Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
757/23.0T9VRL-A.G1
Relator: VERA SOTTOMAYOR
Descritores: EMBARGOS DE EXECUTADO
EXECUÇÃO DE CRÉDITO LABORAL
DECISÃO ADMINISTRATIVA
LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/04/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário:
I - Da interpretação dos artigos 564.º n.º 2 e 3 do CT e 89.º do Regime Geral das Contraordenações resulta inequívoco que se no processo contraordenacional laboral, o empregador condenado no pagamento de créditos laborais em dívida a trabalhadores, caso não os liquide, é ao Ministério Público que compete propor a ação executiva.
II – Assim, por força da lei, o Ministério Público é quem tem legitimidade para instaurar a execução tendo em vista a cobrança de créditos laborais reconhecidos e apurados em decisão administrativa transitada em julgado.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Guimarães

I – RELATÓRIO

Por apenso aos autos de execução para pagamento da quantia certa que o MINISTÉRIO PÚBLICO instaurou contra EMP01... UNIPESSOAL, LDA. e AA, vieram os executados deduzir embargos de executado pedindo que se declare que a execução deve apenas prosseguir quanto à 1.ª executada na parte correspondente ao valor da coima de €3.300,00, uma vez que o Ministério Público carece de legitimidade ativa para reclamar o pagamento de créditos laborais; não se verifica o pressuposto processual do interesse em agir; não existe título executivo contra o executado; a decisão da ACT não consubstancia título executivo quanto aos créditos laborais reclamados e é inexequível quanto a estes; ocorreu falsidade ou infidelidade do translado; ocorreu uma violação do princípio da autonomia privada das partes do contrato de trabalho, bem como dos direitos de personalidade dos trabalhadores
O Ministério Público apresentou contestação, na qual pugnou pela improcedência dos embargos.
Os autos prosseguiram com a sua normal tramitação e por fim foi proferido saneador sentença, que terminou com o seguinte dispositivo.

“Em face de todo o exposto, decide-se:
a) Julgar totalmente improcedentes os embargos de executado deduzidos por EMP02... UNIPESSOAL, LDA., e AA;
b) Condenar os executados/embargantes EMP02... UNIPESSOAL, LDA., e AA no pagamento das custas dos embargos – cfr. artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do C.P.C.
*
Registe e notifique.”

Inconformada com esta decisão vieram os Recorrentes/Embargantes interpor recurso, pugnando pela revogação da decisão recorrida finalizando as suas alegações com as seguintes conclusões:

“1- Por sentença de 24.11.2023, o Mmo. Juiz a quo considerou totalmente improcedentes os presentes embargos de executado.
2- As questões principais a decidir na sentença prendiam-se com os fundamentos da oposição, a saber, a infidelidade do translado e a incerteza e inexigibilidade da obrigação exequenda que assentavam, essencialmente na titularidade dos créditos salariais e consequente ilegitimidade do Ministério Público para reclamar esse pagamento; a falta de interesse em agir do Ministério Público; e a violação dos princípios da autonomia privada e liberdade das partes.
3- Através da execução o Exequente pretendia obter dos Executados o pagamento da quantia total de €13.281,92 (treze mil duzentos e oitenta e um euros e noventa e dois cêntimos), por referência às certidões emitidas nos autos de contraordenação emitidas a 03.03.2023 pelo ACT, sendo que: (i) 3.300,00 Eur, seriam a título de “sanção pecuniária”; e (ii) 9.981,92 Eur, a título de “créditos salariais”.
4- Entendem os Recorrentes que os créditos salariais em causa, ainda que fossem devidos, seriam sempre devidos apenas e só aos trabalhadores melhor identificados nos autos de contraordenação.
5- Verificando-se, salvo melhor opinião, falta de interesse em agir e ilegitimidade processual do aqui Exequente/Recorrido no tocante à reclamação dos referidos créditos salariais.
6- Só aos trabalhadores, enquanto titulares dos referidos créditos salariais seria lícito exigi-los ou deduzir a respetiva reclamação, nomeadamente em ação laboral própria ou depois de identificado o seu propósito nos presentes autos.
7- Salvo melhor opinião, não assiste ao Exequente/Recorrido a possibilidade de os exigir na execução, lançando mão de um meio processual inadequado para se substituir ao trabalhador, que é o único sujeito com legitimidade e interesse processual ativo para suscitar apreciação da antiguidade e créditos laborais devidos em função dessa atividade.
8- Para o reconhecimento e reclamação de tais créditos salariais sempre seria necessário o impulso processual dos trabalhadores, enquanto titulares dos referidos créditos, em ação comum laboral. O que não sucedeu no caso dos autos.
9- O exequente pretende assim substituir-se aos trabalhadores, que são os únicos sujeitos com legitimidade para suscitar a apreciação dessa questão e, caso assim se verifique, exigirem o pagamento das prestações em falta do seu vencimento.
10- Os principais interessados na execução são os trabalhadores, por ser na sua esfera jurídica que se projetam os efeitos da ação, pelo que não pode o Tribunal ignorar que estes trabalhadores em momento algum foram ouvidos, quer no âmbito do processo contraordenacional, quer executivo.
11- Na verdade, os trabalhadores nunca manifestaram qualquer propósito na reclamação dos créditos salariais em questão, quer direta, quer indiretamente e uma vez que dispõem os trabalhadores de capacidade judiciária, nas suas duas vertentes (de gozo e de exercício), não se descortina a necessidade de o Ministério Público diligenciar em sua defesa, pelo suprimento de qualquer incapacidade.
12- De notar que perdeu-se o paradeiro dos mesmos, porquanto terão regressado ao país de origem ou terão rumado a outro destino, pelo que acresce ainda a incerteza quanto à entrega/recebimento desses créditos salariais. Sendo certo, que tais valores não poderiam ficar indefinidamente consignados à ordem dos autos, com o imediato e consequente empobrecimento do executado.
13- Contudo, e na possibilidade de se admitir a intervenção do Ministério Público, sempre seria necessário que essa atuação fosse em conformidade com a posição manifestada pelos trabalhadores, a qual, em momento algum, resulta apurada.
14- Pode até ocorrer o risco de o M.P. estar a agir contrariamente à vontade dos intervenientes principais, os sujeitos da relação laboral – que poderiam até prescindir de tais direitos (disponíveis), violando assim o princípio da liberdade e autonomia privada, característica do direito laboral.
15- Não pode o Estado impor às partes, nem declarar de forma inequívoca uma irregularidade sem ouvir os interessados, correndo o risco de atuar em total contradição com a vontade daqueles.
16- Esta lacuna impede uma justa análise do contrato estabelecido entre as partes, quer no que respeita ao seu conteúdo material, à perceção e à vontade real das partes.
17- Salvo melhor opinião, estamos perante uma clara violação do princípio da autonomia privada e liberdade das partes, bem como os direitos de personalidade dos trabalhadores nos termos do 26.º da Constituição da República Portuguesa.
18- Verificando-se assim falta de interesse em agir e ilegitimidade processual do aqui Exequente/Recorrido no tocante à reclamação dos referidos créditos salariais.
19- Salientamos que a resolução de conflitos entre trabalhadores e empregadores, não pode passar apenas pela confissão por parte do empregador da pretensão formulada pelo Ministério Público, sem que a outra parte, o verdadeiro beneficiário de tudo quanto se discute, tenha voz ativa na resolução do mesmo.
20- Por tudo isso, manifestaram os embargantes/recorrentes a sua oposição à execução com base na infidelidade do translado e na incerteza e inexigibilidade da obrigação exequenda (artigo 729.º, alínea b) e e) do C.P.C.), uma vez que se omitiram diligências essenciais para o apuramento dos factos, da verdade e da vontade das partes.
21- Pelo que não se afigura lícita a intervenção do Ministério Público, a fim de reclamar créditos salariais, que os próprios trabalhadores não reclamaram, em total contradição com o princípio da liberdade contratual e das próprias atribuições do M.P., que no caso concreto, deveriam coincidir com a vontade dos trabalhadores – não ouvidos no processo.
22- Por todo o exposto, a sentença de que se recorre contraria vários princípios do Estado de Direito democrático, desde logo, o princípio da autonomia privada e liberdade das partes, bem como os direitos de personalidade dos trabalhadores nos termos do 26.º da Constituição da República Portuguesa.

