussão da causa” (art.º 264.º, n.º 2), bem como dos “factos essenciais à procedência das pretensões formuladas ou das exceções deduzidas, que sejam complemento ou concretização de outros que as partes hajam oportunamente alegado, e resultem da instrução e discussão da causa, desde que a parte interessada manifeste vontade de deles se aproveitar, e à parte contrária tenha sido facultado o exercício do contraditório” (art.º 264º nº 3).
Como vem entendendo o STJ (designadamente no Ac. de 07/05/2015, disponível em www.dgsi.pt.), «Com as últimas reformas do processo civil (…), as partes, por um lado, perderam o quase monopólio que detinham sobre a lide, e, por outro, o Tribunal passa a assumir uma posição muito mais activa, por forma a aproximar-se da verdade material, ou seja, a alcançar a justa composição do litígio que é, em derradeira análise, o fim último de todo o processo (…). Reconhece-se, agora, ao Juiz a “possibilidade de investigar, mesmo oficiosamente, os factos meramente instrumentais e de os utilizar quando resultem da instrução e julgamento da causa».
No mesmo sentido chama o STJ a atenção (Ac. do STJ, de 10/09/2015, também disponível em www.dgsi.pt.) para a necessidade de «considerar de uma forma inovadora em face do NCPC que a abolição da base instrutória e a opção pela enunciação de temas de prova dá aos tribunais de instância maior liberdade na circunscrição da matéria de facto. Para o efeito já não valem, como valiam em face do art.º 646º, nº 4, do anterior CPC (…), os argumentos de pendor formalista. Mais do que nunca, é possível agora o juiz optar por uma formulação mais genérica, desde que não seja pura matéria de direito em face do caso concreto, tal como existe uma maior liberdade na consideração de factos que não foram alegados mas que resultaram da discussão da causa, nos termos do art.º 5º, nº 2. O modelo processual introduzido pela reforma é o da prevalência do fundo sobre a forma, de acordo com uma nova filosofia, que vê no processo um instrumento, um meio de alcançar a justa composição do litígio, de chegar à verdade material pela aplicação do direito substantivo…”.
O tribunal pode agora, ao abrigo do referido art.º 5.º, n.º 2, do CPC, acolher para a decisão factos que, embora ainda essenciais, já não são os nucleares, mas antes complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar, e mesmo que a parte nenhuma vontade tenha manifestado quanto à sua utilização (seja por os não ter alegado ou por não ter manifestado tal vontade na sequência do respetivo conhecimento no âmbito da instrução).
Assim, só está afastada a intervenção oficiosa corretiva do tribunal, neste âmbito, quanto aos factos essenciais “nucleares” ou “principais” (aqueles que constituem a causa de pedir ou que fundam as exceções deduzidas), continuando a manter-se de forma irrestrita o princípio do dispositivo. Já quanto aos demais (factos instrumentais ou factos essenciais que sejam complementares ou concretizadores de outros alegados pelas partes) poderão os factos não alegados ser tidos em conta pelo tribunal, sem limitações relativamente aos instrumentais e com sujeição à possibilidade de exercício do contraditório no concernente aos restantes (essenciais) (Ac. RC, de 17/01/2017, disponível em www.dgsi.pt).
Como refere Paulo Pimenta (Comunicação intitulada “Temas de Prova”, em www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/ProcessoCivil/TextocomunicacaoPauloPimenta.pdf.), os factos essenciais nucleares (por contraposição aos factos essenciais complementares e concretizadores) «constituem o núcleo primordial da causa de pedir ou da excepção, desempenhando uma função individualizadora ou identificadora, a ponto de a respectiva omissão implicar a ineptidão da petição inicial ou a nulidade da excepção», enquanto os “complementares” e os “concretizadores”, «embora também integrem a causa de pedir ou a excepção, não têm já uma função individualizadora».
De uma forma algo simplista tem-se considerado que “factos complementares são os completadores de uma causa de pedir (ou de uma excepção) complexa, ou seja, uma causa de pedir (ou uma excepção) aglutinadora de diversos elementos, uns constitutivos do seu núcleo primordial, outros complementando aquele. Por sua vez, os factos concretizadores têm por função pormenorizar a questão fáctica exposta, sendo exactamente essa pormenorização dos factos anteriormente alegados que se torna fundamental para a procedência da acção (ou da excepção)” (cfr. na doutrina, Rui Pinto, Notas ao Código de Processo Civil, Coimbra Editora, Coimbra, 2014, ps. 19 a 25, e na jurisprudência, Ac. do STJ, de 24/04/2013, disponível em www.dgsi.pt.).
