Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1394/17.4T8GMR.G1
Relator: MARIA CRISTINA CERDEIRA
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
ANIMAIS
ANIMAIS DOMÉSTICOS
VIGILÂNCIA DE ANIMAIS
UTILIZAÇÃO DE ANIMAIS
DANOS CAUSADOS POR ANIMAIS
CULPA DO LESADO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/15/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- O artº 493º, nº. 1 do Código Civil estabelece uma presunção de culpa para aqueles que têm a seu cargo a vigilância de animais, sendo que tal presunção legal implica uma inversão do ónus da prova, de harmonia com o preceituado nos artºs 487º, nº. 1 e 350º, nº. 1 do Código Civil, podendo ser ilidível mediante prova em contrário pelo lesante de que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua.
II- Do confronto entre os normativos dos artºs 493º e 502º do Código Civil, podemos concluir que na abrangência do primeiro se situam as hipóteses dos animais domésticos, os quais por sua natureza estão sujeitos à guarda e/ou vigilância dos respectivos donos ou de outrem sobre quem recaia essa obrigação específica, enquanto o segundo preceito legal tem em vista aqueles que utilizam os animais no seu próprio interesse - no primeiro caso temos uma situação de culpa presumida e no segundo vigora a responsabilidade pelo risco.
III- No caso de responsabilidade por culpa presumida, o visado verá afastada a sua responsabilidade se o demandante não provar os factos que constituem a base da presunção legal ou se o visado ilidir a presunção de culpa, podendo verificar-se a hipótese de a responsabilidade por culpa presumida ser totalmente afastada, havendo culpa do lesado, nos termos do artº. 570º, nº. 2 do Código Civil.
IV- A responsabilidade cominada no artº. 502º do Código Civil é objectiva, não depende de culpa e o artº. 570º do mesmo Código não lhe é aplicável.
V- No âmbito da responsabilidade civil por danos causados por animais, o preceito do artº. 502º do Código Civil é especial em relação ao do artº. 493º, nº. 1 do mesmo Código, pelo que a aplicação daquele prevalece sobre este.
VI) - A hipótese de responsabilidade pelo risco plasmada no artº. 502º do Código Civil será afastada caso se venha a concluir pela culpa do próprio lesado.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

C. M. instaurou a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra J. F. e mulher M. F., pedindo a condenação dos RR. a pagar-lhe:

a) a quantia global de € 120.717,33, sendo € 93.038,35 a título de danos patrimoniais e € 27.678,98 a título de danos não patrimoniais, por via do invocado acidente, acrescida dos juros de mora legais, desde a citação até efectivo e integral pagamento, além de custas e condigna procuradoria;
b) a quantia relativa a despesas a efectuar pelo A. com tratamentos médico-cirúrgicos e eventuais intervenções cirúrgicas a que tenha de se submeter e que se venham a liquidar em execução de sentença.
Para tanto alega, em síntese, que no dia 22/07/2014, por volta 22 horas, o A. sofreu um acidente pessoal, no qual interveio o canídeo, que o A. julga ser da raça rottweiler, propriedade dos Réus.
Momentos antes do acidente, o A. verificou que o canídeo dos RR. se encontrava no telhado do anexo da sua residência, e no intuito de verificar como o canídeo teria acedido ao telhado do anexo e de forma a afugentá-lo, o A. subiu ao referido telhado e começou a emitir sons para afugentar o animal.
O cão afastou-se do telhado, por breves instantes, tendo o A., nessa mesma altura, solicitado ao seu filho, que se encontrava no local, para se deslocar à residência dos RR. para informá-los da situação e para que estes tomassem as devidas providências para prender o canídeo.
No momento em que o A. se encontrava no telhado do anexo da sua residência, o cão surgiu súbita e repentinamente por entre os arbustos, subindo novamente ao telhado, ladrando de forma extremamente agressiva e ferozmente atirou-se ao A., com o intuito de o morder.
Para evitar ser mordido pelo cão, o A. saltou do telhado para o solo, tendo caído de forma desamparada e com a queda fracturou o pé direito.
Mais alega que o telhado do anexo da sua residência encontra-se a cerca de 3 metros de altura do solo, enquanto do lado da residência dos RR. encontra-se a 1 metro de altura.
A GNR de Guimarães tomou conta da ocorrência, e após recolhido o depoimento do A., deslocou-se à residência dos RR., tendo o R. marido afirmado não se ter apercebido da situação em causa e admitido que era frequente o seu cão saltar a vedação da sua residência e permanecer no telhado do anexo da residência do Autor.
Os RR., enquanto proprietários do canídeo, não o vigiaram por forma a evitarem que o mesmo se deslocasse para a propriedade do A. e aí o atacasse. Se os RR. tivessem o cão preso, certamente que este acidente não teria sucedido, sendo os únicos responsáveis pelo sucedido ao Autor.
Refere, ainda, que em consequência de tal acontecimento provocado por cão pertencente aos RR., sofreu os danos patrimoniais e não patrimoniais que descrimina na petição inicial e cujo ressarcimento peticiona naquele articulado.

Os RR. contestaram, impugnando a quase totalidade da matéria de facto alegada pelo Autor.
Deduziram o incidente de intervenção principal provocada da X – Companhia de Seguros, S.A., alegando para o efeito que dispunham, à data do alegado acontecimento, de seguro de responsabilidade civil por danos causados no edifício e recheio, abrangendo a responsabilidade civil familiar, na qual se incluem os danos provocados por animais domésticos de que sejam proprietários ou detentores temporários.
Concluem, pugnando pela improcedência da acção e pedindo a condenação do A. como litigante de má-fé, em multa e em indemnização condigna a favor dos RR., por ter deduzido pretensão sabendo-a infundada e suportada em factos falsos.

O Autor apresentou resposta, na qual impugnou a matéria de facto alegada e os documentos juntos pelos RR. e deduziu requerimento probatório complementar.

Por despacho proferido em 5/12/2017 (refª. 155878844), foi admitida a intervenção principal provocada da X – Companhia de Seguros, S.A.

A Chamada X – Companhia de Seguros, S.A. apresentou contestação, defendendo-se por excepção, alegando que:

- carece de legitimidade para ser demandada na presente acção, porquanto o contrato de seguro que celebrou com os RR. não prevê a possibilidade de o lesado demandar directamente o segurador e a Chamada não desenvolveu negociações com o Autor;
- o contrato de seguro celebrado prevê, nas suas Condições Particulares, uma franquia de € 145,00 por sinistro.
Defendeu-se, também, por impugnação, negando que os RR. sejam proprietários de qualquer canídeo e muito menos um de raça rottweiler ou parecida, pelo que a responsabilidade do sinistro dos autos não se encontra transferida para a ora Chamada, alegando desconhecer os demais factos que servem de fundamento ao pedido.
Referiu, ainda, que o alegado sinistro ficou a dever-se a culpa exclusiva do A., de acordo com a própria versão, dado que um bom pai de família, colocado nas circunstâncias do caso concreto, teria adoptado um outro comportamento e jamais teria subido a um telhado para afugentar um cão de raça perigosa, nem teria depois saltado para o chão.
Termina, pugnando pela procedência da excepção dilatória de ilegitimidade processual passiva, absolvendo-se a Chamada da instância; ou caso assim não se entenda, a improcedência da acção e a sua absolvição do pedido.

Veio o Centro Distrital de ... do Instituto da Segurança Social, I.P. deduzir pedido de reembolso, no valor de € 29.392,46, a título de subsídio de doença pago ao Autor no período de 21/07/2014 a 1/12/2016.

Os RR. J. F. e mulher M. F. impugnaram o pedido de reembolso formulado pelo Instituto da Segurança Social, dando por reproduzido o alegado na sua contestação e pugnando pela sua absolvição daquele pedido.

Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador, no qual se procedeu ao saneamento da acção, verificando-se a validade e regularidade da instância, foi julgada improcedente a excepção dilatória da ilegitimidade passiva da Interveniente X, definiu-se o objecto do litígio, fixaram-se os factos assentes e enunciaram-se os temas de prova, que não sofreram reclamações.

Procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento, com observância do legal formalismo.
Após, foi proferida sentença nos seguintes termos:
Em face do exposto:
A. Julgo improcedente os pedidos formulados pelo Autor e pelo Centro Distrital de ... do Instituto da Segurança Social, I.P., dos quais absolvo os Réus e a Interveniente.
B. Julgo improcedente o pedido de condenação como litigante de má-fé formulado pelos Réus, do mesmo absolvendo o Autor.

Inconformado com tal decisão, o Autor dela interpôs recurso, extraindo das respectivas alegações as seguintes conclusões [transcrição]:

I. O Recorrente intentou os presentes autos requerendo a condenação dos Recorridos no pagamento áquele da quantia global de 120.717,33€, sendo a quantia de 93.038,35 euros peticionada a titulo de danos patrimoniais e a quantia de 27.678,98 euros a titulo de danos não patrimoniais por via do alegado acidente, acrescida de juros de mora, desde a data da citação até efectivo e integral pagamento e bem assim a condenação dos Recorridos a pagar ao Recorrente a quantia relativa a despesas a efectuar por este com tratamentos médico-cirúrgicos e eventuais intervenções cirúrgicas a que tenha de se submeter e que se venham a liquidar em execução de sentença.
II. O Tribunal a quo decidiu no sentido de julgar totalmente improcedente a acção intentada pelos Recorrente, por, em suma, ter entendido que no caso concreto, não se terá verificado o nexo de causalidade entre o facto e o dano, imputando as lesões sofridas pelo Recorrente por via da ocorrência do sinistro, não á acção do canídeo, propriedade dos Recorridos, mas a uma acção imponderada do próprio Recorrente.
III. Não obstante o elevado respeito, consideração e estima pessoal, que temos pelo Digno Magistrado que subscreveu a douta sentença recorrida, com a mesma não podemos concordar, por entendermos que, salvo o devido respeito, nela se fez uma incorrecta apreciação da prova e uma incorrecta aplicação do direito.
IV. O cerne do presente recurso será, desta forma, apurar o real motivo pelo qual o Recorrente foi forçado a saltar do seu anexo para o solo: - Se para evitar ser mordido pelo cão que surgiu no local, súbita e repentinamente, ladrando ferozmente em sua direcção OU se o mesmo decidiu atirar-se, para ir em auxilio do seu filho porque o terá ouvido a gritar devido a estar na eminencia de ser atacado por um cão (tal como entendido, salvo o devido respeito por opinião diversa, erradamente, pelo Tribunal a quo)?
V. Venerandos Desembargadores, da prova carreada nos autos pelo Recorrente parece-nos que não poderá haver dúvidas de que a veracidade dos factos é a exarada na petição inicial, contudo tal não foi o entendimento do Tribunal a quo, por isso, o presente recurso, para que Vossas Excelências do alto da vossa sapiência, reponham a Justiça!!!
VI. O Tribunal a quo deu, erradamente, como provado no ponto 4 da matéria de facto dada como provada que: “4. Quando se encontrava nas imediações da casa dos Réus, o referido cão virou-se e perseguiu o filho do Autor (artigo 16º da contestação).
VII. Atenta a prova carreada para os autos, o Tribunal a quo deveria ter dado tal facto como não provado.
VIII. Resulta, e bem dos pontos 1, 2 e 3 da matéria de facto dada como provada pelo Tribunal a quo que, “no dia 22.07.2014, momentos antes das 22:00 horas, o Autor verificou que um cão pertencente aos Réus se encontrava no telhado do anexo da sua residência e no intuito de verificar como o cão teria acedido ao telhado do anexo e de forma a afugentá-lo, o Autor subiu ao referido telhado com uma escada e o cão afastou-se. Nessa altura, o Autor solicitou ao seu filho, que se encontrava na habitação, que se deslocasse à residência dos Réus para informá-los da situação e para que estes tomassem providências para prender o cão.”
IX. Acatando as ordens do Recorrente, o seu filho deslocou-se então à residência dos Recorridos para informá-los da situação e para que estes tomassem providências para prender o cão, sendo que uma vez na residência dos Recorridos, o mesmo foi surpreendido por cão, contudo esse cão era distinto daquele que permanecia no telhado do anexo do Recorrente, conforme infra se demonstrará, contrariamente ao que resulta provado pelo Tribunal a quo na parte final do ponto 4 da matéria de facto dada erradamente como provada.
X. Tal circunstância resultou provada, inclusive, das declarações de parte do Recorrente (declarações gravadas através do sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, no dia 26-11-2019, entre as 11:26:57 horas e as 11:55:31 horas, por referência à acta de discussão e julgamento do dia 26 de Novembro de 2019), que de forma isenta e credível, esclareceu o Tribunal, como os factos efectivamente ocorreram.
XI. O mesmo foi esclarecedor em afirmar ao Tribunal a quo que o seu filho quando se dirigiu à casa dos Recorridos, a seu pedido, foi surpreendido por um outro cão dos Recorridos, contudo, esse cão era distinto daquele que permaneceu em cima do anexo do Recorrente e que esse cão que se encontrava em cima do anexo do Recorrente lá permaneceu, motivo pelo qual não poderá nunca dar-se como provado que precisamente o mesmo cão que atacava o Recorrente se virou e perseguiu o filho deste, o que demonstra desde já a incorretíssima apreciação da prova carreada nos presentes autos pelo Tribunal a quo.
XII. A este propósito, a testemunha A. M. (filha do Autor), (depoimento gravado através do sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, no dia 26-11-2019, entre as 10:18:12 horas e as 10:47:31 horas, por referência à acta de discussão e julgamento do dia 26 de Novembro de 2019) no depoimento por si prestado, esclareceu o Tribunal a quo que, estando próxima do local do acidente, a mesma conseguiu aperceber-se que o cão que atacou o Recorrente se aproximou do mesmo, o que o levou a dar um grito, sendo que, quando a mesma olhou, o Recorrente já se encontrava no chão. Esclareceu ainda esta testemunha que, quando o seu irmão regressou de ter ido avisar os Recorridos de que o cão dos mesmos tinha acedido ao anexo do Recorrente, o Recorrente já se encontrava no chão.
XIII. Esta testemunha viu o cão a “virar-se” ao Recorrente, ouviu o grito do seu pai, o aqui Recorrente, e apercebeu-se do seu pai no chão, tudo isto numa questão se segundos, pelo que resulta das regras de experiência comum, que é de todo impossível, que o cão que pretendia morder o Recorrente tenha perseguido o seu filho, pois esse cão naquele exacto momento encontrava-se em cima do telhado do anexo a atacar o Recorrente.
XIV. Ainda sobre estes factos, a testemunha P. J. (filho do Autor) (depoimento gravado através do sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, no dia 26-11-2019, entre as 12:11:44 horas e as 1235:46 horas, por referência à acta de discussão e julgamento do dia 26 de Novembro de 2019) referiu que conseguiu identificar o cão que se encontrava em cima do anexo do Recorrente, contudo o mesmo já não se pode dizer em relação ao cão que correu em sua direcção, uma vez que ficou apavorado com a situação, pelo que, e em face do exposto, também do depoimento desta testemunha não se pode retirar, nem concluir, se o cão que a si se dirigiu seria o mesmo, ou não, que aquele que atacou o Recorrente.
XV. Por fim, com relevância para os autos evidenciou-se o depoimento da testemunha M. C., militar da GNR – Posto de Guimarães (depoimento gravado através do sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, no dia 26-11-2019, entre as 11:56:11 horas e as 12:11:08 horas, por referência à acta de discussão e julgamento do dia 26 de Novembro de 2019), Agente que elaborou o auto de ocorrência/de notícia, e que esclareceu ao Tribunal a possibilidade de existirem algumas discrepâncias no auto por si lavrado, nomeadamente, quando do seu teor refere, por um lado que: “(…) foi-nos comunicado via radio pelo atendimento deste para nos dirigirmos a Rua … – Guimarães, em virtude de nessa residência o proprietário, o Sr. C. M., ter supostamente sido atacado pelos cães do seu vizinho, o Sr. J. F. mas, e por outro lado que “(…) Questionado sobre o sucedido, o mesmo informou de que os cães do seu vizinho se encontravam em cima do telhado de anexo da sua residência e no intuito de enxotá-los, os mesmos viraram-se ao seu filho e ao querer protege-lo atirou-se abaixo do telhado, de cerca 2,50m de altura, tendo caído mal e fracturado a perna direita”, na medida em que os factos em causa não foram presenciados pelo próprio e bem assim os mesmos ocorrido por volta das 22h, quando o auto foi elaborado apenas por volta das 6:04h.
XVI. Acresce ainda que consta do teor do referido auto que o próprio Recorrido admitiu, junto das respectivas autoridades, que iria responsabilizar-se pelos danos que o seu cão provocou ao Recorrente, tendo dito aos senhores Agentes da GNR que iria falar com o Recorrente e resolver as coisas da melhor maneira.
XVII. A prova carreada para os autos só permite chegar a uma conclusão: o filho do Recorrente foi perseguido por cão distinto daquele que atacou o Recorrente e que consequentemente provocou a sua queda e lesões, pelo que o facto constante do ponto 4 da matéria de facto dada como provada na sentença do Tribunal a quo deveria ter sido dado como não provado.
XVIII. O Tribunal a quo deu erradamente como provado no ponto 5 dos factos dados como provados na sentença recorrida que: “5. Com o intuito de ir proteger o seu filho, o Autor saltou do telhado para o solo do seu prédio, fracturando o calcâneo direito (artigos 7º, 9º e 25º da p.i. e 16º da contestação).”
XIX. Atenta a prova carreada para os autos, o Tribunal a quo não poderia ter dado esta facto como provado nos termos em que o fez.
XX. Por uma questão de economia processual dá-se aqui por integralmente reproduzido o supra referido a propósito do ponto 4 da matéria de facto dada como provada pelo Tribunal a quo.
XXI. Como supra se referiu, apenas uma pessoa sabe perfeitamente como os factos ocorreram e essa pessoa é o aqui Recorrente. Por sua vez, o auto junto aos autos, o qual segundo o próprio Agente que o elaborou, poderá ter sido lavrado com algumas discrepâncias, não pode de todo, ser considerado como prova plena, na medida em que o seu teor não foi presenciado pelos próprios Agentes de Autoridade, que se limitaram a transcrever, como entenderam, as informações que lhes foram sendo eventualmente prestadas.
XXII. Nesse sentido, o Recorrente, através das suas declarações de parte (declarações gravadas através do sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, no dia 26-11-2019, entre as 11:26:57 horas e as 11:55:31 horas, por referência à acta de discussão e julgamento do dia 26 de Novembro de 2019) explicou ao Tribunal a quo qual o motivo que o fez saltar do telhado do seu anexo, afirmando perentoriamente que saltou, não para ir em auxilio do seu filho, mas para evitar ser mordido pelo cão dos Recorridos que, entretanto, de forma súbita e inesperada havia surgido no local onde se encontrava e ladrando ferozmente se dirigia áquele com o intuito de o morder.
XXIII. O Recorrente esclareceu, ainda, que entre a sua casa e a casa do seu vizinho distam cerca de 70 metros, o que o impossibilita de saber o que é que se passa na casa do vizinho, motivo pelo qual nunca poderia o Recorrente ter saltado do telhado do anexo para proteger o seu filho.
XXIV. Desta forma, tendo em conta que apenas o Recorrente vivenciou os factos e dado que o auto em apreço nos autos e a sua valoração enquanto prova teria que ser efectuada em conjugação com a restante prova junta aos autos, o Tribunal a quo, quanto a este facto ia ter dado como provado o seguinte: Quando o Autor se encontrava no telhado, o cão subiu novamente ao telhado, ladrando de forma extremamente agressiva e ferozmente atirou-se ao A., com o intuito de o morder, e perante a perigosidade da situação e para evitar ser mordido pelo canídeo, o A. não teve outra opção senão saltar do telhado para o solo fracturando o calcâneo direito.
XXV. O Tribunal a quo deu, erradamente, como provado no ponto 11 dos factos dados como provados o seguinte: “11. À data do acontecimento descrito nos anteriores factos provados, os Réus eram donos de dois cães - um pastor alemão e um cão rafeiro de médio porte – que viviam na sua residência e eram tratados e alimentados pelos Réus (artigos 93º e 95º da p.i. e 48º da contestação dos Réus).”
XXVI. Atenta a prova carreada para os autos, o Tribunal a quo, deveria ter dado como provado que os Réus eram donos de três cães e não de dois.
XXVII. A este propósito, a Recorrida M. F., aquando do seu depoimento de parte (depoimento gravado através do sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, no dia 26-11-2019, entre as 10:48:28 horas e as 11:09:06 horas, por referência à acta de discussão e julgamento do dia 26 de Novembro de 2019) confessou que, á data dos factos, eram proprietários de três cães,
XXVIII. Facto igualmente confirmado pelo seu filho, a testemunha J. C., filho dos Recorridos (depoimento gravado através do sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, no dia 26-11-2019, entre as 14:39:30 horas e as 14:53:55 horas, por referência à acta de discussão e julgamento do dia 26 de Novembro de 2019).
XXIX. Atentas as declarações de parte da Recorrida mulher e o depoimento da testemunha J. C., deveria ter resultado como provado no ponto 11 da matéria de facto dada como provada pelo Tribunal a quo o seguinte: À data do acontecimento descrito nos anteriores factos provados, os Réus eram donos de três cães que viviam na sua residência e eram tratados e alimentados pelos Réus.
XXX. No que concerne á matéria de facto dada como não provada o Tribunal a quo, atenta a prova carreada nos autos deu erradamente como não provados os factos constantes dos pontos 2, 3, 8, 9, 10, 11, 12, 14, 16, 17, 18, 19 e 20 dos factos dados como não provados na douta sentença do Tribunal a quo.
XXXI. O Tribunal a quo no que concerne aos pontos 2 e 3 dos factos dados como não provados na sentença, deu como não provado que: “2. No momento em que o Autor se encontrava no telhado do anexo da sua residência, o cão surgiu súbita e repentinamente por entre os arbustos, subindo novamente ao telhado, ladrando de forma agressiva e, ferozmente, atirou-se ao Autor com o intuito de o morder (artigo 6º da p.i.).” “3. O Autor saltou do telhado para o solo para evitar ser mordido pelo cão (artigo 7º da p.i.).”
XXXII. Por uma questão de economia processual dá-se aqui por integralmente reproduzido o supra aludido a propósito dos pontos 4 e 5 da matéria de facto dada como provada pelo Tribunal a quo.
XXXIII. O Tribunal a quo incorretamente faz-se valer, quase exclusivamente, de um auto (que apresenta discrepâncias, discrepâncias essas admitidas pelo seu Autor – testemunha M. C. (militar da GNR – Posto de Guimarães)) para dar como não provados tais factos, ignorando inexplicavelmente a demais prova carreada nos autos, nomeadamente, o depoimento da própria testemunha que elaborou o referido auto – testemunha M. C. e as declarações de parte do Recorrente, que com o devido respeito é a única pessoa que sabe quais as suas motivações para ter saltado para o solo.
XXXIV. A circunstância de um auto de notícia relatar determinado facto, não implica necessariamente a veracidade do mesmo, na medida em que os factos nele descritos não foram presenciados pelo agente que o elaborou.
XXXV. Tendo em conta, a prova carreada para os autos, nomeadamente as declarações do próprio Recorrente que é a única pessoa com conhecimento directo e pessoal dos factos, o Tribunal a quo deveria ter dado como provados, os factos constantes dos pontos 2 e 3 da matéria de facto dada como não provada.
XXXVI. O Tribunal a quo deu, erradamente, como não provado no ponto 8 dos factos dados como não provados o seguinte: “8. Os tratamentos do Autor ainda estão por acabar (artigo 36º da p.i.).”
XXXVII. Da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento resulta precisamente o contrário do que o Tribunal a quo erradamente deu como não provado.
XXXVIII. A este propósito, a testemunha A. M. (depoimento gravado através do sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, no dia 26-11-2019, entre as 10:18:12 horas e as 10:47:31 horas, por referência à acta de discussão e julgamento do dia 26 de Novembro de 2019), filha do Recorrente, esclareceu que os tratamentos do pai ainda não terminaram, havendo a forte possibilidade de ocorrerem recaídas ou agravamento da situação clinica do Recorrente.
XXXIX. Este depoimento, conjugado com a prova documental, nomeadamente, o “Relatório pericial datado de 16 de Agosto de 2019 o qual atesta que o Recorrente tem um dano estético fixável no grau 2 prova que o Recorrente certamente que terá de ser intervencionado cirurgicamente por forma a rebater o dano estética, significando isto portanto que o mesmo ainda terá de ser submetido a tratamentos.
XL. Além de tais elementos probatórios, resulta ainda do “Relatório documental – Informação – (colhida a 7.12.2018)”, elaborado em 16 de Agosto de 2019, junto aos autos a fls. …, que o Recorrente padece de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em 7 pontos, sendo de admitir a existência de dano futuro.
XLI. Atenta a prova testemunhal e bem assim a prova documental carreada para os autos, o Tribunal a quo deveria ter dado como provado o facto melhor descrito no ponto 8 da matéria de facto dada como não provado.
XLII. O Tribunal a quo deu, erradamente, como não provado nos pontos 9 e 10 dos factos dados como não provados o seguinte: “9. O Autor sofre fortes e constantes dores o membro inferior direito, pelas sequelas do acidente em causa, o que o obriga a recorrer constantemente a serviços médicos, a fim de ser submetido a tratamentos e medicação analgésica e anti-inflamatória para o efeito (artigos 37º, 38º, 43º e 44º da p.i.).” “10. O A. prossegue à data de hoje com os tratamentos de fisioterapia, para recuperação das lesões causadas em virtude do acidente (artigo 40º da p.i.).”