TERMOS EM QUE V. EXAS CONCEDENDO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO, ORDENANDO A REVOGAÇÃO DA DOUTA DECISÃO PROFERIDA E EM SUA SUBSTITUIÇÃO, SER PROFERIDA OUTRA QUE DECLARE OS EMBARGOS PROCEDENTES POR PROVADOS, APENAS NO TOCANTE AOS IDENTIFICADOS CRÉDITOS SALARIAIS EM FALTA, ASSIM FAZENDO A NECESSÁRIA JUSTIÇA!!

O Ministério Público/Exequente apresentou contra-alegação, concluindo pela improcedência do recurso.

O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo.
Recebidos os autos neste Tribunal da Relação e nada obstando ao conhecimento do recurso, cumprido o disposto na 1ª parte do n.º 2 do artigo 657º do CPC., foi o processo submetido à conferência para julgamento.

II OBJECTO DO RECURSO

Delimitado o objeto do recurso pelas conclusões do Recorrente (artigos 608º n.º 2, 635º, nº 4, 637º n.º 2 e 639º, nºs 1 e 3, do Código de Processo Civil), coloca-se à apreciação deste Tribunal da Relação a questão da legitimidade e do interesse em agir do Ministério Público, relativamente aos créditos laborais dos trabalhadores.

III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
 
Em 1ª instância apurou-se a seguinte factualidade:
1. O Ministério Público instaurou acção executiva, sob a forma de processo sumário, contra EMP02... Unipessoal, Lda., e AA, a qual corre termos nos autos principais, para pagamento da quantia global de € 18.295,95, indicando-se como título executivo “decisão administrativa”.
2. No requerimento executivo alega-se, no que ora releva:
“Os factos constam exclusivamente do título executivo. A responsabilidade do executado AA é solidária com a da executada EMP01... - Unipessoal Ltda., nos termos do artigo 550.º nº 3 do CT, mas apenas na parte referente à condenação em coima, no montante de 3.300 euros”;
3. O requerimento executivo foi instruído com certidão emitida pela A.C.T., constante de páginas 3-167 da ref. n.º ...13 (cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).

IV – APRECIAÇÃO DO RECURSO

Da legitimidade activa do Ministério Público para reclamar o pagamento de créditos laborais e da não verificação do pressuposto processual interesse em agir