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Ora, revertendo ao caso dos autos, o tribunal recorrido já deixou bem explícito que “…a A. descreveu os factos essenciais em que assenta o seu pedido (…), arredando do caso a situação de ineptidão da petição inicial.
Apenas se considerou que a causa de pedir não estava suficientemente concretizada, por ter a A. deduzido factos de forma conclusiva e com recurso a expressões de direito, remetendo ainda, quanto a factos complementares, para os documentos que juntou, esclarecendo (com recurso a doutrina e a jurisprudência avalizada) que deve distinguir-se, dentro dos factos integradores da procedência do pedido, os factos que constituem o núcleo essencial da causa de pedir, constituído pelos elementos típicos do direito que se pretende fazer valer, e os factos acessórios ou complementares; aqueles que concretizam ou qualificam os primeiros, conforme previsto na norma de procedência.
E acrescenta-se: processualmente, factos complementares e concretizadores são aqueles que integram a causa de pedir mas não a individualizam; a sua omissão não determina a ineptidão da petição, embora  eles sejam decisivos para a viabilidade ou procedência da ação ou da reconvenção, ou para a procedência da excepção.
Assim, esclarece-se, os factos essenciais são os necessários à identificação da situação jurídica invocada pela parte, e que, como tal, relevam na viabilidade da acção ou da excepção. Deste modo, se os factos alegados pela parte não forem suficientes para se perceber qual a situação que se pretende fazer valer em juízo, existe um vício que afecta a viabilidade da acção ou da excepção. Já os factos complementares não são necessários à identificação da situação jurídica alegada pela parte, mas são indispensáveis à procedência da acção ou da excepção.
Daí que se tenha concluído, que apenas a falta de alegação dos factos essenciais acarretaria a ineptidão da petição inicial por inexistência de causa de pedir – o que não aconteceu no caso em análise, considerando o tribunal recorrido que a A alegou os factos essenciais da causa de pedir, ou seja, que a A. descreveu a sua atividade e a da R; que alegou ter celebrado contratos de aluguer de veículos automóveis com aquela; que faturou esses serviços, identificando as faturas, com o valor, início e fim; que os veículos alugados foram devolvidos com danos, que a A. reparou, tendo faturado o valor da reparação à R.; que a A. pagou as apólices de seguros dos veículos à seguradora escolhida pela R, e que lhos faturou, conforme acordado entre ambas; e que a R. não pagou os valores das faturas identificadas.
No entanto, considerou-se na decisão recorrida: que a A não descreveu, com a pertinente alegação de factos, os contratos de aluguer que mencionou, recorrendo logo à qualificação jurídica dos mesmos, sem os concretizar factualmente; que a A não concretizou, com a necessária alegação de factos, os danos verificados nos veículos e as reparações necessárias dos mesmos; e que não identificou as apólices dos seguros, apesar de ter sido convidada a aperfeiçoar a petição inicial.
Ademais, considerou-se na decisão recorrida que a A remeteu a sua alegação quanto a esses factos complementares (dos factos essenciais) para as muitas faturas que juntou aos autos, sendo certo que a remissão para documentos não desonera a parte de alegar na petição inicial os factos complementares necessários à procedência da ação, porquanto as faturas não são factos, mas meios de prova dos factos.
Assim, e com base nessa omissão, traduzida numa insuficiência na exposição dos factos na petição inicial (que segundo o tribunal recorrido a A deveria ter suprido, como lhe incumbia), considerou o tribunal recorrido a ação manifestamente improcedente, absolvendo a R. do pedido, logo no despacho saneador.
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Mas não podemos concordar com essa decisão.

No que respeita ao contrato celebrado, diz a A. que no normal desenrolar das suas atividades comerciais, as partes estabeleceram um acordo para aluguer de veículos automóveis (da Autora à Ré), tendo sido determinado verbalmente o estabelecimento de preços especiais em função do volume de aluguer de veículos e em função do tipo de veículo automóvel, e que no seguimento desse acordo, a Autora, mediante prévia solicitação da Ré, alugou-lhe vários veículos automóveis, sendo que a Ré sempre aceitou os valores e os pagou.
Nos dizeres da A, estaríamos perante vários contratos de aluguer de veículos automóveis, contrato definido na lei, em termos mais amplos, como um contrato de locação, previsto no art.º 1022º do CC como o contrato pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de um coisa mediante retribuição.
A locação diz-se “aluguer” quando incide sobre coisa móvel (art.º 1023º do CC), e vem sendo definido na doutrina como um contrato pelo qual a locadora entrega à locatária determinado veículo, para que o use e frua, com a obrigação de o restituir no termo do prazo contratado, mediante o pagamento da importância acordada, integrando a obrigação contratual do locatário a restituição da coisa locada no estado em que a recebeu, ressalvadas as deteriorações inerentes a uma prudente utilização (art.º 1043.º nº1 do CC), conceito que se reconduz à diligência do bonus pater familiae, do homem de boa formação e de são procedimento, ou seja, in casu, do condutor normal.
