Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
5397/18.3T8BRG.G1
Relator: MARIA JOÃO MATOS
Descritores: CESSÃO DE QUOTAS ACÓRDO SIMULATÓRIO
PROIBIÇÃO DE PROVA
ÓNUS DE IMPUGNAÇÃO NO RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/22/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
SUMÁRIO (da responsabilidade da Relatora - art. 663.º, n.º 7 do CPC)

I. Pese embora seja proibida a prova testemunhal e por presunções judiciais quando a simulação seja invocada pelos próprios simuladores, admite-se, em interpretação restritiva dos arts. 393.º e 394º, ambos do CC, que possam ser produzidas desde que o acordo simulatório possua um mínimo de prova documental que torne verosímil a sua existência.

II. A impugnação da decisão de facto, feita perante a Relação, não se destina a que este tribunal reaprecie, global e genericamente, a prova valorada em primeira instância, o que justifica que se imponha ao recorrente um especial ónus de alegação, no que respeita à delimitação do objecto do recurso e à respectiva fundamentação.

III. O ónus de impugnação previsto no art. 640º, nº 1, al. b) do C.P.C. exige que o recorrente: especifique os meios probatórios que determinariam decisão diversa da tomada em primeira Instância para cada um dos factos que pretende impugnar, não sendo suficiente a genérica indicação dos ditos meios de prova (isto é, desacompanhada do reporte a cada um dos facto sindicados, e antes oferecida para a totalidade da matéria de facto sob recurso); a decisão que deve ser proferida sobre cada um dos factos impugnados, esclarecendo sobre o seu exacto teor (isto é, a exacta redacção que pretende para cada um deles); e a indicação das passagens da gravação em que funda a sua sindicância, de novo para cada um dos depoimentos em causa.

IV. A falta de cumprimento do ónus de impugnação previsto no art. 640.º, n.º 1 do CPC implica a rejeição imediata do recurso na parte afectada, uma vez que a lei não prevê a prolação de qualquer despacho de aperfeiçoamento dirigido à parte incumpridora.

V. Por força dos princípios da utilidade, da economia e da celeridade processual, o Tribunal ad quem não deve reapreciar a matéria de facto quando o(s) facto(s) concreto(s) objecto da impugnação for(em) insusceptível(eis) de, face às circunstância próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, ter(em) relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe ser inútil.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência (após corridos os vistos legais) os Juízes da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, sendo

Relatora - Maria João Marques Pinto de Matos;
1.º Adjunto - José Alberto Martins Moreira Dias;
2.º Adjunto - António José Saúde Barroca Penha.
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ACÓRDÃO

I - RELATÓRIO

1.1. Decisão impugnada

1.1.1. X - SGPS, Limitada, com sede na Rua …, união de freguesias de .../.../..., em Braga (aqui Recorrente), propôs a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra Y - Comunicação, Informação e Consultadoria Financeira, Limitada, com sede na Rua …, Edifício ..., freguesia de …, em Vila Verde (aqui Recorrida), pedindo que (já após articulado de aperfeiçoamento, e no que ora nos interessa, por constituir o remanescente objecto do processo):

· fosse declarada a nulidade, por simulação, de um alegado negócio de cessão de quotas, celebrado por si com a Ré, tendo por objecto a alienação a esta da sua participação social em W SGPS, Limitada;

· se ordenasse a alteração ao registo comercial de W SGPS, Limitada (concretamente, da inscrição 4, por força da qual se registou a cessão de quotas referida, ficando a sua participação social inscrita em nome da Ré).

Alegou para o efeito, em síntese, ter constituído com a Ré (Y - Comunicação, Informação e Consultadoria Financeira, Limitada) e com K - Soluções Aplicadas em Geologia, Hidrogeologia e Ambiente, Limitada, em 06 de Setembro de 2011, W SGPS, Limitada, cada uma delas com uma quota de € 10.000,00; e, no ano de 2013 (por divergências surgidas entre o seu legal representante e os representantes legais da terceira sócia) ter cedido pretensamente a sua participação social à Ré, por negócio celebrado em 21 de Novembro de 2013 (como forma de assegurar alguma paz social em W SGPS. Limitada).
Mais alegou que, tendo sido o dito negócio de cessão de quotas simulado, não só não lhe foi pago o preço declarado de € 10.000,00, como elaborou na mesma data com a Ré (Y - Comunicação, Informação e Consultadoria Financeira, Limitada) um outro documento, salvaguardando os seus direitos sociais na W SGPS, Limitada (nomeadamente, de acompanhar e influenciar a sua actividade, de participar nas suas assembleias gerais, emitindo a sua opinião e sentido de voto, e de quinhoar nos lucros respectivos).
Por fim, a Autora (X - SGPS, Limitada) alegou que, tendo o dito acordo sido cumprido até 2018, e tendo-se o seu representante legal mantido como gerente de W SGPS, Limitada até 14 de Setembro de 2018, viria a ser destituído de tal cargo por deliberação promovida pela Ré (Y - Comunicação, Informação e Consultadoria Financeira, Limitada), que passou ainda a reclamar-se junto de terceiros como exclusiva detentora de dois terços do capital social da mesma Sociedade, tudo isto após aquela ter celebrado um negócio que lhe poderá vir a render alguns milhões de euros.

1.1.2. Regularmente citada, a (Y - Comunicação, Informação e Consultadoria Financeira, Limitada) contestou, pedindo (e no que ora nos interessa) que a acção fosse julgada totalmente improcedente, sendo ela própria absolvida do pedido.
Alegou para o efeito, em síntese, ser real e verdadeiro o negócio de cessão de quotas havido, inexistindo qualquer acordo simulatório que lhe estivesse subjacente, o qual mas se compreenderia já que: o legal representante da Autora (X - SGPS, Limitada) se manteve durante anos como gerente de W SGPS, Limitada (o que obstaria à alegada paz social pretendida com a aparente cessão de participação social), precisamente por merecer a confiança da inicial terceira sócia; nunca durante cinco anos foi dado cumprimento ao documento que, depois de assinarem a escritura de cessão de quotas, subscreveram, nem a Autora o exigiu; e um tal acordo nunca a vincularia, por falta de poderes vinculativos para o efeito do seu sócio gerente, o que a Autora conhecia.
Mais alegou que o dito documento surgiu apenas a pedido da Autora (X - SGPS, Limitada), já que alegadamente lhe interessaria demonstrar perante terceiros que mantinha interesses em W SGPS, Limitada.
A Ré (Y - Comunicação, Informação e Consultadoria Financeira, Limitada) impugnou, assim, tudo o que em contrário fora aduzido pela Autora.

1.1.3. A Autora (X - SGPS, Limitada) respondeu, reiterando o seu pedido inicial.
Alegou para o efeito, em síntese, ser o gerente da Ré (Y - Comunicação, Informação e Consultadoria Financeira, Limitada) que assinou o documento adicional à escritura de cessão de quotas detentor de 91% do seu capital, sendo a outra sócia pessoa da sua confiança e sem qualquer intervenção na vida societária; e poder o dito gerente assumir qualquer negócio em nome da Ré, uma vez que em assembleia geral garantiria a aprovação de qualquer deliberação.

1.1.4. Foi proferido despacho: fixando o valor da causa em € 10.000,00; saneador (certificando a validade e a regularidade da instância); identificando o objecto do litígio («A simulação do negócio de cessão de quotas de que era titular a X - SGPS, S.A. à Y, Lda. datado de 21/11/2013») e enunciando os temas da prova («Saber se existiu um acordo simulatório entre Autora e Ré, em a primeira declarou ceder e a segunda declarou comprar, quando na verdade não o quiseram fazer», «Saber se existiu divergência entre a vontade real e vontade declarada de Autora e da Ré, conhecendo-a ambas e querendo propositadamente emitir a vontade declarada com essa divergência», «Saber se existiu intenção de enganar (e de prejudicar) terceiros, máxime, a outra sócia K, Lda.»); apreciando os requerimentos probatórios das partes e designando dia para realização da audiência final.

1.1.5. Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença, julgando a acção totalmente improcedente, lendo-se nomeadamente na mesma:
«(…)
IV. Decisão:
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, decido julgar improcedente a acção e, consequentemente, absolvo a Ré do pedido.
Custas a cargo da Autora.
(…)»
*
1.2. Recurso

1.2.1. Fundamentos

Inconformada com esta decisão, a Autora (X - SGPS, Limitada) interpôs o presente recurso de apelação, pedindo que o mesmo fosse julgado procedente e se revogasse a sentença recorrida.

Concluiu as suas alegações da seguinte forma (aqui se reproduzindo as respectivas conclusões ipsis verbis):


1. A sentença recorrida considerou não provado o facto c): “A Ré não tenha pago qualquer preço à Autora pela cessão de quota”.

2. A decisão teve por base alegação da Recorrida de que efectuou o pagamento da quota em dinheiro.

3. Esta alegação não merece credibilidade por um conjunto de motivos: a soma de 10 mil euros é elevada; A. M., gerente da Recorrida, é Economista, foi Assistente universitário e administrador de um banco, de uma seguradora e da NG. durante cerca de 40 anos, não sendo compatível com a sua experiência que efectuasse um pagamento em numerário, além de que sabe que tal pagamento seria ilegal por violação do art. 63º-C/nº 3 da LGT.

4. O perfil e experiência profissional de A. M., aliados ao valor em causa, e apenas numa óptica de ponderação das regras da experiência comum, já seriam suficientes para dar como provado que não houve qualquer pagamento.

5. Pelo requerimento ref.ª 34518758 a Recorrida juntou documentação alegadamente comprovativa do pagamento do preço: tal documentação, aliada ao depoimento do TOC da Recorrida, só reforçaram o nosso entendimento de que se provou abundantemente nos autos que nenhum pagamento foi feito.

6. O extracto da contabilidade junto intitulado “Diário (1)” menciona um negócio efectuado a 23.11, sem indicação do ano (com o número 10009), tendo como data de registo 01.01.2017.

7. O extracto da conta ……00 mostra o lançamento nº 10009 com a data de 01.01.2017, mas o lançamento 10001 (o primeiro do mês de Janeiro de 2017) tem a data de 18.01.2017, ou seja, o lançamento da suposta cessão de quotas, que deveria ser o nono do mês, foi o primeiro.

8. Na IES de 2016, que tem por referência o ano de 2015, já consta a suposta aquisição da quota, isto é, ainda antes do lançamento na contabilidade a 01.01.2017.

9. A testemunha M. F., TOC da Recorrida, nas passagens transcritas refere, em resumo, o seguinte:
- teve conhecimento do negócio em 2013 mas só lhe facultaram o contrato em 2018;
- registou em 01.01.2017 porque em 2018 ainda não tinha fechado as contas de 2017;
- perguntado porque na IES de 2016 constava o negócio que só recebera o documento em 2018,
respondeu que se tratava de um lapso.

10. Do depoimento desta testemunha impõe-se retirar algumas conclusões extraordinárias, que bem atestam a total falta de credibilidade da contabilidade da Recorrida, a saber:
- O TOC refere ter conhecimento da situação em 2018, mas regista o facto em 2017;
- O TOC atribuiu a lapso (!) em 2016 ter declarado um facto de 2013 mas que em simultâneo alega só ter conhecido em 2018.

11. Não existe uma ponta de credibilidade na alegação da Recorrida: A. M., gerente da Recorrida, profissional de topo da banca ao longo de 40 anos, comunica ao TOC em 2013 o negócio mas não entrega o contrato, que entrega em 2018, alegando ter pago 10 mil euros em dinheiro.

12. A análise da prova documental e testemunhal, conjugada com as regras da experiência comum, impunham decisão diversa – manifestamente não só a Recorrida não provou que fez o pagamento em dinheiro como os documentos juntos e o depoimento atrapalhado do TOC atestam, ao invés, que não houve qualquer pagamento; houve, sim, uma tentativa de branquear a situação (para usar uma palavra tão querida aos profissionais da banca), colocando pó de arroz na contabilidade para parecer mais bonita e “direitinha”.

13. Ao abrigo do disposto no artigo 662º do CPC, e tendo presente o segmento do depoimento transcrito da testemunha M. F., conjugado com a prova documental referenciada, deve ser suprimido o facto não provado c), por erro de julgamento de facto, com o aditamento do seguinte facto provado: “A Recorrida não pagou à Recorrente o preço da cessão de quotas”.

14. A sentença recorrida considerou não provados os factos a), b), d), e), f), g), h) e i), especialmente por não ter valorado os depoimentos das testemunhas J. S. e A. C., ao abrigo do disposto no art. 394º/nºs. 1 e 2 do Cciv, tendo considerado que o doc. nº 4 da p.i. não constitui princípio de prova do acordo simulatório.