Cumpre agora apreciar da legitimidade e do interesse em agir do Ministério Público relativamente à instauração da execução para cobrança de crédito laboral, reconhecido na decisão administrativa proferida pela ACT, uma vez que os Apelantes defendem que só os trabalhadores, titulares dos créditos laborais, têm legitimidade e interesse em agir na instauração da ação executiva.
Na sentença recorrida a este propósito consignou-se o seguinte.
“No caso concreto, decorre da ponderação da certidão que acompanha o requerimento executivo que correu termos um processo contra-ordenacional relativo à sociedade executada, tendo em 23/09/2022 sido proferida decisão pela A.C.T. (mediante declaração de concordância com a proposta de 23/09/2022, em consonância com o disposto no artigo 25.º, n.º 5, da Lei n.º 107/2009, de 14 de Setembro), na qual se concluiu que a sociedade executada se mostrava comprometida com a prática, em concurso efectivo, das seguintes contra-ordenações, a título negligente, que envolveram a aplicação de uma coima única no montante de € 3.300,00, acrescida de custas:
• contra-ordenação p. e p. pelos artigos 521.º, n.º 2 e 554.º, n.º 2, al. a), do C.T.;
• contra-ordenação p. e p. pelos artigos 5.º, n.ºs 5 e 7 e 554.º, n.º 3, al. b), do C.T.;
• contra-ordenação p. e p. pelos artigos 552.º, n.ºs 1 e 2 e 554.º, n.º 2, al. a), do C.T.;
Essa decisão da autoridade administrativa tornou-se definitiva (uma vez que não foi impugnada judicialmente em tempo – cfr. artigo 25.º, n.º 2, al. a), da Lei n.º 107/2009, de 14 de Setembro), e, nessa medida, não suscita dúvidas a sua exequibilidade, quer quanto à coima aplicada, quer quanto às custas liquidadas, perante o regime positivado nos artigos 527.º, n.º 1, 529.º, n.º 1, do C.P.C., 3.º, n.º 1 e 30.º, n.ºs 1, 2 e 3, al. a), do R.C.P., 25.º, n.º 2, al. a), da Lei n.º 107/2009, de 14 de Setembro, 89.º, n.ºs 1, 2 e 3, do R.G.C.O. e 510.º do C.P.P., sendo ainda inequívoco que a sociedade executada goza de legitimidade passiva (cfr. artigo 53.º, n.º 1, do C.P.C.).
(…)
Relativamente aos créditos laborais, cumpre recordar, em face do disposto no artigo 564.º do C.T., que “sempre que a contra-ordenação laboral consista na omissão de um dever, o pagamento da coima não dispensa o infractor do seu cumprimento se este ainda for possível”, pelo que “a decisão que aplique a coima deve conter, sendo caso disso, a ordem de pagamento de quantitativos em dívida ao trabalhador, a efectuar dentro do prazo estabelecido para o pagamento da coima”, e, “em caso de não pagamento, a decisão (…) serve de base à execução efectuada nos termos do artigo 89.º do regime geral das contra-ordenações (…) aplicando-se as normas do processo comum de execução para pagamento de quantia certa”, o que no caso concreto nos reconduz ao apuramento do montante de € 9.981,92, em cujo pagamento foi condenada pela A.C.T. a sociedade executada, a título de créditos laborais em dívida.
Na verdade, verifica-se que na decisão de 23/09/2022 (que já vimos ser definitiva) que se pronunciou quanto à responsabilidade contra-ordenacional da sociedade executada, explicitou-se que:
Ademais, tal responsabilidade da sociedade executada pelo pagamento dos créditos laborais já fora avançada na proposta de decisão:
Nessa conformidade, não se descortina qualquer infidelidade ou falsidade da certidão, relativamente aos créditos laborais reclamados coercivamente pelo Ministério Público, ao contrário do que se sufraga no articulado de embargos de executado.
Aqui chegados, importa ter presente, na esteira do decidido no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28/01/2016, relatora Paula do Paço2, que “(…) a condenação no pagamento dos créditos laborais em dívida para com os trabalhadores resulta do preceituado no artº 564º do C. Trabalho (…) os créditos laborais em que o empregador tenha sido condenado no âmbito do processo contraordenacional, devem ser considerados na conta final do processo, com a emissão das competentes guias para a sua liquidação (…) resulta da lei que sempre que ocorra, em processo contraordenacional laboral, uma condenação do empregador em créditos laborais em dívida a trabalhadores, nos termos do artº 564º CT, deve a quantia em causa ser levada à conta final do processo, correspondendo a um pagamento que é devido a ‘outras entidades’ – artº 30º, nº 3, al. c) do R.C.Processuais, aplicável ex vi do artº 59º da Lei nº 107/2009 -, por força da decisão condenatória e, como tal devem ser emitidas as respectivas guias para liquidação”, e, por conseguinte, não pode pugnar-se que não assiste legitimidade activa do Ministério Público para vir exigir coercivamente o pagamento dos créditos laborais apurados no processo contra-ordenacional, pois esta emana de lei (cfr. artigo 89.º, n.ºs 2 e 3, do R.G.C.O.).
Quanto à invocada falta de interesse em agir quanto aos créditos laborais apurados pela A.C.T., não podemos olvidar que a doutrina nacional maioritária tem afirmado que a regularidade da instância processual implica, para além da verificação dos pressupostos processuais previstos na lei, a 2 Proc. n.º 81/14.0TTCTB.C2, in www.dgsi.pt existência de um interesse processual (interesse em agir) por parte do autor, enquanto pressuposto processual inominado.
Como salienta Lebre de Freitas3 “(…) a exigência do interesse processual baseia-se fundamentalmente na necessidade de não sobrecarregar os tribunais com acções inúteis, razão de ordem pública que justifica o seu conhecimento oficioso (…) imposto aliás pelo artigo 495.º (…)”, assumindo-se como autónomo em relação ao pressuposto da legitimidade na medida em que o autor pode ser titular da relação controvertida tal como a configura e não ter, face às circunstâncias concretas que rodeiam a sua situação, necessidade de recorrer à acção, conforme sublinha Antunes Varela4.
O interesse processual corresponde, no ensinamento de Teixeira de Sousa5, ao "(…) interesse da parte activa em obter a tutela judicial de uma situação subjectiva através de um determinado meio processual e o correspondente interesse da parte passiva, em impedir a concessão de tutela", exigindo-se, assim, como explica Antunes Varela6, “uma necessidade justificada, razoável, fundada, de lançar mão do processo ou de fazer prosseguir a acção”, o que se situa entre uma necessidade absoluta ou única e um puro interesse subjectivo ou a satisfação de mero capricho.
No caso concreto, a ausência de interesse em agir para reclamar os créditos laborais só se verificaria se existisse notícia de que esses créditos estavam pagos, ou a sua obrigação de pagamento se tinha extinguido por qualquer via, mas não foi aventada essa questão nos embargos de executado e não existem elementos no processo que permitam extrair essa inferência.
Consequentemente, é insubstantivo pugnar que não assiste interesse em agir ao Ministério Público para reclamar o pagamento dos créditos laborais apurados no processo contra-ordenacional.”
Desde já adiantamos que se concorda com a decisão recorrida.
Vejamos:
No caso em apreço os Recorrentes foram condenados por decisão transitada em julgado, no pagamento de uma coima única de €3.300,00, pela prática de ilícitos contraordenacionais, tendo a arguida/recorrente sido ainda condenada no cumprimento do dever omitido que se traduziu no pagamento dos quantitativos apurados, que se mostram em dívida aos trabalhadores, que totalizam o valor de 9.981.92 €.

