Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2322/15.7T8VCT-A.G1
Relator: FERNANDO FERNANDES FREITAS
Descritores: CASO JULGADO FORMAL
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO
CAUÇÃO
BEM HIPOTECADO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/30/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- A exigência de fundamentação das sentenças e dos despachos que não sejam de mero expediente decorre, em primeira linha, do n.º 1 do art.º 205.º da Constituição, estando subjacentes àquele dever razões de ordem substancial (cabe ao juiz demonstrar ter sabido extrair da norma geral e abstracta a disciplina ajustada ao caso concreto) e de ordem prática (dar a conhecer às partes as razões em que assentou a decisão), mas só a ausência total de fundamentação é que constitui a nulidade referida na alínea b) do n.º 1 do art.º 615.º do C.P.C..

II- Enquanto o caso julgado material assenta sobre a decisão de mérito proferida em processo anterior, o caso julgado formal assenta sobre uma decisão anterior proferida sobre a relação processual, só podendo haver ofensa de caso julgado formal quando as decisões divergentes se apoiem ou decidam sobre o mesmo e inalterado quadro factico.

III- A força e a autoridade atribuídas à decisão transitada em julgado, quer ela se refira à relação processual, quer quando respeita à relação material litigada, visam acautelar uma necessidade vital de segurança jurídica e de certeza do direito, impedindo que uma questão decidida pelo órgão jurisdicional possa ser validamente definida mais tarde, em termos diferentes, por outro ou pelo mesmo tribunal (res judicata pro veritate habetur).

IV- Quando a caução visa a suspensão da execução, para além da garantia de pagamento da quantia exequenda, o que se pretende é colocar o exequente a coberto dos riscos da demora no prosseguimento da ação executiva, obviando a que, por virtude de tal demora, o executado possa empreender acções que delapidem o seu património.

V- Uma hipoteca constituída anteriormente à instauração da execução é idónea para suspender a execução se o valor do bem hipotecado for suficiente para cobrir o crédito exequendo e os demais acréscimos e danos que resultem da suspensão.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

A) RELATÓRIO

I.- Os Executados P. C. e H. P. deduziram oposição à execução de sentença para prestação de facto positivo que lhes move o Exequente H. M. e requereram a suspensão da execução, invocando o disposto no art.º 733.º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Civil (C.P.C.), visto haverem impugnado a exigibilidade da obrigação exequenda.
Por despacho proferido em 28/01/2019, este pedido de suspensão da execução foi indeferido por se haver entendido que “as circunstâncias alegadas não são suficientes para determinar a suspensão da execução”.
Este despacho foi devidamente notificado e não foi impugnado, tendo transitado em julgado.
Em 27/02/2019 os referidos Embargantes/Executados apresentaram novo requerimento, desta vez nos próprios autos de execução, pedindo a suspensão desta, “com suspensão imediata de todas as diligências de penhora”, insistindo na impugnação, que fizeram nos embargos de executado, da exigibilidade ou liquidação da obrigação e alegando ainda que, “se encontra prestada uma garantia real sobre a casa de morada de família” deles, Executados, “no valor de € 80.000,00 (oitenta mil euros)”, “valor que o próprio Exequente entendeu adequado” (requerimento que, por não ter sido junto a estes autos, se consultou no processo de execução em modo informático).
O Exequente foi ouvido e invocou o trânsito em julgado do despacho acima referido, que havia indeferido o pedido de suspensão da execução, alegando ainda não haver fundamento legal para o deferimento da pretendida suspensão.

Apreciando o requerimento formulado foi proferido Despacho do seguinte teor:

Em 28/01/2019 foi proferido despacho, no apenso de embargos, que indeferiu o pedido de suspensão da execução aí formulado pelos Embargantes e Executados.
Este despacho já transitou em julgado.
O deferimento da pretensão formulada pelos Executados em 27/02/2019 ofenderia o princípio do caso julgado.
Assim sendo, indefere-se o peticionado.”.