15. Discorda-se deste entendimento de que o documento não constitui início de prova da simulação, pelos seguintes motivos:
- o documento foi assinado no mesmo dia da cessão de quotas, o que significa que existe uma relação entre ambos e que as partes assim o desejaram;
- o documento estipula a favor da Recorrente todos os direitos que um sócio de uma sociedade comercial tem, incluindo receber lucros na proporção da percentagem “cedida”;
- a explicação fornecida pela Recorrida para ter assinado o documento (que não nega) é, por um lado, ridícula (para que o gerente da Recorrente pudesse alegar perante terceiros que tinha intervenção na sociedade), e, por outro lado, contraditória e confessória (para dar conforto ao gerente da Recorrente dos interesses que tinha na sociedade);
- o representante legal da Recorrente continuou como gerente da sociedade durante 5 anos, não remunerado e com poderes para sozinho a vincular;
- a circunstância do documento não produzir efeitos perante terceiros não o desqualifica quanto às declarações de vontade no mesmo insertas, pois as partes não são advogadas e não têm de conhecer detalhes jurídicos;
- a sentença não considerou o documento como princípio do acordo simulatório mas também não logrou apurar para que serviu, não tendo cumprido a sua função de procurar a descoberta da verdade.

16. A Recorrente aceita que o documento em causa não constitui prova plena do acordo simulatório, mas permite constituir-se como inegável início ou princípio de prova.

17. Só a ponderação da prova testemunhal, declarações de parte ou depoimento de parte do gerente da Recorrida e demais documentos é que irá fazer luz sobre as exactas circunstâncias do negócio que realmente as partes quiseram fazer.

18. O documento em questão abre claramente a porta a que se ponderem os depoimentos das testemunhas J. S. e A. C. e, bem assim, que se ponderem os documentos e testemunho em redor da rábula do suposto pagamento em numerário, além da mui pertinente audição de A. M..

19. A sentença recorrida adoptou uma interpretação demasiado rígida e formalista do art. 394º do CCiv., por via de interpretação redutora do doc. nº 4 da p.i., omitindo uma análise crítica, ponderada e materialmente justa do litígio.

20. Ao não interpretar no sentido defendido o documento em questão incorreu a sentença recorrida em erro de julgamento de facto, concretamente quanto ao não dar como provados os factos a), b), d), e), f), g), h) e i) e ainda erro de julgamento de direito, no caso do artigo 394º/nºs. 1 e 2 do Código Civil.
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1.2.2. Contra-alegações

A (Y - Comunicação, Informação e Consultadoria Financeira, Limitada) contra-alegou, pedindo que se negasse provimento ao recurso, e se mantivesse a sua absolvição da instância.
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II - QUESTÕES QUE IMPORTA DECIDIR

2.1. Objecto do recurso - EM GERAL

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, ambos do CPC), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (art. 608.º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do art. 663.º, n.º 2, in fine, ambos do CPC).

Não pode igualmente este Tribunal conhecer de questões novas (que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais (destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação).
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2.2. QUESTÕES CONCRETAS a apreciar

Mercê do exposto, e do recurso de apelação interposto da sentença final pela Autora (X - SGPS, Limitada), 03 questões foram submetidas à apreciação deste Tribunal:

1.ª - Fez o Tribunal a quo uma errada interpretação e aplicação das regras de direito probatório material, nomeadamente ao considerar ser inadmissível a prova testemunhal para demonstrar a simulação entre simuladores, ignorando um princípio de prova documental idóneo para o efeito ?

2.ª - Fez o Tribunal a quo uma errada interpretação e valoração da prova válida e eficazmente produzida, nomeadamente porque impunha que se dessem como demonstrados os factos não provados enunciados na sentença recorrida sob a alínea a) («O acordo de c) dos factos provados tenha sido alcançado devido a divergências surgidas entre o representante legal da Autora e os representantes legais da terceira sócia (K – Soluções Aplicadas em Geologia, Hidrogeologia e Ambiente, Lda.) e como forma de assegurar alguma paz social e consequente desenvolvimento do seu negócio, por forma a que a terceira sócia considerasse a Autora fora da sociedade»), sob a alínea b) («Não tivesse sido objectivo das partes a compra/venda da quota»), sob a alínea c) («A Ré não tenha pago qualquer preço à Autora pela cessão da quota»), sob a alínea d) («Sempre que se realizaram assembleias gerais daquela sociedade, o representante legal da Autora e o representante legal da Ré (A. M.) se reunissem previamente, acertando qual estratégia adoptar nos diversos pontos a discutir»), sob a alínea e) («Concertando as suas posições e atingindo sempre uma decisão comum e de acordo, nem que, depois, a Autora, por intermédio do seu representante legal, cumprisse e fizesse verter nas sucessivas assembleias gerais»), sob a alínea f) («A presença do legal representante da Autora nas assembleias decorresse da contitularidade das duas quotas»), sob a alínea g) («Nunca tendo as partes tivessem pretendido comprar e vender a quota de que a Autora era titular na sociedade»), sob a alínea h) («A Autora tivesse continuado a exercer todos os seus direitos inerentes a sócia, participando nas assembleias gerais, mediante prévia concertação com a Ré, só não constando o seu voto porque formalmente não era sócia»), e sob a alínea i) («Anteriormente às assembleias gerais, Autora e Ré preparassem em conjunto o seu sentido de voto») ?

3.ª - Fez o Tribunal a quo uma errada interpretação e aplicação da lei (face ao sucesso da prévia impugnação da matéria de facto feita), devendo ser alterada a decisão de mérito proferida (nomeadamente, julgando a acção totalmente procedente) ?
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III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

3.1. Decisão de Facto do Tribunal de 1.ª Instância
3.1.1. Factos Provados

Realizada a audiência de julgamento no Tribunal de 1.ª Instância, resultaram provados os seguintes factos:

a) X - SGPS, Limitada (aqui Autora) e Y - Comunicação, Informação e Consultadoria Financeira, Limitada (aqui Ré) constituíram, em 06 de Setembro de 2011, conjuntamente com K – Soluções Aplicadas em Geologia, Hidrogeologia e Ambiente, Limitada, uma sociedade comercial por quotas denominada W SGPS, Limitada, pessoa colectiva n.º ………, com sede na Rua …, União de Freguesias de .../.../..., Braga.

b) Nos termos desse acto constitutivo, a Autora (X - SGPS, Limitada) subscreveu uma quota de capital social de W SGPS, Limitada, no valor nominal de € 10.000,00, a Ré (Y - Comunicação, Informação e Consultadoria Financeira, Limitada) subscreveu uma quota de igual valor, bem como a terceira sócia (K – Soluções Aplicadas em Geologia, Hidrogeologia e Ambiente, Limitada).

c) A Autora (X - SGPS, Limitada) acordou com a Ré (Y - Comunicação, Informação e Consultadoria Financeira, Limitada) transferir para a titularidade desta a sua quota em W SGPS, Limitada.

d) Este negócio foi celebrado em 21 de Novembro de 2013, sob a veste de uma cessão de quota, lendo-se nomeadamente no documento que o corporizou:
«(…)
CONTRATO DE CESSÃO DE QUOTAS
OUTORGANTES:
PRIMEIRO: X SGPS, LDA (…).
SEGUNDO: Y - Comunicação, Informação e Consultadoria Financeira, Lda. (…).

Entre os Outorgantes é celebrada a presente cessão de quotas, sujeita às seguintes cláusulas:
PRIMEIRA
O primeiro Outorgante X SGPS LDA, é sócio da sociedade comercial por quotas W SGPS LDA (…).
SEGUNDA
Pelo presente contrato, o primeiro Outorgante X SGPS LDA, cede ao Segundo Outorgante Y - Comunicação, Informação e Consultadoria Financeira, Lda., a quota que detém na referida sociedade, no valor de € 10.000,00 (dez mil euros).
TERCEIRA
A cessão de quotas é feita pelo seu valor nominal, tendo o Primeiro Outorgante X SGPS LDA recebido nesta data o monante global em causa e do qual desde já dá a devida quitação.
QUARTA
A presente cessão de quotas é celebrada ao abrigo do artigo 228º do Código das Sociedades Comerciais, na versão introduzida pelo D.L. m.º 76-A/2006 de 27 de Março.

Braga, 21 de Novembro de 2013
(…)»

e) Com a assinatura da cessão de quotas (21 de Novembro de 2013), as partes subscreveram um documento intitulado «ACORDO DE VONTADES», que aqui se dá por integralmente reproduzido e onde nomeadamente se lê:
«(…)
PRIMEIRA OUTORGANTE: Y - Comunicação, Informação e Consultadoria Financeira, Lda. (…).
SEGUNDA OUTORGANTE: X SGPS, LDA (…).

Entre as Outorgantes é acordado o seguinte:

CLÁUSULA PRIMEIRA
Em 21 de novembro de 2013, a Segunda Outorgante vendeu à Primeira Outorgante, por contrato de cessão de quota, uma quota no valor nominal de dez mil euros que detinha na sociedade comercial W, SGPS, Lda. (…)
CLÁUSULA SEGUNDA
Sem prejuízo da cessão de quotas outorgada, as partes acordam que a Segunda Outorgante mantém os seguintes direitos na sociedade W SGPS, Lda.:
- Acompanhamento da sua actividade, podendo emitir as suas opiniões sobre a estratégia e interesses da empresa;
- Participação em Assembleias Gerais, com direito a emitir a sua opinião e sentido de voto nas matérias a deliberar;
- Lucros a distribuir no valor correspondente a participação social que detinha (…%).

Feito em duplicado, ficando um exemplar para cada uma das partes.

Braga, 21 de novembro de 2013.
(…)»

f) De 2013 até 14 de Setembro de 2018, o representante legal da Autora (R. P.) manteve-se como gerente de W SGPS, Limitada.
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3.1.2. Factos não provados

O Tribunal de 1.ª Instância considerou ainda como «não provados (apenas os que relevam para a decisão da causa)» os seguintes factos (aqui apenas identificados, com uma acrescia «», para melhor os distinguir dos provados) :

a’) O acordo referido em c) dos facto provados (a Autora transferir para a Ré a titularidade da sua quota em W SGPS, Limitada) tenha sido alcançado devido a divergências surgidas entre o representante legal da Autora (X - SGPS, Limitada) e os representantes legais da terceira sócia (K – Soluções Aplicadas em Geologia, Hidrogeologia e Ambiente, Limitada), e como forma de assegurar alguma paz social e consequente desenvolvimento do seu negócio, por forma a que a terceira sócia considerasse a Autora fora da sociedade.

b’) Não tivesse sido objectivo das partes a compra/venda da quota.

c’) A Ré (Y - Comunicação, Informação e Consultadoria Financeira, Limitada) não tenha pago qualquer preço à Autora (X - SGPS, Limitada) pela cessão da quota.

d’) Sempre que se realizaram assembleias gerais de W SGPS, Limitada, o representante legal da Autora (X - SGPS, Limitada) e o representante legal da Ré (A. M.) se reunissem previamente, acertando qual estratégia adoptar nos diversos pontos a discutir.

e’) Concertando as suas posições e atingindo sempre uma decisão comum e de acordo, nem que, depois, a Autora (X - SGPS, Limitada), por intermédio do seu representante legal, cumprisse e fizesse verter nas sucessivas assembleias gerais.

f’) A presença do legal representante da Autora (X - SGPS, Limitada) nas assembleias decorresse da contitularidade das duas quotas.

g’) Nunca tendo as partes tivessem pretendido comprar e vender a quota de que a Autora (X - SGPS, Limitada) era titular na W SGPS, Limitada.

h’) A Autora (X - SGPS, Limitada) tivesse continuado a exercer todos os seus direitos inerentes a sócia, participando nas assembleias gerais, mediante prévia concertação com a Ré (Y - Comunicação, Informação e Consultadoria Financeira, Limitada), só não constando o seu voto porque formalmente não era sócia.

I’) Anteriormente às assembleias gerais, Autora (X - SGPS, Limitada) e Ré (Y - Comunicação, Informação e Consultadoria Financeira, Limitada) preparassem em conjunto o seu sentido de voto.
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3.2. Modificabilidade da decisão de facto - Erro de julgamento

3.2.1. Incorrecta apreciação da prova legal

3.2.1.1. Prova livre versus Prova legal - Poder (oficioso) do Tribunal da Relação

Lê-se no art. 607.º, n.º 5, I parte, do CPC que o «juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto».
Contudo, esta «livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes» (II parte, do n.º 5, do art. 607.º do CPC citado).
Distingue-se, assim, entre os casos de: prova legal (vinculada, tabelada ou tarifada), isto é, meios de prova cuja força probatória se impõe ao juiz, não tendo este qualquer margem de valoração acerca da factualidade expressa por tais meios probatórios (1); e prova livre, isto é, meios de prova cujo valor probatório é livremente apreciado pelo juiz (2).
A regra geral será, então, a livre apreciação da prova pelo Tribunal, sem prejuízo dos casos de apreciação vinculada, como acontece com a confissão judicial escrita (art. 358.º, n.º 1 do CC), com a confissão extrajudicial constante de documento dirigida à parte contrária (art. 358.º, n.º 2 do CC), e com certa prova documental (arts. 371.º, n.º 1, 376.º, n.º 1 e 377.º, todos do CC).

