Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1216/21.1T8VRL-A.G1
Relator: JOSÉ AMARAL
Descritores: RECONVENÇÃO DEDUZIDA A TÍTULO SUBSIDIÁRIO
ADMISSIBILIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/30/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I. Se numa acção de preferência intentada pelos locatários relativamente à venda do prédio arrendado, os réus, para obstarem ao exercício deste direito pelos autores e obterem a improcedência da acção e absolvição do pedido, entre outras excepções peremptórias, invocam a de abuso de direito (artº 334º, CC) na modalidade de venire contra factum proprium e, simultaneamente, peticionam, através de reconvenção deduzida a título subsidiário, isto é, para o caso de a acção proceder a despeito da referida excepção peremptória (e das demais), que os autores reconvindos sejam condenados no pagamento de certas quantias, ora a título de despesas efectuadas ora de preços que alegadamente terão de satisfazer relativos a contratos de empreitada e de prestação de serviços entretanto celebrados, jamais este pedido subsidiário poderá lograr acolhimento.
II. Com efeito, procedendo tal defesa (julgando-se ilegítimo o exercício da preferência) e, consequentemente, improcedendo a acção, o negócio efectuado permanecerá incólume. Logo, não haverá fundamento para a reconvenção por inexistência dos prejuízos/danos alegados e peticionados subsidiariamente.
III. Mas se, pelo contrário, improceder tal defesa e, por isso, proceder a acção (julgando-se legítimo o exercício daquele direito), então também não haverá qualquer actuação ilícita por parte dos autores arrendatários que fundamente a imputação e consequente responsabilização dos mesmos por aqueles alegados danos/prejuízos.
IV. Na verdade, constituindo o abuso de direito o facto ilícito gerador do invocado direito de indemnizar e não podendo ele não ser (resultar não provado como excepção) e ser (resultar provado como um dos elementos da causa de pedir – o facto ilícito – complexa relativa à responsabilidade civil indemnizatória) ao mesmo tempo, ou seja, na mesma instância e relativamente ao objecto dela eventualmente modificado, soçobrar em sede de exceptio e renascer e prevalecer em sede de acção reconvencional, segue-se que este pedido, com tal fundamento e formulado naqueles termos, se apresenta ilógico, incoerente e inviável.
V. É que, sendo pressuposto do pedido reconvencional deduzido como subsidiário a improcedência da defesa exceptiva (do abuso de direito) e, portanto, a procedência da acção, a falha daquele (do inerente facto ilícito) implica a necessária e consequente impossibilidade de preenchimento do primeiro dos pressupostos fundamentadores da responsabilidade civil enquanto modalidade “sancionatória” da conduta contraditória e violadora da boa fé e da confiança.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO [1]

Os autores M. V., F. C., M. E., J. M., A. J. e J. C. intentaram, em 08-06-2021, acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra os réus (1ª) IMOBILIÁRIA X, SOCIEDADE DE MEDIAÇÃO IMOBILIÁRIA, LDA, (2ºs) E. C., L. T., J. T., M. B., A. B., E. R., A. G., I. G. e J. N..

Formularam assim o seu pedido:

“Nestes termos e com o douto suprimento, deve a presente acção ser julgada provada e procedente, proferindo-se sentença pela qual deve ser declarado:

a) que os aa. gozam do direito de preferência na compra do prédio identificado no art. 1.º da pi;
b) o direito de os aa. haverem para si aquele prédio, decretando-se a substituição da 1.º r. pelos aa., enquanto preferentes, na posição de compradores no contrato de compra e venda identificado;
c) o cancelamento do registo de aquisição do prédio identificado nos arts. 1 e 2 desta pi a favor da 1.ª ré e ordenado o registo da mesma aquisição a favor dos aqui aa.;
d) a 1.ª ré reconhecer os aa. como legítimos donos e proprietários do prédio identificado nos arts. 1.º e 2.º da p.i. em sua substituição e por exercício do direito de preferência de que se arrogam e cujo exercício se traduz no depósito do preço do imóvel de € 45.000,00 e na procedência da presente acção.”

Alegaram, para tanto, que, mediante contrato de arrendamento verbal feito há mais de 30 anos, são arrendatários “por si e pelo seu falecido pai” de um prédio urbano (id. no item, 1º da pi), sito em Vila Real. Em 18-12-2000, os 2ºs réus venderam-no à 1ª, pelo preço de 45.000€. Não lhes foi comunicada a intenção de vender, nem o respectivo projecto concreto nem os demais elementos, maxime a identificação do comprador, pelo que não tiveram conhecimento do negócio. Não foram, assim, interpelados para exercerem o direito de preferência de que são titulares, nem nunca ao mesmo renunciaram. Só em 08-01-2021, souberam da venda através de uma missiva da 1ª ré a comunicar-lhes um aditamento ao contrato de arrendamento.