Ainda relacionado com os alegados contratos celebrados, um dos princípios gerais que norteiam os contratos é o do seu pontual cumprimento (art.º 406.º, n.º 1 do CC), sendo que, em matéria de contratos, vigora entre nós o princípio da liberdade contratual, nos termos do qual (art.º 405º do CC), “Dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos neste código ou incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver (nº1). As partes podem ainda reunir no mesmo contrato regras de dois ou mais negócios, total ou parcialmente regulados na lei (nº2)”.
Ora, de acordo com as normas legais aplicáveis, caberia à A a alegação dos factos jurídicos concretos, relacionados com a celebração dos contratos, com os danos verificados nas viaturas devolvidas (objeto desses mesmos contratos), assim como com o incumprimento desses contratos por parte da ré.
E nessa medida, temos de convir, que a A não descreveu – nem no articulado inicial, nem no articulado aperfeiçoado -, com o pertinente detalhe factual, os negócios jurídicos celebrados (a descrição factual detalhada, dos termos acordados pelas partes, aquando da celebração dos contratos).
Ainda assim, consideramos que no articulado aperfeiçoado – com a descrição dos valores faturados -, a A veio completar a alegação inicial daqueles mesmos factos.
Efetivamente, inseridos no próprio articulado (e não por remissão, como é referido na decisão recorrida), a A descreve agora os valores faturados à ré, indicando o número de cada fatura, a data da sua emissão, o respetivo valor, a identificação das viaturas (a respetiva matrícula), e os períodos do aluguer das mesmas. E o mesmo se passa com as faturas relacionadas com a reparação das viaturas danificadas, e com os valores faturados dos seguros, das quais constam discriminados os valores e a identificação das viaturas. Ou seja, mostram-se agora melhor descritos, ainda que de forma implícita, os termos em que foram celebrados os contratos de aluguer das viaturas e as vicissitudes desses contratos a nível do seu alegado incumprimento.
Por isso, julgar a ação manifestamente improcedente perante essa alegação factual, afigura-se-nos uma decisão excessivamente formalista, contrariando o princípio da verdade material e da prevalência das decisões de substância em detrimento das decisões de forma. Além disso, todo o manancial de documentação carreado para os autos pela A (entre ela a troca de correspondência entre as partes relacionada com as faturas emitidas) justificaria a adesão do tribunal a um entendimento mais tolerante, que admitisse que os factos alegados pela A na petição inicial fossem complementados e/ou concretizados com os factos que constam daqueles documentos (como se decidiu no Ac. desta RG, de 27-06-2019, por nós relatado).
Efetivamente, pese embora a questão não venha obtendo uma solução unívoca, vem-se maioritariamente considerando processualmente válida, a alegação de factos que integram a causa de pedir por remissão para documentos (cfr. na doutrina, Abrantes Geraldes, “Temas da Reforma do Processo Civil”, vol. I, pág. 201, e Rui Pinto, op. cit., pág. 34; e na jurisprudência, acórdãos da RP de 30.5.2006, da RC de 6.07.2010, e da RL, de 30-11-2011, de 3.12.2009, e de 15-05-2014, todos disponíveis em www.dgsi.pt).
Trata-se de uma técnica muito usada na descrição dos factos – não muito correta, admite-se -, mas usual (Ac. STJ de 4/2/2010, disponível in www.dgsí.pt.), sobretudo quando estão em causa muitos e extensos documentos, ou registos fotográficos (como é o caso dos autos), sendo certo que tal procedimento não dispensa a análise pelo tribunal dos documentos apresentados, que se mostrem pertinentes na abordagem das questões a decidir.
Significa isso, que tendo a A alegado na petição inicial os factos essenciais relacionados com os contratos celebrados e com o incumprimento dos mesmos, a concretização (ou a completude) dessa factualidade poderia ser feita por remissão para as faturas juntas (e descriminadas na petição inicial), considerando-se tal alegação de forma implícita no conteúdo dos documentos juntos, e devidamente referidos no corpo do articulado.
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Mas a nossa discordância quanto à decisão recorrida prende-se também com o momento em que ela é proferida (no despacho saneador).