Mais se lê, no art. 662.º, n.º 1 do CPC, que a «Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa».
Logo, quando os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas, a dita modificação da matéria de facto - que a ela conduza - constitui um dever do Tribunal de Recurso, e não uma faculdade do mesmo (o que, de algum modo, também já se retiraria do art. 607.º, n.º 4 do CPC, aqui aplicável ex vi do art. 663.º, n.º 2 do mesmo diploma). (3)
Estarão, nomeadamente, aqui em causa, situações de aplicação de regras vinculativas extraídas do direito probatório material (regulado, grosso modo, no CC), onde se inserem as regras relativas ao ónus de prova, à admissibilidade dos meios de prova, e à força probatória de cada um deles, sendo que qualquer um destes aspectos não respeita apenas às provas a produzir em juízo.
Quando tais normas sejam ignoradas (deixadas de aplicar), ou violadas (mal aplicadas), pelo Tribunal a quo, deverá o Tribunal da Relação, em sede de recurso, sanar esse vício; e de forma oficiosa. Será, nomeadamente, o caso em que, para prova de determinado facto tenha sido apresentado documento autêntico - com força probatória plena - cuja falsidade não tenha sido suscitada (arts. 371.º, n.º 1 e 376.º, n.º 1, ambos do CPC), ou quando exista acordo das partes (art. 574.º, n.º 2 do CPC), ou quando tenha ocorrido confissão relevante cuja força vinculada tenha sido desrespeitada (art. 358.º do CC, e arts. 484.º, n.º 1 e 463.º, ambos do CPC), ou quando tenha sido considerado provado certo facto com base em meio de prova legalmente insuficiente (vg. presunção judicial ou depoimentos de testemunhas, nos termos dos arts. 351.º e 393.º, ambos do CC).
Ao fazê-lo, tanto poderá afirmar novos factos, como desconsiderar outros (que antes tinham sido afirmados).
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3.2.1.2. Inadmissibilidade de prova testemunhal versus Documento particular e Confissão

3.2.1.2.1. Documento particular com assinatura reconhecida - Força probatória

Lê-se no art. 363.º, n.º 2 do CC que consideram-se autênticos «os documentos exarados, com as formalidades legais, pelas autoridades públicas nos limites da sua competência ou, dentro do círculo de actividades que lhe é atribuído, pelo notário ou outro oficial público provido de fé pública; todos os outros documentos são particulares».
Mais se lê, no art. 373.º, n.º 1 do CC, que os «documentos particulares devem ser assinados pelo seu autor»; e, no art. 374.º, n.º 1, que a «letra e a assinatura, ou só a assinatura, de um documento particular consideram-se verdadeiras, quando reconhecidas ou não impugnadas pela parte contra quem o documento é apresentado».
Feito, sendo o documento particular assinado reconhecido como próprio (por parte daquele a quem se imputou a respectiva assinatura), a força probatória a conferir-lhe resulta imperativamente do art. 376.º do CC, isto é: «faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento» (n.º 1); e os «factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante», sendo porém «a declaração (…) indivisível, nos termos prescritos pra a prova por confissão».
Logo, a força probatória do documento particular com assinatura reconhecida circunscreve-se, assim, «ao âmbito das declarações (de ciência e de vontade) que nele constam como feitas pelo respectivo subscritor» (José Lebre de Freitas, A Falsidade no Direito Probatório, Coimbra Editora, 1991, pág. 55, com bold apócrifo); e, por isso, «não impede que as declarações dele constante sejam impugnadas com base na falta de vontade ou nos vícios da vontade capazes de a invalidarem» (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, 4.ª edição, Coimbra Editora, Limitada, pág. 332).
Por outras palavras, «a força probatória plena qualificada não prova que as declarações são verdadeiras ou que não estão inquinadas por vícios de vontade (arts. 376º, nº2 e 359º, nº 1 e 2 do CPC)», reportando-se «tão só às declarações, ficando por demonstrar que tais declarações correspondiam à realidade dos factos materiais, e sobretudo, não se excluindo a possibilidade de o seu autor demonstrar a inveracidade daqueles factos por qualquer meio de prova. Saber se as declarações documentadas vinculam o seu autor é questão que não respeita à força probatória do documento mas sim à eficácia da declaração. As declarações só vinculam o seu autor se forem verdadeiras» (Luís Pires de Sousa, Prova testemunhal, Almedina, 2014, pág. 206, com bold apócrifo).

Convém, porém não esquecer (relativamente a este núcleo de factos excluídos da prova plena do documento autêntico) que a declaração contida em documento particular com assinatura reconhecida poderá constituir-se como uma confissão extrajudicial (arts. 352.º e 355.º, n.º 4, ambos do CC) (4); e que, sendo feita à parte contrária, tem força probatória plena (art. 358.º, n.º 2, do CC).
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3.2.1.2.2. Confissão - Força probatória

Precisando, lê-se no art. 352.º do CC, que confissão «é o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária».
A confissão é tida como «uma declaração representativa (sobre a realidade dum facto)» (José Lebre de Freitas, A Confissão no Direito Probatório, Coimbra Editora, 1991, pág. 472). Consubstancia, assim, um acto jurídico (uma declaração de ciência), que a lei sujeita a um regime próprio (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, 4.ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, Limitada, pág. 313).

Mais se lê, no art. 355.º, n.º 1, n.º 2 e n.º 4 do CC, que, podendo a confissão ser judicial ou extrajudicial, a primeira será a realizada em juízo, e a segundo será realizada por algum modo diferente daquela.
Lê-se ainda no art. 358.º, n.º 2 do CC que a «confissão extrajudicial, em documento autêntico ou particular, considera-se provada nos termos aplicáveis a estes documentos e, se for feita à parte contrária ou a quem a represente, tem força probatória plena».
Logo, o beneficiário da declaração confessória é dispensado de provar a veracidade do seu conteúdo e, concretamente, de demonstrar, por outras vias, a efectivação do cumprimento, como forma de extinção da obrigação relativa à contrapartida que sobre si impendia (5).
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3.2.1.2.3. Modo de contrariar a prova plena
3.2.1.2.3.1. Prova plena versus Prova por testemunhas - Regra geral

Lê-se no art. 347.º do CC que a «prova legal plena só pode ser contrariada por meio de prova que mostre não ser verdadeiro o facto que dela for objecto, sem prejuízo de outras restrições especialmente determinadas na lei» (6).
Logo, a prova (legal) plena apenas cede mediante a prova do contrário (a demonstração de que certo facto não existe, de que não é verdadeiro). Será, por exemplo, o caso do art. 350.º, n.º 2 do CC, relativo às presunções legais ilidíveis, ou dos arts. 371.º e 372.º , ambos do CC, relativos aos documentos autênticos.

Contudo, precisa-se no art. 393.º, n.º 2 do CC que «quando o facto estiver plenamente provado por documento, ou por outro meio com força probatória plena», «não é admitida prova por testemunhas».
Logo, «a inadmissibilidade da prova testemunhal contra o conteúdo de documentos autênticos, na parte em que estes têm força probatória plena, resulta dos artigos 371º e 372º; em relação aos documentos particulares, do artigo 376º, conjugados num e noutro caso com o disposto no nº 2 do artigo 393º» (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, 4.ª edição, Coimbra Editora, Limitada, pág. 343, com bold apócrifo).
Compreende-se, ainda, que se leia: no art. 393.º, n.º 1 do CC, que se «a declaração negocial, por disposição da lei ou estipulação das partes, houver de ser reduzida a escrito ou necessitar de ser provada por escrito, não é admitida prova testemunhal»; e no art. 394.º do CC, que é «inadmissível a prova por testemunhas, se tiver por objecto quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico ou dos documentos articulares mencionados nos artigos 373.º a 379.º quer as convenções sejam anteriores à formação do documento ou contemporâneas dele, quer sejam posteriores» (n.º 1), o que se aplica «ao acordo simulatório e ao negócio dissimulado, quando invocado pelos simuladores» (n.º 2).
Dir-se-á ainda que, se de acordo com o art. 351.º do CC as «presunções judiciais só são admitidas nos termos em que é admissível a prova testemunhal», também elas estarão excluídas para demonstração do contrário de um facto plenamente provado por documento particular cuja autoria esteja reconhecida.
Precisa-se, porém e de novo, que, de acordo com «a utilização da forma verbal “estiver”, (…) que depois de estar definitivamente assente a prova plena, por preclusão do direito de a contrariar ou por improcedência da alegação contrária (vise esta, no caso dos documentos, estabelecer a sua não genuinidade ou a sua falsidade), é que não mais é admissível a prova em contrário daquela. (…) O art. 393º do C.Civil (…), contendo uma norma de prova legal negativa, é um mero reflexo das normas de prova legal positiva acima referidas (…): imposto como possível um único meio de prova, estão excluídos todos os outros (nº 1); imposta uma decisão, está negado valor aos meios de prova que a decisão diferente poderiam conduzir (nº 2)» (José Lebre de Freitas, A Falsidade no Direito Probatório, Almedina, 1984. págs. 182-3, nota 36, com bold apócrifo).
Logo, se num documento particular a parte a quem é imputada a sua letra e assinatura as reconhece como suas, verá plenamente provadas as declarações ali produzidas por si (arts. 374.º, n.º 1 e 376.º, n.º 1, ambos do CC), apenas podendo demonstrar a respectiva falsidade por meio de confissão da parte de que delas se pretende aproveitar (sendo a confissão precisamente «o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária», nos termos do art. 352º do C.C.), ou por meio de um documento idóneo a produzir esse efeito; mas nunca por prova testemunhal ou por presunções judiciais.
Do mesmo exacto modo se terá de entender (e decidir) quanto à confissão extrajudicial constante de documento cuja autoria esteja reconhecida, e que tenha sido feito à parte contrária ou a quem a represente, já que - nos termos do art. 358.º, n.º 2 do CC - goza de força probatória plena (assim se contendo na parte final do n.º 2 do art. 393.º do CC, isto é, facto plenamente provado «por outro meio com força probatória plena»).
Compreende-se, por isso, que se afirme que «vedada a prova testemunhal também ficará vedado o recurso às presunções judiciais - prova da primeira aparência (presunção simples) - “ex vi” do artigo 351.º do Código Civil»; e restando assim, a nível das presunções, (…) as presunções legais», bem como a prova «documental (com as restrições do n.º 1 do artigo 394 CC) e a confissão» (Ac. do STJ, de 07.02.2017, Sebastião Póvoas, Processo n.º 3071/13.6TJVNF.G1.S1).
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3.2.1.2.3.2. Excepções (à inadmissibilidade de prova por testemunhas versus prova plena)

Contudo, e aderindo à pretérita construção doutrinal de Vaz Serra a este respeito («Provas, Direito Probatório Material», BMJ, n.º 112, págs. 199 a 216), a jurisprudência vem admitindo expressamente três excepções à inadmissibilidade da prova testemunhal prevista no art. 393.º, n.ºs 1 e 2 do CC (e também no art. 394.º do mesmo diploma), nomeadamente:

. existência de qualquer escrito, proveniente daquele contra quem a acção é dirigida ou do seu representante, que torne verosímil o facto alegado (7) - existindo «um começo de prova por escrito, a prova testemunhal terá o papel de um suplemento de prova, pois as testemunhas não são já o único meio de prova do facto; e a excepção justifica-se pela circunstância de, neste caso, o perigo da prova testemunhal ser, em grande parte, eliminado, uma vez que a convicção do juiz está já firmada em parte com base num documento» (Vaz Serra, op. cit).
Precisa-se, porém, que o princípio de prova escrita deve emanar de quem a mesma é oposta (e não de um terceiro); e a letra e a assinatura têm de ser previamente reconhecidas ou verificadas.

. a impossibilidade (moral ou material) de obtenção de prova escrita por parte de quem invoca a prova testemunhal - compreende-se que quando a lei impõe às partes que procurem uma prova escrita dos seus actos, fá-lo no pressuposto de que elas têm meios para o fazer, deixando essa exigência de fazer sentido quando a parte que procura contrariar a força probatória plena do dito documento não pôde obter - do seu contraente, ou dos contraentes terceiros - ex ante uma prova escrita.
Precisa-se, porém, que esta impossibilidade (que, sendo maior do que uma simples dificuldade, não tem de ter carácter absoluto), deve reportar-se ao momento da estipulação negocial, sendo atendíveis as situações objectiva e subjectiva dos contraentes.