Todos os réus contestaram.
O grupo composto pela 1ª (compradora) e pelos seis primeiros dos 2ºs, em longo articulado conjunto, invocaram excepções (itens 1 a 200), impugnaram (itens 201 a 204) e deduziram reconvenção (itens 205 a 259).
Entre aquelas, alegaram a ilegitimidade passiva (por preterição de duas heranças indivisas); nulidade do contrato para fins não habitacionais (por falta de redução a escrito); ilegitimidade substantiva dos 2ºs a 6ºs autores (só a 1ª é arrendatária, como sucessora do falecido marido); renúncia à preferência e caducidade – ao direito e à acção – e extinção do contrato por denúncia (os 2ºs réus enviaram à 1ª autora, em 17-01-2020, carta comunicando a intenção de vender e respectivo projecto, mas ela nada disse, nem exerceu o direito de preferência, pelo contrário; no local, o 2º autor informou o legal representante da 1ª ré, o qual ali se deslocou e lhe comunicou que a Sociedade estava interessada na compra e que iria receber carta para exercer a preferência e que caso a não exercesse tencionava demolir o prédio, reconstrui-lo para habitação e não manter o arrendamento, que a mãe não tinha interesse em preferir nem em desocupar o locado; em nova deslocação a este, o legal representante da 1ª ré informou o 2º autor que, uma vez que a mãe não exerceu a preferência iria ser marcada a escritura, tendo aquele dito que ela não pretendia preferir e que podiam avançar com a escritura e marcá-la; antes desta, o legal representante da 1ª ré foi ao prédio com um engenheiro e com um topógrafo e aí foram vistos pelos filhos da autora; depois da escritura, o legal representante da 1ª ré voltou ao local e aí informou o 2º autor que a escritura já se tinha realizado, que a mãe iria receber carta para abandonar o locado e receber a indemnização devida; em 08-01-2021, a Agente de Execução notificou a 1ª autora da comunicação da 1ª ré de que esta passava a ser a locadora e como deveria ela depositar as rendas; por carta subsequente, aquela pediu cópia da escritura à 1ª ré, reconhecendo-se como única arrendatária, e passou a pagar e pagou rendas através da conta bancária da 1ª ré, nada referindo quanto ao direito de preferência; entretanto, esta, por carta de 17-03-2021, denunciou o contrato por carta, para obras, pelo que aquando da citação, inesperada, para esta acção já ele não vigorava).
No âmbito exceptivo, alegaram ainda os réus que “confiaram e assim orientaram em conformidade a sua vida quanto à alienação do prédio” (item 167), pelo que, mesmo a não procederem aqueles outros fundamentos defensivos, “a 1ª A. incorre em manifesto e gritante abuso de direito, traduzido numa conduta contraditória (“venire contra factum proprium”), em combinação com o desrespeito pela tutela do princípio da confiança, que se invoca à luz do disposto no artº 334º, do CC)” (item 169).
Aditaram ainda que os autores litigam de má fé, pelo que deverão ser condenados em multa não inferior a 8 UC´s e em indemnização a favor dos réus não inferior a 1.000€ por cada um.
Globalmente, impugnaram, factos e documentos contrários à sua narrada versão, e concluíram, de tudo o exposto, que a acção deve ser julgada improcedente com total absolvição dos réus de todos os pedidos.
Em sede de reconvenção, deduzida “para o caso da acção obter acolhimento e o supra alegado em 1 a 200 não for julgado procedente …mais se alega a título subsidiário” (item 205) que a autora [2] “violou os princípios da boa fé e da confiança”, pois que que os réus celebraram a escritura “com a convicção que a 1ª A. não pretendida exercer o direito de preferência” (item 206); “com a confiança criada pelos AA.”, a 1ª ré fez deste o seu “grande projecto empresarial”, dedicando-se ao mesmo “com todas as suas forças, saber e trabalho” (itens 207 a 209), pelo que a ré viu frustradas as suas expectativas derivadas do comportamento dos autores (itens 201 e 211), o que deve relevar para certos efeitos, como neste caso, pois por referência à confiança, os autores “violaram o princípio da boa fé – artºs 562º, do CC” (itens 233 a 235).
Assim – num primeiro “segmento” –, a 1ª ré “com o negócio dos autos” suportou “diversas despesas”, no total de 1.032,30€ (item 240), a saber: “DPA, Depósito, Cópias Certificadas e Registo” (672,30€) e, ainda, o imposto de selo (360,00€) [3], pelo que deve a ré ser delas reembolsada pelos autores com base nas regras do enriquecimento sem causa nos termos dos artºs 473º e sgs., CC.
Além disso – “noutro segmento” –, a 1ª ré outorgou com um empreiteiro um contrato de empreitada para a execução da obra pretendida no imóvel e, segundo tal contrato, “ele tem a obrigatoriedade de ser cumprido” e, caso o dono da obra desista dele ou não o cumpra, “terá de pagar” àquela uma “penalização” no montante de 100.000,00€; e outorgou também, com um outro técnico, um contrato de prestação de serviços pelo preço de 50.000,00€ (mais IVA) a pagar na forma a acordar no final “ressalvando-se que caso não avance com a obra, a 1ª Ré terá de efetuar na mesma o pagamento”, o que significa que “terá de pagar” àquele a dita quantia (itens 251 e 256), pelo que “a 1ª ré tem direito a ser reembolsada pela 1ª A. por tais despesas” no valor de 150.000,00€ (item 258).

Formulou, portanto, o seguinte pedido reconvencional:
“a) Deve a matéria de exceção ser julgada provada e procedente, e a acção ser julgada não provada e improcedente;
b) Deve a acção ser julgada não provada e improcedente, com as legais consequências, designadamente a absolvição da 1ª Ré e dos 2ºs RR […] dos pedidos contra si formulados pelos AA;
c) Subsidiariamente, para o caso da acção obter acolhimento e o supra alegado em 1º a 204º não for julgado procedente, mais deve a reconvenção ser julgada provada e procedente, e em consequência:
c.1) Deve a 1ª A. ser condenada a pagar à 1ª R. a quantia de €1 032,30 relativo às despesas discriminadas nos artigos 237º a 245º da reconvenção, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação até integral pagamento;
c.1.1) Subsidiariamente, devem os AA. ser condenados solidariamente a liquidar à 1ª R. a quantia de € 1 032,30 relativo às despesas discriminadas nos artigos 237º a 245º da reconvenção, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação até integral pagamento;
c.2) Deve a 1ª A. ser condenada a pagar à 1ª R. a quantia de € 150 000,00 relativo às despesas discriminadas nos artigos 246º a 256º da reconvenção, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação até integral e efetivo pagamento;
c.2.1) Subsidiariamente, devem os AA. ser condenados solidariamente a pagar à 1ª R. a quantia de € 150 000,00 relativo às despesas discriminadas nos artigos 246º a 256º da reconvenção, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação até integral e efetivo pagamento.”.
Também os últimos três réus contestaram separadamente.

Os autores replicaram impugnando todos os factos da reconvenção, maxime os relativos à má fé e violação da confiança.

Seguiu-se a prolação de despacho saneador, em cujo âmbito o Tribunal a quo, apreciando a reconvenção e depois de historiar o caso e de tecer algumas considerações teóricas sobre a matéria, designadamente a partir do Acórdão da Relação do Porto, de 10-02-2020 [4], concluiu que “fácil se torna assim ver que a causa de pedir formulada pela ré nada tem a ver com a formulada pelos autores; com efeito, os primeiros pretendem exercer um direito de preferência, ao passo que a segunda pretende que os primeiros a compensem por despesas que teve com terceiros, por sentir que o exercício da preferência defraudou as suas expectativas. O facto jurídico em que a reconvinte fundamenta o seu pedido assenta em relações contratuais com terceiros, as quais ficaram frustradas pelo o exercício do direito de preferência da autora.”

Consequentemente, decidiu rejeitar a reconvenção, por legalmente inadmissível à luz da alínea a), do artº 266º, do CPC.