 A condenação no pagamento dos créditos laborais em dívida para com os trabalhadores, resulta do artigo 564.º do Código do Trabalho, com a epígrafe “Cumprimento de dever omitido”, o qual estipula o seguinte:
1 - Sempre que a contra-ordenação laboral consista na omissão de um dever, o pagamento da coima não dispensa o infractor do seu cumprimento se este ainda for possível.
2 - A decisão que aplique a coima deve conter, sendo caso disso, a ordem de pagamento de quantitativos em dívida ao trabalhador, a efectuar dentro do prazo estabelecido para o pagamento da coima.
3 - Em caso de não pagamento, a decisão referida no número anterior serve de base à execução efectuada nos termos do artigo 89.º do regime geral das contra-ordenações, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro, aplicando-se as normas do processo comum de execução para pagamento de quantia certa.

Por seu turno prescreve o art.º 89.º do Regime Geral da Contraordenações, na redação dada pelo DL n.º 244/95, de 14 de Setembro com a epígrafe Da execução” o seguinte:
1 - O não pagamento em conformidade com o disposto no artigo anterior dará lugar à execução, que será promovida, perante o tribunal competente, segundo o artigo 61.º, salvo quando a decisão que dá lugar à execução tiver sido proferida pela relação, caso em que a execução poderá também promover-se perante o tribunal da comarca do domicílio do executado.
2 - A execução é promovida pelo representante do Ministério Público junto do tribunal competente, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no Código de Processo Penal sobre a execução da multa.
3 - Quando a execução tiver por base uma decisão da autoridade administrativa, esta remeterá os autos ao representante do Ministério Público competente para promover a execução.
4 - O disposto neste artigo aplica-se, com as necessárias adaptações, às sanções acessórias, salvo quanto aos termos da execução, aos quais é aplicável o disposto sobre a execução de penas acessórias em processo criminal.
Por último prescreve o n.º 4 do artigo 27.º do Regime Jurídico Processual aplicável às Contraordenações Laborais e de Segurança Social (Lei nº 107/2009, de 14 de setembro) que «[n]os casos em que seja autorizado o pagamento da coima em prestações, são pagos com a primeira prestação e pela seguinte ordem:
a) Créditos laborais em que o empregador tenha sido condenado;
b) Dívidas à segurança social e respetivas custas.»
Desta última norma resulta inequívoco que o empregador que tenha sido condenado no pagamento de créditos laborais em dívida a trabalhadores tem de proceder ao seu pagamento em tribunal juntamente com a primeira prestação da coima (salvo se tiver demonstrado que tais créditos já se mostram liquidados).
Dos transcritos números 2 e 3 do artigo 564.º do Código do Trabalho, infere-se a ligação entre o pagamento da coima e a condenação no cumprimento do dever de pagamento de créditos laborais em dívida aos trabalhadores, sendo certo que, a execução por falta de pagamento de créditos laborais em que o empregador tenha sido condenado é proposta pelo Ministério Público.
Ora, da conjugação das citadas disposições legais resulta que a decisão administrativa que aplique a coima e determine o pagamento de quantitativos em dívida aos trabalhadores, não sendo cumprida no prazo legal, impõe que Ministério Público promova a execução junto do Tribunal competente, tendo em vista a obtenção coerciva do pagamento dos créditos laborais apurados no processo de contraordenação.
Daí que se possa extrair a conclusão que quer a legitimidade para reclamar o pagamento dos créditos laborais apurados em sede de decisão administrativa, quer o interesse em agir do Ministério Público emana da Lei – cfr. artigo 89.º n.ºs 2 e 3 do Regime Geral da Contraordenações[1].
Acresce dizer que o processo de contraordenação visa não só o apuramento dos factos inerentes à infração imputada à arguida – que, face ao pagamento voluntário da coima equivale a condenação pela mesma –, como também quanto ao (pretenso) dever omitido, ou seja, se o pagamento voluntário da coima corresponde a condenação tem também a arguida, no prazo desse pagamento, que cumprir o dever omitido, o que equivale a dizer que tem também de pagar as quantias em dívida aos trabalhadores, entretanto apuradas. Quer o pagamento da coima, quer o pagamento das quantias apuradas e em divida aos trabalhadores devem de ser liquidadas dentro do mesmo prazo, sob pena de se ter de instaurar a respetiva execução.