. e a perda, sem culpa, da prova escrita - esta excepção «tem como pressuposto prévio, cuja demonstração incumbe ao alegante, a alegação e prova de que o documento se formou validamente, ficando a eficácia da prova do conteúdo do documento subordinada à de perda não culposa do mesmo. Aqui é essencial que a perda não seja de algum modo imputável à fata de diligência da parte, que a mesma não possa imputar-se a alguma forma de imprudência ou de negligência e incúria na custódia do escrito, aferidas segundo os cânones de comportamento exigíveis ao bom pai de família» (Luís Filipe Pires de Sousa, Prova por Presunção no Direito Civil, 3.ª edição, Almedina, Janeiro de 2017, págs. 228 e seguintes, com indicação de diversos arestos na nota 495).
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Precisa-se, porem, que ficará necessariamente de fora deste âmbito de proibições de prova (reportadas a factos contrários aos firmados por prova legal plena) a demonstração da falta ou vício de vontade que afecte o autor da declaração (nomeadamente, confessória) objecto da dita prova plena, demonstração essa que poderá ser feita por qualquer meio de prova, incluindo testemunhal.
Com efeito, a «tal não obsta o disposto nos arts. 392-2 e 351 do Código Civil, ao excluírem a admissibilidade da prova testemunhal e da presunção judicial quanto a factos plenamente provados por um meio com força probatória plena. Fazendo-o, a lei veda o recurso a esses meios de prova para contrariar a prova que haja sido extraída duma declaração confessória (“quando o facto estiver plenamente provado”), mas sempre com ressalva da possibilidade de ilisão da presunção que está na base da força probatória atribuída à confissão. Articulando-se com o art. 652-2 do Código de Processo Civil, o preceito referido, contendo uma normal geral, não constitui uma das derrogações especiais a que se refere o art. 347.º do Código Civil e apenas tem o alcance de vedar que, uma vez assente, por confissão não impugnada, a realidade de determinado facto, esta prova possa ser posta em causa por testemunhas ou presunções judiciais, deixando intacto o problema da colisão da confissão com outros meios de prova legal plena» (José Lebre de Freitas, A Confissão no Direito Probatório, Coimbra Editora, 1991, pág. 758).
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3.2.1.3. Caso concreto (subsunção ao Direito aplicável)
3.2.1.3.1. Aplicação da regra geral

Concretizando, verifica-se que, tendo a Autora (X - SGPS, Limitada) e a Ré (Y - Comunicação, Informação e Consultadoria Financeira, Limitada) celebrado por escrito um acordo que epigrafaram «CONTRATO DE CESSÃO DE QUOTAS», onde aquela declarou ceder a esta a quota que detinha em W SGPS, Limitada, pelo valor de € 10.000,00, o assinaram ambas; e que, tanto a Autora, como a Ré, reconheceram como suas as assinaturas que aí lhes eram imputadas.
Ao fazê-lo, viram plenamente provadas as declarações próprias ali produzidas, nomeadamente as que eram contrárias aos seus interesses (arts. 374.º, n.º 1 e 376.º, n.º 1 e n.º 2, ambos do CC); e, por isso, deixaram as mesmas de poder ser contrariadas quer por prova testemunhal, quer por prova por presunções (arts. 351.º e 393.º, ambos do CC).
Ora, pretendendo a Autora (X - SGPS, Limitada) demonstrar nos autos a falsidade das declarações constantes do dito acordo «CONTRATO DE CESSÃO DE QUOTAS», nomeadamente que não corresponderam à vontade real das partes, por divergência intencional entre esta e o ali declarado, não poderia servir-se de prova por testemunhal ou por presunções judiciais para o efeito.

Acresce que a Autora (X - SGPS, Limitada) declarou no mesmo documento «ter recebido nesta data o montante global em causa [€ 10.000,00, de preço da quota que declarou ceder] e do qual desde já dá a devida quitação.
Com efeito, o autor do cumprimento pode exigir a quitação de quem quer que tenha recebido a prestação, antes ou depois do cumprimento, podendo a mesma constar de documento autêntico ou autenticado, ou ser provida de reconhecimento notarial se nisso o autor do cumprimento tiver interesse legítimo (art. 787.º do CC).
Aquela declaração corresponde à admissão de um facto que era desfavorável à Autora (extinção do seu crédito de preço) e favorece a parte contrária, aqui Ré (a antes devedora do dito preço).
Feita em documento particular, com autoria reconhecida, ficou não só assente a autoria dessa declaração (isto é, o tê-la de facto a Autora produzido), como a sua natureza confessória, extrajudicial e dirigida à parte contrária (a aqui Ré); e, por isso, passou tal confissão a gozar de força probatória plena, que desse modo cobriu, não apenas a autoria das declarações emitidas pela Autora (X - SGPS, Limitada) no dito documento (no regime que lhe é próprio, fixado no art. 376.º do CC), como igualmente o conteúdo do facto confessado, isto é, o efectivo recebimento por ela do preço que lhe era devida (no regime que lhe é próprio, fixado no art. 358.º, n.º 2 do CC).
Logo, estando aquele efectivo recebimento do preço plenamente provado, não seria admitida a demonstração do seu contrário (a sua inexistência) por meio de prova testemunhal, nos termos do art. 393.º, n.º 2 do CC.
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3.2.1.3.2. Aplicação da excepção - Acordo simulatório

Concretizando uma vez mais, veio porém a Autora (X - SGPS, Limitada) sustentar (nomeadamente, em sede de recurso interposto) que o documento «ACORDO DE VONTADES» consubstanciaria precisamente um escrito, proveniente daquele contra quem a acção é dirigida (a Ré), tornando verosímil o facto alegado (o carácter simulado do contrato de cessão de quotas); e, por isso, permitiria a título excepcional a prova do mesmo por testemunhas e por presunções judiciais.

Com efeito, vem-se defendendo que, «no concernente à prova admissível do negócio simulado, (…), pese embora seja proibida a produção de prova testemunhal quando a simulação é invocada pelos próprios simuladores», admite-se, «em interpretação restritiva do art. 394º do Código Civil, que possa ser produzida prova testemunhal desde que o acordo simulatório contenha um mínimo de prova, um começo de prova de natureza documental» (Mota Pinto e Pinto Monteiro, «Arguição da Simulação pelos Simuladores - Prova Testemunhal», CJ, Ano X (1985), págs. 593 e segs.) (8).
Logo, o «art.º 394.º, nºs 1 e 2, do Código Civil, ao impedir o recurso exclusivo à prova testemunhal e/ou por presunções judiciais, não veda completamente a ponderação de tais meios de prova quando conjugados com meios de prova documental ou outra de valor idêntico que constitua, pelo menos, um princípio de prova do acordo simulatório ou do negócio dissimulado, pois, nessa situação, a convicção do tribunal está já parcialmente formada com base nessas circunstâncias ou neste escrito, e a prova testemunhal limitar-se-á a esclarecer o significado de tais circunstâncias ou da declaração constante do escrito que constitui começo de prova. Deve, assim, entender-se, que havendo um princípio de prova documental, a prova testemunhal já não é o único meio de prova do facto, razão pela qual o perigo decorrente da falibilidade da prova testemunhal é eliminado em grande parte, visto a convicção do tribunal se achar já formada parcialmente com base num documento. A apreciação da prova deve ocorrer sob o signo da probabilidade lógica – de evidence and inference -, ou seja, segundo o grau de confirmação lógica que os enunciados de facto obtêm a partir das provas disponíveis» (Ac. da RG, de 21.11.2019, Jorge Teixeira, Processo n.º 503/18.0T8GMR.G1).

Precisa-se, porém, que esta prova escrita se reporta necessariamente a documento que torne verosímil a existência de acordo simulatório (sendo, por isso, ele o elemento de prova nuclear e determinante); e a prova testemunhal admissível destinar-se-á, precisamente, a complementar ou a interpretar o sentido de tal documento (tendo, por isso, mera função de complemento ou de interpretação do seu sentido).
Compreende-se, por isso, que se afirme que o documento que possa sustentar um princípio de prova do acordo simulatório há-de ser «um documento emitido pelos próprios simuladores donde possa inferir-se que eles estavam a fazer um acordo simulatório, de modo que esse documento possa vir mais tarde a ser por eles usado para provar que não quiseram nenhum negócio (ou quiseram outro diferente do simulado). É aí que a doutrina e a jurisprudência aceitam que a prova testemunhal possa ser admitida, não para provar o acordo simulatório, mas para auxiliar na interpretação desse documento, que por si só não é suficiente para provar a simulação» (Ac. da RG, de 10.07.2019, Maria Amália Santos, Processo n.º 2808/18.1T8GMR.G1).
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Ora, ponderando expressamente o exposto, viria porém o Tribunal a quo a negar ao documento escrito «ACORDO DE VONTADES» esta precisa natureza, ponderando nomeadamente para o efeito:
«(…)
No caso dos autos, a Autora apresentou o documento intitulado “acordo de vontades” e pretende, aparentemente, usá-lo como princípio de prova do acordo simulatório.
Sucede que, lido e relido o documento apresentado, não lhe vislumbramos teor suficientemente clarificante para assim o considerarmos.
Na verdade, o documento limita-se a prever duas cláusulas:
Na primeira, declara-se, expressamente, que a Autora vendeu à Ré, pelo valor nominal de dez mil euros a quota que detinha na sociedade W SGPS S.A.
Ou seja:
Num documento que, supostamente, teria sido elaborado apenas para salvaguardar a posição da ora Autora, reitera-se a celebração do negócio de cessão de quota. Nada se diz quanto à vontade alegadamente escondida, nem quanto à existência de divergência entre a vontade querida e a que ficou declarada no documento de cessão de quota. E, temos para nós como indubitável, que seria esse o documento - e o momento - para dizer, sem que o fito simulador fosse descoberto por terceiros, o que as partes, alegada e verdadeiramente, queriam.
Mais não podemos deixar de referir que, ouvido em declarações de parte o legal representante da Autora, R. P., ficámos perfeitamente convictas que se trata de um empresário experiente, habituado a gerir relações comerciais e a entabular acordos. Acresce que o próprio declarante é contabilista certificado! É claramente inverosímil que um indivíduo assim qualificado aceitasse outorgar um documento intitulado “acordo de vontades” que, literalmente, não permite antever e comprovar a existência de qualquer acordo simulatório. Não se vê pela letra do acordo e não se crê pela experiência do legal representante que fosse plausível que tivesse sido o legal representante da sociedade adquirente que a redigir tal documento. Na verdade, era a Autora quem teria que se proteger! Sendo insólita a forma titubeante como o declarante se referiu à elaboração do documento.
Em suma: da letra da cláusula primeira não se detecta qualquer indício que comprovasse a existência de um acordo simulatório.

Vejamos a clausula segunda:
Prevê-se ali que, “sem prejuízo da cessão de quota outorgada” – ou seja, reiterando a celebração do negócio que ora se põe em causa -, à Autora seria, ainda assim, possível acompanhar a actividade da W, emitindo opiniões sobre a estratégia e interesses da empresa; participar em assembleias gerais com direito a emitir a sua opinião e sentido de voto sobre as matérias a deliberar e quinhoar nos lucros no valor correspondente à participação social que detinha.
Vistos os três items que constam daquela cláusula, não vemos, também aqui, que as partes tivessem redigido este documento para, um dia mais tarde, conseguirem provar a existência da simulação. Mais a mais, o direito de participar em assembleias ou de quinhoar nos lucros nunca dependeria da vontade do cessionário, porque a isso obsta a letra da lei.
Concluindo:
O documento apresentado pela Autora não pode constituir um princípio de prova do acordo simulatório que permitisse ao Tribunal formar parcialmente a sua convicção com base nessas circunstâncias ou neste escrito. Logo, inexistindo esse princípio de prova, não poderemos usar a prova testemunhal produzida em julgamento para esclarecer o significado de tais circunstâncias ou da declaração constante do escrito que constituiria começo de prova.
(…)»

Dir-se-á porém, e salvo o devido respeito pela opinião contrária, que não se subscreve este seu juízo, que se crê de tal forma exigente que poucos seriam os documentos que preencheriam a previsão da produção excepcional de prova (testemunhal e por presunção) em análise, já que quase e só reservada para escritos onde expressamente se declarasse a existência da simulação havida.
*
Com efeito, e tal como referido antes, o que aqui se exige é um documento escrito que torne verosímil (e não necessariamente certo) o acordo simulatório.

Ora, e compulsado o «ACORDO DE VONTADES» em causa, reconhece-se que no mesmo se reafirma, quer na sua Cláusula Primeira, quer no intróito da sua Cláusula Segunda, a realização do contrato de cessão de quota, por meio da qual a Autora (X - SGPS, Limitada) vendeu à Ré (Y - Comunicação, Informação e Consultadoria Financeira, Limitada), por € 10.000,00, a quota que detinha em W SGPS, Limitada; e que não se afirma, de forma expressa, que essa cessão de quotas foi simulada.

Dir-se-á, porém, que essa referência ao dito contrato de cessão de quotas num acordo simulatório seria, não só normal, como expectável, já que é precisamente a sua efectiva existência (do contrato simulado) e efeitos (indesejados) que o acordo simulatório pretende contornar; e, por isso, o refere, já que em oposição a ele desenhará o seu próprio (e contrário) teor.