XLIII. Atenta a prova carreada para os autos, tais factos deveriam ter sido dados como provados.
XLIV. A testemunha A. M., quando inquirida sobre os mesmos esclareceu a forma como o acidente em causa afectou a saúde do seu pai, aqui Recorrente, passando a sentir fortes dores e a não conseguir aguentar estar muito tempo em pé, o que afecta inclusive, a sua capacidade laboral, factos igualmente confirmados pela testemunha P. J. (filho do Autor) e pelo próprio Recorrente em sede de declarações de parte por si prestadas.
XLV. Em síntese, resulta quer do depoimento das testemunhas A. M. e P. J. e das declarações de parte do próprio Recorrente que o mesmo tem sentido fortes dores, resultantes do acidente a que alude os presentes autos, tendo mesmo sido submetido a tratamentos médicos e tratamentos de fisioterapia para recuperação das lesões causadas em virtude do acidente ocorrido a 22-07-2014.
XLVI. Acresce que, também resulta do “Relatório documental – Informação – (colhida a 7.12.2018)” junto aos autos a fls. …, todo o historial de consultas/ tratamentos, a que o Recorrente teve que se sujeitar após a ocorrência do sinistro por via de continuar a sentir fortes dores no pé.
XLVII. Em face da prova carreada nos autos supra descrita, é evidente que o Recorrente sofre fortes e constantes dores o membro inferior direito, pelas sequelas do acidente em causa, o que o obriga a recorrer constantemente a serviços médicos, a fim de ser submetido a tratamentos e medicação analgésica e anti-inflamatória para o efeito e que o A. prossegue à data de hoje com os tratamentos de fisioterapia, para recuperação das lesões causadas em virtude do acidente, devendo portanto os referidos factos melhor descritos nos pontos 9 e 10 da matéria de facto dada erradamente como não provada, serem dados como provados.
XLVIII. O Tribunal a quo deu, erradamente, como não provado nos pontos 11, 12 e 14 dos factos dados como não provados o seguinte: “11. O Autor não consegue correr e tem dificuldades em locomover-se e (artigos 41º e 42º da p.i.). 12. O Autor terá dificuldades em locomover-se para toda a sua vida (artigo 44º da p.i.).; 14. Devido à lesão de que padece em consequência do sinistro, o Autor não consegue estar em pé por longos períodos de tempo, nem levantar objectos com algum peso (artigo 52º da p.i.).”
XLIX. Atenta a prova carreada para os autos, o Tribunal a quo deveria ter dado como provados tais factos.
L. A este propósito, a testemunha A. M., filha do Recorrente, descreveu ao Tribunal as dificuldades de locomoção passadas a sentir pelo seu pai após o acidente e por causa das sequelas causadas pelo mesmo (depoimento gravado através do sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, no dia 26-11-2019, entre as 10:18:12 horas e as 10:47:31 horas, por referência à acta de discussão e julgamento do dia 26 de Novembro de 2019).
LI. Estas dificuldades de locomoção foram igualmente atestadas pelo relatório pericial (informação colhida em 07/12/2018) elaborado em 16 de Agosto de 2019, onde do seu teor resulta que “(…) em termos de repercussão permanente na actividade profissional são compatíveis com o exercício da actividade habitual, mas implicam esforços suplementares (facto dado como provado no artigo 20 da matéria de facto dada como provada.)
LII. Assim, da prova carreada nos autos resulta claro e evidente a dificuldade na locomoção do Recorrente e as incapacidades que o mesmo padece, tendo as referidas incapacidades sido atestadas pelo relatório pericial, pelo que, atenta tal prova, os pontos 11, 12 e 14 dos factos dados como não provados na sentença do Tribunal a quo deveriam ter sido dados como provados.
LIII. O Tribunal a quo deu, erradamente, como não provado nos pontos 16, 17, 18, 19 e 20 dos factos dados como não provados o seguinte: “16. Devido ao acidente, o Autor tornou-se uma pessoa revoltada, impaciente, brusca e permanentemente exaltada para com a família e pessoas em geral (artigo 73º da p.i.). 17. O Autor sente-se uma pessoa inactiva, impossibilitada de desempenhar a sua profissão e com receio que essa incapacidade afecte gravemente o sucesso do seu negócio (artigo 77º da p.i.). 18. O Autor vê-se agora impedido de incutir a mesma dinâmica nas suas relações comerciais (artigo 78º da p.i.). 19. São constantes os boatos de que os seus clientes se encontram insatisfeitos com esta situação e que ponderam procurar novos fornecedores, uma vez que o A. não consegue cumprir com o atendimento e atenção a que estavam acostumados (artigo 79º da p.i.). 20. Devido às lesões sofridas no acidente, o Autor sente-se derrotado e com a vida destruída, o que lhe provoca depressão, dor, angústia e perda da vontade de viver (artigos 84º e 85º da p.i.).”
LIV. Atenta a prova carreada para os autos, o Tribunal a quo deveria ter dado como provados tais factos.
LV. A respeito de tais factos, depuseram as testemunhas A. M. (depoimento gravado através do sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, no dia 26-11-2019, entre as 10:18:12 horas e as 10:47:31 horas, por referência à acta de discussão e julgamento do dia 26 de Novembro de 2019) e J. R. (depoimento gravado através do sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, no dia 26-11-2019, entre as 14:18:53 horas e as 14:27:25 horas, por referência à acta de discussão e julgamento do dia 26 de Novembro de 2019), as quais, de forma coerente, isenta e credível, esclareceram o Tribunal a quo das repercussões negativas que o acidente em causa teve na vida pessoal e profissional do Recorrente.
LVI. Por seu turno, também o Recorrente, em sede das suas declarações de parte, esclareceu o Tribunal que, após o acidente, “deixou de ser a mesma pessoa”, sentindo-se uma pessoa inactiva, impossibilitada de desempenhar a sua profissão e com receio que essa incapacidade afecte gravemente o sucesso do seu negócio, o que aliás tem vindo a suceder (depoimento gravado através do sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, no dia 26-11-2019, entre as 14:18:53 horas e as 14:27:25 horas, por referência à acta de discussão e julgamento do dia 26 de Novembro de 2019).
LVII. As declarações de parte do Recorrente e o depoimento das testemunhas supra indicadas, provaram em sede de discussão e julgamento a forma como o fatídico acidente ocorrido a 22-07-2014 influenciou e influencia o estado emocional do Recorrente e o impacto que o referido acidente teve na empresa do Recorrente, pelo que, atenta a prova em causa, o Tribunal a quo deveria ter dado como provados os factos constantes pontos 16, 17, 18, 19 e 20 dos factos dados como não provados.
LVIII. Venerandos Desembargadores, atenta a alteração da matéria factual dada, erradamente, como provada e não provada pelo Tribunal a quo, nos termos supra expostos, resta agora apreciar se, no caso concreto, estão verificados os pressupostos da responsabilidade civil consagrada e plasmada no artigo 493º do Código Civil. Entendemos que sim
LIX. Salvo o devido respeito por opinião diversa, o Tribunal a quo, afastou no caso concreto, a verificação do nexo de causalidade entre o facto e o dano, na medida em que “assentou” a sua convicção num pressuposto errado: De que o Recorrente saltou do anexo para ir auxiliar o seu filho, pois receava que o mesmo fosse mordido por um dos cães dos Recorridos!!! Tal nunca foi o motivo pelo qual o Recorrente saltou do anexo onde se encontrava.
LX. A convicção do Tribunal a quo sustentou-se, exclusivamente, no teor de um auto de notícia, cujo próprio Autor confirmou, em sede de depoimento prestado, que poderia estar lavrado com algumas incongruências, o qual não pode ser considerado como um meio de prova plena, na medida em que os factos nele contidos não foram presenciados pelo Agente que o elaborou. Como tal, tal elemento probatório teria que ser analisado de forma complementada e confrontada com a restante prova carreada para os autos, nomeadamente, com as declarações de parte do Recorrente e com os depoimentos das testemunhas A. M. e P. M., únicas pessoas presentes e que presenciaram o sinistro em causa, o que não foi feito pelo Tribunal a quo, pelo que se impõe a alteração dos factos dados como provados e não provados na sentença recorrida nos termos explanados pelo Recorrente, sendo que, não poderão subsistir dúvidas de que o Recorrente saltou do anexo onde se encontrava, por forma a escapar de ser mordido pelo cão dos Recorridos que, súbita e inesperadamente, surgiu por entre os arbustos e se dirigiu ao local onde aquele se encontrava, ladrando ferozmente em direcção áquele.
LXI. Resulta do disposto no artigo 493º, nº 1 do Código Civil que: “Quem tiver em seu poder coisa móvel ou imóvel, com o dever de a vigiar, e bem assim quem tiver assumido o encargo da vigilância de quaisquer animais, responde pelos danos que a coisa ou os animais causarem, salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua.” Neste caso concreto, estamos perante uma situação de culpa presumida, ocorrendo assim a inversão do ónus da prova, pelo que competia aos Recorridos provar que usaram de todas as precauções para que o cão se mantivesse fora da propriedade do Recorrente, impedindo-o de andar á solta nas imediações da propriedade dos vizinhos, prova que não fizeram de todo.
LXII. Resta assim verificar se no caso concreto, se encontram verificados todos os pressupostos da obrigação de indemnizar fundada na responsabilidade civil: facto voluntário do agente; ilicitude da conduta; culpa, dano e nexo de causalidade entre facto e dano. Vide artigo 483º do CC.
LXIII. O acidente em causa consistiu no salto do Recorrente do telhado do anexo da sua casa para o solo do respectivo logradouro, de uma altura superior a 2,50m que lesou o seu direito à integridade física, salto esse, motivado pelo facto do Recorrente se sentir ameaçado pelo cão dos Recorridos que, súbita e inesperadamente surgiu no telhado onde aquele se encontrava e voltando-se para o mesmo, ladrou-lhe ferozmente, dirigindo-se a ele com o intuito de o morder.
LXIV. Esta actuação traduz-se no comportamento que qualquer pessoa, colocada na mesma situação do Recorrente, adoptaria, não se tratando de nenhum nenhum acto imponderado ou intempestivo levado a cabo pelo Recorrente: ele receou pela sua integridade física e como tal para evitar o ataque do canídeo, para fugir áquele, saltou do local onde se encontrava, pois se certamente ficasse no local, seria mordido e atacado pelo referido cão. Vide artigo 487º do C.C..
LXV. O acidente em causa foi provocado única e exclusivamente pelo ataque do cão dos Recorridos ao Recorrente, que andando solto, invadiu a propriedade daquele.
LXVI. Os danos causados resultam do perigo especial que o cão solto representa e manifestaram –se na lesão da integridade física sofrida pelo Recorrente.
LXVII. O facto ilícito consiste, quer na invasão de propriedade do Recorrente como na infração do dever de vigilância do cão por parte dos Recorridos na medida em que sendo seus donos, o deixaram solto de modo a ir para a propriedade do vizinho e provocar o acidente, tal como sucedeu.
LXVIII. É, assim, evidente o nexo causal entre este facto ilícito e os danos sofridos pelo Recorrente, na medida em que os danos sofridos pelo Recorrente foram desta forma causados por culpa exclusiva da eminencia do ataque do cão e nunca devido a nenhum comportamento ou decisão imponderada por parte daquele.
LXIX. Assim sendo e atento o supra exposto, tendo em conta que se encontram devidamente preenchidos os pressupostos legais da responsabilidade civil, teriam os presentes autos que ser julgados totalmente procedentes e em consequência ser os Recorridos parcialmente condenados nos pedidos formulados pelo Recorrente.
LXX. Contudo, ainda que se admitisse o entendimento perfilhado pelo Tribunal a quo de que o salto do Recorrente foi motivado pela “tentativa daquele em ir auxiliar o seu filho”, o que não se admite de todo, também nesta circunstancia se encontravam preenchidos os requisitos legais para a verificação da responsabilidade civil dos Recorridos nos termos do artigo 493º, nº 1 do CPC..
LXXI. Mesmo perante a circunstância factual dada como provada pelo Tribunal a quo, não podemos aceitar a interpretação que o mesmo faz quando “culpabiliza” a conduta do Recorrente para afastar a presunção de culpa dos Recorridos.
LXXII. Para o Tribunal a quo, o facto do Recorrente ter saltado do telhado do anexo por forma a ir auxiliar o seu filho que estava a ser perseguido pelo cão, revelou-se uma atitude imponderada, censurável a um bom pai de família ou homem médio – “bonus pater familias”.
LXXIII. Ainda que se admitisse que o Recorrente saltou do telhado para ir em auxílio do seu filho que estava na eminência de ser atacado pelo cão dos Recorridos, o que não se admite de todo, tal comportamento não podia ser de todo tido como contrário ás regras de experiência comum e bem assim ao comportamento normal de qualquer pai. É óbvio que, qualquer pai, na circunstância do Recorrente, ao aperceber-se que o seu filho ia ser atacado e mordido por um cão, adoptaria a forma mais rápida de chegar ao local e evitar o ataque e essa forma seria com recurso ao salto e nunca com recurso ao uso de escadote, ainda que o mesmo se encontrasse no local, ou então, aguardando que os donos do animal chegassem ao local.
LXXIV. Contrariamente ao entendido e defendido pelo Tribunal a quo, mesmo perante essa circunstância, o comportamento do Recorrente teria sempre que ser entendido como normal e adequado, pelo que os danos sofridos por aquele se deveram exclusivamente á violação do dever de vigilância dos Recorridos no que concerne ao cão do qual são proprietários, sendo essa a causa adequada das lesões sofridas pelo Recorrente.
LXXV. Assim sendo e atento o supra exposto, também nesta circunstancia se encontram verificados os pressupostos da responsabilidade civil nos termos do artigo 493º do CC, existindo um nexo de causalidade entre o facto e os danos, pelo que não tendo os Recorridos como proprietário do animal causador do acidente, ilidido a presunção de culpa estatuída no artigo 493º, nº 1 do C.Civil, porquanto na sua efectiva detenção, assumiram o encargo da vigilância daquele ser, por sua natureza, irracional, devendo assim tomar todas as providências indispensáveis a evitar qualquer possível lesão, o que não fizeram no caso concreto, devendo, como tal, ser parcialmente condenados nos pedidos formulados pelo Recorrente no âmbito da sua acção.
LXXVI. Em consequência do exposto, o Tribunal a quo deveria, atenta a matéria de facto dada como provada pelo Tribunal a quo e a que deveria ter sido dada como provada, condenar os Recorridos no pagamento ao Recorrente de uma indeminização no montante de 49.477,91€ sendo a quantia de 34.477,91€ a título de danos patrimoniais e a quantia de 15.000,00€, a título de danos morais, bem como a pagar ao Recorrente a quantia relativa a despesas a efectuar por este com tratamentos médico-cirúrgicos e eventuais intervenções cirúrgicas a que tenha de se submeter e que se venham a liquidar em execução de sentença.
LXXVII. Atenta a idade de 45 anos do Recorrente, o salário que auferia de 1.251,03€, o seu Défice funcional permanente da integridade físico-psiquica de 7 pontos, o seu tempo provável de vida de 70 anos, a sua progressão na carreira profissional, com reflexos positivos previsíveis no rendimento auferido no início da carreira e aplicando-se sobre o potencial rendimento anual do A. de 1.226,00 euros (que corresponde a 7% do rendimento anual supra referido de 17.514,42 euros) uma taxa de 2%, uma vez que à taxa de juro de 4% deverá ser deduzida 1% à conta da inflação e de outro 1% à conta do crédito da progressão profissional, incluindo os previsíveis ganhos de produtividade, e jogando com uma expectativa de vida de 70 anos, os danos ascendem à quantia de 31.263,00 euros.
LXXVIII. A acrescer a este montante, o Recorrente despendeu a quantia de 2.255,22€ em despesas médicas inerentes ao tratamento da lesão sofrida neste acidente e deixou de auferir a quantia de 959,69€ durante o período de tempo que esteve com incapacidade temporária absoluta para o trabalho.
LXXIX. No que concerne aos danos morais sofridos pelo Recorrente, os mesmos ascendem ao montante de 15.000,00€, atento o quantum doloris de grau 5 numa escala de gravidade de 1 a 7 graus, o dano estético permanente de grau 2 numa escala de gravidade crescente de 1 a 7 pontos (factos dados como provados no ponto 20 da matéria de facto dada como provada) e ainda devido aos factos que o Tribunal deveria ter dado como provados mas erradamente deu como não provados nos pontos 14, 16 a 20 da matéria de facto dada como não provada.
LXXX. A douta sentença recorrida, ao não ter decidido no sentido das precedentes conclusões, violou, além do mais, os artigos 483º, nº 1, 487º, 493º, nº 1, 563º do C.Civil e 413º, 414º, 452º, 466º, 640º e 662º do Cód. Processo Civil.