Os réus, irresignados, apelaram, em recurso, a que esta Relação revogue e substitua a decisão, longamente, para o efeito, tendo alegado e assim concluído:

1 - Os Autores pretendem exercer o direito de preferência que alegam ter direito, pretendendo substitui-se na posição da 1ª R. Imobiliária X, Lda e de adquirente do prédio em causa nestes autos.
2 - A R. deduziu reconvenção a qual está dividida em três segmentos/fundamentos distintos: violação do princípio da boa-fé e da confiança, pagamento das despesas discriminadas nos artigos 237º a 245º dizem respeito a despesas que a 1ª R. liquidou com a realização do DPA, Depósito, Cópias Certificadas e Registo nas quais gastou € 672,30, acrescido do imposto de selo pela aquisição no valor de € 360,00, despesas estas que são prejuízos suportados pela 1ª R. com o negócio dos autos base nas regras do enriquecimento sem causa – artigos 473º e ss. do CC e pagamento das despesas discriminadas nos artigos 246º a 256º dizem respeito ao contrato de empreitada que a 1ª R. celebrou com a sociedade comercial Y – Sociedade de Compra e Venda de Imóveis, Lda, como empreiteira para a execução de obra de construção de um edifício multifamiliar no prédio em causa nos presentes autos, por despesas constantes naquele contrato de empreitada as quais ascendem a € 150 000,00.
3 - A reconvenção configura uma contra-ação do réu contra o Autor, representando uma ação, distinta, que se vem cruzar na que o Autor intentou, consistindo num pedido deduzido em sentido inverso ao formulado pelo autor, constituindo uma contra-ação que se cruza na proposta pelo autor (sendo este, no seu âmbito, réu (reconvindo), enquanto aquele nela toma a posição de autor (reconvinte)).
4 - O artigo 266º do CPC determina que a reconvenção é admissível nos seguintes casos:“a) Quando o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à ação ou à defesa; b) Quando o réu se propõe tornar efetivo o direito a benfeitorias ou despesas relativas à coisa cuja entrega lhe é pedida; c) Quando o réu pretende o reconhecimento de um crédito, seja para obter a compensação seja para obter o pagamento do valor em que o crédito invocado excede o do autor; d) Quando o pedido do réu tende a conseguir, em seu benefício, o mesmo efeito jurídico que o autor se propõe obter.”.
5 - Os requisitos de que depende a admissibilidade de pedidos reconvencionais são de duas ordens: requisitos objectivos e requisitos processuais.
6 - Nos termos da jurisprudência a al. a), deve ser interpretada no sentido de que a reconvenção será admissível não apenas quando o pedido reconvencional se funda no mesmo facto jurídico que serve de suporte ao pedido formulado na ação, mas também quando emerge do acto ou facto jurídico invocado como meio de defesa e que seja susceptível de modificar, reduzir ou extinguir o pedido do Autor (2ª parte).
7 - Desde que se verifique uma coincidência parcial entre os factos que o Réu, ao contestar a tese do Autor, invocou para justificar os fundamentos da sua própria defesa, mantendo, todavia, outros que exorbitam estritamente dessa defesa uma conexão entre eles, tanto basta para que a reconvenção seja admissível.
8 - Na ação de preferência o preferente pretende haver para si a coisa alienada, contanto que o requeira no prazo de seis meses, a contar da data em que teve conhecimento dos elementos essenciais da alienação e deposite o preço devido, no prazo legal, pretendendo substituir-se e tomar a posição de compradores no contrato de compra e venda realizado, em substituição da posição, neste caso, da R, Imobiliária X, Lda e com o inerente cancelamento do registo de aquisição do prédio a favor da 1ª R. sendo ordenado o registo da aquisição a favor dos AA.
9 - Em reconvenção, a Ré pretende indemnização das despesas que esta liquidou com a realização do DPA, Depósito, Cópias Certificadas e Registo nas quais gastou € 672,30, acrescido do imposto de selo pela aquisição no valor de € 360,00, as quais são prejuízos suportados pela 1ª R. com o negócio dos autos base nas regras do enriquecimento sem causa – artigos 473º e ss. do CC, e as despesas que dizem respeito ao contrato de empreitada que a 1ª R. celebrou com a sociedade comercial Y – Sociedade de Compra e Venda de Imóveis, Lda, como empreiteira para a execução de obra de construção de um edifício multifamiliar no prédio em causa nos presentes autos, por despesas constantes naquele contrato de empreitada as quais ascendem a € 150 000,00.
10 - O pedido relativo ao pagamento das despesas tidas com a realização do DPA, registos e pagamentos de impostos e a que dizem respeito ao contrato de empreitada emergem, também, desde logo, do facto jurídico invocado como meio de defesa, na contestação, sendo, na verdade, o excecionado da comunicação para preferência, da renúncia ao direito de preferência, da má-fé, da violação do principio da boa-fé e da confiança dos autores direito suscetível de modificar, reduzir ou extinguir o pedido dos autores.
11 - Basta que haja coincidência parcial entre os factos alegados pelo réu para fundamentar o pedido reconvencional e os alegados pelo Autor para fundamentar o pedido que formula na ação ou pelo Réu na contestação, em que se defenda por exceção, invocando factos que modifiquem, impeçam ou extingam o direito do Autor, para que a Reconvenção, sempre facultativa, seja admissível.
12 - Em caso de procedência da ação a autora não poderá ficar e aproveitar as despesas já tidas e ocorridas com o DPA, depósito, cópias certificadas, e imposto de selo pagas pela 1ª R., sem por elas pagar e de igual forma, em caso de procedência da ação e atendendo aos factos alegados pelas RR. nos artigos 38º a 169º da contestação, não fosse a má-fé da Autora não se teria criado na 1ª R. a confiança de que aquela não pretendia exercer o direito de preferência, e a 1ª R. não teria assinado o contrato de empreitada, existindo conexão entre o pedido formulado na ação de preferência e o pedido reconvencional, não comportando este uma mudança do objeto do processo, proibida pelo art. 264.º.
13 - O pedido da Ré Imobiliária X, Lda, emerge de facto jurídico que serve de fundamento à defesa, em que vem invocada a existência da comunicação de preferência, renúncia do direito de preferência, litigância de má-fé e violação dos princípios da boa-fé e da confiança.
14 - Em caso de procedência tendo sido pagas as despesas relativas ao DPA e impostos, e celebrado contrato de empreitada, e invocando as Rés na defesa como exceção a comunicação da preferência, a renuncia pela A. ao direito de preferência, a litigância de má-fé e a exceção de a violação pela autora dos princípios da boa fé e confiança, salvo melhor opinião em contrário tem de ser apreciado o pedido referente ao pagamento daquelas quantias, intimamente ligado ao conhecimento daquela exceção.
15 - Os factos alegados em sede de reconvenção integram, pois, os meios de defesa dos Réus contra a Autora, podendo ter a virtualidade de impedir, modificar ou extinguir o direito que é conferido, por lei, a esta.
16 - A ação funda-se em violação do direito de preferência, que é exercido, e a Reconvenção nas quantias pagas a titulo de DPA, registos, imposto de selo e obrigações contratuais assumidas em contrato de empreitada, não previstas na venda, a passar para propriedade da Autora, pelo que o pedido da Ré, ao contrário do que considerou o Tribunal a quo, emerge do facto jurídico que serve de fundamento à defesa (cfr. factos alegados na contestação e reconvenção incluindo a violação dos princípios da boa-fé e da confiança), situação, esta, consagrada na al. a), do nº2, do art. 266º.
17 - A alínea a) contém o requisito substantivo, fator de conexão com o pedido principal, existência de certa compatibilidade da causa de pedir da reconvenção com a causa de pedir do Autor, ou seja, com o facto jurídico de onde emerge o pedido inicialmente formulado.
18 - A compatibilidade do pedido da Ré (ressarcimento das quantias pagas a título de DPA, registos, imposto de selo e compromissos assumidos por via do contrato de empreitada) com a defesa (comunicação da preferência, renúncia à preferência, litigância de má fé e violação dos princípios da boa fé e da confiança) e mesmo com a causa de pedir da Autora, facto jurídico de onde emerge o pedido deste (direito de preferência do arrendatário), existe.
19 - Para além disso dispõe a alínea b) do n.º 2 do artigo 266º do CPC que a reconvenção é admissível quando o réu se propõe a tornar efetivo o direito a benfeitorias ou despesas relativas à coisa cuja entrega lhe é pedida.
20 - Atendendo à exceção alegada pelas RR. podemos ainda considerar que as quantias reclamadas em sede de reconvenção podem ainda integrar a segunda parte daquela alínea b) do n.º 2 por as mesmas poderem ser integradas no catálogo das despesas relativas à coisa cuja entrega lhe é pedida.
21- E mesmo que assim se não considerasse, e nunca precludido estivesse o direito de ação da Ré (sempre sendo a dedução de reconvenção facultativa), juntando as duas ações (passando a estar em causa no processo - ação e reconvenção - a entrega do prédio urbano com a liquidação dos impostos referentes à venda, as escrituras, os registos e com o contrato de empreitada celebrado), melhor se conseguem alcançar os desígnios de um processo célere, em que a economia de meios e maior concentração da prova, levem a uma solução mais coerente e justa do litígio que desune as partes, no caso, até, irmãos.
22 - Ao abrigo do disposto nos artigos 266.º, n.º 1 e 2, alíneas a) e b) e 583.º, n.º 1 e 2 do Código Processo Civil, deve a reconvenção deduzida e o pedido reconvencional ser admitido por ser legalmente admissível, devendo ser revogada a decisão do tribunal.
Subsidiariamente,
23 - Em caso de procedência da ação os AA. substituir-se-ão no lugar tomado pela 1ª R. na posição de compradora no contrato de compra e venda identificado e as despesas com o DPA e com o pagamento de imposto de selo já se mostram liquidadas pela 1ª R., despesas estas que os AA. não irão suportar e das quais irão, assim, beneficiar.
24 - Quanto a esta questão o Supremo Tribunal de Justiça já proferiu decisões no sentido de aceitar que estas despesas devem ser reembolsadas pelo Preferente e Carvalho Martins, por sua vez, defende que “…o preferente deve delas (despesas: sisa e custo da escritura) indemnizar o adquirente, através do mecanismo do enriquecimento sem causa… “.
25 - É possível à 1ª R. efetuar o pedido de restituição das referidas despesas em sede de pedido reconvencional ao abrigo deste instituto, pois que é esse o fundamento jurídico da pretensão deduzida pela Ré, devendo, por isso, a reconvenção ser admitida quanto a estas despesas por ser a mesma admissível.
26 - Face do exposto, e ao abrigo do disposto nos artigos 266.º, n.º 1 e 2, alínea a) e 583.º, n.º 1 e 2 do Código Processo Civil, deve a reconvenção deduzida e o pedido reconvencional ser admitido por ser o mesmo legalmente admissível.
27 - Deve a decisão do Tribunal ser revogada e substituída por outra nos termos requeridos pelos RR.
28 - O Tribunal recorrido violou, por erro de interpretação e aplicação o disposto no artigo 266º, n.º 1 e n.º 2 al. a) e b) do CPC.”.[5]