Inconformados, trazem os Executados o presente recurso pedindo a revogação da supratranscrita decisão.
Contra-alegou o Exequente propugnando para que se mantenha o decidido.
O recurso foi recebido como de apelação, com efeito devolutivo.
Colhidos, que foram, os vistos legais, cumpre decidir.
**
II.- Os Apelantes/Executados formularam as seguintes conclusões:

a) Vem o presente recurso interposto do despacho proferido a 29 de Março de 2019, o qual injustamente, decidiu julgar improcedente o pedido de suspensão de execução dos Embargantes, determinando o prosseguimento da execução, porquanto entendeu que em 28/01/2019 havia já proferido despacho a indeferir tal pretensão e por conseguinte, havia transitado em julgado.
b) Contudo, mal andou o Douto tribunal a quo, porquanto o pedido formulado em sede de Embargos de Executado e no requerimento de 27/02/2019 são diferentes, e alicerçados em dispositivos legais diferentes, motivo pelo qual não há caso julgado.
c) Da leitura do teor de ambos os requerimentos percebe-se logo que no primeiro foi pedida a suspensão da execução sem prestação de caução, ou seja, ao abrigo do disposto no artigo 733.º n.º 1 alínea c) do CPC e o segundo mediante a prestação de caução, que aliás já se encontra prestada – 733.º n.º 6 do CPC.
d) E assim, fácil é de ver que no limite apenas haveria caso julgado formal para o indeferimento da primeira pretensão mas nunca para a segunda, que aliás vai contra todos os ditames do nosso direito.
e) Ademais, o despacho de que ora se recorre não está fundamentado porquanto não justifica o motivo pelo qual as circunstâncias invocadas pelos Recorrentes para determinar a suspensão, limitando-se a aderir à posição do Recorrido.
f) Como é consabido, a suspensão da execução em virtude da dedução de embargos apenas ocorre em três situações independentemente do título executivo: (1) ter sido prestada caução; (2) ter sido impugnada nos embargos a exigibilidade ou a liquidação da obrigação exequenda e desde que se justifique a suspensão sem prestação de caução; sendo o título executivo um documento particular; (3) ter o executado impugnado a genuinidade da sua assinatura e apresentado documento que constitua princípio de prova e desde que se justifique a suspensão sem prestação de caução;
g) E para obter a suspensão da execução sem prestar caução não basta ao embargante impugnar a exigibilidade ou a liquidação da obrigação exequenda, sendo ainda necessário alegar circunstâncias em função das quais se possa concluir que se justifica excepcionalmente o afastamento da regra de a suspensão depender da prestação de caução.
h) Donde, não obstante não se concordar com o indeferimento proferido, não se recorreu da decisão e requereu-se novamente a suspensão, neste caso mediante prestação de caução, donde não há fundamento para se indeferir o requerido.
i) Note-se que a prestação de caução trata-se de uma faculdade que o executado poderá utilizar até à decisão final dos embargos, pretendendo-se acautelar com mencionada disposição legal a eventual demora da execução e o perigo dos bens se dissiparem pelo decurso do tempo.
j) Esses riscos deixam de existir a partir do momento em que o executado preste caução, pois se os embargos foram improcedentes, o exequente está sempre garantido pelo valor da caução prestada.
k) Deste modo, o Douto despacho violou ostensivamente o artigo 733º nº 1 alínea a) e n.º 6, 615.º n.º 1 alínea b) todos do CPC, impondo-se por via do presente recurso a revogação dessa decisão.
l) O erro de julgamento de facto ocorre quando o juiz decide mal ou contra os factos apurados.
m) Por outras palavras, tal erro é aquele que respeita a qualquer elemento ou característica da situação sub judice que não revista natureza jurídica.
n) O erro de julgamento, de direito ou de facto, somente pode ser banido pela via do recurso e, verificando-se, tem por consequência a revogação da decisão recorrida.
o) O tribunal “a quo” incorreu, de facto, num erro quanto à subsunção dos factos ao direito, ignorando ou afrontando directamente as regras da experiência, em termos de se poder dizer que existe desconformidade entre os elementos probatórios disponíveis e a decisão do tribunal no que concerne à aplicação do direito (error júris), de forma a que o decidido não corresponda à realidade ontológica ou à normativa.