Dir-se-á ainda que, não obstante as partes do acordo simulatório pretendam salvaguardar com ele o sentido e efeitos da sua real e efectiva vontade (não declarada no contrato simulado), também se compreende que, na maioria dos casos, não assumam de forma expressa a sua voluntária e intencional actuação ilícita (a mesma que, a ser conhecida, fulmina com a nulidade o contrato simulado, não raro celebrado com a instrumentalização de oficial público e cujos efeitos são objecto de registo oficial).
Por outras palavras, e no caso dos autos, sendo os legais representantes da Autora (X - SGPS, Limitada) e da Ré (Y - Comunicação, Informação e Consultadoria Financeira, Limitada) - os mesmos que intervieram no «CONTRATO DE CESSÃO DE QUOTAS» e no «ACORDO DE VONTADES» - pessoas academicamente diferenciadas, empresários de múltiplas e socialmente reconhecidas actividades e titulares de plúrimas empresas (9), previsivelmente não quereriam assumir de forma expressa uma actuação publicamente enganosa, sempre maculadora da lealdade e probidade negocial que lhes deveria ser reconhecida (face ao risco do acordo simulatório poder vir a ser conhecido por terceiros), desde que deixassem suficientemente salvaguardadas as suas reais e efectivas intenções.

Prosseguindo, é inegável que ambos os acordos («CONTRATO DE CESSÃO DE QUOTAS» e «ACORDO DE VONTADES») foram celebrados na mesma ocasião, isto é, 21 de Novembro de 2013; e que enquanto o primeiro o foi de forma pública, já que os seus efeitos foram inclusivamente levados ao registo comercial, o segundo permaneceu desconhecido de outros que não as respectivas partes, coberto pelo resguardo próprio de um acordo simulatório.
Ora, este intencional desconhecimento (implicitamente reconhecido pela própria Ré, quando na sua contestação afirma que, «nunca, durante cinco anos, foi dado cumprimento ao nele exarado nem a Autora alguma vez o exigiu») é absolutamente incompatível com a explicação dada por ela para a sua redacção, isto é, que o teria sido a pedido e no interesse exclusivo da Autora, para «dar conforto à posição da Autora e dele próprio [seu legal representante] na sociedade W, SGPS, Lda.», permitindo simultaneamente «demonstrar perante terceiros que manteria interesse na sociedade».
Por outras palavras, e face à explicação adiantada pela Ré para o surgimento do «ACORDO DE VONTADES», seria necessário que o mesmo fosse conhecido quer de W SGPS, Limitada (da qual, recorda-se, o legal representante da Autora se manteve gerente desde 2013 até Setembro de 2018), quer de terceiros face aos quais se antecipava útil ou necessária a sua exibição (sem que, porém, fosse concretizada essa utilidade ou necessidade, e sem que qualquer um desses terceiros tenha sido referido ou arrolado nos autos).

Prosseguindo uma vez mais, dir-se-á ainda que, servindo o «ACORDO DE VONTADES» o propósito referido pela Ré (Y - Comunicação, Informação e Consultadoria Financeira, Limitada), mais facilmente se compreenderia que o mesmo se bastasse com uma mera, singela e unilateral declaração sua, reconhecendo à Autora os direitos nele referidos como lhe pertencendo, não obstante a cessão de quotas havida (pese embora - e estranhamente face à natureza de sociedades comerciais das envolvidas - sem qualquer contrapartida conhecida).
Ora, o referido «ACORDO DE VONTADES» é bem mais enfático do que isso, pois desde logo pressupõe taxativamente que resultou de um encontro de duas vontades (da Autora e da Ré), reflectindo o seu teor o respectivo conteúdo; e a ausência de qualquer contrapartida conhecida para os direitos conferidos à Autora torna-se compreensível se se lhe reconhecer natureza de acordo simulatório, já que a mesma não se justificaria, uma vez que aquela nunca chegara a ceder qualquer participação social na W SGPS, Limitada (limitando-se a ver ali reconhecido como próprio o núcleo essencial dos direitos sociais pretensamente cedidos).

Prosseguindo de novo, e atentando no teor fundamental do acordado, ter-se-á que reconhecer que, ao acordaram as partes em reconhecer à Autora os direitos de acompanhar a actividade de W SGPS, Limitada (emitindo opiniões sobre a sua estratégia e interesses), de participar nas suas assembleias gerais (emitindo a sua opinião e sentido de voto), e de quinhoar nos lucros (em valor correspondente à participação social que antes nela detinha), estão precisamente a tentar contornar os efeitos da cessão de quotas havida, já que tais direitos sãos os principais que decorrem da qualidade de sócio.
O facto de um tal «ACORDO DE VONTADES» poder ser formalmente irregular (por falta de poderes bastantes do legal representante da Ré) e legalmente ineficaz (por não vincular W SGPS, Limitada) não nos impressiona, reconhecido ao legal representante a Ré a detenção maioritária (91%) do seu capital próprio e do capital próprio (dois terços) de W SGPS, Limitada. Logo, e desse modo, poderia sempre determinar as decisões de uma e outra, o que ambas as partes bem saberiam, aceitando assim sacrificar a regularidade formal e a eficácia legal do acordo de vontades próprias ao sigilo que para o mesmo pretenderiam. Já o contrário implicaria que o pretenso acordo simulatório passasse a ser conhecido pela remanescente sócia da Ré e por W SGPS, Limitada, o que em absoluto inviabilizaria a satisfação dos interesses visados com a simulada cessão de quotas (face à, deste modo, cada vez mais verosímil tese da Autora).

Por fim, dir-se-á que, a ser real a cessão de quotas havida, mal se compreenderia que o legal representante da Autora se mantivesse como gerente de W SGPS, Limitada, sem qualquer remuneração, isto é, previsivelmente contribuindo com o seu tempo e conhecimentos para o seu desenvolvimento comercial, sem que depois beneficiasse por qualquer forma dele; e sem que tivesse sido adiantada uma qualquer outra explicação para o efeito.
Já lida essa prolongada e pro bono exercício de funções à luz da simulação denunciada nos autos, faz a mesma todo o sentido, uma vez que o legal representante da Autora saberia que continuava desse modo a aumentar o valor do seu património próprio, pela manutenção no mesmo da quota social simuladamente cedida.
O facto de assim, e alegadamente, não ser assegurada a paz social que a cessão de quota pretensamente visaria volta a não nos impressionar, porque uma coisa é a qualidade de sócio (com todos os paritários direitos, e mais alguns outros, referidos antes, face aos demais sócios) e outra, bem distinta, é a qualidade de gerente (mero contratado subordinado, sempre passível de remoção pelos sócios, ou de simples não renovação de contrato).

Interpretado desta forma, e por tais motivos, o «ACORDO DE VONTADES» escrito dos autos, assinado pela Autora e pela Ré (como ambas o reconheceram), surge como um verosímil (embora não certo) acordo simulatório; e, nessa medida, permitia não só a produção de prova por testemunhas, como a sua posterior utilização em sede de apreciação crítica da prova, e ainda a utilização de quaisquer presunções judiciais no mesmo sentido.
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Deverá, assim, julgar-se nesta parte procedente o recurso de apelação interposto pela Autora (X - SGPS, Limitada), considerando-se existente a violação de direito probatório material invocada por ela, por o Tribunal a quo ter indevidamente desconsiderado a prova testemunhal e a prova por presunções judiciais para demonstração da simulação alegada nos autos.
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Importa, por isso, verificar de seguida se esta prova testemunhal e por presunções judiciais, bem como a demais que tenha sido produzida, foi suficiente para que se pudessem ter como demonstrados os factos não provados enunciados na sentença recorrida sob as alíneas a’), b’), c’), d’), e’), f’), g’), h’) e i’).
É, deste modo, o Tribunal ad quem conduzido ao âmbito da livre apreciação da prova, que competia ao Tribunal a quo realizar; e agora, em sede de recurso, à Autora, que desde logo reconheceu (expressa e taxativamente), nas suas alegações, «que o documento em questão não é prova inabalável do acordo simulatório, mas» apenas «princípio de prova», abrindo tão só «caminho para a ponderação da demais prova, designadamente da prova testemunhal».
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3.2.2. Incorrecta apreciação da prova livre

3.2.2.1. Âmbito da sindicância (provocada) do Tribunal da Relação

Recorda-se que se lê no n.º 2, als. a) e b), do art. 662.º do CPC, que a «Relação deve ainda, mesmo oficiosamente»: «Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade de depoente ou sobre o sentido do seu depoimento» (al. a); «Ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova» (al. b)».
«O actual art. 662.º representa uma clara evolução [face ao art. 712.º do anterior CPC] no sentido que já antes se anunciava. Através dos n.ºs 1 e 2, als. a) e b), fica claro que a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e fundar a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis.
(…) Afinal, nestes casos, as circunstâncias em que se inscreve a sua actuação são praticamente idênticas às que existiam quando o tribunal de 1ª instância proferiu a decisão impugnada, apenas cedendo nos factores de imediação e da oralidade. Fazendo incidir sobre tais meios probatórios os deveres e os poderes legalmente consagrados e que designadamente emanam dos princípios da livre apreciação (art. 607.º, n.º 5) ou da aquisição processual (art. 413.º), deve reponderar a questão de facto em discussão e expressar de modo autónomo o seu resultado: confirmar a decisão, decidir em sentido oposto ou, num plano intermédio, alterar a decisão num sentido restritivo ou explicativo» (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, págs. 225-227).
É precisamente esta forma de proceder da Relação (apreciando as provas, atendendo a quaisquer elementos probatórios, e indo à procura da sua própria convicção), que assegura a efectiva sindicância da matéria de facto julgada, assim se assegurando o duplo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto em crise (conforme Ac. do STJ, de 24.09.2013, Azevedo Ramos, comentado por Teixeira de Sousa, Cadernos de Direito Privado, nº 44, pág. 29 e ss.).
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3.2.2.2. Modo de operar o duplo grau de jurisdição - Ónus de impugnação
3.2.2.2.1. Definição (de ónus de impugnação)

Contudo, reconhecendo o legislador que a garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto «nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência», mas, tão-somente, «detectar e corrigir pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento» (preâmbulo do DL 329-A/95, de 12 de Dezembro), procurou inviabilizar a possibilidade de o recorrente se limitar a uma genérica discordância com o decidido, quiçá com intuitos meramente dilatórios.
Com efeito, e desta feita, «à Relação não é exigido que, de motu próprio, se confronte com a generalidade dos meios de prova que estão sujeitos à livre apreciação e que, ao abrigo desse princípio, foram valorados pelo tribunal de 1ª instância, para deles extrair, como se se tratasse de um novo julgamento, uma decisão inteiramente nova. Pelo contrário, as modificações a operar devem respeitar em primeiro lugar o que o recorrente, no exercício do seu direito de impugnação da decisão de facto, indicou nas respectivas alegações que servem para delimitar o objecto do recurso», conforme o determina o princípio do dispositivo (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pág. 228, com bold apócrifo).
Lê-se, assim, no art. 640.º, n.º 1 do CPC que, quando «seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnada diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas».
Precisa-se ainda que, quando «os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados», acresce àquele ónus do recorrente, «sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes» (al. a), do n.º 2, do art. 640.º citado).
Logo, deve o recorrente, sob cominação de rejeição do recurso, para além de delimitar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar, deixar expressa a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, como corolário da motivação apresentada; e esta última exigência (contida na al. c), do n.º 1, do art. 640.º citado), «vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar a interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente», devendo ser apreciada à luz de um critério de rigor (10) enquanto «decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes», «impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo» (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pág. 129, com bold apócrifo).
Dir-se-á mesmo que as exigências legais referidas têm uma dupla função: não só a de delimitar o âmbito do recurso, mas também a de conferir efectividade ao uso do contraditório pela parte contrária (pois só na medida em que se sabe especificamente o que se impugna, e qual a lógica de raciocínio expendido na valoração/conjugação deste ou daquele meio de prova, é que se habilita a contraparte a poder contrariá-lo).
Por outras palavras, se o dever - constitucional (art. 205.º, n.º 1 da CRP) e processual civil (arts.154.º e 607.º, n.ºs 3 e 4, do CPC) - impõe ao juiz que fundamente a sua decisão de facto, por meio de uma análise crítica da prova produzida perante si, compreende-se que se imponha ao recorrente que, ao impugná-la, apresente a sua própria. Logo, deverá apresentar «um discurso argumentativo onde, em primeiro lugar, alinhe as provas, identificando-as, ou seja, localizando-as no processo e tratando-se de depoimentos a respectiva passagem e, em segundo lugar, produza uma análise crítica relativa a essas provas, mostrando minimamente por que razão se “impunha” a formação de uma convicção no sentido pretendido» por si (Ac. da RP, de 17.03.2014, Alberto Ruço, Processo n.º 3785/11.5TBVFR.P1).
Com efeito, «livre apreciação da prova» não corresponde a «arbitrária apreciação da prova». Deste modo, o Juiz deverá objectivar e exteriorizar o modo como a sua convicção se formou, impondo-se a «identificação precisa dos meios probatórios concretos em que se alicerçou a convicção do Julgador», e ainda «a menção das razões justificativas da opção pelo Julgador entre os meios de prova de sinal oposto relativos ao mesmo facto» (Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição, Coimbra Editora, Limitada, 1985, pág. 655).
«É assim que o juiz [de 1ª Instância] explicará por que motivo deu mais crédito a uma testemunha do que a outra, por que motivo deu prevalência a um laudo pericial em detrimento de outro, por que motivo o depoimento de certa testemunha tecnicamente qualificada levou à desconsideração de um relatório pericial ou por que motivo não deu como provado certo facto apesar de o mesmo ser referido em vários depoimentos. E é ainda assim por referência a certo depoimento e a propósito do crédito que merece (ou não), o juiz aludirá ao modo como o depoente se comportou em audiência, como reagiu às questões colocadas, às hesitações que não teve (teve), a naturalidade e tranquilidade que teve (ou não)» (Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, Almedina, 2014, pág. 325).
«Destarte, o Tribunal ao expressar a sua convicção, deve indicar os fundamentos suficientes que a determinaram, para que através das regras da lógica e da experiência se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento dos factos provados e não provados, permitindo aferir das razões que motivaram o julgador a concluir num sentido ou noutro (provado, não provado, provado apenas…, provado com o esclarecimento de que…), de modo a possibilitar a reapreciação da respectiva decisão da matéria de facto pelo Tribunal de 2ª Instância» (Ana Luísa Geraldes, «Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto», Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Vol. I, Coimbra Editora, 2013, pág. 591, com bold apócrifo).
Dir-se-á mesmo que, este esforço exigido ao Juiz de fundamentação e de análise crítica da prova produzida «exerce a dupla função de facilitar o reexame da causa pelo Tribunal Superior e de reforçar o autocontrolo do julgador, sendo um elemento fundamental na transparência da justiça, inerente ao acto jurisdicional» (José Lebre de Freitas, A Acção Declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3.ª edição, Coimbra Editora, Setembro de 2013, pág. 281).
É, pois, irrecusável e imperativo que, «tal como se impõe que o tribunal faça a análise crítica das provas (de todas as que se tenham revelado decisivas)… também o Recorrente ao enunciar os concreto meios de prova que devem conduzir a uma decisão diversa deve seguir semelhante metodologia», não bastando nomeadamente para o efeito «reproduzir um ou outro segmento descontextualizado dos depoimentos» (Ana Luísa Geraldes, «Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto», Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Volume I, Coimbra Editora, 2013, pág. 595, com bold apócrifo).
Compreende-se que assim seja, isto é, que a «censura quanto à forma de formação da convicção do Tribunal não» possa «assentar de forma simplista no ataque da fase final da formação dessa convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção.
Doutra forma, seria uma inversão da posição dos personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar, pela convicção dos que esperam a decisão» (Ac. do TC nº 198/2004, de 24 de Março de 2004, publicado no DR, II Série, de 02.06.2004, reproduzindo Ac. da RC, sem outra identificação).
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3.2.2.2.2. Incumprimento (do ónus de impugnação) - Consequências