Não foram apresentadas contra-alegações.

O recurso foi admitido como de apelação, a subir de imediato e em separado, com efeito devolutivo.

Corridos os Vistos legais e submetido o caso à apreciação e julgamento colectivo, cumpre proferir a decisão, uma vez que nada a tal obsta.

II. QUESTÕES A RESOLVER

Pelas conclusões apresentadas pelo recorrente – sem prejuízo dos poderes oficiosos conferidos ao tribunal e de não poderem ser apreciadas questões novas – se fixa o thema decidendum e se definem os respectivos limites cognitivos.
Assim decorre do nosso regime legal de recursos e é pacificamente entendido na jurisprudência – artºs 5º, 608º, nº 2, 609º, 635º, nº 4, 637º, nº 2, e 639º, nºs 1 e 2, do CPC.
No caso, analisando-se as 28 prolixas conclusões, delas se extrai, em síntese [6], que a questão recursiva que nos vem colocada consiste, tão só, em decidir, principalmente, se o pedido reconvencional deve ser admitido com fundamento na alínea a) – por emergir de facto jurídico que serve de fundamento à acção ou à defesa – ou mesmo na alínea b), segunda parte – por se tratar de despesas relativas à coisa cuja entrega é pedida – do nº 2, do artº 266º, do CPC, perspectivadas como instrumento destinado a promover a resolução célere e mais económica do litígio, a concentração da prova para o efeito e, assim, uma solução mais coerente e justa para as partes [7]; ou, ainda, subsidiariamente, se, ao abrigo da referida alínea a), o deve ser, pelo menos quanto às “despesas com o DPA e com o pagamento de imposto de selo”.

III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Releva a descrição dos factos processuais emergentes do relatório que antecede.

IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Adianta-se, desde já, que aos apelantes não pode ser reconhecida razão, embora por fundamentos jurídicos não coincidentes com aqueles em que se baseou o Tribunal a quo.
Vejamos, procurando ser simples e claros mas obedientes ao dever legal de fundamentação – artºs 130º, 131º e 154º, do CPC.
Os termos da questão resultam do relatório inicial, propositadamente já detalhado de modo a dele ressaltarem com evidência os respectivos contornos mais relevantes.
A matéria da admissibilidade da reconvenção, eternamente controversa em função das múltiplas especificidades de cada caso concreto e dos motivos e objectivos com que as partes lançam mão dela, está vastamente escalpelizada na Doutrina e na Jurisprudência.
Apenas se relembra, porque se considera estulto, inútil e fastidoso aqui repetir, o que se explana a tal propósito, v.g., nos Acórdãos desta Relação de Guimarães, de 10-07-2018 [8], da Relação do Porto, de 18-11-2019 [9], e de 10-02-2020 [10], da Relação de Coimbra, de 17-03-2020 [11] e, mais recentemente, no Acórdão da Relação de Lisboa, de 10-03-2022 [12].
Neste, como, v.g., já nos anteriores Acórdãos da Relação do Porto, de 05-07-2011 [13], de 21-11-2019 [14] e de 13-10-2020 [15], abertamente se defende, em linha com os Mestres aí citados, a admissibilidade de dedução do pedido reconvencional em termos subsidiários, eventuais ou condicionais (para o caso de o pedido originário do autor ser julgado procedente).[16]
Observa-se, porém, como sinal de que nem sempre as coisas se apresentam assim tão simples e, portanto, aquele entendimento dotado de aptidão indiscutível para ser aplicado genérica e linearmente sem considerar as específicas diversidades apresentadas em função de cada caso concreto, que no Acórdão da Relação do Porto, de 18-06-2020 [17] se entendeu que “Não é admissível reconvenção condicional ou subsidiária, para a hipótese de procedência da acção, libertando-se o réu, por meio de compensação, da obrigação que o vinculava ao autor, tendo ele negado a existência do crédito que este tinha sobre si”.
Salienta-se, para tal, a incongruência que a dedução de uma tal reconvenção/compensação encerra [18], o que mostra que, para ser admissível o recurso a tal mecanismo, não basta a verificação das conexões estabelecidas na lei, sendo necessário que a subsidiariedade desta também com elas juridicamente se harmonize e apresente como viável.

Seja como for, o certo é que nos termos dos artºs 583º e 266º, CPC, o réu pode deduzir, em reconvenção, pedidos contra o autor, além de outras hipóteses de admissibilidade que não vêm ao caso:

a) Quando o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção ou à defesa;
b) Quando o réu se propõe tornar efectivo o direito a despesas relativas à coisa cuja entrega lhe é pedida.
Nos presentes autos, pretendem os réus, a título principal, que a acção de preferência proposta pelos alegados arrendatários de imóvel, a quem alegadamente não terá sido facultado o exercício do direito de preferirem na respectiva venda, seja julgada improcedente e, portanto, se decrete a sua absolvição total do pedido.
Entre os vários fundamentos (exceptivos e impugnatórios) aduzidos para sustentar essa pretensão, avulta o do abuso de direito, previsto no artº 334º, do CC, no caso invocado quanto à sua dimensão relativa à violação dos princípios da boa fé, na modalidade de venire contra factum proprium, e da confiança.
Nos termos da invocada disposição legal, é ilegítimo – ilícito – o exercício de um direito quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
Sobre o conteúdo e manifestações do instituto é muito vasta também a Doutrina [19] e a Jurisprudência, mormente a das Relações e do Supremo [20].
Uma destas respeita ao chamado venire contra factum proprium que se traduz em o titular de certo direito, através da sua conduta idónea para tal, criar no sujeito colocado como contraparte da relação jurídica em causa, a expectativa legítima de que ele será ou não será exercido em consonância com o significado do comportamento aparentemente revelador da sua intenção e em cuja seriedade aquele acredita e confia justificadamente e em função dessa crença organiza os seus interesses, mas na realidade vem depois a actuar em contradição ou desconformidade com aquela aparência, assim frustrando a expectativa gerada e perturbando as disposições em razão dela tomadas.
A violação da confiança é, pois, corolário da conduta contraditória e de má fé. Nela se revela uma dimensão do abuso de direito. Deste constitui manifestação típica a supressio segundo a qual uma posição jurídica que não tenha sido exercitada em certas circunstâncias e em certo tempo não poderá jamais sê-lo por tal afrontar a boa fé.
O comportamento abusivo pode gerar uma vinculação do sujeito “abusador” a respeitar a confiança gerada na contraparte e a pretensão desta em exigir-lhe que a respeite em conformidade com o significado do seu comportamento e a opor-se a que aquele se valha e exercite o direito contrariado.

Como refere o Prof. Baptista Machado “...são duas as modalidades fundamentais de «sancionamento» daquela autovinculação geradora da confiança legítima – ou seja, os efeitos da «responsabilidade pela confiança». Estes efeitos podem consistir:

a) ora em considerar relevante (ainda que como mero facto) e juridicamente exigível o conteúdo significativo da «autovinculação» extranegocial que engendrou a confiança;
b) ora em obrigar o responsável a indemnizar os danos causados».” [21].