Convocando novamente a disposição legal relacionada com o ónus de alegação dos factos pelas partes, o nº1 do art.º 5º do CPC dispõe efetivamente que às partes cabe a alegação dos factos que sustentam a sua pretensão - os factos  essenciais constituintes da causa de pedir e fundantes das exceções deduzidas -, acrescentando no entanto o nº 2 do mesmo preceito, que são ainda considerados pelo tribunal, para além de outros, os factos (essenciais) que sejam complemento ou concretização dos alegados, e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido as partes a possibilidade de se pronunciar (al. b)).
Ou seja, como acima se deixou dito (e bem se referiu na decisão recorrida), a falta de densificação ou concretização adequada de factos substantivamente relevantes - de que depende, a final, a procedência da pretensão do autor -, tem como consequência a improcedência, em termos de juízo de mérito, da própria ação, por o autor não ter logrado alegar e provar cabalmente todos os elementos factuais constitutivos de que dependia o reconhecimento do direito por ele invocado.
Neste caso, como acima referimos, movemo-nos já no plano, não do vício da ineptidão da petição inicial, mas da insuficiente alegação de factos concretizadores ou complementares de factos essenciais, podendo tal insuficiência de concretização ou completude factual ser suprida, ou na sequência de um convite ao aperfeiçoamento - o que, segundo o tribunal recorrido, não aconteceu no caso dos autos -, ou em consequência da aquisição processual daqueles factos (complementares ou concretizadores dos que integram o núcleo essencial da causa de pedir), se revelados no decurso do processo, designadamente na fase da instrução - nos termos do citado art.º 5º, nº 2 al. b) do CPC, no qual se admite, com particular amplitude, a aquisição processual de factos dessa natureza, relativamente aos quais não opera qualquer preclusão (Ac. RG de 30.06.2016, disponível em www.dgsi.pt).
Como se decidiu no Ac. RC de 17.01.2017 (citado pela recorrente, e disponível em www.dgsi.pt), “na sentença podem ter assento factos não alegados que, embora ainda essenciais, não são os nucleares, mas antes complemento ou concretização dos alegados, desde que resultem da instrução da causa e sobre eles tenha havido a possibilidade de as partes se pronunciarem, mesmo que nenhuma delas manifeste vontade de os aproveitar.”
Efetivamente, na decisão da causa, além dos factos notórios e dos que o tribunal tenha tido conhecimento no exercício das suas funções, deve o juiz tomar em consideração, mesmo oficiosamente, os factos complementares (constitutivos do direito, ou integrantes da exceção), assim como os factos concretizadores (de outros de caráter mais genérico), embora não alegados pelas partes, acautelado que seja o princípio do contraditório, e o direito das partes à produção da prova (arts. 607º e 5º nº 2 al. b) do CPC).
Assim sendo, a insuficiência de alegação factual que o tribunal recorrido anotou, no que concerne à cabal identificação (mesmo no articulado aperfeiçoado), dos precisos termos em que foram concretizados os negócios jurídicos celebrados, assim como o seu incumprimento por parte da ré (factos que assumem natureza de factos complementares e concretizadores dos essenciais já alegados), poderia ainda ser suprida durante o decurso do processo – nomeadamente durante a fase da instrução -, sendo assim prematura a decisão recorrida, de considerar a ação manifestamente improcedente logo no despacho saneador.
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Procede assim, a Apelação da A, devendo os autos prosseguir os seus ulteriores termos.
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Decisão:

Por todo o exposto, Julga-se Procedente a Apelação e revoga-se o despacho recorrido – que julgou improcedente a ação -, ordenando-se o prosseguimento dos autos.
Custas (em ambas as instâncias) pela parte vencida a final.
Notifique
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Sumário do Acórdão:

I- Tendo o legislador, no âmbito do art.º 581º do CPC, feito clara opção pela teoria da substanciação da causa de pedir, incumbe ao autor articular os factos jurídicos concretos dos quais deriva a sua pretensão, cabendo às partes alegar os factos essenciais que constituem o núcleo identificador da causa de pedir (art.º 5º nº1 do CPC).
II- Devem ainda ser considerados pelo tribunal, para além de outros, os factos (essenciais) que sejam complemento ou concretização dos alegados pelas partes, e que resultem da instrução da causa, desde que sobre eles as partes tenham tido a possibilidade de se pronunciar (art.º 5º nº 2, al. b) do CPC).
III- A insuficiente alegação de factos concretizadores ou complementares de factos essenciais pode ser suprida, ou na sequência de um convite ao aperfeiçoamento, ou em consequência da aquisição processual daqueles factos, se revelados no decurso do processo, designadamente na fase da instrução.
IV- É prematura a decisão de “manifesta improcedência da ação” no despacho saneador, por falta de alegação dos factos complementares ou concretizadores (dos factos essenciais da causa de pedir).
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Notifique e D.N.
Guimarães, 1.2.2024