Incumprindo o recorrente o ónus de impugnação previsto no art. 640.º, n.º 1 do CPC (especificação dos concretos pontos de facto que se consideram incorrectamente julgados, dos concretos meios probatórios que impõem que sobre eles seja proferida uma decisão diferente, e da decisão alternativa que deverá ser proferida sobre as questões de facto impugnadas), e tal como aí expressamente afirmando, terá o seu recurso que ser rejeitado («sob pena de rejeição»).
Com efeito, e ao contrário do que sucede com o recurso relativo à decisão sobre a matéria de direito (previsto no art. 639.º, n.º 2 e n.º 3 do CPC), no recurso relativo à matéria de facto (previsto no art. 640.º do CPC) não se admite despacho de aperfeiçoamento.
«Esta solução é inteiramente compreensível e tem a sustentá-la a enorme pressão (geradora da correspondente responsabilidade) que durante décadas foi feita para que se modificasse o regime de impugnação da decisão da matéria de facto e se ampliassem os poderes da Relação a esse respeito, a pretexto dos erros de julgamento que o sistema anterior não permitiria corrigir. Além disso, pretendendo o recorrente a modificação da decisão da 1ª instância e dirigindo uma tal pretensão a um tribunal que nem sequer intermediou a produção de prova, é compreensível uma maior exigência no que concerne à impugnação da matéria de facto, impondo, sem possibilidade de paliativos, regras muito precisas. Enfim, a comparação com o disposto no art. 639º não deixa margem para dúvidas quanto à intenção do legislador de reservar o convite ao aperfeiçoamento para os recursos da matéria de direito» (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pág. 128) (11).
Aliás, o entendimento da não admissibilidade de despacho de aperfeiçoamento face ao incumprimento, ou ao cumprimento deficiente, do ónus de impugnação da matéria de facto, já era generalizadamente aceite no âmbito do similar art. 690.º-A do anterior CPC, de 1961 (conforme Carlos Lopes do Rego, Comentário ao Código de Processo Civil, Volume I, 2.ª edição, Almedina, pág. 203).
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3.2.2.2.3. Entendimentos dominantes (e perfilhados)

Ainda que com naturais oscilações - nomeadamente, entre a 2.ª Instância e o Supremo Tribunal de Justiça - (muito bem sumariadas no Ac. do STJ, de 09.06.2016, Abrantes Geraldes, Processo n.º 6617/07.5TBCSC.L1.S1, e no Ac. do STJ, de 11.02.2016, Mário Belo Morgado, Processo n.º 157/12-8TVGMR.G1.S1) -, vêm sendo firmados os seguintes entendimentos:

. os aspectos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, dando-se prevalência à dimensão substancial sobre a estritamente formal (neste sentido, Ac. do STJ, de 28.04.2014, Abrantes Geraldes, Processo n.º 1006/12.2TBPRD.P1.S1, Ac. do STJ, de 08.02.2018, Maria do Rosário Morgado, Processo n.º 765/13.0TBANCO ...P.L1.S1, Ac. do STJ, de 08.02.2018, Maria Graça Trigo, Processo n.º 8440/14.1T8PRT.P1.S1, Ac. do STJ, de 06.06.2018, Pinto Hespanhol, Processo n.º 552/13.5TTVIS.C1.S1, Ac. do STJ, 12.07.2018, Ferreira Pinto, Processo n.º 167/11.2TTTVD.L1.S1, Ac. do STJ, de 13.11.2018, Graça Amaral, Processo n.º 3396/14, ainda inédito, ou Ac. do STJ, de 03.10.2019, Maria Rosa Tching, Processo n.º 77/06.5TBGVA.C2.S2);

. dever-se-á usar de maior rigor no apreciação cumprimento do ónus previsto no n.º 1 do art. 640.º (primário ou fundamental, de delimitação do objecto do recurso e de fundamentação concludente do mesmo, mantido inalterado), face ao ónus previsto no seu nº 2 (secundário, destinado a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes, que tem oscilado em exigência ao longo do tempo, indo desde a transcrição obrigatória dos depoimentos até uma mera indicação e localização exacta das passagens da gravação relevantes) (neste sentido, Ac. do STJ, de 29.10.2015, Lopes do Rego, Processo n.º 233/09.4TBVNG.G1.S1);

. a exigência de especificação dos concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto impugnados, só se satisfaz se essa concretização for feita relativamente a cada um daqueles factos e com indicação dos respectivos meios de prova (neste sentido, Ac. do STJ, de 19.02.2015, Maria dos Prazeres Beleza, Processo n.º 405/09.1TMCBR.C1.S1);

. o ónus de indicação exacta das passagens relevantes dos depoimentos gravados deve ser interpretado em termos funcionalmente adequados e em conformidade com o princípio da proporcionalidade, pelo que a falta de indicação com exactidão das passagens da gravação onde se funda o recurso só será idónea a fundamentar a rejeição liminar do mesmo se dificultar, de forma substancial e, o exercício do contraditório, ou o exame pelo tribunal, sob pena de ser uma solução excessivamente formal, rigorosa e sem justificação razoável (neste sentido, Ac. do STJ, de 26.05.2015, Hélder Roque, Processo n.º 1426/08.7CSNT.L1.S1, Ac. STJ de 22.09.2015, Pinto de Almeida, Processo n.º 29/12.6TBFAF.G1.S1, Ac. do STJ, de 29.10.2015, Lopes do Rego, Processo n.º 233/09.4TBVNG.G1.S1, e Ac. do STJ, de 19.01.2016, Sebastião Póvoas, Processo n.º 3316/10.4TBLRA-C1-S1, onde se lê que o ónus em causa estará cumprido desde que o recorrente se reporte à fixação electrónica/digital e transcreva os excertos que entenda relevantes, de forma a permitir a reanálise dos factos e o contraditório. Já depois dos citados, mas no mesmo sentido, Ac. do STJ, de 15.02.2018, Tomé Gomes, Processo n.º 134116/13.2YIPRT.E1.S1, e Ac. do STJ, de 03.10.2019, Maria Rosa Tching, Processo n.º 77/06.5TBGVA.C2.S2);

. cumpre o ónus do art. 640.º, n.º 2 do C.P.C. quando não exista dificuldade relevante na localização pelo Tribunal dos excertos da gravação em que a parte se haja fundado para demonstrar o invocado erro de julgamento, como ocorre nos casos em que, para além de o apelante referenciar, em função do conteúdo da acta, os momentos temporais em que foi prestado o depoimento tal indicação é complementada com uma extensa transcrição, em escrito dactilografado, dos depoimentos relevantes para o julgamento do objecto do recurso (neste sentido, Ac. do STJ, de 29.10.2015, Lopes do Rego, Processo n.º 233/09.4TBVNG.G1.S1, e Ac. do STJ, de 15.02.2018, Tomé Gomes, Processo n.º 134116/13.2YIPRT.E1.S1); ou quando o recorrente identificou as testemunhas EE, FF e GG, assim como a matéria sobre a qual foram ouvidas, referenciou as datas em que tais depoimentos foram prestados e o CD onde se encontra a respectiva gravação, indicando o seu tempo de duração, e, para além disso, transcreveu e destacou a negrito as passagens da gravação tidas por relevantes e que, em seu entender, relevavam para a alteração do decidido (neste sentido, Ac. do STJ, de 18.02.2016, Mário Belo Morgado, Processo n.º 476/09.oTTVNG.P2.S1);

. a apresentação das transcrições globais dos depoimentos das testemunhas não satisfaz a exigência determinada pela al. a) do n.º 2 do art. 640.º do CPC (neste sentido, Ac. do STJ, de 19.02.2015, Maria dos Prazeres Beleza, Processo n.º 405/09.1TMCBR.C1.S1); nem o faz o recorrente que procede a uma referência genérica aos depoimentos das testemunhas considerados relevantes pelo tribunal para a prova de quesitos, sem uma única alusão às passagens dos depoimentos de onde é depreendida a insuficiência dos mesmos para formar a convicção do juiz (neste sentido, Ac. do STJ, de 28.05.2015, Granja da Fonseca, Processo n.º 460/11.4TVLSB.L1.S1); e igualmente não cumpre a exigência legal a simples indicação do momento do início e do fim da gravação de um certo depoimento (neste sentido, Ac. do STJ, de 05.09.2018, Gonçalves Rocha, Processo n.º 15787/15.8T8PRT.P1.S2, Ac. do STJ, de 18.09.2018, José Rainho, Processo n.º 108/13.2TBPNH.C1.S1, ou Ac. do STJ, de 03.10.2019, Maria Rosa Tching, Processo n.º 77/06.5TBGVA.C2.S2);

. servindo as conclusões para delimitar o objecto do recurso, devem nelas ser identificados com precisão os pontos de facto que são objecto de impugnação, mas bastando quanto aos demais requisitos que constem de forma explícita na motivação do recurso (neste sentido, Ac. do STJ, de 19.02.2015, Tomé Gomes, Processo n.º 299/05.6TBMGD.P2.S1, Ac. do STJ, de 04.03.2015, Leones Dantas, Processo n.º 2180/09.0TTLSB.L1.S2, Ac. do STJ, de 01.10.2015, Ana Luísa Geraldes, Processo n.º 824/11.3TTLRS.L1.S1, Ac. do STJ, de 03.12.2015, Melo Lima, Processo n.º 3217/12.1TTLSB.L1-S1, Ac. do STJ, de 11.02.2016, Mário Belo Morgado, Processo n.º 157/12-8TVGMR.G1.S1, Ac. do STJ, de 03.03.2016, Ana Luísa Geraldes, Processo n.º 861/13.3TTVIS.C1.S1, Ac. do STJ, de 21.04.2016, Ana Luísa Geraldes, Processo n.º 449/10.0TTVFR.P2.S1, Ac. do STJ, de 28.04.2016, Abrantes Geraldes, Processo n.º 1006/12.2TBPRD.P1.S1, Ac. do STJ, de 31.05.2016, Garcia Calejo, Processo n.º 1572/12.2TBABT.E1.S1, Ac. do STJ, de 09.06.2016, Abrantes Geraldes, Processo n.º 6617/07.5TBCSC.L1.S1, Ac. do STJ, de 13.10.2016, Gonçalves Rocha, Processo n.º 98/12.9TTGMR.G1.S1, Ac. do STJ, de 16.05.2018, Ribeiro Cardoso, Processo n.º 2833/16.7T8VFX.L1.S1, Ac. do STJ, de 06.06.2018, Ferreira Pinto, Processo n.º 167/11.2TTTVD.L1.S1, Ac. do STJ, de 06.06.2018, Pinto Hespanhol, Processo n.º 552/13.5TTVIS.C1.S1, Ac. do STJ, 12.07.2018, Ferreira Pinto, Processo n.º 167/11.2TTTVD.L1.S1, Ac. do STJ, de 31.10.2018, Chambel Mourisco, Processo n.º 2820/15.2T8LRS.L1.S1, Ac. do STJ, de 13.11.2018, Graça Amaral, Processo nº 3396/14, ou Ac. do STJ, de 03.10.2019, Maria Rosa Tching, Processo n.º 77/06.5TBGVA.C2.S2);