Termina entendendo que o presente recurso deve merecer provimento, de acordo com as precedentes conclusões, revogando-se a sentença recorrida e, em consequência, ser julgada totalmente procedente a acção intentada pelo Recorrente.

Os RR. J. F. e mulher M. F. e a Interveniente X – Companhia de Seguros, S.A. apresentaram contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso e consequente manutenção da sentença recorrida.

O recurso foi admitido por despacho de 4/09/2020 (refª 169383507).
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, tendo por base as disposições conjugadas dos artºs 608º, nº. 2, 635º, nº. 4 e 639º, nº. 1 todos do Novo Código de Processo Civil (doravante NCPC), aprovado pela Lei nº. 41/2013 de 26/6.

Nos presentes autos, o objecto do recurso interposto pelo Autor, delimitado pelo teor das suas conclusões, circunscreve-se à apreciação das seguintes questões:

I) - Impugnação da decisão sobre a matéria de facto;
II) – Saber se estão verificados os pressupostos da responsabilidade civil consagrada no artº. 493º do Código Civil;
III) - Da indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais.

Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos [transcrição]:

1. No dia 22.07.2014, momentos antes das 22:00 horas, o Autor verificou que um cão pertencente aos Réus se encontrava no telhado do anexo da sua residência (artigos 1º e 2º da p.i.).
2. No intuito de verificar como o cão teria acedido ao telhado do anexo e de forma a afugentá-lo, o Autor subiu ao referido telhado com uma escada e o cão afastou-se (artigos 3º e 4º da p.i.).
3. Nessa altura, o Autor solicitou ao seu filho, que se encontrava na habitação, que se deslocasse à residência dos Réus para informá-los da situação e para que estes tomassem providências para prender o cão (artigo 5º da p.i.).
4. Quando se encontrava nas imediações da casa dos Réus, o referido cão virou-se e perseguiu o filho do Autor (artigo 16º da contestação).
5. Com o intuito de ir proteger o seu filho, o Autor saltou do telhado para o solo do seu prédio, fracturando o calcâneo direito (artigos 7º, 9º e 25º da p.i. e 16º da contestação).
6. O telhado do anexo da residência do Autor encontra-se entre 2,5 a 3 metros de altura do solo, do lado da residência do Autor (artigo 8º da p.i.).
7. O telhado do anexo da residência do Autor encontra-se a 1 metro de altura do solo, do lado da residência dos Réus (artigo 8º da p.i.).
8. A separar as extremas das propriedades de Autora e Réus existe um muro que na propriedade dos Réus é ladeado por um limoeiro de grande porte (artigo 20º da contestação dos Réus).
9. A moradia dos Réus encontra-se vedada com muro, portão e sebes (artigo 40º da contestação dos Réus).
10. O portão da casa dos Réus encontrava-se, na ocasião, fechado (artigo 42º da contestação dos Réus).
11. À data do acontecimento descrito nos anteriores factos provados, os Réus eram donos de dois cães - um pastor alemão e um cão rafeiro de médio porte – que viviam na sua residência e eram tratados e alimentados pelos Réus (artigos 93º e 95º da p.i. e 48º da contestação dos Réus).
12. Devido ao acontecimento relatado nos anteriores factos provados, o Autor teve necessidade de ser assistido no Centro Hospitalar do …, em …, onde foi admitido pelas 23:26 horas, do dia 22 de Julho de 2014, sob o episódio de urgência n.º … (artigos 10º e 26º da p.i.).
13. O Autor apresentava acentuada dor no membro inferior direito, assim como uma limitação total da sua mobilidade (artigo 27º da p.i.).
14. Foi-lhe aplicada imobilização gessada com do membro inferior direito, no dia 22 de Julho de 2014, tendo ficado hospitalizado (artigo 28º da p.i.).
15. O Autor foi submetido a tratamento cirúrgico no membro inferior direito, realizada no mesmo hospital no dia 27 de Julho de 2014 (artigo 29º da p.i.).
16. O Autor foi sujeito a drenagem postural, realizada no mesmo hospital, no dia 11 de Agosto de 2014 (artigo 30º da p.i.).
17. O Autor foi ainda submetido aos seguintes tratamentos: i. artrodese sub-astragalina com colocação de enxerto esponjoso da tíbia, em 27 de Julho de 2015, no Hospital de Santa Maria – Porto; ii. extracção de grampo e colocação de enxerto esponjoso de ilíaco, em 8 de Fevereiro de 2016, na mesma unidade hospitalar (artigo 31º da p.i.).
18. Em cada cirurgia que foi sujeito, o Autor esteve imobilizado com bota engessada (artigo 32º da p.i.).
19. O Autor realizou vários tratamentos de fisioterapia para recuperação de mobilidade, força muscular e alívio da sintomatologia álgica do membro inferior direito (artigo 33º da p.i.).
20. Em consequência das descritas lesões sofridas no acidente, o Autor: a) Sofreu Período de Défice Funcional Temporário Total de 28 dias; b) Sofreu Período de Défice Funcional Temporário Parcial de 820 dias; c) Sofreu Período de Repercussão Temporária na Actividade Profissional Total de 769 dias; d) Sofreu Período de Repercussão Temporária na Actividade Profissional Parcial de 79 dias; e) Sofreu quantum doloris de grau 5 numa escala de gravidade crescente de 1 a 7 graus; f) Padece de Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica de 7 pontos, sendo de admitir a existência de dano futuro, compatíveis com o exercício da actividade profissional habitual, mas implicando esforços acrescidos; g) Padece de Dano estético permanente de grau 2, numa escala de gravidade crescente de 1 a 7 pontos; h) Obteve consolidação médico-legal das lesões em 15.11.2016; i) Apresenta as seguintes sequelas definitivas no membro inferior direito: - coloração acastanhada ao nível do maléolo externo e cicatriz cirúrgica, linear, sem reacção quelóide, com parestesias ao toque, com 7 a 9 cm de comprimento, respectivamente. Sem atrofia muscular. Limitação da mobilidade articular no movimento de inversão (artigos 34º, 46º, 47º, 52º, 53º, 55º e 56º da p.i.).
21. O Autor poderá necessitar de se submeter a novos tratamentos médicos e cirúrgicos para evitar a degeneração do membro inferior direito devido às lesões sofridas no acidente (artigo 67º da p.i.).
22. Em virtude da descrita lesão sofrida, o Autor esteve de baixa médica desde o dia do acidente até ao dia 24 de Agosto de 2016, impedido de realizar normalmente o seu trabalho e as actividades de vida diárias (artigo 34º, 52º e 53º da p.i.).
23. Até ter recebido alta médica, o Autor esteve sujeito a limitações na mobilidade por se encontrar com o membro inferior direito imobilizado e diminuído (artigo 35º da p.i.).
24. O Autor queixa-se de dores esporádicas no calcanhar, relacionadas com o calor, que alivia com recurso a repouso e tratamentos MFR, sem necessidade de medicação (artigos 37º, 38º e 42º a 44º).
25. O Autor tem dificuldades em caminhar por longos períodos ou em conduzir por longos períodos (artigos 37º e 42º da p.i.).
26. Quando do acidente, o Autor exercia a actividade profissional de sócio-gerente da empresa de comércio de mobiliário de banho “MB. – Mobiliário Banho, Sociedade Unipessoal, Ld.ª”, auferindo por mês, a título de retribuição, € 1.251,03 mensais (artigo 49º da p.i.);
27. A actividade que o Autor exerce, exigia e exige que esteja em movimento e muito tempo em pé, uma vez é sua responsabilidade a supervisão da empresa (artigo 50º da p.i.).
28. Durante o período de tempo em que esteve com incapacidade temporária absoluta para o trabalho, o Autor deixou de auferir € 959,69 (artigo 55º da p.i.).
29. O Autor despendeu € 2.255,22 em despesas médicas inerentes ao tratamento da lesão sofrida neste acidente (artigo 64º da p.i.).
30. Antes do acidente, o Autor era pessoa saudável e dinâmica, motivadora e impulsionadora para colaboradores e família (artigos 71º e 75º da p.i.).
31. O Autor enviou aos Réus, em Janeiro de 2015, carta informando-os do sucedido e solicitando a assunção da responsabilidade pela produção do sinistro (artigo 16º da p.i.).
32. O Autor enviou aos Réus carta registada com aviso de recepção, datada de 17 de Outubro de 2016 (artigo 18º da p.i.).
33. Foi celebrado entre os Réus J. F. e mulher, M. F., e o “X Seguros”, do contrato de seguro designado “Seguro .. Casa” titulado pela apólice n.º ……52, sujeita às condições particulares, gerais e especiais, reproduzida a fls. 157 e ss., 159 e ss. e 161 v.º e ss., respectivamente.
34. O Autor nasceu no dia -.01.1969 (cfr. certidão de assento de nascimento junta a fls. 15 v.º dos autos);
35. O Centro Distrital de ... do Instituto da Segurança Social, I.P. pagou ao Autor o montante de € 29.392,46, a título de subsídio de doença referente ao período de 21.07.2014 a 01.12.2016 (cfr. certidão junta a fls. 179 v.º dos autos).

Por outro lado, na sentença recorrida, foram considerados não provados os seguintes factos [transcrição]:

1. O cão identificado nos factos provados números 1 e 2 é de raça rottweiler (artigos 1º e 92º da p.i.).
2. No momento em que o Autor se encontrava no telhado do anexo da sua residência, o cão surgiu súbita e repentinamente por entre os arbustos, subindo novamente ao telhado, ladrando de forma agressiva e, ferozmente, atirou-se ao Autor com o intuito de o morder (artigo 6º da p.i.).
3. O Autor saltou do telhado para o solo para evitar ser mordido pelo cão (artigo 7º da p.i.).
4. O limoeiro referido no facto provado número 8 é completamente compacto (artigo 20º da contestação dos Réus).
5. É fisicamente impossível que os cães dos Réus consigam transpor a barreira constituída pelo descrito limoeiro (artigo 20º da p.i.).
6. O espaço envolvente da casa dos Réus encontrava-se vedado de forma a impossibilitar a passagem de qualquer um dos animais para o telhado do anexo do Autor (artigo 43º da p.i.).
7. Os cães dos Réus estavam, na ocasião descrita nos factos provados números 1 a 5, todos presos e confinados à residência destes (artigo 44º da p.i.).
8. Os tratamentos do Autor ainda estão por acabar (artigo 36º da p.i.).
9. O Autor sofre fortes e constantes dores o membro inferior direito, pelas sequelas do acidente em causa, o que o obriga a recorrer constantemente a serviços médicos, a fim de ser submetido a tratamentos e medicação analgésica e anti-inflamatória para o efeito (artigos 37º, 38º, 43º e 44º da p.i.).
10. O A. prossegue à data de hoje com os tratamentos de fisioterapia, para recuperação das lesões causadas em virtude do acidente (artigo 40º da p.i.).
11. O Autor não consegue correr e tem dificuldades em locomover-se e (artigos 41º e 42º da p.i.).
12. O Autor terá dificuldades em locomover-se para toda a sua vida (artigo 44º da p.i.).
13. O Autor, por via das referidas lesões: sofre de uma incapacidade permanente geral de 20 pontos e de uma incapacidade permanente parcial de 17,80 pontos; e encontra-se impossibilitado de exercer a sua actividade profissional (artigos 47º e 56º da p.i.).
14. Devido à lesão de que padece em consequência do sinistro, o Autor não consegue estar em pé por longos períodos de tempo, nem levantar objectos com algum peso (artigo 52º da p.i.).
15. Na queda e durante a hospitalização subsequente, o Autor deteriorou uns sapatos, um par de calças, uma t-shirt e o seu telemóvel, tudo no valor de € 500,00 (artigo 65º da p.i.).
16. Devido ao acidente, o Autor tornou-se uma pessoa revoltada, impaciente, brusca e permanentemente exaltada para com a família e pessoas em geral (artigo 73º da p.i.).
17. O Autor sente-se uma pessoa inactiva, impossibilitada de desempenhar a sua profissão e com receio que essa incapacidade afecte gravemente o sucesso do seu negócio (artigo 77º da p.i.).
18. O Autor vê-se agora impedido de incutir a mesma dinâmica nas suas relações comerciais (artigo 78º da p.i.).
19. São constantes os boatos de que os seus clientes se encontram insatisfeitos com esta situação e que ponderam procurar novos fornecedores, uma vez que o A. não consegue cumprir com o atendimento e atenção a que estavam acostumados (artigo 79º da p.i.).
20. Devido às lesões sofridas no acidente, o Autor sente-se derrotado e com a vida destruída, o que lhe provoca depressão, dor, angústia e perda da vontade de viver (artigos 84º e 85º da p.i.).
*
Apreciando e decidindo.