p) Nos termos do disposto no artigo 733.º n.º 1 alínea c), é determinada a suspensão da execução sido impugnada, no âmbito da oposição deduzida, a exigibilidade ou a liquidação da obrigação exequenda e o juiz considerar, ouvido o embargado, que se justifica a suspensão sem prestação de caução.
q) Ora, em sede de embargos os Recorrentes impugnaram a liquidez e exigibilidade da dívida, até porque estamos perante uma acção executiva para prestação de facto positivo fungível, e a obrigação cuja prestação se visa não se encontra qualitativamente determinada, muito menos quando é pretensão a convolação em pagamento para quantia certa e não há lugar a uma avaliação imparcial.
r) E por outro lado, a prestação apenas é exigível quando a obrigação se encontra vencida ou o seu vencimento depende, de acordo com estipulação expressa ou com a norma geral supletiva do art.º 777º, n.º 1, do Código Civil, de simples interpelação ao devedor.
s) No caso dos autos, não há incumprimento nem mora, uma vez que do Acordo ora Alcançado por culpa do devedor, facto que é corroborado pela prova junta e confirmado pelo recorrido.
t) E quando a prestação, cuja obtenção coactiva se pretende, não é, em face do título executivo, certa, exigível e líquida, terá lugar a aplicação do disposto nos art.ºs 714º, 715º e 716º do CPC.
u) O que não é o caso dos presentes autos.
v) Ademais, do título executivo junto, que o supracitado acordo, resultam obrigações para ambas as partes, uma obrigação de prestação de facto positivo para os Recorrentes – a execução das reparações acordadas – e uma obrigação de prestação de facto negativo para o Recorrido – permitir a execução dessas mesmas reparações.
w) Donde, sequer o título é idóneo para o prosseguimento dos autos.
x) Até porque os requisitos da certeza, exigibilidade e liquidez da prestação que não decorrem directamente do título executivo.
y) Com efeito, e em bom rigor, como se pode ver, sequer o despacho proferido em 28/01/2019 se encontrava alicerçado num fundamento válido, ou analisa a certeza, liquidez, exigibilidade ou mesmo idoneidade do título ora impugnado.
z) E de qualquer forma, não há identidade de pedido e causa de pedir em ambos os requerimentos.
aa) Donde resulta que ambos os despachos proferidos são nulos nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 615.º n.º 1 alínea b) e d) do Código de Processo Civil.
bb)A propósito do concurso aparente de normas, deve entender-se com LEBRE DE FREITAS, nos casos de improcedência da primeira acção, que a causa de pedir só será a mesma “se o núcleo essencial dos factos integradores da previsão das várias normas concorrentes tiver sido alegado no primeiro processo, permitindo nele identificar as normas aplicáveis “.
cc) Note-se que a expressão “limites e termos em que julga”, constante do art. 673.º do CPC, significa que a extensão objectiva do caso julgado se afere face às regras substantivas relativas à natureza da situação que ele define, à luz dos factos jurídicos invocados pelas partes e do pedido ou pedidos formulados na acção.
dd) Tem-se entendido que a determinação dos limites do caso julgado e a sua eficácia passam pela interpretação do conteúdo da sentença, nomeadamente, quanto aos seus fundamentos que se apresentem como antecedentes lógicos necessários à parte dispositiva do julgado.
ee) E portanto, é óbvio e notório que o despacho proferido em Janeiro de 2019 apenas se debruça sobre a eventual suspensão da acção executiva sem prestação de caução, pelo que só poderia, em última análise, formar caso julgado formal nesses exatos termos.
ff) Donde resulta clara nulidade do despacho ora recorrido, o qual terá que ser revogado e substituído por um que faça integral justiça.
gg) Portanto, os actos decisórios são sempre fundamentados devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão.
hh) O despacho de que ora se recorre não se pronunciou sobre NENHUMA questão levantada pelos Recorrentes, bastando-se pela invocação do caso julgado.
ii) E como é consabido, o regime das nulidades da sentença, nos termos expressos no art.º 615.º, n.º 3, Cód. Proc. Civil, aplica-se aos despachos interlocutórios pelo que é lícito ao juiz suprir nulidades.
jj) Face a todo o supra exposto, requer-se a V/as Exas. seja revogado o despacho proferido em 29/03/2019, porque nulo, com todas as consequências legais.
**
III.- Como resulta do disposto nos art.os 608.º, n.º 2, ex vi do art.º 663.º, n.º 2; 635.º, n.º 4; 639.º, n.os 1 a 3; 641.º, n.º 2, alínea b), todos do C.P.C., sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objecto do recurso.