. não cumprindo o recorrente os ónus impostos pelo art. 640º, nº 1 do C.P.C., dever-se-á rejeitar o seu recurso sobre a matéria de facto, uma vez que a lei não admite aqui despacho de aperfeiçoamento, ao contrário do que sucede quanto ao recurso em matéria de direito, face ao disposto no art. 639º, n.º 3 do C.P.C. (nesse sentido, Ac. da RG, de 19.06.2014, Manuel Bargado, Processo n.º 1458/10.5TBEPS.G1, Ac. do STJ, de 27.10.2016, Ribeiro Cardoso, Processo n.º 110/08.6TTGDM.P2.S1, Ac. da RG, de 18.12.2017, Pedro Damião e Cunha, Processo n.º 292/08.7TBVLP.G1, Ac. do STJ, 27.09.2018, Sousa Lameira, Processo n.º 2611/12.2TBSTS.L1.S1, ou Ac. do STJ, de 03.10.2019, Maria Rosa Tching, Processo n.º 77/06.5TBGVA.C2.S2) (12);

. não deve ser rejeitado o recurso se o recorrente seguiu um determinado entendimento jurisprudencial acerca do preenchimento do ónus de alegação quanto à impugnação da decisão da matéria de facto, nos termos do art. 640.º do CPC (neste sentido, Ac. do STJ, de 09.06.2016, Abrantes Geraldes, Processo n.º 6617/07.5TBCSC.L1.S1);

. a insuficiência ou mediocridade da fundamentação probatória do recorrente não releva como requisito formal do ónus de impugnação, mas, quando muito, como parâmetro da reapreciação da decisão de facto, na valoração das provas, exigindo maior ou menor grau de fundamentação, por parte do tribunal de recurso, consoante a densidade ou consistência daquela fundamentação (neste sentido, Ac. do STJ, de 19.02.2015, Tomé Gomes, Processo n.º 299/05.6TBMGD.P2.S1).

Logo, a «rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve verificar-se em alguma das seguintes situações:

a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto;
b) Falta de especificação nas conclusões dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados;
c) Falta de especificação dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.);
d) Falta de indicação exacta das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e) Falta de posição expressa sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação;
f) Apresentação de conclusões deficientes, obscuras ou complexas, a tal ponto que a sua análise não permita concluir que se encontram preenchidos os requisitos mínimos que traduzam algum dos elementos referidos» (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, págs. 128 e 129, com bold apócrifo).

Ora, quando o recurso sobre a matéria de facto não seja liminarmente rejeitado, o âmbito da apreciação do Tribunal da Relação, nesta mesma sede, deverá estabelecer-se de acordo com os seguintes parâmetros: só tem que se pronunciar sobre a matéria de facto impugnada pelo Recorrente; sobre essa matéria de facto impugnada, tem que realizar um novo julgamento; e nesse novo julgamento forma a sua convicção de uma forma autónoma, mediante a reapreciação de todos os elementos probatórios que se mostrem acessíveis (e não só os indicados pelas partes).
Contudo (e tal como se referiu supra), mantendo-se em vigor os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova, e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e não de certeza absoluta -, precisa-se ainda que o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª Instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.
Por outras palavras, a alteração da matéria de facto só deve ser efectuada pelo Tribunal da Relação quando o mesmo, depois de proceder à audição efectiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direcção diversa, e delimitam uma conclusão diferente daquela que vingou na 1.ª Instância. «Em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte» (Ana Luísa Geraldes, «Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto», Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Volume I, Coimbra Editora, pág. 609).
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3.2.2.4. Carácter instrumental da impugnação da decisão de facto

Veio, porém, a jurisprudência precisar ainda que a impugnação da decisão de facto não se justifica a se, de forma independente e autónoma da decisão de mérito proferida, assumindo antes um carácter instrumental face à mesma.
Com efeito, a «impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, consagrada no artigo 685.º-B [do anterior C.P.C.], visa, em primeira linha, modificar o julgamento feito sobre os factos que se consideram incorretamente julgados. Mas, este instrumento processual tem por fim último possibilitar alterar a matéria de facto que o tribunal a quo considerou provada, para, face à nova realidade a que por esse caminho se chegou, se possa concluir que afinal existe o direito que foi invocado, ou que não se verifica um outro cuja existência se reconheceu; ou seja, que o enquadramento jurídico dos factos agora tidos por provados conduz a decisão diferente da anteriormente alcançada. O seu efetivo objetivo é conceder à parte uma ferramenta processual que lhe permita modificar a matéria de facto considerada provada ou não provada, de modo a que, por essa via, obtenha um efeito juridicamente útil ou relevante» (Ac. da RC, de 24.04.2012, Beça Pereira, Processo n.º 219/10, com bold apócrifo).
Logo, «por força dos princípios da utilidade, economia e celeridade processual, o Tribunal ad quem não deve reapreciar a matéria de facto quando o(s) facto(s) concreto(s) objeto da impugnação for insuscetível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente» (Ac. da RC, de 27.05.2014, Moreira do Carmo, Processo n.º 1024/12, com bold apócrifo).
Por outras palavra, se, «por qualquer motivo, o facto a que se dirige aquela impugnação for, "segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito", irrelevante para a decisão a proferir, então torna-se inútil a atividade de reapreciar o julgamento da matéria de facto, pois, nesse caso, mesmo que, em conformidade com a pretensão do recorrente, se modifique o juízo anteriormente formulado, sempre o facto que agora se considerou provado ou não provado continua a ser juridicamente inócuo ou insuficiente.
Quer isto dizer que não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objeto da impugnação não for suscetível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, antemão, ser inconsequente, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processual consagrados nos artigos 2.º n.º 1, 137.º e 138.º.» (Ac. da RC, de 24.04.2012, Beça Pereira, Processo n.º 219/10, com bold apócrifo). (13)
*
3.2.2.5. Caso concreto (cumprimento do ónus de impugnação)

Concretizando, considera-se que a Autora (X - SGPS, Limitada) só muito limitadamente cumpriu o ónus de impugnação que lhe estava cometido pelo art. 640.º, n.º 1 e n.º 2 do CPC, nomeadamente por não ter indicado - quanto a toda a matéria sindicada - os «concretos meios probatórios que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida», «a decisão que devia ser proferida sobre as questões de facto impugnadas» e «as exactas passagens da gravação em que fundou o seu recurso».
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3.2.2.5.1. «Concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados»

A Recorrente (Autora) indicou, expressa e taxativamente, nas alegações e nas conclusões do seu recurso, que reportava a sua sindicância aos factos não provados enunciados na sentença recorrida sob as alíneas a’), b’), c’), d’), e’), f’), g’), h’) e i’).
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3.2.2.5.2. «Concretos meios probatórios que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida»

A Recorrente (Autora) indicou, expressa e taxativamente, no corpo das alegações do seu recurso e nas respectivas conclusões, que, para além do documento «ACORDO DE VONTADES», seria a «ponderação da demais prova, designadamente da prova testemunhal» que conduziria a um juízo probatório diferente do elaborado pelo Tribunal a quo.
Contudo, e atento nomeadamente o teor das suas alegações, essa indicação apenas foi individualizada quanto ao facto não provado enunciado sob a alínea c’) (por meio da pertinente análise crítica), sendo quanto aos demais (factos não provados enunciados sob as alíneas a’), b’), d’), e’), f’), g’), h’) e i’)) absolutamente genérica.
Por outras palavras, a Recorrente (Autora) estribou o seu recurso sobre a matéria de facto na reclamação de «ponderação da demais prova, designadamente da prova testemunhal»; mas teria que o ter feito reportando os diversos depoimentos prestados (por testemunhas e por parte), os diversos documentos juntos e as eventuais presunções judiciais que utilizasse, aos diferentes e múltiplos factos impugnados, ou demonstrar/justificar que cada um deles suportaria a impugnação de todos e qualquer um daqueles factos, o que sempre exigiria a concreta dilucidação do seu teor face a cada um deles.
Ora, essa demonstração apenas foi concretizada relativamente à alegada falta de demonstração de que a Ré nada lhe pagou pela cessão da quota pretensamente havida, nada mais sendo referindo quanto ao teor da causa simulandi, das suas reais vontades, da divergência intencional entre elas e as vontades declaradas, e da sua actuação posterior, desconforme com o negócio simulado (factos não provados enunciados sob as alíneas a’), b’), d’), e’), f’), g’), h’) e i’)).
Recorda-se, a propósito, que «a impugnação da decisão de facto, feita perante a Relação, não se destina a que este tribunal reaprecie global e genericamente a prova valorada em primeira instância, ainda que apenas se pretenda discutir parte da decisão». Compreende-se, por isso, que se defenda que se «a recorrente identificou os pontos de facto que considera mal julgados, por referência aos quesitos da base instrutória, mas limitou-se a indicar os depoimentos prestados e os documentos que listou, sem fazer a referência indispensável àqueles pontos de facto, especificando que concretos meios de prova impunham que cada um desses pontos fosse julgado provado ou não provado», incumpriu o ónus de impugnação que lhe estava cometido pelo art. 640.º, n.º 1, al. b), do CPC (Ac. do STJ, de 19.02.2015, Maria dos Prazeres Beleza, Processo n.º 405/09.1TMCBR.C1.S1, com bold apócrifo).
Aceita-se que assim seja, já que a «delimitação [do objecto do recurso] tem de ser concreta e específica e o recorrente tem de indicar, com clareza e precisão, os meios de prova em que fundamenta a sua impugnação, bem como as concretas razões de censura. Tal tem de ser especificado quanto a cada concreto facto. Não pode ser efetuado em termos latos, genéricos e em bloco». Por isso, e de novo, se a «recorrente (…) não especifica os meios probatórios que determinariam decisão diversa da tomada em Primeira Instância para cada um dos factos que pretende impugnar» incumpriu o ónus de impugnação que lhe estava cometido pelo art. 640.º, n.º 1, al. b), do CPC (Ac. da RG, de 24.01.2019, Eugénia Maria Moura Marinho da Cunha, Processo n.º 3113/17.6T8VCT.G1) (14).
Logo, e impondo taxativamente a lei a rejeição do recurso na parte assim afectada (não admitindo sequer a possibilidade de um qualquer aperfeiçoamento do mesmo), não poderá integrar - por este motivo - o objecto da sindicância deste Tribunal ad quem os factos não provados enunciados sob as alíneas a’), b’), d’), e’), f’), g’), h’) e i’).
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3.2.2.5.3. «Decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas»

A Recorrente (Autora) indicou, expressa e taxativamente, no corpo das suas alegações de recurso e nas respectivas conclusões, a decisão que, no seu entender, deveria ser proferida sobre o facto não provado enunciado sob a alínea c’): «deve ser suprimido o facto não provado c), por erro de julgamento de facto, com o aditamento do seguinte facto provado: “A Recorrida não pagou à Recorrente o preço da cessão de quotas”.
Contudo, e relativamente aos demais factos não provados por si impugnados, nada mais referiu, limitando-se a afirmar que «incorreu a sentença recorrida em erro de julgamento de facto».
Desconhece-se, assim, se tais factos deveriam ter-se por integralmente demonstrados, com a sua exacta redacção, ou apenas parcialmente (modificadamente) provados.
Logo - também por este motivo -, não poderiam integrar o objecto da sindicância deste Tribunal ad quem os factos não provados enunciados sob as alíneas a’), b’), d’), e’), f’), g’), h’) e i’) (se não estivessem já, por outro e cumulativo fundamento, excluídos da sua apreciação).
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3.2.2.5.4. «Exactas passagens da gravação em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes»