I) – Impugnação da decisão sobre a matéria de facto:

Vem o A., ora recorrente, impugnar a decisão sobre a matéria de facto, pretendendo que:
a) - o ponto 4 dos factos provados seja dado como não provado;
b) - seja alterada a redacção dos pontos 5 e 11 dos factos provados, passando a ser a seguinte:
5. Quando o Autor se encontrava no telhado, o cão subiu novamente ao telhado, ladrando de forma extremamente agressiva e ferozmente atirou-se ao A., com o intuito de o morder, e perante a perigosidade da situação e para evitar ser mordido pelo canídeo, o A. não teve outra opção senão saltar do telhado para o solo fracturando o calcâneo direito;
11. À data do acontecimento descrito nos anteriores factos provados, os Réus eram donos de três cães que viviam na sua residência e eram tratados e alimentados pelos Réus;
c) - os pontos 2, 3, 8 a 12, 14 e 16 a 20 dos factos não provados sejam considerados provados;
por entender que o Tribunal “a quo” fez uma incorrecta apreciação da prova produzida nos autos, designadamente do depoimento/declarações de parte do A. C. M., do depoimento de parte da Ré M. F. e dos depoimentos das testemunhas A. M., P. J., M. C., J. R. e J. C., bem como dos documentos juntos aos autos, designadamente do auto de ocorrência de fls. 10vº e 11 e do relatório pericial de avaliação do dano corporal à pessoa do Autor elaborado em 16/08/2019 e junto a fls. 293 a 296vº dos autos.

Ora, na “motivação de facto” que integra a sentença recorrida, escreveu-se o seguinte [transcrição]:
I.
As matérias dos factos provados números 33 a 35 resultam do teor dos documentos que neles estão expressamente indicados ou do acordo resultante da não impugnação ou aceitação expressa nos articulados juntos pelas partes da acção.
II.
Quanto à sucessão de acontecimentos que constituiu o acidente em apreço nos presentes autos (factos provados números 1 a 5 e 10 e não provados números 2, 3 e 7) a prova resultou da conjugação das declarações de parte do Autor com os testemunhos de A. M. (filha do Autor), de P. J. (filho do Autor) e de M. C. (militar da GNR, no Posto de Guimarães há 8 anos), bem como, com o auto de notícia por este elaborado junto a fls. 10 v.º e ss. dos autos.
O Autor veio sustentar em juízo a tese de que a sua queda se deu na sequência de investida realizada pelo cão dos Réus que, quando o Autor estava em cima do telhado a mexer nos ramos do limoeiro para ver como é que o animal subia, saltou subitamente do prédio dos Réus pelo meio dos ramos do limoeiro para cima do telhado do anexo e atirou-se ao Autor, provocando o desequilíbrio e a queda deste no chão. A tese do Autor afasta-se, assim, da versão que transmitiu ao agente da GNR que tomou conta da ocorrência na noite do acontecimento, a quem disse que “…os cães do seu vizinho se encontravam em cima do telhado de anexo da sua residência, e no intuito de enxotá-los, os mesmos viraram-se ao seu filho e ao querer protegê-lo atirou -se abaixo do telhado, de cerca de 2,50 m de altura, tendo caído mal…” (cfr. auto de notícia junto a fls. 10 v.º e ss. e testemunho de M. C., militar da GNR que o elaborou).
Mais nenhuma das testemunhas ou outros elementos de prova existentes nos autos confirmaram as declarações de parte prestadas pelo Autor em julgamento.
A. M., não viu o que é que motivou o salto do Autor do telhado do anexo para o chão do logradouro (disse que viu o pai em pé, em cima do telhado, a fazer sons e gestos para afastar um cão que ladrava, e que depois já só voltou a vê-lo caído no chão, não tendo assistido à queda).
P. J., foi alertar os Réus a casa deles, a pedido do pai. Quando chegou a casa, deparou-se com o pai no chão, já magoado.
Portanto, a versão apresentada pelo Autor em julgamento não mereceu a convicção favorável do tribunal porque, para além de contraditória com o relato feito pelo Autor na noite do evento ao agente M. C., não resulta confirmada por qualquer outro meio de prova.
Já a narrativa que consta do auto de notícia da GNR, pelo contrário, encontrou em julgamento várias referências probatórias que a credibilizaram, determinando o seu parcial acolhimento nos factos provados.
Desde logo, o militar M. C. disse em julgamento que nessa noite falou não só com os Réus junto à casa deles, como também com o Autor na sala de ortopedia do hospital, e que este lhe contou o sucedido nos precisos termos que exarou no auto de ocorrência (lavrado às 6 da manhã do dia imediatamente seguinte).
Depois, P. J. contou que quando tocou ao sino da campainha da casa dos Réus, viu o cão que tinha estado em cima da garagem, a ladrar junto à entrada. Afastou-se e apercebeu-se, então, que o cão saltara para a rua e estava perto de si a correr e a ladrar, o que o levou a fugir e a esconder-se numa casa de outro vizinho que há ali à beira, devido ao grande receio que sempre teve de cães.
A descrição de P. J. compatibiliza-se com a causa apontada pelo próprio Autor ao militar da GNR na noite do acidente e ainda com as declarações de parte do Réu que disse ter-se deslocado nessa mesma noite ao hospital para ver o Autor e que estava lá o filho deste que lhe explicou o que tinha sucedido: o pai subiu ao telhado porque os cães estavam a incomodar e, enquanto ali estava, o filho que tinha ido a casa dos Réus, assustou-se com os cães, correu e o pai, ao aperceber-se, saltou os degraus do escadote ao descer do telhado e estalou o calcanhar.
Aliás, o próprio Autor, negando embora que tenha sido esta a causa da sua queda, confirmou em declarações de parte que quando aconteceu o acidente o filho tinha ido à casa dos Réus e que se apercebeu de o filho ter começado a fugir aos berros, assustado por um cão dos Réus que foi ao seu encontro depois de ter tocado ao sino da porta.
III.
As características do local, constantes dos factos provados números 6 a 9 resultaram confirmadas, sem controvérsia, pela generalidade das declarações / depoimentos de parte e testemunhos.
Os Réus também admitiram, nos seus depoimentos/declarações de parte, que lhes pertenciam os dois cães de porte médio que na ocasião se encontravam à solta no logradouro da residência (factos provados números 1 e 11 e não provados números 1 e 7). Esclareceram ainda, com o conforto de vários testemunhos (entre os quais dos filhos do Autor), que os dois cães eram um pastor alemão e um rafeiro de cor acastanhada.
Foram eficazmente contrariados pelas testemunhas arroladas pelo Autor, entre as quais se encontra J. R. (contratado pelo Autor para fazer serviços de limpeza do telhado da casa deste) que disse ter visto várias vezes o cão de médio porte, acastanhado, a passar do prédio dos Réus, através dos limoeiros para cima do telhado do anexo e que qualquer animal, até mesmo uma pessoa, passava entre os limoeiros, os factos alegados nos artigos 20º e 43º da p.i (factos não provados números 4 a 6).
IV.
Para prova das lesões sofridas pelo Autor no acidente e da assistência que lhes foi prestada (factos provados números 12 a 19), foram tidos em conta os elementos clínicos juntos como documentos números 2 e 10 a 13 juntos com a p.i.) e, a pedido do tribunal, de fls. 208 a 231 e 232 a 255 e, complementarmente, o relatório da perícia de medicina legal para avaliação do dano corporal sofrido pelo Autor, elaborado pelo GML e junto a fls. 293 e ss..
V.
Os factos provados números 20, 21, 24 e 25 e não provados números 8 a 14 resultam, preponderantemente, do relatório da perícia médica realizada pelo GML no âmbito dos presentes autos.
Também os factos provados números 22, 23 e 28 também resultam do aludido relatório pericial, complementado pelos testemunhos de A. M. e de P. J., e pelas declarações de parte do Autor.
A mesma prova está na origem do teor dos factos provado número 30 e não provados números 16 a 20, referentes ao estado psicológico, emocional e anímico induzido pelo acidente ao Autor.
VI.
A actividade profissional exercida pelo Autor na ocasião e rendimentos auferidos (factos provados números 26 e 27), resulta do teor do documento número 5 junto com a p.i. (recibos de vencimento), das declarações do próprio e dos relatos das testemunhas que arrolou.
VII.
O facto provado número 29 – despesas suportadas pelo Autor com o tratamento da lesão sofrida – decorre do conteúdo do documento número 9 junto com a p.i. – fls. 29 a 78 dos autos – constituído por facturas e recibos de pagamentos de serviços médicos.
Não foi produzida prova relevante da matéria constante do facto não provado número 15.

O artº. 640º do NCPC estabelece os ónus que impendem sobre o recorrente que impugna a decisão relativa à matéria de facto, sendo a cominação para a inobservância do que aí se impõe a rejeição do recurso quanto à parte afectada.
Por força deste dispositivo legal, deverá o recorrente enunciar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados (alínea a) do nº. 1), requisito essencial já que delimita o poder de cognição do Tribunal “ad quem”, se a decisão incluir factos de que se não possa conhecer oficiosamente e se estiverem em causa direitos livremente disponíveis. Deve ainda o recorrente indicar os meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida (alínea b) do nº. 1), assim como apresentar o seu projecto de decisão, ou seja, expor de forma clara a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (alínea c) do nº. 1).
Decorre do que atrás se deixou dito que, no caso em apreço, o recorrente cumpriu os ónus que aquele dispositivo legal impõe, quer os enunciados nas três alíneas do nº. 1, quer o da alínea a) do nº. 2, tendo inclusive procedido à transcrição de alguns excertos do depoimento/declarações de parte do A. C. M., do depoimento de parte da Ré M. F. e dos depoimentos das testemunhas A. M., P. J., M. C., J. R. e J. C., por ele mencionadas para fundamentar a sua pretensão, e estando gravados, no caso concreto, os depoimentos prestados em audiência de julgamento, bem como constando do processo toda a prova pericial e documental tida em atenção pelo Tribunal “a quo” na formação da sua convicção, nada obsta à reapreciação da decisão da matéria de facto relativamente aos factos provados e não provados colocados em crise no presente recurso.
Com efeito, após ouvida a gravação da prova produzida em audiência de julgamento – com destaque para o depoimento/declarações de parte do A. C. M., o depoimento de parte da Ré M. F. e os depoimentos das testemunhas A. M., P. J. (ambos filhos do Autor), M. C. (militar da GNR que tomou conta da ocorrência e elaborou o auto de fls. 10vº e 11 ), J. R. (serralheiro civil que presta serviços ao A. quando contratado) e J. C. (filho dos RR.), todos eles mencionados nas alegações de recurso, relativamente aos factos provados e não provados acima referidos e colocados em crise pelo recorrente - e sopesando-a com a restante prova existente no processo, designadamente com os depoimentos do R. J. F. e das demais testemunhas inquiridas, o auto de ocorrência de fls. 10vº e 11 e o relatório da perícia médico-legal realizada ao A. junto a fls. 293 a 296vº, e ainda com as regras da experiência comum, concluímos ser de atender parcialmente à pretensão do A./recorrente, no sentido de ser alterada a redacção do ponto 11 dos factos provados nos termos pretendidos pelo recorrente (vide conclusão XXIX do recurso), não assistindo razão ao recorrente, salvo o devido respeito, quanto à restante matéria de facto que pretende ver alterada – ou seja, redacção do ponto 5 dos factos provados, o ponto 4 dos factos provados seja dado como não provado e os pontos 2, 3, 8 a 12, 14 e 16 a 20 dos factos não provados sejam considerados provados – relativamente à qual constatamos que o Tribunal “a quo” fez uma correcta apreciação e análise crítica de todos os elementos de prova constantes do processo, tal como consta clara e detalhadamente explanado na “motivação de facto” da sentença recorrida que acima transcrevemos, havendo, apenas, que introduzir uma alteração na redacção do ponto 4 dos factos provados, por forma a que a mesma seja rigorosamente mais consentânea com a prova produzida nos autos.
Vejamos então.
No que se refere aos factos que o recorrente pretende colocar em crise, importa ter presente que os pontos 4 e 5 dos factos provados e os pontos 2 e 3 dos factos não provados dizem respeito à dinâmica do evento/sinistro e os demais factos aos danos/consequências desse sinistro.

O ponto 4 dos factos provados que o recorrente pretende seja dado como não provado têm a seguinte redacção:
4. Quando se encontrava nas imediações da casa dos Réus, o referido cão virou-se e perseguiu o filho do Autor (artigo 16º da contestação).