Ora, como se viu, os réus apelantes, para obstaculizarem o exercício do direito de preferência e obterem a improcedência da acção e absolvição do pedido, entre outras excepções, designadamente peremptórias, alegaram a de “manifesto e gritante” abuso de direito (artº 334º, CC) na modalidade de venire contra factuam proprium “em combinação” com a violação da confiança: os autores tê-los-ão feito acreditar, com a sua conduta, activa ou omissiva e comunicações expressas, que eles não pretendiam exercer o direito de preferência e os réus, sobretudo a 1ª, crentes e confiantes na seriedade que tal postura aparentemente revelava, orientaram as suas decisões e acções em conformidade.
Contrariando, porém, as suas expectivas assim frustradas e lesando os seus interesses conjecturados e já implementados, afinal apresentaram-se aqueles, através da presente acção, a invocar a titularidade do direito de preferência e a pretender exercitá-lo judicialmente.
Configurando-se, assim, tal exercício como, em face de tais circunstâncias, “ilegítimo”, a proceder tal alegação, deverá improceder a acção.
É isso que pedem os réus apelantes a título principal na contestação.
E se tal pretensão for assim entendida, designadamente se o for com base no alegado abuso de direito por conduta contraditória, de má fé e violadora da confiança, isso significa que terá operado a primeira modalidade de sancionamento consequente à responsabilidade dos autores por desrespeito pelas expectativas geradas, qual é a de ficaram obrigados à conduta por eles assumida como “autovinculativa” e, portanto, terem de abrir mão do direito de preferência e do correspondente direito de acção a exercitá-lo, devendo o tribunal reconhecer como legítima e fundada a oposição dos réus à procedência do pedido.
Se assim for, isto é, se vingar a alegada tese do abuso de direito, permanecerá incólume a venda e inerte o direito de preferência. Logo, nenhuma pretensão mais, seja a relativa a despesas seja a prestações que a 1ª ré alega que teria de pagar “na mesma” em caso de desistência da empreitada “seja qual for a razão” ou do contrato de prestação de serviços, poderia, logicamente, pretender fazer repercutir sobre os autores.
Mas se assim não for e, portanto, para o caso de a acção proceder a despeito dessa excepção peremptória e das demais e, em resultado disso, terem de abrir mão da propriedade do imóvel, então pedem eles, subsidiariamente, através da reconvenção, que os autores sejam condenados no pagamento da quantia de 1.032,30€, a título de despesas, e mais 150.000,00€, quanto à empreitada e à prestação de serviços.
Ora, diz-se, em geral, subsidiário ou eventual o pedido, no caso reconvencional, que é apresentado ao Tribunal para ser tomado em consideração no caso de não proceder um pedido anterior (aqui, o principal), ou seja, o de improcedência total da acção à cabeça formulado pelos réus (artº 554º, do CPC).
O pedido reconvencional é fundamentado pelos reconvintes, como e viu, na tal segunda modalidade de sancionamento da conduta abusiva e de má fé responsabilidade pela indemnização por danos causados.
Sucede, contudo, que a não procedência do pedido principal dos réus (de improcedência da acção) e a consequente procedência do pedido dos autores (o de preferência, exercitado através da acção) pressuporá necessariamente a falência em toda a linha da defesa por excepção peremptória (a arquitectada nos itens 1 a 204 da contestação) e, por isso mesmo, do alegado abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium e da correspondente violação do princípio da confiança.
Ao invés, a procedência desta defesa por excepção peremptória implicará a improcedência da acção e, portanto, a inexistência dos prejuízos/danos alegados e peticionados subsidiariamente.
Constituindo este abuso o facto ilícito gerador do invocado direito de indemnizar e não podendo ele não ser (resultar não provado como excepção) e ser (resultar provado como um dos elementos da causa de pedir – o facto ilícito – complexa relativa à responsabilidade civil indemnizatória) ao mesmo tempo, ou seja, na mesma instância e relativamente ao objecto dela eventualmente modificado, soçobrar em sede de exceptio e renascer e prevalecer em sede de acção reconvencional, segue-se que este pedido, com tal fundamento e formulado naqueles termos, se apresenta ilógico, incoerente e inviável.
Sendo pressuposto do pedido deduzido como subsidiário a improcedência da defesa exceptiva (do abuso de direito) e, portanto, procedência da acção, a falha daquele (do inerente facto ilícito) implica a necessária e consequente impossibilidade de preenchimento do primeiro dos pressupostos fundamentadores da responsabilidade civil enquanto modalidade “sancionatória” da conduta contraditória e violadora da boa fé e da confiança.
Logo, o pedido subsidiário jamais poderá, por inconcludência, ser tomado em consideração no caso de não obter acolhimento o principal de improcedência da acção e de, portanto, os réus serem condenados no pedido.
Apesar de ele emergir de facto jurídico que serve de fundamento à defesa, pressupondo a sua viabilidade, nos termos da contestação, que a acção proceda, tal fundamento necessariamente haverá, então, de soçobrar e resultar inapto para obstar a esta procedência, pelo que, assim sendo, jamais poderão os autores ser condenados nas alegadas despesas de 1.032,30€ e prestações contratuais a terceiros de 150.000,00€ a título de responsabilidade civil sancionatória da violação dos princípios da boa fé e da confiança uma vez que na procedência da acção estará compreendido o reconhecimento do seu direito a preferirem e a negação aos réus da pretensão de tal impedirem.
Não é, pois, por a causa de pedir reconvencional invocada pela ré “nada ter a ver com a formulada pelos autores” que o pedido é inadmissível. Na verdade, ao fundamentar-se a “compensação visada” na violação da confiança que o exercício da preferência pelos autores apelados alegadamente representa, o nexo com o objecto da acção existe.
Nem deixa de o ser por aquela “assentar em relações contratuais com terceiros”. Com efeito, do exercício da preferência sempre poderia resultar a frustração daquelas bem como os inerentes prejuízos, situação que não existiria se não fosse a conduta abusiva e violadora da confiança.
Só que, alegando-se, a título principal aquela violação, no caso de a mesma proceder, não procederá a acção e, em consequência de tal resultado, subsistindo a venda efectuada pelos 2ºs à 1ª ré, não se verificará a condição (“não proceder o pedido anterior”) de que depende o pedido subsidiário.
Assim como não ocorrerão os fundamentos necessários para imputar com êxito qualquer responsabilidade indemnizatória aos autores mesmo que estes hajam actuado em violação da boa fé e da confiança, por esta ilicitude não poder funcionar, ao mesmo tempo, ora como obstáculo impeditivo do exercício do direito de preferência ora como geradora dos prejuízos que adviriam da efectivação deste, não se descortinando como e em que circunstâncias poderão as consequências do abuso de direito operar coerentemente nos dois planos distintos supra referidos.
Sendo certo que os factos alegados em sede de reconvenção integram os meios de defesa dos réus contra a autora e que eles têm a virtualidade de extinguir o direito desta, caso eles procedam e, portanto, se demonstre o facto ilícito (violação da boa fé e da confiança) a este não se seguirão, repete-se, as consequências danosas alegadas e necessárias para fundamentar a indemnização.
Contrariamente, se eles improcederem, subsistirá o direito de preferência. Porém, mesmo que se verifiquem os alegados prejuízos, jamais poderão ser eles causalmente atribuídos a tal facto ilícito e imputáveis aos autores na medida em que, então, será lícita e não censurável a sua actuação.
De resto, não se vê como as quantias reclamadas, sejam, no designado por “primeiro segmento”, as “despesas diversas” no total de 1.032,30€, isto é, as relativas a “DPA, Depósito, Cópias Certificadas e Registo” (672,30€) e as de imposto de selo (360,00€), sejam, no “segundo segmento”, as que alegadamente a ré “terá de pagar” ao empreiteiro a título de “penalização” (100.000,00€) ou as relativas ao contrato de prestação de serviços que “terá de efetuar na mesma” ao técnico, possam ser consideradas como “relativas à coisa cuja entrega lhe é pedida”, pois que, com a coisa nenhuma relação têm elas.
Daí que, mesmo tendo em conta as vantagens normalmente referidas ao mecanismo da reconvenção (celeridade, economia, concentração da prova e solução mais justa e coerente do litígio num só processo), não se vê como, seja à luz da alínea a), seja da parte final da alínea b), do nº 2, do artº 266º, CPC, possa, subsidiariamente à procedência da acção e à improcedência da defesa exceptiva, com base, ainda, na violação da boa fé e da confiança, admitir-se o pedido reconvencional indemnizatório respeitante àquelas quantias.
Em suma, a pretensão recursiva formulado a título principal não tem o mérito de reverter a decisão recorrida, devendo ser julgada improcedente.
E quanto à pretensão recursiva formulada subsidiariamente?
Argumentam os apelantes que, no caso de procedência da acção de preferência tal implicará a substituição ex tunc do comprador pelos preferentes e que, por isso, tomando estes o lugar daquele, aproveitam das aludidas “despesas diversas” no total de 1.032,30€, isto é, as relativas a “DPA, Depósito, Cópias Certificadas e Registo” (672,30€) e as de imposto de selo (360,00€).
Concluem que delas devem ser reembolsados ao abrigo das regras do enriquecimento sem causa.
Amparam-se no que a Doutrina e a Jurisprudência do Supremo terão alegadamente já entendido e este decidido.
Ora, aceitando-se que efectivamente aquela “substituição” no contrato de compra e venda é a consequência da procedência da acção, já não se aceita que, a pretexto do invocado regime do enriquecimento, a reconvenção seja admissível ao menos quanto a tais despesas.
Desde logo, além das do registo e do imposto, não se sabe ao que respeitam exactamente as demais nem o documento (nº 15) apresentado pelo Agente de Execução tal elucida.
Depois, não apontam, afinal os apelantes um único aresto concreto nem citam qualquer consideração doutrinária em que tal possibilidade se defenda e afirme.
Também não justificam eles como “enriquecem” e se “locupletaram” com tais despesas “indevidamente recebidas” os autores, nem “à custa” de quem se dá o empobrecimento e deve “restituir”.
Muito menos alegam eles que inexista outro meio de serem indemnizados ou restituídos (artºs 473º e 474º, CC), de modo a convencer que há lugar à aplicação subsidiária do instituto do enriquecimento, nem como se coaduna tal invocação com a alínea a), do nº 2, do artº 266º, CPC, preconizada como base da admissibilidade do pedido com aquele fundamento.
Na verdade, os autores, a proceder a acção, ter-se-ão limitado a exercer o seu direito de preferência, daí não lhes advindo qualquer outra responsabilidade traçada na lei senão a de depositarem o preço (que jamais se refere a outras despesas).
Por outro lado, também a ser reconhecida a preferência, tal significará que na conduta dos obrigados a dá-la (e não na do preferente) residirá a causa dos prejuízos do adquirente preterido e que, portanto, é na relação entre ambos que o eventual direito a ser por eles indemnizado deve ser discutido.