Consideradas, pois, as conclusões acima transcritas, cumpre:

- conhecer da nulidade arguida ao despacho;
- conhecer do caso julgado formal;
- conhecer da admissibilidade da prestação da caução pela hipoteca constituída a favor do Exequente.
**
IV.- Argúem os ora Apelantes a nulidade do despacho que impugnam por não especificar os fundamentos que justificam a decisão.

Como refere LEBRE DE FREITAS, a sentença, no que é extensível aos despachos que não sejam de mero expediente, “pode apresentar vícios que geram nulidade, tornando-a totalmente inaproveitável para a realização da função que lhe compete, e vícios de conteúdo, que podem afectá-la total ou apenas parcialmente”. Estes, os vícios de conteúdo, podem ainda respeitar “à estrutura, aos limites ou à inteligibilidade da decisão”, dando origem à anulabilidade da sentença. Mas também podem respeitar a “um erro material”, que, unicamente, compete rectificar” (in “A Acção Declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil de 2013”, 3.ª ed., págs. 328 e sgs.).
Geram a nulidade da sentença, para além da falta absoluta do poder jurisdicional de quem a proferiu, e da falta de assinatura do juiz, também a falta ou a ininteligibilidade da parte decisória “como conteúdo mínimo essencial da sentença”.
Geram a anulabilidade da sentença os vícios, que respeitam à sua estrutura, referidos nas alíneas b) a e) do n.º 1 do art.º 615.º do C.P.C..
Assim, é passível de anulação a sentença/despacho que não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão - cfr. alínea b).
A exigência de fundamentação decorre, em primeira linha, do n.º 1 do art.º 205.º, da Constituição.
Concomitantemente, também o n.º 1 do art.º 154.º do C.P.C. impõe que se fundamentem as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo.
Como vem sendo referido, subjazem a este dever de fundamentação razões de ordem substancial – cabe ao juiz demonstrar ter sabido extrair da norma geral e abstracta a disciplina ajustada ao caso concreto -, e de ordem prática – dar a conhecer às partes as razões em que assentou a decisão.
É pacífico o entendimento de que só a ausência total de fundamentação é que constitui a nulidade a que se vem aludindo.
Como se alcança do seu teor, transcrito em I, o despacho ora visado enferma do apontado vício, não contendo o menor fundamento, de facto nem de direito, que suportem a decisão.
Termos em que se declara nulo o referido despacho.
**
Sem embargo, conhecer-se-á do recurso, fazendo operar a regra da substituição ao tribunal recorrido, consagrada no art.º 665.º, n.º 1 do C.P.C.
**
V.- Para além dos factos e incidências processuais acima referidas em I., resulta dos autos com este relacionados que:

a) Nos autos apensos de arresto foi celebrada uma transacção na qual os ora Apelantes e o Apelado/Exequente convencionaram a constituição de uma hipoteca voluntária pelo valor de € 80.000,00 (oitenta mil euros) sobre o prédio dos primeiros sito na Rua …, n.º …, inscrito na matriz predial urbana da União de Freguesias de … no artigo …º, e descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º … (…).
b) A referida hipoteca foi registada a favor do ora Apelado/Exequente.
c) Na transacção judicial celebrada nos autos principais – acção comum n.º 2322/15.7T8VCT – em 25 de Junho de 2018, que constitui o título executivo, ficou estabelecido na cláusula sexta que “O cumprimento das obrigações assumidas pelos réus nesta transacção fica garantido pela hipoteca que se encontra já constituída no âmbito do apenso A, a qual se manterá até cumprimento integral das respectivas obrigações”.
d) No requerimento executivo, no campo destinado à “LIQUIDAÇÃO DA OBRIGAÇÃO”, indicou o ora Apelado/Exequente o valor líquido de € 30.001,00, referindo ainda: “Danos não patrimoniais - € 2.500,00”; “Danos patrimoniais - € 400,00”; “Prestação de Facto – Valor Indeterminado”.
e) No referido requerimento o ora Apelado/Exequente, invocando incumprimento da execução dos trabalhos de reparação e eliminação dos defeitos a que se obrigaram os ora Apelantes declarou optar pela prestação de facto por terceiro e requereu a nomeação de perito para avaliar o custo respectivo.
f) Nos embargos de executado os ora Apelantes alegaram terem sido impedidos pelo Apelado/Exequente de procederem aos trabalhos a que se haviam obrigado.
**
VI.- Por constituir questão prejudicial relativamente às demais, impõe-se começar por conhecer da questão do caso julgado.