Fundamenta a sua pretensão, quanto ao facto supra referido, em determinados excertos das suas declarações de parte e dos depoimentos das testemunhas A. M., P. J. e M. C. (este último conjugado com o auto de ocorrência de fls. 10vº e 11) acima mencionadas, que transcreve nas suas alegações, alegando, em síntese, que destes depoimentos somente poderá concluir-se que o filho do recorrente foi surpreendido e perseguido por um cão distinto daquele que permanecia em cima do telhado do anexo do recorrente, que o atacou e que, consequentemente, provocou a sua queda e lesões, tanto mais que a testemunha M. C., agente da GNR que elaborou o auto de ocorrência, quando confrontado em julgamento com o teor daquele documento, admitiu a possibilidade de existirem algumas discrepâncias no auto por si lavrado, na medida em que os factos em causa não foram presenciados pelo próprio, tendo os mesmos ocorrido por volta das 22 horas, quando o auto foi elaborado apenas por volta das 6 horas da manhã.
Conforme resulta da “motivação de facto” que integra a sentença recorrida, o Tribunal “a quo” deu como provado este facto, baseando-se, essencialmente, no depoimento da testemunha P. J. (filho do A.) e no auto de ocorrência de fls. 10vº e 11 (na parte que se encontra transcrita no artº. 16º da contestação), onde se descreve a versão dos acontecimentos que o A. transmitiu ao agente da GNR que tomou conta da ocorrência na noite do acontecimento e elaborou o auto, conjugado com o depoimento desse agente M. C., que relatou em julgamento as diligências que fez nessa noite e confirmou que a narrativa dos factos que consta do auto de ocorrência corresponde à que lhe foi transmitida, nessa mesma noite, pelo A. C. M. e pelo R. J. F..
No entanto, revisitadas as declarações de parte do A. e os depoimentos das testemunhas acima referidas, constatamos que o depoimento do próprio filho do recorrente mostrou-se inseguro e ambíguo quanto a esta parte: esta testemunha, no início do seu depoimento, começou por referir que pensa que o cão que viu dirigir-se a si a ladrar era o que tinha estado em cima da garagem, o tal “..”, cão que a testemunha conhecia. Mas, posteriormente, quando questionado novamente sobre o assunto, a testemunha P. J. referiu já não ter a certeza, não conseguindo precisar se seria o mesmo cão que viu em cima do telhado do anexo.
Resulta do depoimento da testemunha P. J. que o mesmo conseguiu identificar o cão que se encontrava em cima do anexo do recorrente (a quem o filho mais velho dos RR. tratava por “..”), mas o mesmo já não se pode dizer em relação ao cão que correu na sua direcção, uma vez que ficou com medo e começou a fugir. Contudo, esta testemunha afirmou, de forma espontânea, que quando tocou à campainha dos RR. (que era um sino), viu um cão a correr e a ladrar na sua direcção, vindo da casa dos vizinhos, viu ele em cima do muro, tendo se afastado com receio do cão e, quando deu por si, viu que o cão estava à sua beira no passeio, tendo fugido a correr e saltado o muro de uma casa vizinha onde se refugiou do cão.
Ademais, resulta ainda das declarações de parte do A. que o cão que surpreendeu o seu filho, quando este se deslocou à casa dos RR. para informá-los da situação e para que prendessem o cão, não era o mesmo que permanecia em cima do telhado do seu anexo, pois se esse cão se encontrava em cima do seu telhado e lá permaneceu, não poderia ter-se virado e perseguido o seu filho, que se encontrava à porta da casa dos RR. que dista cerca de 70 metros da sua casa.

Assim, da conjugação dos depoimentos do A. e do seu filho P. J. acima enunciados, que não foram suficientemente contrariados pelos restantes meios de prova, não podemos dar como não provado o ponto 4 dos factos provados como pretende o recorrente, entendendo, no entanto, que o mesmo deve ser alterado, passando a ter a seguinte redacção:

4. Quando o filho do Autor se encontrava nas imediações da casa dos Réus, um cão aproximou-se a ladrar da entrada onde ele estava, saltou para a rua e perseguiu o filho do Autor.

Pretendem os recorrentes que seja alterada a redacção do ponto 5 dos factos provados nos termos supra enunciados, cuja actual redacção é a seguinte:
5. Com o intuito de ir proteger o seu filho, o Autor saltou do telhado para o solo do seu prédio, fracturando o calcâneo direito (artigos 7º, 9º e 25º da p.i. e 16º da contestação);
e que sejam considerados provados os pontos 2 e 3 dos factos não provados que passamos a transcrever:
2. No momento em que o Autor se encontrava no telhado do anexo da sua residência, o cão surgiu súbita e repentinamente por entre os arbustos, subindo novamente ao telhado, ladrando de forma agressiva e, ferozmente, atirou-se ao Autor com o intuito de o morder (artigo 6º da p.i.);
3. O Autor saltou do telhado para o solo para evitar ser mordido pelo cão (artigo 7º da p.i.).
Ouvidas as declarações de parte do A./recorrente e confrontando-as com a versão apresentada na petição inicial, constatamos que ele veio sustentar em juízo a tese de que a sua queda se deu na sequência de investida realizada pelo cão dos RR. sobre si, afirmando que, após ter verificado que um cão dos RR. se encontrava em cima do telhado do seu anexo, subiu ao referido telhado por um escadote, com o intuito de verificar como o cão teria acedido ao telhado e afugentá-lo, tendo nessa altura o cão se afastado do telhado; quando o A. começou a mexer nos ramos dos limoeiros para ver se havia ali algum buraco por onde o cão conseguisse passar, ouviu algo a mexer, tentou enxotar o cão, sendo nesse momento que o animal voltou subitamente para cima do telhado do anexo, vindo do prédio dos RR. pelo meio dos ramos dos limoeiros, e atirou-se ao Autor, que se assustou, provocando o desequilíbrio e a queda deste no chão.
Esta versão dos acontecimentos, que apenas foi confirmada pelo A./recorrente, afasta-se da versão que transmitiu ao agente da GNR que tomou conta da ocorrência na noite do acontecimento e que este verteu no auto de ocorrência de fls. 10vº e 11, no qual consta que “questionado sobre o sucedido, o mesmo informou que os cães do seu vizinho se encontravam em cima do telhado do anexo da sua residência, e no intuito de enxotá-los, os mesmos viraram-se ao seu filho e ao querer protegê-lo atirou-se abaixo do telhado, de cerca de 2,50 m de altura, tendo caído mal e fracturado a perna direita”.
Como bem se refere na “motivação de facto”, nenhuma das testemunhas ouvidas em audiência de julgamento (nem mesmo os filhos do A. A. M. e P. J. pelas razões referidas pelo Tribunal “a quo”) ou outros elementos de prova existentes nos autos confirmaram esta versão defendida pelo A. nas suas declarações de parte, para além de que a mesma é contraditória com o relato feito pelo A. na noite do evento ao agente da GNR M. C. (e que este verteu no auto de ocorrência de fls. 10vº e 11) e com o depoimento prestado por este em audiência de julgamento, meios probatórios estes que foram determinantes para o Tribunal “a quo” acolher parcialmente nos factos provados a narrativa que consta do auto de ocorrência e assim considerar inverosímil a versão apresentado pelo A. em julgamento.
Resulta das declarações do militar da GNR M. C. que a primeira diligência realizada naquela noite foi a sua deslocação ao hospital onde ouviu o ora recorrente. E tendo sido esta a primeira diligência realizada, não há hipótese para, no limite, se supor que aquele militar possa ter confundido versões, pois a primeira pessoa que ouviu foi o A./recorrente.
Acresce, ainda, referir que o recorrente tenta descredibilizar o auto de ocorrência e o depoimento da testemunha M. C., colocando enfâse nas discrepâncias que este admitiu poderem existir no auto por si elaborado. No entanto, a própria testemunha teve o cuidado de explicar, a instâncias do mandatário da interveniente X, que a discrepância é só quando se refere a “cão ou cães”, pois não sabia se havia um ou mais cães, e não quanto a tudo o resto que refere e consta do auto de ocorrência, que corresponde àquilo que o A. lhe contou logo naquele dia no hospital, pois à medida que o A. lhe ia contando, a testemunha foi tomando notas do que ele dizia e foi isso que colocou no auto, tendo o depoimento desta testemunha contribuído para formar a convicção do Tribunal por ter sido prestado de forma isenta e equidistante das partes em litígio.
Resulta, ainda, da audição da prova gravada que existem algumas contradições e incoerências entre os depoimentos das testemunhas A. M. e P. J. (filhos do A.) e as declarações de parte do Autor, o que também descredibiliza a versão por ele apresentada.
Assim, a testemunha A. M. afirmou que viu um cão em cima do telhado do anexo a ladrar para ela e, com medo, chamou o pai (também a testemunha P. J. confirmou ter visto o cão em cima da garagem e que este estava a ladrar); referiu, ainda, que o cão estava na berma do telhado a ladrar e quando o seu pai subiu e se aproximou do cão, fazendo sons e gestos para o enxotar para a casa dele, o cão não saía dali e ladrava para o pai. Quando lhe foi perguntado o que é que o seu pai lhe disse na altura sobre o que tinha acontecido (uma vez que a testemunha referiu não ter visto a queda), esta testemunha referiu que o pai, na altura, disse que o cão estava a ladrar para ele, ficou com receio que o mesmo lhe mordesse, desequilibrou-se e caiu.
O A./recorrente, por sua vez, apresentou uma narrativa diferente: referiu que quando começou a subir o escadote, o cão fugiu para o lado do vizinho, tendo voltado posteriormente para cima do telhado nas circunstâncias que descreveu e que já atrás referimos. Ao ser questionado sobre qual a atitude do cão quando foi lá fora ver o que se passava e se o dito cão em algum momento ladrou para si, o A. referiu que o cão andava em cima do telhado, sensivelmente tranquilo, não ladrava, sendo que nunca ladrou para si.
Como vimos, existem discrepâncias e contradições entre as declarações do A. e o depoimento da sua filha A. M., o que retira credibilidade à narrativa dos factos por eles apresentada.
Por outro lado, embora a testemunha P. J. tenha referido que não se lembrava se, ao fugir do cão que foi atrás de si a ladrar, se chamou pelo pai ou berrou, é o próprio A. que, em declarações de parte, afirmou que apesar de estar em cima do telhado, a uma distância de cerca de 70 metros, ouviu o filho a tocar o sino dos RR., ouviu um cão que vai a ladrar e o filho a correr assustado e a berrar, a chamar por ele.
Esta descrição do A. é compatível com o depoimento de parte da Ré M. F. que referiu ter-se deslocado nessa mesma noite ao hospital e falou com o filho do A. que lhe explicou o que tinha sucedido: o pai subiu ao telhado do anexo para tentar afugentar os cães que o estavam a incomodar e, enquanto ali estava, o filho foi a casa dos RR., tocou o sino, aproximou-se um cão, ele assustou-se e começou a correr e a gritar “ó pai, ó pai, ó pai” e o pai, ao ouvir os gritos do filho, saltou os últimos degraus do escadote ao descer do telhado e partiu o calcanhar.
Ainda relativamente à narração dos factos pela testemunha P. J., filho do Autor, quando questionado pelo Mº Juiz “a quo”, apesar de ter referido não conseguir precisar se, quando fugia do cão que o perseguiu a ladrar, gritou, certo é que a instâncias do mandatário do A., quando este lhe perguntou se “naquele bocado, naqueles dez minutos, meia hora, enquanto foi para o hospital” chegou a falar com o seu pai sobre o que tinha acontecido consigo e com o cão na casa do vizinho e se o seu pai não tinha possibilidade alguma sequer de saber que ele tinha sido atacado por um cão, a testemunha respondeu “naquele momento não”.
Do exposto resulta que, não tendo o filho do recorrente contado ao pai o seu incidente com um cão, o A. apenas poderia ter transmitido tal episódio ao agente da GNR que tomou conta da ocorrência na noite do acontecimento, se tivesse visto ou ouvido os gritos do seu filho, daí ter ficado a constar do auto de ocorrência a narrativa acima transcrita.
Por último, acresce referir que as declarações prestadas pelo A. em audiência de julgamento, para além de não terem qualquer suporte noutro meio de prova, seja documental, seja testemunhal, contêm contradições e incoerências sobre o momento em que caiu de cima do telhado do anexo para o solo, que lhe retiram credibilidade.
Na verdade, de acordo com a versão apresentada pelo A./recorrente, no momento em que estaria a tentar perceber por onde é que o cão conseguia entrar para o telhado do anexo, foi surpreendido pelo cão que regressa ao telhado e avança para si, o que provoca o seu desequilíbrio e a queda para baixo do telhado. Mas o que fica por explicar é como é que, depois, em desequilíbrio, o A. não cai de costas e saltou de frente. De notar que os danos que o A. sofreu foram apenas no calcâneo direito – lesão que, de acordo com as regras da experiência comum, não é consentânea com uma queda em desequilíbrio.
Assim sendo, entendemos que deve manter-se inalterada a redacção do ponto 5 dos factos provados e manter-se os pontos 2 e 3 dos factos não provados.

O ponto 11 dos factos provados que o recorrente pretende ver alterado tem a seguinte redacção:
11. À data do acontecimento descrito nos anteriores factos provados, os Réus eram donos de dois cães que viviam na sua residência e eram tratados e alimentados pelos Réus (artigos 93º e 95º da p.i. e 48º da contestação dos Réus).
Fundamenta a sua pretensão, nas suas declarações de parte, no depoimento de parte da Ré M. F. e no depoimento da testemunha J. C., filho dos RR., alegando que resulta de todos estes depoimentos que, à data dos factos, os RR. eram donos de três cães e não de dois.
Efectivamente, assiste razão ao recorrente.
Para além do A. ter referido, nas suas declarações de parte, que na altura os RR. tinham três cães, recordando-se de os ver várias vezes no quintal daqueles, a própria Ré M. F. e o seu filho J. C. admitiram que, na altura do acontecimento, tinham três cães – o tal “..”, um pastor alemão e um pequenino – sendo os RR. que tratavam e cuidavam deles.

Assim sendo, da conjugação de todos estes depoimentos, entendemos que deve o ponto 11 dos factos provados ser alterado, passando a ter a seguinte redacção:
11. À data do acontecimento descrito nos anteriores factos provados, os Réus eram donos de três cães que viviam na sua residência e eram tratados e alimentados pelos Réus.