Ora, não tendo os embargantes procedido à referida liquidação, no prazo previsto para o pagamento da coima, a decisão administrativa, não impugnada judicialmente, que determinou a aplicação da coima e que apurou as quantias em divida aos trabalhadores serve de base à execução, quanto essas importâncias em dívida, a ser instaurada pelo Ministério Público[2] - (cfr. n.º 3 do artigo 564.º do Código do Trabalho).
Como refere Francisco Ferrara[3], «a interpretação jurídica é de sua natureza essencialmente teleológica» e por isso o jurista «há-de ter sempre diante dos olhos o fim da lei, o resultado que quer alcançar na sua actuação prática; a lei é um ordenamento de protecção que entende satisfazer certas necessidades, e deve interpretar-se no sentido que melhor corresponda a estas necessidades, e portanto em toda a plenitude que assegure tal tutela».
Daqui que se imponha afirmar que seria contrário à unidade do sistema jurídico que perante a falte de pagamento da coima (no caso de €3.300,00), não tivesse a arguida que cumprir o dever omitido decorrente dessa condenação, ou seja, também pagar as importâncias em dívida aos trabalhadores, apuradas em sede de decisão administrativa que serve de base à execução e isto independentemente da manifestação da vontade dos trabalhadores no recebimento de tais quantias.
Do que fica dito decorre que os créditos laborais em causa são devidos aos trabalhadores, que são quem, em regra pode suscitar a sua apreciação, designadamente interpondo uma ação em tribunal – ação comum laboral-. Contudo, tal regra tem exceções, delas resultando que quem tem a incumbência de os cobrar, no caso concreto, é o Ministério Público, por força da solução legal consagrada.
Assim sendo, o Ministério Público ao instaurar a execução não exorbitou os seus poderes ou as suas funções, mas sim limitou-se a cumprir o prescrito na lei, a qual não faz depender da manifestação da vontade dos trabalhadores na reclamação dos créditos salariais, sendo certo que só assim não seria, se o Ministério Público tivesse tido conhecimento de que os créditos laborais estariam extintos pelo pagamento ou por qualquer outra causa extintiva, e, nesse caso, sim, o Ministério Público não teria interesse em agir.
A lei impõe que a decisão que aplique a coima contenha, quando for caso disso, a ordem de pagamento do quantitativo em divida ao trabalhador, como também impõe que em caso de não pagamento a decisão da qual resulte a condenação sirva de base á execução a instaurar pelo Ministério Público.
Tal só pode significar que o processo executivo para pagamento coercivo dos créditos salariais não pode deixar de ser instaurado, sendo por isso, que aliás, tais créditos devem ser levados à conta final no processo com emissão das competentes guias para a sua liquidação ´dentro do prazo estabelecido para o pagamento da coima. `
Por força da lei, o Ministério Público é quem tem legitimidade e interesse em agir, na instauração da execução tendo em vista a cobrança de créditos laborais reconhecidos e apurados em decisão administrativa transitada em julgado, o que não impede que a execução não chegue a ser instaurada ou se extinga logo que os trabalhadores/credores se manifestem em sentido contrário, o que não sucedeu, no caso em apreço.
No caso em apreço só poderíamos concluir pela falta de interesse em agir para o Ministério Público reclamar os créditos laborais caso se tivesse apurado que esses créditos estavam pagos ou extintos por qualquer via, mas tal não se verificou.
Em suma, da interpretação dos artigos 564.º n.º 2 e 3 do CT e 89.º do Regime Geral das Contraordenações resulta inequívoco que se no processo contraordenacional laboral, o empregador condenado no pagamento de créditos laborais em dívida a trabalhadores, caso não os liquide, é ao Ministério Público que compete propor a ação executiva.
Quanto à violação do princípio da autonomia privada e da liberdade das partes, bem como os direitos de personalidade dos trabalhadores nos termos do art.º 26.º da CRP remetemos para a posição assumida pelo Tribunal a quo quanto a estas questões, pois as mesmas deveriam ter sido suscitadas em sede de impugnação judicial da decisão administrativa, uma vez que não constando dos fundamentos da oposição à execução, que no caso são os previstos para a sentença judicial, cfr. art.º 729º do CPC, não podem agora vir a ser colocadas.
Improcede assim a apelação confirmando a decisão da 1ª instância, que não merece reparo.