Não merece, pois, ser acolhida tal pretensão recursiva, desconforma ao entendimento seguido no Acórdão da Relação do Porto, de 11-10-2016, cuja fundamentação aqui se acolhe e de cujo sumário resulta:

“I - A substituição “ex tunc” decorrente da procedência da acção de preferência, respeita tão só à titularidade do direito, fundada na lei, e não constitui o substituto (preferente) em qualquer obrigação perante o substituído, mormente a de repor o “status quo ante” que ele tinha se não tivesse celebrado o negócio que veio a ser objecto da acção de preferência triunfante.
II – Entre o preferente e o terceiro/adquirente não existe qualquer relação jurídica concreta que vincule o primeiro a algum tipo de prestação a favor do segundo e, para além de não existir qualquer contrato entre o preferente e o adquirente, o exercício da preferência não representa um facto gerador de qualquer responsabilidade do primeiro relativamente ao segundo.
III- É sobre a vendedora que recai a obrigação de reembolsar a adquirente, desde que verificados os demais pressupostos da respectiva responsabilidade, que julgamos ser uma responsabilidade pré-contratual, cfr. art.º 227.º do C.Civil, por violação do princípio da boa-fé negocial, pelas despesas realizadas e não recuperáveis – como sejam as despesas com a realização da escritura e respectivo registo da aquisição, etc.”.
Com os fundamentos expostos, deve improceder na sua totalidade o recurso e confirmar-se a decisão recorrida.
Devendo a responsabilidade pelas custas da reconvenção ser imputadas em conformidade com o decidido em 1ª instância, a cargo dos apelantes ficam as do recurso devidas nesta, por nele decaírem integralmente.

V. DECISÃO

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso e, em consequência, negando provimento à apelação, confirmam a decisão recorrida.
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Custas pelos recorrentes – (artºs 527º, nºs 1 e 2, e 529º, do novo CPC, e 1º, nºs 1 e 2, 3º, nº 1, 6º, nº 2, referido à Tabela anexa I-B, 7º, nº 2, 12º, nº 2, 13º, nº 1 e 16º, do RCP).
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Notifique.
Guimarães, 30 de Junho de 2022

Este Acórdão vai assinado digitalmente no Citius, pelos Juízes-Desembargadores:

Relator: José Fernando Cardoso Amaral;
Adjuntos: Eduardo José Oliveira Azevedo;
Maria João Marques Pinto de Matos.