Pretende, ainda, o recorrente que sejam considerados provados os pontos 8 a 12, 14 e 16 a 20 dos factos não provados que passamos a transcrever:
8. Os tratamentos do Autor ainda estão por acabar (artigo 36º da p.i.).
9. O Autor sofre fortes e constantes dores o membro inferior direito, pelas sequelas do acidente em causa, o que o obriga a recorrer constantemente a serviços médicos, a fim de ser submetido a tratamentos e medicação analgésica e anti-inflamatória para o efeito (artigos 37º, 38º, 43º e 44º da p.i.).
10. O A. prossegue à data de hoje com os tratamentos de fisioterapia, para recuperação das lesões causadas em virtude do acidente (artigo 40º da p.i.).
11. O Autor não consegue correr e tem dificuldades em locomover-se e (artigos 41º e 42º da p.i.).
12. O Autor terá dificuldades em locomover-se para toda a sua vida (artigo 44º da p.i.).
14. Devido à lesão de que padece em consequência do sinistro, o Autor não consegue estar em pé por longos períodos de tempo, nem levantar objectos com algum peso (artigo 52º da p.i.).
16. Devido ao acidente, o Autor tornou-se uma pessoa revoltada, impaciente, brusca e permanentemente exaltada para com a família e pessoas em geral (artigo 73º da p.i.).
17. O Autor sente-se uma pessoa inactiva, impossibilitada de desempenhar a sua profissão e com receio que essa incapacidade afecte gravemente o sucesso do seu negócio (artigo 77º da p.i.).
18. O Autor vê-se agora impedido de incutir a mesma dinâmica nas suas relações comerciais (artigo 78º da p.i.).
19. São constantes os boatos de que os seus clientes se encontram insatisfeitos com esta situação e que ponderam procurar novos fornecedores, uma vez que o A. não consegue cumprir com o atendimento e atenção a que estavam acostumados (artigo 79º da p.i.).
20. Devido às lesões sofridas no acidente, o Autor sente-se derrotado e com a vida destruída, o que lhe provoca depressão, dor, angústia e perda da vontade de viver (artigos 84º e 85º da p.i.).
O recorrente fundamenta a sua discordância, quanto aos factos supra referidos, nas suas declarações de parte, nos depoimentos dos seus filhos A. M. e P. J. e numa apreciação parcial e deturpada do relatório de perícia médico-legal junto aos autos.
Contudo, entendemos que nenhuma prova foi produzida para além dos factos que resultaram provados e que tiveram, na sua base, a prova pericial.
Como é sabido, as declarações de parte contêm sempre um risco de parcialidade decorrente da posição das mesmas na lide e do manifesto interesse que têm no desfecho da acção, pelo que devem ser atendidas e valoradas com especial cautela e cuidado, tendo sempre em conta a fragilidade intrínseca deste meio probatório.
Fazer depender a avaliação de um facto, unicamente, das declarações de uma parte sem a necessária confirmação de outros meios de prova relevantes, dificilmente se justificará, uma vez que a parte, tendo um interesse directo na causa, normalmente confirma as posições por si assumidas nos articulados, que lhe são favoráveis.
Entende o A./recorrente que, para além das suas declarações de parte, devem ser valorados os depoimentos das testemunhas A. M. (quanto aos factos não provados nºs 8 a 12, 14 e 16 a 20), P. J. (relativamente aos factos não provados nºs 9 e 10) e J. R. (quanto aos factos não provados nºs 16 a 20).
No entanto, para além de não podermos deixar de realçar a particularidade das testemunhas A. M. e P. J. serem filhos do recorrente, o que de certa forma compromete a sua imparcialidade e objectividade em relação aos factos que dizem directamente respeito ao A., sendo compreensível que procurassem defender os interesses de seu pai, a verdade é que os respectivos depoimentos sobre os factos supra descritos mostraram-se inseguros e desconformes com as conclusões do relatório pericial junto a fls. 293 a 296vº, sendo certo que não foram corroborados por qualquer perícia médico-legal sobre o estado psíquico e emocional do A. (que nem sequer foi realizada) e sua correlação com o sinistro destes autos, não merecendo, por isso, qualquer credibilidade.
Por último, revisitado o depoimento da testemunha J. R., constatamos que o mesmo nada de relevante trouxe em relação à matéria vertida nos pontos 16 a 20 dos factos não provados.
Em face do acima exposto e nos termos do disposto no artº. 662º, nº. 1 do NCPC, procede parcialmente a impugnação da matéria de facto deduzida pelo Autor/recorrente, alterando-se a redacção do ponto 4 e 11 dos factos provados nos termos atrás mencionados, mantendo-se, no entanto, inalterada a restante matéria de facto provada e não provada supra descrita.
*
II) – Saber se estão verificados os pressupostos da responsabilidade civil consagrada no artº. 493º do Código Civil:

Insurge-se o ora recorrente contra a sentença recorrida na medida em que afastou, no caso concreto, a verificação do nexo de causalidade entre o facto e o dano, dado o Tribunal ter “assentado” a sua convicção num pressuposto errado: de que o recorrente saltou do telhado do anexo para o chão para ir auxiliar o seu filho que estava a ser perseguido por um cão.
Segundo a versão do recorrente, assente na alteração da matéria de facto por ele pretendida (dando como provados os pontos 2 e 3 dos factos não provados) e que não foi atendida por este Tribunal, aquele saltou do telhado do anexo da sua casa para o solo do respectivo logradouro, de uma altura superior a 2,50 metros, por se sentir ameaçado pelo cão dos RR. que, súbita e inesperadamente, surgiu por entre os arbustos no telhado onde o recorrente se encontrava, ladrou-lhe ferozmente e dirigiu-se a ele com o intuito de o morder, tendo o acidente em causa sido provocado única e exclusivamente pelo ataque do cão dos RR. ao recorrente, que andando solto, invadiu a propriedade daquele.
Considera o recorrente que, em face da alteração da matéria de facto nos termos por ele pretendidos, estão verificados “in casu” os pressupostos da responsabilidade civil consagrada no artº. 493º, nº.1 do Código Civil, e tratando-se de uma situação de culpa presumida, ocorreu a inversão do ónus da prova, pelo que competia aos RR. provar que nenhuma culpa houve da sua parte e que usaram de todas as precauções para que o cão se mantivesse fora da propriedade do recorrente, impedindo-o de andar à solta nas imediações da propriedade dos vizinhos, prova que não fizeram de todo.
Ademais, entende o recorrente que, ainda que se admitisse o entendimento perfilhado pelo Tribunal “a quo” de que o salto que deu foi motivado pelo impulso de ir auxiliar o seu filho, também nesta circunstância se encontravam preenchidos os requisitos legais para a verificação da responsabilidade civil dos RR. nos termos do artº. 493º, nº. 1 do Código Civil, não aceitando a interpretação que o Tribunal “a quo” faz da factualidade dada como provada, quando “culpabiliza” a conduta do recorrente para afastar a presunção de culpa dos Réus.
Vejamos se lhe assiste.
Como decorre da factualidade provada, tendo o A. verificado que um cão pertencente aos RR. se encontrava em cima do telhado do anexo da sua residência, o mesmo subiu ao referido telhado com uma escada, no intuito de verificar como o cão teria acedido àquele local e de forma a afugentá-lo, tendo o cão se afastado.
Nessa altura, o A. solicitou ao seu filho P. J. que se deslocasse à residência dos RR. para informá-los da situação e para que estes tomassem providências para prender o cão. Quando o filho do Autor se encontrava nas imediações da casa dos RR., um cão aproximou-se a ladrar da entrada onde ele estava, saltou para a rua e perseguiu o filho do Autor.
Ao aperceber-se que o seu filho estava a ser perseguido por um cão e movido pelo impulso de ir em seu auxílio, o A. saltou do telhado do anexo para o solo do seu logradouro, que se encontra entre 2,50 a 3 metros de altura do chão, tendo fracturado o calcâneo direito.
Neste contexto, o Tribunal “a quo” centrou a questão jurídica na verificação dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual consagrada no artº. 493º do Código Civil.
O artº. 493º, n.º 1 do Código Civil, em que o A./recorrente assenta a sua pretensão dispõe que “Quem tiver em seu poder coisa móvel ou imóvel, com o dever de a vigiar, e bem assim quem tiver assumido o encargo da vigilância de quaisquer animais, responde pelos danos que a coisa ou os animais causarem, salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua.”
Trata-se, pois, de uma norma que prevê a responsabilidade civil por facto ilícito do lesante quando se reúnem os seguintes pressupostos: i) o facto; ii) a ilicitude; iii) a imputação do facto ao agente; iv) o dano; v) o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
De acordo com o disposto no artº. 493º, nº. 1 do Código Civil, o detentor ou proprietário de um animal tem o encargo de o vigiar sob pena de responder pelos danos que ele causar, salvo se provar que não houve culpa da sua parte.
Este normativo estabelece uma presunção de culpa para aqueles que têm a seu cargo a vigilância de animais. Tal presunção legal de culpa implica uma inversão do ónus da prova, de harmonia com o preceituado nos artºs 487º, nº. 1 e 350º, nº. 1 do Código Civil, podendo ser ilidível mediante prova em contrário (nº. 2 do mencionado artº. 350º) pelo lesante de que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua.
Apenas existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei (artº. 483º, nº. 2 do Código Civil), ou seja, nos casos de responsabilidade pelo risco, sendo um desses casos, também, o resultante dos danos causados por animais, dispondo o artº. 502º do Código Civil que “quem no seu próprio interesse utilizar quaisquer animais responde pelos danos que eles causarem, desde que os danos resultem do perigo especial que envolve a sua utilização”.
Do confronto entre os normativos dos artºs 493º e 502º do Código Civil, podemos concluir que na abrangência do primeiro se situam as hipóteses dos animais domésticos, os quais por sua natureza estão sujeitos à guarda e/ou vigilância dos respectivos donos ou de outrem sobre quem recaia essa obrigação específica, enquanto o segundo preceito legal tem em vista aqueles que utilizam os animais no seu próprio interesse.
No primeiro caso temos uma situação de culpa presumida e no segundo vigora a responsabilidade pelo risco, sempre que os danos estejam em conexão com os perigos especiais que sejam inerentes à utilização do animal (cfr. acórdãos do STJ de 13/09/2012, proc. nº. 1070/08.9TBGRD e de 19/06/2007, proc. nº. 07A1730, disponíveis em www.dgsi.pt).

Sobre esta matéria pronunciou-se, ainda, o acórdão da Relação de Coimbra de 17/01/2012 (proc. nº. 1070/08.9TBGRD, disponível em www.dgsi.pt), no qual é feita uma análise da interpretação e aplicação dos artºs 493º e 502º do Código Civil nos seguintes termos:

«Ambos os preceitos regem casos de responsabilidade civil por danos causados por animais, mas com acentuadas diferenças, das quais destacamos: o artigo 493º consagra casos de presunção de culpa de quem tiver em seu poder (de facto ou jurídico) uma coisa com o dever de a vigiar ou um animal em relação ao qual assumiu o encargo de o vigiar, tendo essa coisa ou animal causado danos; o artigo 502º consagra caso de responsabilidade objectiva, logo independentemente de culpa, por parte de quem no seu próprio interesse utilizar quaisquer animais pelos danos que estes causem, desde que os danos resultem do perigo especial que a sua utilização envolve.
Naquele caso de responsabilidade por culpa presumida, o visado verá afastada a sua responsabilidade se o demandante não provar os factos que constituem a base da presunção legal ou se o visado ilidir a presunção de culpa, sendo que pode ilidi-la por um de dois meios: provando que nenhuma culpa houve da sua parte ou provando uma causa virtual do mesmo dano verificado. E pode verificar-se a hipótese de a responsabilidade por culpa presumida ser totalmente afastada, havendo culpa do lesado, nos termos do artigo 570º, nº. 2 do CC.
A responsabilidade cominada no artigo 502º do CC é objectiva, não depende de culpa e o artigo 570º não lhe é aplicável.
Como é fácil constatar, quanto à responsabilidade civil por danos causados por animais, o preceito do artigo 502º é especial em relação ao do artigo 493º, nº. 1 do Código Civil, pelo que a aplicação daquele prevalece (art. 7º, nº. 3 do CC). E aquele oferece mais forte protecção à vítima, pois que não ressalva a falta de culpa do agente como ocorre no artigo 493º, nº 1.»
Deste modo, o proprietário de um cão, por ser dono, está obrigado a vigiá-lo de modo a que não cause danos. Por outro lado, quanto à ilicitude, podemos afirmar que ela consiste na omissão do dever de vigilância do animal que causou os danos.
Escreveu-se, ainda, no mencionado acórdão da Relação de Coimbra que “O disposto no artº 502º é aplicável aos que utilizam os animais no seu próprio interesse (o proprietário, o usufrutuário, o possuidor, o locatário, o comodatário, etc). É quanto a estas pessoas que tem inteiro cabimento a ideia do risco: quem utiliza em seu proveito os animais, que, como seres irracionais, são quase sempre uma fonte de perigos, deve suportar as consequências do risco especial que acarreta a sua utilização. Esse proveito, ou interesse, ou utilidade, pode abranger até a simples distracção ou prazer, enfim o mero interesse moral ou espiritual.
Como ensinam P. Lima e A. Varela, no CC Anotado, vol. I, 1987, nota 2 ao art. 502º, a responsabilidade – no caso previsto neste artigo – não depende da violação de quaisquer regulamentos que disciplinem a utilização dos animais, e tanto se aplica aos animais domésticos, como aos restantes animais (abelhas, animais ferozes, etc); essencial é que o dano proceda do perigo especial que envolve a utilização do animal e não de qualquer facto estranho a essa perigosidade específica.”