V - DECISÃO

Nestes termos, acordam os juízes que integram a Secção Social deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação e consequentemente confirma-se a decisão recorrida.
Custas a cargo dos Recorrentes.
Notifique.
Guimarães, 04 de Abril de 2024

Vera Maria Sottomayor (relatora)
Antero Dinis Ramos Veiga
Francisco Sousa Pereira


[1] Neste sentido Ac. RC de 28.01.2016, proferido no Proc.º n.º 81/14.0TTCTB.C2, relatora Paula Paço acessível em www.dgsi.pt no qual a este propósito se refere o seguinte “Não sendo a quantia paga no prazo legal, compete ao Ministério Público interpor a ação executiva para satisfação dos aludidos créditos.
Deste modo, por força da solução legal consagrada é o Estado que atua, cobrando a satisfação dos créditos laborais dos trabalhadores (que posteriormente serão entregues aos seus destinatários), procedendo, se necessário, através do Ministério Público, à interposição da ação judicial competente para liquidação de tais créditos (artigo 219º da Constituição da República Portuguesa).”
[2] Neste sentido Ac. RE de 18.01.2018, proferido no Proc.º n.º 688/15.8T8FAR.E1, relator Luís Nunes, acessível em www.dgsi.pt. no âmbito do qual se escreveu a propósito do art.º 564.º do CT o seguinte: “Ou seja, da norma legal em causa extrai-se que apurando-se no processo de contra-ordenação a existência de créditos laborais devidos aos trabalhadores, os mesmos deverão ser aí pagos ou, não o sendo, o Estado (naturalmente por intermédio do Ministério Público) intentará a competente execução para cobrança de tais créditos; daí que, ao contrário do sustentado pela recorrente, não se trata em rigor de execução movida pela ACT, mas sim pelo Estado, através do Ministério Público.
[3] “Interpretação e Aplicação das Leis”, traduzido por Manuel de Andrade e publicado com o Ensaio Sobre a Teoria da Interpretação das Leis, do último autor, 3.ª Edição, Colecção Stvdivm, Arménio Amado – Editor, Sucessor, pág. 130