Nos termos do disposto no art.º 613.º do C.P.C., uma vez proferida a decisão ficam esgotados os poderes jurisdicionais do juiz.
De acordo com o disposto no art.º 619.º, n.º 1 do C.P.C., transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, ou seja, logo que não seja mais possível dela reclamar ou recorrer, a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos art.os 580.º e 581.º sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 702.º (que regulam o recurso de revisão).
As sentenças e os despachos (que não sejam de mero expediente ou proferidos no uso legal de um poder discricionário) que recaiam unicamente sobre a relação processual apenas têm força obrigatória dentro do processo – cfr. art.º 620.º do C.P.C..
Assim, enquanto o caso julgado material assenta sobre a decisão de mérito proferida em processo anterior, o caso julgado formal assenta sobre uma decisão anterior proferida sobre a relação processual.
O caso julgado formal pressupõe, pois, a repetição de qualquer questão sobre a relação processual dentro do mesmo processo.
No entanto, como referem LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE, “O despacho que recai unicamente sobre a relação processual não é apenas o que se pronuncia sobre os elementos subjectivos e ojectivos da instância (…) e a regularidade da sua constituição (…) mas também todo aquele que, em qualquer momento do processo, decide uma questão que não é de mérito” (in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 2.º, 3.ª ed., pág. 753).
Referem ANTUNES VARELA, MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA, que “A força e a autoridade atribuídas à decisão transitada em julgado, quer ela se refira à relação processual, quer sobretudo quando respeita à relação material litigada” visam acautelar “uma necessidade vital de segurança jurídica e de certeza do direito”, impedindo que uma questão decidida “pelo órgão jurisdicional possa ser validamente definida mais tarde, em termos diferentes, por outro ou pelo mesmo tribunal (res judicata pro veritate habetur)” (in “Manual de Processo Civil”, Coimbra Editora, 1984, pág. 296).
Como se deixou referido, é pressuposto essencial do caso julgado formal que uma pretensão já decidida, em contexto meramente processual, e que não foi impugnada, seja objecto de nova decisão.
A ofensa de caso julgado só pode existir quando as decisões divergentes se apoiem ou decidam sobre o mesmo e inalterado quadro factico.
Ora, na situação sub judicio, embora os ora Apelantes voltassem a referir a alínea c) do n.º 1 do art.º 733.º do C.P.C., como o haviam feito aquando do primeiro pedido de suspensão da execução, formulado na petição dos embargos de executado, no requerimento que motivou a decisão impugnada pelo presente recurso invocam ainda a constituição de “uma hipoteca voluntária sobre a (sua) casa de morada de família no valor de € 80.000,00”, alegando que a quantia exequenda se encontra “devidamente assegurada” pela constituição desta hipoteca, “no valor considerado adequado pelo Exequente”.

Deste modo, impõe-se concluir que, havendo identidade na pretensão – a suspensão da execução -, a identidade dos fundamentos em que ela se baseia é apenas parcial, visto agora ter sido alegada a constituição válida da hipoteca, invocando-se a causa de suspensão da execução referida na alínea a) do n.º 1 do art.º 733.º do C.P.C..
Não se mostra, assim, preenchido um dos pressupostos necessários à verificação do caso julgado – a identidade do quadro fáctico.
Destarte, é improcedente o fundamento invocado pelo Tribunal a quo para indeferir a pretensão de suspensão da execução.
**
VII.- Nos termos do disposto no art.º 733.º do C.P.C. o recebimento dos embargos só suspende o prosseguimento da execução se se verificar uma das quatro situações elencadas nas alíneas a) a d) do n.º 1, dentre as quais a prestação de caução (alínea a)).