Reportando-nos ao caso dos autos, refere-se na sentença recorrida o seguinte:

«Assim, os Réus são presumidos culpados pela ocorrência de danos provocados pelos seus cães na via pública ou em prédios vizinhos.
Sucede que, como vimos, para além da culpa, que no caso se presume, e da ilicitude que pode resultar da lesão da invasão da propriedade ou de direitos de personalidade de outrem, a responsabilidade civil extracontratual pressupõe outros dois requisitos, a ponderar no caso concreto: o dano e o nexo de causalidade entre facto e dano.
O dano é, na situação vertente, a lesão da integridade física sofrida pelo Autor.
O nexo de causalidade é a relação de causa e efeito entre o evento (que no caso consiste na omissão do dever de vigilância pelos Réus que levou à subida do seu cão ao telhado do Autor e à perseguição ao filho do Autor) e o dano (constituído pela fractura do calcâneo pelo Autor), relação que, de acordo com a nossa ordem jurídica (artigo 563º do Código Civil), terá de ser de causalidade adequada.
A casualidade adequada é – numa formulação positiva – saber se é normal e adequado (provável) que aquele tipo de comportamento gere aquele tipo de dano; ou – numa formulação negativa – a de saber se é de todo indiferente para a produção de um dano daquele tipo um comportamento como o do lesante.
Um dano não é, apenas, a consequência da sua causa imediata. Em regra, é produto de um encadeamento ou sequência de causas. Por isso, nem todas as causas fácticas ou naturalísticas poderão ser juridicamente havidas como causa do dano ocorrido.
No caso vertente, foi a presença do cão que motivou a subida do Autor ao telhado do anexo e foi a perseguição que o animal moveu ao seu filho que o levou a saltar do telhado para o chão, onde fracturou o calcâneo.
Sucede que no encadeamento de acontecimentos gerados pelo cão dos Réus até à produção do salto do Autor para o chão, intervieram decisões exclusivamente imputáveis ao Autor que não são próprias de uma pessoa diligente e prudente colocada na mesma situação.
A primeira consiste na subida ao telhado do anexo, o que agravou o risco de lesão – não só resultante de queda como ainda de confronto directo com o animal, quando nada aconselharia a fazê-lo, tanto mais que se o cão estava solto, nesse local, mas não constituía perigo para as pessoas que se encontravam no terreno da propriedade do Autor - note-se que o telhado estava a mais de 2,50 metros do chão desta propriedade – mais sensato seria aguardar pelos proprietários, comunicar-lhes o facto e aguardar que estes o prendessem.
A segunda, foi o salto que realizou da altura de mais de 2,50 metros para o solo, quando dispunha de uma escada para descer – a mesma por onde havia subido.
Um salto dessa altura é propício a gerar lesões como a fractura que sofreu, o que podia e devia ter antecipado, ainda que em estado de preocupação e de pressa para acorrer ao seu filho.
A preocupação não constitui justificação para omitir a necessidade de descer gradualmente, pela escada, a diferença de altura entre o telhado e o solo, sendo ainda certo que, embora tenha causado medo ao filho do Autor, o cão dos Réus não produziu qualquer lesão da integridade física deste.
Uma vez que as descritas condutas do Autor não seriam, nem são, expectáveis ou recomendáveis face à situação criada pelo cão dos Réus, antes resultando de decisões imponderadas do Autor, censuráveis a um bom pai de família ou homem médio - “bonus pater familias” - colocado perante as concretas circunstâncias do caso (cfr. n.º 1 do art.º 487º do C.C.), a violação do dever de vigilância pelos Réus não constitui a causa adequada da lesão sofrida pelo Autor, mostrando-se quebrado, por conduta a este imputável, o pressuposto do nexo causal da responsabilidade civil dos demandados pelos danos na presente acção.»
Para além da ilicitude e da culpa que “in casu” o Tribunal fez presumir, a responsabilidade civil extracontratual pressupõe outros dois requisitos, a ponderar no caso concreto: o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Ora, “segundo a doutrina da causalidade adequada, para que um facto seja causa de um dano é necessário, antes do mais, que, no plano naturalístico, o mesmo constitua condição sem a qual o dano não se teria verificado (matéria de facto), sendo, ainda, necessário que aquele seja, em abstracto ou em geral, causa adequada do dano (matéria de direito)” – cfr. acórdão da RP de 31/05/2007, proc. nº. 0731923, disponível em www.dgsi.pt).
Escrevem Antunes Varela e Pires de Lima (in Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª ed., pág. 578) que: “determinada acção ou omissão será causa de certo prejuízo se, tomadas em conta todas as circunstâncias conhecidas do agente e as mais que um homem normal poderia conhecer, essa acção ou omissão se mostrava, à face da experiência comum, como adequada à produção do referido prejuízo, havendo fortes probabilidades de o originar”.
Prosseguem, dizendo que: “(...) parece razoável que o agente só responda pelos resultados para cuja produção a sua conduta era adequada, e não por aqueles que tal conduta, de acordo com a sua natureza geral e o curso normal das coisas, não era apta para produzir e que só produziram em virtude de uma circunstância extraordinária”.
Como bem nota a decisão colocada em crise, a causalidade adequada é – numa formulação positiva – saber se é normal e adequado (provável) que aquele tipo de comportamento gere aquele tipo de dano; ou – numa formulação negativa – a de saber se é de todo indiferente para a produção de um dano daquele tipo um comportamento como o do lesante.
Ora, nesta perspectiva negativa, coloca-se a questão de saber se a mera circunstância do canídeo se encontrar em cima do telhado do anexo era motivo para o recorrente lá se deslocar. E, uma vez lá estando, a circunstância de ouvir o filho a gritar era motivo suficiente para se atirar de cima do telhado para o chão, ao invés de usar a escada.
O Tribunal “a quo” deu uma resposta negativa a estas questões, o que merece a nossa concordância.
Com efeito, o recorrente não tinha um motivo plausível para subir ao telhado do anexo. Ao fazê-lo e sabendo que o canídeo se encontrava solto, colocou-se numa situação de risco, de forma voluntária e totalmente desnecessária. Até porque o motivo que o levou a subir ao telhado não era, de todo, urgente e, muito menos, imprescindível e necessário.
Desde modo, só pela circunstância do recorrente ter subido ao telhado (o que esteve na origem e no desencadear de toda a sucessão de eventos), seguindo a argumentação da decisão recorrida, porque tal conduta não seria expectável ou recomendável, antes resultando de uma decisão imponderada do recorrente, censurável a um bom pai de família ou homem médio colocado perante as concretas circunstâncias do caso (cfr. art.º 487º, nº. 1 do Código Civil), a violação do dever de vigilância pelos RR. não constitui causa adequada da lesão sofrida pelo A., tendo sido afastado, por conduta a este imputável, o pressuposto do nexo causal da responsabilidade civil dos demandados pelos danos na presente acção.
Todavia, no caso em apreço, ainda se provou mais uma atitude censurável do recorrente: é que não só aquele subiu ao telhado do anexo (quando não devia) e, uma vez lá estando, porque ouviu o filho a gritar e ficando preocupado com aquele, saltou de uma altura de cerca de 2,50 metros para o solo, quando tinha disponível uma escada.
E, novamente, se questiona a conduta do recorrente, pois que a preocupação, em nosso entender, não justifica o salto do telhado do anexo para o chão, quando tinha à mercê uma escada, tendo tal decisão se mostrado imponderada e censurável, tanto mais que o salto foi a causa das lesões sofridas pelo Autor. Qualquer pessoa, que se encontrasse em cima do telhado do anexo, a cerca de 2,50 metros de altura, sabia, e não podia deixar de saber, que saltar daquela altura provocaria lesões.
Daí que se considere que um bom pai de família ou homem médio, colocado perante as concretas circunstâncias do caso, sempre usaria a escada ali disponível.
Como bem referem os RR., nas suas contra-alegações, no quadro factual apurado o dano não decorreu da qualidade própria do animal e do perigo especial inerente à sua potencial perigosidade e da utilização que lhe era dada pelo dono, mas de uma circunstância provocada pelo próprio lesado, a quem era exigida e a quem era possível uma actuação diversa e que teria prevenido a ocorrência dos danos.
O mesmo é dizer-se que o dano resultou de uma actuação culposa do próprio lesado, isto é, do recorrente. Culposa na medida em que, naquelas circunstâncias, segundo as suas capacidades e as instruções que o próprio deu ao seu filho, era-lhe evidentemente possível e exigível que não subisse de escada para o telhado do anexo, que não se aproximasse do cão que referiu ser feroz e que não saltasse do telhado do anexo para o solo seja em que circunstância fosse. Tal conduta do próprio A./recorrente foi absolutamente determinante para a produção do evento danoso, foi a causa adequada dos danos que sofreu, posição esta defendida na sentença recorrida e com a qual concordamos.
O recorrente pugna para que a sua pretensão seja acolhida amparando-se numa causalidade meramente fáctica ou naturalística, ao passo que o nosso sistema jurídico acolheu de forma unânime a teoria da causalidade adequada.

No acórdão do STJ de 1/07/2003, proferido no processo nº. 03A1902 (disponível em www.dgsi.pt), sumariou-se o mesmo entendimento nos seguintes termos:

“VI - No nexo de causalidade entre o facto e o dano, a nossa lei adoptou a doutrina da causalidade adequada, que impõe, num primeiro momento, um nexo naturalístico e, num segundo momento, um nexo de adequação.
VII- Por mais criteriosa, deve reputar-se adoptada pela nossa lei a formulação negativa da teoria da causalidade adequada, segundo a qual o facto que actuou como condição do dano deixa de ser considerado como causa adequada, quando para a sua produção tiverem contribuído decisivamente circunstâncias anormais, atípicas, excepcionais, extraordinárias ou anómalas, que intercederam no caso concreto.
VIII- Por isso, não basta que o evento tenha produzido, naturalisticamente, certo efeito, para que este, do ponto de vista jurídico, se possa considerar causado ou provocado por ele; para tanto, é ainda necessário que o evento danoso seja uma causa provável desse efeito.”

Assim sendo, no caso em apreço, entre o avistamento do cão e a queda do A. ocorreram causas e circunstâncias apenas imputáveis ao mesmo, essas sim verdadeiramente causais do evento, sendo que as condutas do A., como bem adjectiva a sentença recorrida, “não seriam, nem são, expectáveis ou recomendáveis face à situação criada pelo cão dos Réus, antes resultando de decisões imponderadas do Autor, censuráveis a um bom pai de família ou homem médio - bonus pater familias - colocado perante as concretas circunstâncias do caso”.
Por último, verifica-se que a decisão recorrida afastou a hipótese de responsabilidade pelo risco e, apesar de aceitar a culpa presumida, afastou-a por ter concluído pela culpa do próprio lesado.
No que concerne à parte do direito, a solução plasmada na sentença recorrida não merece censura. Apesar deste tribunal de recurso ter alterado a redacção dos factos provados nºs 4 e 11 acima referidos, afigura-se-nos que estes são completamente inócuos em relação à posição defendida pelo Tribunal de 1ª instância, no sentido de que a violação do dever de vigilância pelos RR. não constitui a causa adequada da lesão sofrida pelo Autor, tendo esse nexo causal sido afastado por conduta imputável ao próprio lesado.
Em face do exposto, terá de improceder o recurso interposto pelo Autor, ficando, assim, prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas, relacionadas com a indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais.
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SUMÁRIO:

I) – O artº 493º, nº. 1 do Código Civil estabelece uma presunção de culpa para aqueles que têm a seu cargo a vigilância de animais, sendo que tal presunção legal implica uma inversão do ónus da prova, de harmonia com o preceituado nos artºs 487º, nº. 1 e 350º, nº. 1 do Código Civil, podendo ser ilidível mediante prova em contrário pelo lesante de que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua.
II) - Do confronto entre os normativos dos artºs 493º e 502º do Código Civil, podemos concluir que na abrangência do primeiro se situam as hipóteses dos animais domésticos, os quais por sua natureza estão sujeitos à guarda e/ou vigilância dos respectivos donos ou de outrem sobre quem recaia essa obrigação específica, enquanto o segundo preceito legal tem em vista aqueles que utilizam os animais no seu próprio interesse - no primeiro caso temos uma situação de culpa presumida e no segundo vigora a responsabilidade pelo risco.
III) - No caso de responsabilidade por culpa presumida, o visado verá afastada a sua responsabilidade se o demandante não provar os factos que constituem a base da presunção legal ou se o visado ilidir a presunção de culpa, podendo verificar-se a hipótese de a responsabilidade por culpa presumida ser totalmente afastada, havendo culpa do lesado, nos termos do artº. 570º, nº. 2 do Código Civil.
IV) - A responsabilidade cominada no artº. 502º do Código Civil é objectiva, não depende de culpa e o artº. 570º do mesmo Código não lhe é aplicável.
V) - No âmbito da responsabilidade civil por danos causados por animais, o preceito do artº. 502º do Código Civil é especial em relação ao do artº. 493º, nº. 1 do mesmo Código, pelo que a aplicação daquele prevalece sobre este.
VI) - A hipótese de responsabilidade pelo risco plasmada no artº. 502º do Código Civil será afastada caso se venha a concluir pela culpa do próprio lesado.

III. DECISÃO

Em face do exposto e concluindo, acordam os Juízes da Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso interposto pelo Autor C. M. e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.

Custas a cargo do recorrente.
Notifique.
Guimarães, 15 de Outubro de 2020
(processado em computador e revisto, antes de assinado, pela relatora)

Maria Cristina Cerdeira (Relatora)
Raquel Baptista Tavares (1ª Adjunta)
Margarida Almeida Fernandes (2ª Adjunta)