A Recorrente (Autora) indicou as exactas passagens da gravação áudio do depoimento (da testemunha M. F.) por si eleito para fundar a sua sindicância ao facto não provado enunciado sob a alínea c’), quer pela respectiva localização (v.g. minuto x a minuto y) no registo áudio pertinente ao mesmo, quer pela transcrição da parte que considerou relevante.
Contudo, e de novo, apenas o fez quanto a este facto impugnado, não procedendo de forma idêntica (antes totalmente omissiva) quanto aos demais factos sindicados.
Esta mesma constatação foi, aliás, feita pela Ré (embora de forma enviesada quanto ao seu efectivo objecto), quando nas suas contra-alegações denuncia que, pese «embora o tribunal – e bem – não tenha considerado os depoimentos prestados pelas testemunhas, a verdade é que nenhuma das indicadas pela Autora revelou saber coisa alguma sobre o negócio ou sobre o documento intitulado acordo de vontades», já que, se «assim não fosse – como é – teria a Recorrente lançado mão da reprodução dos depoimentos prestados a favor da matéria alusiva à simulação do negócio, e assim não aconteceu».
Recorda-se, a propósito (e conforme jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça já referida), que a «razão de ser do requisito de impugnação estabelecido na alínea a) do n.º 2 do artigo 640.º do CPC tem em vista (…) proporcionar, em primeira linha, o exercício esclarecido do contraditório, por banda do recorrido, e a servir de base ao empreendimento analítico do tribunal de recurso»; e, complementarmente, «tal exigência constitui um factor de concentração da argumentação probatória do recorrente, numa base substancial, sobre a caracterização do erro de facto invocado, refreando, por outro lado, eventuais tendências para meras considerações de natureza generalizante e especulativa».
Reconhece-se, igualmente, que «o nível de exigência na exactidão das passagens das gravações não se pode alhear da metodologia ou do modo concreto como os depoimentos foram prestados e colhidos em audiência»; e que, na interpretação do art. 640.º, n.º 2, al. a), do CPC, deverão os aspectos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, dando-se prevalência à dimensão substancial sobre a estritamente formal.
Logo, «a decisão de rejeição do recurso com tal fundamento não se deve cingir a considerações teoréticas ou conceituais, de mera exegética do texto legal e dos seus princípios informadores, mas contemplar também uma ponderação do critério legal nas circunstâncias e modo como os depoimentos foram prestados e colhidos, bem como face ao grau de dificuldade que a indicação das passagens da gravação efectuada acarrete para o exercício do contraditório e para a própria análise crítica por parte do tribunal de recurso» (Ac. do STJ, de 15.02.2018, Tomé Gomes, Processo n.º 134116/13.2YIPRT.E1.S1, com bold apócrifo).
Contudo, repete-se, nada disto foi realizado relativamente à sindicância dos factos não provados enunciados sob as alíneas a’), b’), d’), e’), f’), g’), h’) e i’).

Logo - também por este motivo -, não poderiam integrar o objecto da sindicância deste Tribunal ad quem os factos não provados enunciados sob as alíneas a’), b’), d’), e’), f’), g’), h’) e i’) (se não estivessem já, por outros e cumulativos fundamentos, excluídos da sua apreciação).
*
Rejeita, por isso, este Tribunal da Relação, nos termos do art. 640.º do CPC, o recurso sobre a matéria de facto relativamente aos factos não provados enunciados sob as alíneas a’), b’), d’), e’), f’), g’), h’) e i’).

Estaria, porém, autorizado a proceder à reapreciação do facto não provado enunciado sob a alínea c’), se essa reapreciação não se revelasse inútil.
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3.3. Modificabilidade da decisão de facto - Remanescente matéria de facto impugnada

Com efeito, afirma-se no facto não provado enunciado sob a alínea c’) que «a Ré não pagou qualquer preço à Autora pela cessão da quota».

Contudo, a necessária e definitiva falta de demonstração de todos os demais factos não provados, impõe uma definitiva apreciação jurídica da lide (isto é, a sua improcedência, por falta de demonstração dos requisitos legais da simulação invocada); e, desse modo, torna-se aquele outro irrelevante (porque - por si só - é insusceptível de fundar uma outra solução de direito da causa).
É, assim, de todo inútil a sua reponderação.

Não se toma, por isso, conhecimento do remanescente objecto do recurso de impugnação da matéria de facto, interposto pela Autora (X - SGPS, Limitada), relativo ao facto não provado enunciado sob a alínea c’).
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IV - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Mantendo-se absolutamente inalterada a decisão de facto proferida pelo Tribunal a quo (embora por outros e distintos fundamentos dos por ele considerados), e nem mesmo sindicando a Recorrente (X - SGPS, Limitada) o acerto da sua interpretação e aplicação do Direito (face aos fundamentos de facto considerados), que aqui igualmente se tem por acertada, não se tornam necessárias quaisquer outras considerações adicionais.
Por outras palavras, a Recorrente (X - SGPS, Limitada) não sindicou ter existido erro «na determinação da norma aplicável», ou na forma como deveria «ter sido interpretada e aplicada», mas sim e apenas a suficiência da matéria de facto resultante da prova produzida para estender a aplicação do direito correctamente seleccionado e interpretado à procedência total do pedido que ela própria formulara.
Logo, não tendo sido admitido em grande parte o recurso sobre a matéria de facto da Autora (X - SGPS, Limitada) (J. C.), e sendo declarado prejudicado, por inútil, o conhecimento da remanescente parte admitida, ficou desse modo esgotado o objecto do seu recurso, por no mesmo não se incluir qualquer sindicância quanto à selecção, interpretação e aplicação do Direito (aos fundamentos de facto agora imperativamente a considerar).
*
Deverá, assim, decidir-se em conformidade, pela parcial procedência e pela parcial improcedência do recurso de apelação interposto pela Recorrente (X - SGPS, Limitada), confirmando-se a sentença de improcedência de acção, embora por distintos fundamentos dos nela considerados.
*
V - DECISÃO

Pelo exposto, e nos termos das disposições legais citadas, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar parcialmente procedente e parcialmente improcedente o recurso de apelação interposto pela Autora (X - SGPS, Limitada) e, em consequência, em

· Alterar a sentença recorrida (quando decidiu pela inadmissibilidade da consideração da prova testemunhal produzida nos autos), declarando admissível a consideração da prova testemunhal produzia nos autos, bem como a prova por presunções judiciais;

· Confirmar o remanescente da sentença recorrida (isto é, o seu juízo de improcedência total da acção e absolvição da Ré do pedido), embora por distintos fundamentos.
*
Custas da apelação pela Autora (art. 527.º, n.º 1 e n.º 2 do CPC).
*
Guimarães, 22 de Outubro de 2020.

O presente acórdão é assinado electronicamente pelos respectivos

Relatora - Maria João Marques Pinto de Matos;
1.º Adjunto - José Alberto Martins Moreira Dias;
2.º Adjunto - António José Saúde Barroca Penha.



1. É o que sucede, em geral, na prova por documentos autênticos (art. 371.º, n.º 1 do CC), autenticados (art. 377.º do CC) e particulares (art. 376.º, n.º 1 do CC), por confissão (art. 358.º do CC), ou por acordo das partes (art. 574.º, n.º 2 do CPC).
2. É o que sucede na prova pericial (art. 389.º do CC e art. 489.º do CPC), na prova por inspecção judicial (art. 391.º do CC), na prova por verificação não judicial qualificada (art. 494.º, n.º 3 do CPC), na prova testemunhal (art. 396.º do CC), e na prova por depoimento/declarações de parte (arts. 463.º a 466.º, n.º 3 do CPC).
3. Defendendo este poder oficioso do Tribunal de Recurso, António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, Almedina, Julho de 2013, págs. 225 e 226.
4. Neste sentido, Ac. do STJ, de 02.11.2017, Rosa Ribeiro Coelho, Processo n.º 420/16.9T8STR.E1.S1, e Ac. do STJ, de 14.05.2019, Raimundo Queirós, Processo n.º 930/12.7TBPVZ.P1.S1, que consideraram que o recebimento de uma quantia a título de tornas, na medida em que extingue o correspondente crédito, constitui um facto desfavorável a quem delas é credor e favorável para o respectivo devedor, assumindo a declaração de quitação a natureza de confissão.
5. Neste sentido, Ac. STJ de 17.12.2015, Abrantes Geraldes, Processo n.º 940/10.9TVPRT.P1.S1.
6. No restrito âmbito da prova legal, e para além da prova plena, existem ainda outros dois e diferentes graus de prova (em função das condições em que será possível por em causa a prova que resulte de tais meios vinculados), nomeadamente: a prova bastante, que cede mediante a mera contraprova, que tem por fim tornar incerto o facto (art. 346.º do CC), como será o caso do art. 374.º do CC, em que o valor probatório da letra e assinatura de documento pode ser posto em causa por simples impugnação da parte contrária; e a prova pleníssima, que nem mesmo cede perante a prova do contrário.
7. Neste sentido, Ac. da RC, de 23.06.2015, Henrique Antunes, Processo n.º 1534/09.7TBFIG.C1.
8. No mesmo sentido, Carvalho Fernandes, «A Prova da Simulação pelos Simuladores», O Direito, 124, 1992, págs. 593 e segs.; e Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, págs. 850 e segs.. Na jurisprudência, Ac. do STJ, de 17.06.2003, CJSTJ, 2003, Tomo II, pág. 112, onde se lê que, «arguida simulação pelos simuladores, entende-se admissível prova testemunhal se os factos a provar surgem, com alguma verosimilhança, em provas escritas».
9. Relativamente ao legal representante da Autora, resulta da contestação da Ré (matéria eu não foi impugnada por aquela) ser mesmo titular de participações sociais em diversas sociedades e gerente de algumas delas, realizando com desembaraço negócios em seu nome, incluindo aumentos de capital e alteração da natureza societária e participação em concursos públicos de concessão mineira. Recorda-se que se lê-se ainda na motivação de facto da sentença recorrida que «ouvido em declarações de parte o legal representante da Autora, R. P., ficámos perfeitamente convictas que se trata de um empresário experiente, habituado a gerir relações comerciais e a entabular acordos», acrescendo a sua condição de «contabilista certificado». Já relativamente ao legal representante da Ré, lê-se nas alegações de recurso da Autora (matéria que não foi contestada nas contra-alegações) que «A. M. é licenciado em Economia, tendo até sido Assistente na Universidade»; e foi administrador «do extinto Banco …, adquirido pelo Banco ...», «da Companhia de Seguros …, pertencente ao G…/Banco ...», «da NG.»; foi «Presidente da Associação Industrial do …, da Associação …, do …, do … e da …, tudo associações empresariais», e «foi Assessor do Conselho de Administração do Banco ..., sendo pessoa muito próxima e do círculo de influência de R. S. e da família …».
10. A exigência de rigor, no cumprimento do ónus de impugnação, manifestou-se igualmente a propósito do art. 685º-B, n.º 1, al. a), do anterior CPC, de 1961, conforme Ac. da RC, de 11.07.2012, Henrique Antunes, Processo n.º 781/09 - in www.dgsi.pt, como todos os demais citados sem indicção de origem - onde expressamente se lê que este «especial ónus de alegação, a cargo do recorrente, deve ser cumprido com particular escrúpulo ou rigor», constituindo «simples decorrência dos princípios estruturantes da cooperação e lealdade e boa fé processuais, assegurando, em última extremidade, a seriedade do próprio recurso».
11. No mesmo sentido, Rui Pinto, Notas Ao Código De Processo Civil, Volume II, 2.ª edição, Coimbra Editora, Novembro de 2015, pág. 142, nota 4.
12. Contudo, em sentido contrário, Ac. do STJ, de 26.05.2015, Hélder Roque, Processo n.º 1426/08.7TCSNT.L1.S1, onde se lê que a cominação da rejeição do recurso, prevista para a falta das especificações quanto à matéria das alíneas a), b), e c) do n.º 1, ao contrário do que acontece quanto à matéria do n.º 2 do art. 640.º do CPC (a propósito da «exatidão das passagens da gravação em que se funda o seu recurso»), não funciona aqui, automaticamente, devendo o Tribunal convidar o recorrente, desde logo, a suprir a falta de especificação daqueles elementos ou a sua deficiente indicação.
13. No mesmo sentido, Ac. da RC, de 14.01.2014, Henrique Antunes, Processo n.º 6628/10.
14. No mesmo sentido, Ac. do STJ, de 20.12.2017, Ribeiro Cardoso, Processo n.º 299/13.2TTVRL.G1.S2, onde se lê que «a alínea b), do nº 1, do art. 640º do CPC, ao exigir que o recorrente especifique "[o]s concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida", impõe que esta concretização seja feita relativamente a cada um daqueles factos e com indicação dos respectivos meios de prova, documental e/ou testemunhal e das passagens de cada um dos depoimentos»”; e não cumpre esse ónus quem nas conclusões, divide a matéria de facto impugnada em três “blocos distintos de factos” e indica os meios de prova relativamente a cada um desses blocos, mas omitindo-os relativamente a cada um dos concretos factos cuja decisão impugna».