Também o art.º 785.º do C.P.C., que regula o incidente de oposição à penhora, prevê a suspensão da execução, relativamente aos bens penhorados a que a oposição respeita, se o executado prestar caução – cfr. n.º 3.
Tipicamente a caução é uma garantia que visa assegurar o cumprimento de obrigações eventuais ou de amplitude indeterminada, em ordem à satisfação do interesse do credor.
Quando visa a suspensão da execução, a jurisprudência tem-lhe atribuído finalidades específicas que vão além da garantia de pagamento da quantia exequenda, e que visam colocar o exequente a coberto dos riscos da demora no prosseguimento da ação executiva, obviando a que, por virtude de tal demora, o executado possa empreender acções que delapidem o seu património.
Consideradas estas finalidades, o valor da caução, como vem sendo entendido, deve garantir o pagamento da quantia exequenda, dos juros de mora, e das custas e encargos da execução - cfr. os critérios de cálculo das despesas previsíveis da execução para efeitos de penhora, constantes do n.º 3 do art.º 735.º do C.P.C..
A caução pode ser prestada por hipoteca - cfr. n.º 1 do art.º 623.º do C.C.-, que é um direito real de garantia, conferindo ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis ou equiparadas com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade do registo.
Deste modo, verificado o incumprimento da obrigação garantida pela hipoteca, o credor hipotecário, tendo, embora, de recorrer à acção executiva, poderá satisfazer o seu crédito pelo produto da venda do bem hipotecado, com preferência sobre os outros credores do titular deste bem, excepto se houver créditos que beneficiem de privilégio imobiliário ou de direito de retenção.
Tem-se discutido se, havendo uma garantia real anteriormente constituída, ela poderá ser tida como idónea para suspender a execução.
Uns defendem que a suspensão da execução, em consequência da dedução de oposição à execução, impõe sempre a prestação de caução e que a prestação de caução através de hipoteca já constituída anteriormente no processo para garantia de pagamento da quantia exequenda e que incide sobre o bem penhorado no mesmo processo não se prefigura como idónea, na medida em que o executado não oferece qualquer garantia que o exequente já não tenha.
Defendem outros que a hipoteca anteriormente constituída é idónea para o efeito de suspender a execução se o valor do bem hipotecado for suficiente para cobrir o crédito exequendo e os demais acréscimos e danos que resultem da suspensão.
A Relação de Coimbra, no Acórdão de 05/11/2019, adoptou esta segunda posição referindo que “no regime instituído pela Lei n.º 41/2013, de 26.6, verifica-se que, perante a garantia da penhora, o executado que se oponha à execução poderá substituir a penhora por caução idónea, afastando a cumulação de penhora suficiente e caução (cf. os art.ºs 751º, n.º 7 e 856º, n.º 5)” a mesma situação se impondo “quanto às garantias constituídas antes do processo; havendo garantia constituída, a caução só se justifica pela diferença presumível, eventualmente existente, entre o seu valor (do bem dado em garantia) e o do crédito exequendo e acessórios, incluindo os juros que, em estimativa, se preveja que venham a vencer em resultado da paragem do processo executivo”.
Assim, prossegue ainda, “existindo garantia real anterior, nem sempre será necessário prestar uma nova e distinta caução e, muito menos, que o deva ser pela totalidade do crédito exequendo, porquanto não se justificará tal duplicação e sobrecarga para o executado (a garantia será idónea para o efeito de suspender a execução quando o valor do bem sobre que recai a garantia é suficiente para cobrir o crédito exequendo e os demais acréscimos e danos que resultem dessa suspensão). A nova caução já será necessária, no entanto, em caso de insuficiência do valor do bem dado em garantia, se este nada cobre para além do crédito exequendo.” (ut processo 3141/18.4T8PBL-B.C1, in https:// www.direitoemdia. pt/document/s/844d73”).
Também o Acórdão da Relação de Lisboa de 11/09/2018 (que contém uma extensa resenha de citações jurisprudenciais e doutrinais, para as quais se remete) foi no mesmo sentido, citando o Acórdão da mesma Relação de 16/04/2015, no qual se decidiu que “se o crédito exequendo se mostra suficientemente garantido pelo direito real de garantia (hipoteca) que incide sobre o imóvel, iniciando-se a penhora sobre este bem, a suspensão da execução, em consequência da dedução de oposição à execução, nenhum prejuízo acarreta ao exequente, pois não existe qualquer perigo de extravio, ocultação ou dissipação do bem, nem tão-pouco qualquer receio de constituição de outro ónus ou encargo que afete o direito do credor. E, sendo assim, não se justifica exigir ao devedor outras garantias, nomeadamente a prestação de caução.” (ut proc.º n.º 2485/17.7T8OER-A.L1-1, in https://www.direitoemdia.pt/document/s/c854d5).
**
VIII.- Volvendo à situação sub judicio temos que os ora Apelantes constituíram uma hipoteca sobre um bem imóvel a favor do Apelado/Exequente, pelo valor de € 80.000,00 (oitenta mil euros), garantindo o cumprimento das obrigações (de reparação de todos os defeitos, anomalias e desconformidades verificadas) assumidas na transacção que constitui o título executivo.
Muito embora uma parte do pedido exequendo (a relativa aos custos da prestação do facto) não esteja liquidada, nada aponta para que se não possa considerar aquele valor como suficiente para garantir o pagamento da quantia exequenda e dos demais encargos com o processo de execução.
Tem-se, pois, por idónea a referida hipoteca para servir de caução, com vista à suspensão da execução, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 1 do art.º 733.º do C.P.C..
**
C) DECISÃO

Considerando quanto vem de ser exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente o presente recurso de apelação, consequentemente revogado o despacho impugnado, e, tendo por idónea a hipoteca prestada pelos Apelantes, determinam a suspensão da execução, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 1 do art.º 733.º do C.P.C..
Custas da apelação pelo Apelado/Exequente.
Guimarães, 30/01/2020

Fernando Fernandes Freitas
Alexandra Rolim Mendes
Maria Purificação Carvalho