1. Por opção do relator, o texto próprio não segue as regras do novo acordo ortográfico.
2. Por vezes, no articulado, trocam-se, como aqui onde se dizia “a R.” em vez, presume-se, de “a A.”, as qualidades dos protagonistas, interpretando-se, porém, o mesmo com o sentido que se nos afigura ser o correcto.
3. Se relativamente ao “Registo” e ao “Imposto de Selo” se presume relacionaram-se com a compra, já quanto aos demais itens, maxime o repetido “DPA”, não se explica ao longo do articulado, nem resulta do documento 15 para que se remete, que despesa “necessária” terá sido.
4. Processo nº 426/13.0TBMLD-E.P1 (Jorge Seabra).
5. Não se respeita, antes se adapta, a formatação de texto usada nos originais transcritos.
6. A síntese que ao recorrente competia fazer nos estritos limites do nº 1, do artº 639º, do CPC, e nos termos que a Doutrina e a Jurisprudência vastamente preconizam interpretando o sentido e função da norma.
7. Refere-se, na conclusão 21ª, que as partes são até “irmãos”. Só que não se descortina de onde vem tal parentesco!
8. Processo nº 1630/17.7T8VRL-A.G1 (Maria João Matos, 2ª Adjunta neste): “I. A dedução de um pedido reconvencional fundado na mesma causa de pedir do pedido do autor, pressupõe que aquela seja entendida à luz da teoria da substanciação, isto é, integrada pelos factos concretos que concretizam a norma ou o instituto jurídicos invocados, não valendo para o efeito a abstracta invocação pelo réu dos mesmos norma ou instituto jurídicos, quando consubstanciados por factos absolutamente diferentes e distintos dos primitivos (arts. 266º, nº 1 e nº 2, al. a), e 581º, nº 4, ambos do C.P.C.). II. A dedução de um pedido reconvencional fundado no mesmo facto que serve de fundamento à defesa, pressupõe que o facto invocado - como simultâneo fundamento da reconvenção -, a verificar-se, produza efeito defensivo útil, isto é, tenha virtualidade para reduzir, modificar ou extinguir o pedido do autor (arts. 266º, nº 1 e nº 2, al, a), e 576º, nº 1 e nº 3, ambos do C.P.C.).”.
9. Processo nº 3550/17.6T8VFR-A.P1 (Eugénia Cunha), no qual se analisa a natureza e âmbito da conexão exigida (com a causa de pedir em que se funda a acção ou com os fundamentos da defesa alegados com o desiderato de reduzir, modificar ou extinguir o pedido principal) e necessária para a reconvenção poder ser admitida e se refere que, consistindo esta numa acção cruzada consubstanciada numa relação jurídica distinta e autónoma, o pedido reconvencional deve resultar “naturalmente” ou “conter-se” na causa de pedir do autor ou ser “normal consequência do facto jurídico que suporta a defesa”.
10. Processo nº 426/13.0TBMLD-E.P1 (Jorge Seabra), neste se salientando, tal como naquele, o “justo equilíbrio entre os interesses da economia processual e da economia de meios – que postula a resolução de todos os eventuais litígios entre as partes através de um único processo e um único julgamento – e o interesse na ordenada tramitação do processo – acautelando o interesse do autor e do sistema judicial na obtenção tão célere quanto possível de uma decisão quanto a esse litígio”.
11. Processo 590/19.4T8GRD-A.C1 (Jorge Arcanjo): “I - A admissibilidade da reconvenção pressupõe uma conexão objectiva entre as duas ações, um nexo entre os objectos da causa inicial e da causa reconvencional. II - O pedido reconvencional do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à ação se existir identidade, total ou parcial, de ambas as causas de pedir, a da ação e da reconvenção III - O pedido reconvencional do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à defesa quando faz nascer uma questão prejudicial em relação à causa principal, ou seja, produza “efeito útil defensivo”, capaz de reduzir, modificar ou extinguir o pedido do autor.”.
12. Processo 2797/21.5T8FNC-A.L1-2 (Carlos Castelo Branco): “I) A reconvenção é admissível – para além dos demais casos elencados no artigo 266.º, n.º 2, do CPC – quando o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à ação (se existir identidade, total ou parcial, das causas de pedir, a da ação e a da reconvenção) ou à defesa (quando faz nascer uma questão prejudicial em relação à causa principal, produzindo um efeito capaz de reduzir, modificar ou extinguir o pedido do autor). II) A reconvenção pode ser deduzida a título eventual – reconvenção subsidiária – para o caso de o pedido originário do autor vir a ser julgado procedente. III) A reconvenção subsidiária (em que o réu quer obter, antes do mais, a improcedência da ação e apenas, se tal não suceder, pretende a procedência do pedido reconvencional) distingue-se da reconvenção dependente (em que o réu utiliza a procedência ou improcedência do pedido formulado pelo autor como objeto prejudicial face à reconvenção que deduz). IV) Assentando as autoras o direito de que se arrogam no invocado exercício da preferência sobre a venda dos imóveis objeto de alienação/aquisição entre os réus, a pretensão reconvencional deduzida para o caso de procedência da ação (assente em invocado direito dos réus a recuperarem o valor do preço pago pela aquisição, o das despesas satisfeitas e o das benfeitorias realizadas, decorrente da impossibilidade de transmissão da propriedade do prédio para as autoras com o respetivo valor, que, na perspetiva dos recorrentes, constituiria um enriquecimento sem causa destas), não se inscreve na causa de pedir formulada pelas autoras, nem se dirige a esgrimir como meio de defesa um facto ou acto jurídico que possa reduzir, modificar ou extinguir o pedido formulado pelas autoras, não sendo admissível.”.
13. Processo nº 7830/10.3TBVNG-A.P1 (Fernando Samões).
14. Processo nº 1414/18.5T8PVZ.P1 (Carlos Portela).
15. Processo nº 3393/18.0T8PNF.P2 (Vieira e Cunha).
16. Conceitualmente, como aí refere, citando o Prof. Miguel Teixeira de Sousa, deve distinguir-se reconvenção subsidiária de reconvenção dependente.
17. Processo nº 586/19.6T8VNG-A.P1 (Judite Pires).
18. Com efeito, como se justifica no texto, “Sendo requisitos da compensação a exigibilidade judicial do contra crédito sem que contra ele proceda excepção peremptória ou dilatória, de direito material e terem as duas obrigações por objecto coisas fungíveis da mesma espécie e qualidade[12], a montante terão sempre de ser considerados os pressupostos da validade do crédito principal e da reciprocidade creditícia. Ora, negando o compensante o crédito da parte activa na acção, jamais poderá contra ela fazer valer o contra-crédito, através do instituto da compensação que, como se disse, pressupõe, antes de tudo, a reciprocidade de créditos. Aliás, é, no mínimo, incongruente, no caso dos autos, a posição sustentada pela ré que, afirmando peremptoriamente nada dever à autora, não tendo qualquer obrigação para com ela, venha, a final, para o caso de eventual procedência da acção, peticionar que a totalidade do crédito reclamado pela parte activa na acção seja compensado pelo crédito de que a ré se arroga também titular sobre aquela, extinguindo-se, por via da compensação, a obrigação que tinha para com a primeira.”
19. Lembrem-se Orlando de Carvalho, Teoria Geral do Direito Civil, Centelha, Coimbra, 1981; A. Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, Almedina, 1985, e Do Abuso de Direito: estado das questões e perspectivas, in ROA, 2005, ano 65, volume II, Setembro de 2005.
20. Uma útil panorâmica se pode ver, v.g., na Tese de Mestrado intitulada Venire Contra factum Proprium: sua aplicabilidade, amplitude e delimitações, apresentada em Julho de 2016, na FD da Universidade de Coimbra, por Hugo Rafael Galdino Araújo, orientada pelo Prof. Dr. Luís Miguel de Andrade Mesquita.
21. Tutela da Confiança e venire contra factum proprium, RLJ, ano 117 e sgs, mais exactamente nº 3726, página 296.