Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
6360/20.0T8VNF-C.G1
Relator: GONÇALO OLIVEIRA MAGALHÃES
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
CÁLCULO DO RENDIMENTO INDISPONÍVEL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/01/2024
Votação: MAIORIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - O CIRE não impõe uma regra a seguir pelo julgador no despacho inicial de exoneração do passivo restante no que tange à definição do referente temporal do rendimento a reservar imperativamente ao insolvente durante o período de cessão, conferindo-lhe amplitude suficiente para atender às particularidades do caso concreto.
II - Para esse efeito, há que atender à situação de facto existente no momento que o despacho inicial é proferido, e, com base nela, fazer um juízo de prognose que abranja todo o período de cessão.
III - Uma alteração imprevisível das circunstâncias em que se fundou esse juízo permite a modificação do adrede decidido com fundamento na cláusula rebus sic stantibus.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I.
1 Por requerimento apresentado em juízo no dia 20 de novembro de 2020, AA pediu a sua declaração de insolvência, com exoneração do passivo restante.
2 Por sentença proferida no dia 14 de dezembro de 2020, foi declarada a insolvência da requerente.
3 Na sequência, depois de constatada a insuficiência da massa insolvente, foi declarado encerrado o processo e, por despacho de 13 de janeiro de 2022, foi deferido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante. Neste despacho, foi determinada a cessão, durante os cinco anos subsequentes, dos rendimentos da insolvente ao fiduciário, com exclusão da quantia mensal correspondente a 1,5 SMN (salário mínimo nacional) em vigor, que se considerou ser a necessária ao sustento digno da insolvente e respetivo agregado familiar.
4 No dia 25 de maio de 2023, o fiduciário nomeado apresentou relatório correspondente ao primeiro ano do período de cessão, no qual concluiu estar em falta a entrega da quantia de € 227,40 relativa ao rendimento disponível obtido pela insolvente no mês de agosto de 2022.
5 Por despacho de 31 de maio de 2023, foi determinada a notificação da insolvente para proceder à entrega da referida quantia ao fiduciário, sob pena de cessação antecipada da exoneração do passivo restante.
6 Em resposta, através de requerimento apresentado no dia 13 de junho de 2023, a insolvente pediu que a parte dos seus rendimentos objeto da cessão seja calculada anualmente, o que veio a ser indeferido por despacho de 3 de julho de 2023, notificado por termo eletrónico de 19 de julho de 2023.
7 Notificada, a insolvente, por requerimento apresentado a 24 de julho de 2023, interpôs recurso deste despacho, formulando as seguintes conclusões (transcrição):
“1.ª A Recorrente recorre do despacho que decidiu não dar provimento ao requerimento da Recorrente, quanto ao tempo de entrega das quantias que possam constituir excesso de fidúcia;
2.ª Tal despacho é nulo por falta de fundamentação, uma vez que o Tribunal “a quo” se limita a fazer mera remissão para o CIRE para indeferir o requerido pela Recorrente, sem se alcançar a motivação de tal decisão;
3.ª Na esteira do Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, (cfr processo 1/08.0TJVNF-EK.G1, datado de 21 de maio de 2015, in www.dgsi.pt), o despacho recorrido é omisso quanto à sua fundamentação, sendo assim nulo;
4.ª Por outro lado nada há no CIRE que referia que a entrega do rendimento disponível obedece a um critério temporal específico;
5.ª Os únicos períodos temporais relacionados com a cessão de rendimentos, que estão plasmadas no CIRE são os constantes dos artigos 235º, 236º e 237º - três anos –, e o do artigo 240º e 241º do CIRE – um ano – que corresponde ao relatório anual do fiduciário, no caso do artigo 240º e a notificação ao devedor dos rendimentos a ceder;
6.ª Pelo que tudo levar a crer que o CIRE aponta pistas no sentido de a Insolvente apenas estar a obrigada a entregar os rendimentos de forma anual.
7.ª Conforme já referiu a Recorrente a entrega de algum excesso de fidúcia não deverá ser feita a título mensal, mas de forma anual, por ser o mais equitativo e por conferir um mínimo de dignidade ao sustento da Recorrente.
8.ª Veja-se, a propósito, os Acórdãos das Relações de Lisboa, de 22.09.2020., sob o processo 6074/13.7TBVFX-L1-1, de Guimarães de 22.04.2021, sob o processo n.º 338/19.3T8GMR.G2, do Porto, de 23.01.2023, sob o processo 4060/20.0T8AVR-B.P1, de Lisboa, de 02.05.2023, sob o processo 2525/21.5T8BRR.L1-1, ou de Évora, de 13.07.2022., sob o processo 423/17.6T8STR.E1, todos in www.dgsi.pt.,, apontando ambos na direção da Recorrente;
9.ª Por outro lado existe a questão do que deve ser entendido como “imediato”, no que tange aos rendimentos que excedam os balizados na cessão.
10.ª Tendo sido fixado no despacho inicial de exoneração do passivo restante 1 salário mínimo nacional e meio como rendimento disponível, disso não resulta que a entrega imediata tenha de ser mensal: ora porque do despacho inicial não é explicito que se diga que a entrega tenha de ser feita a titulo mensal (ou a qualquer outro período) – apenas se mencionado o limite -, ora, face ao face ao que se veio de dizer, pelo facto de a entrega anual se se afigurar como o regime mais equitativo.
11.ª Neste sentido, a Recorrente partilha da opinião assente no Acórdão da Relação de Évora, de 07.04.2022, sob o processo n.º 78/13.7TBMAC.E1, in www.dgsi.pt, sendo que conforme se lê do mesmo (…), “O CIRE não impõe que o critério temporal de cálculo da parte dos rendimentos do insolvente que fica excluída do rendimento disponível nos termos do artigo 239.º, n.º 3, alínea b), ponto i), seja mensal.
Desde logo, inexiste norma expressa nesse sentido.
12.ª Conforme refere o mesmo aresto, entende também a recorrente que o critério previsto no artigo 239, n.º 4 do CIRE não imponha um limite mensal.
13.ª Assim, não tendo sido fixado um critério mensal, apenas de falando na entrega imediata no despacho inicial, a solução passa por aplicar um critério consonante com o artigo 13.º da CRP, pelo que a fixação do critério mensal (…) “torna-o cego em relação a situações em que, como as descritas, os rendimentos do insolvente são variáveis, impedindo este último de fazer uma coisa tão simples como poupar em meses melhores para poder gastar em meses piores e assim pondo em causa o sustento minimamente digno daquele e do seu agregado familiar” - sic.
14.ª O mesmo se dizendo em situações em que os rendimentos provêm do trabalho dependente, pois (…) um insolvente que trabalhe por conta de outrem pode ver o seu salário variar de mês para mês em função de situações como, por exemplo, períodos de desemprego ou de baixa por doença, a prestação de trabalho suplementar ou salários em atraso. Imaginemos, por exemplo, um insolvente a quem não são pagos os salários durante 3 meses seguidos, sendo esse pagamento efectuado no mês seguinte, juntamente com o salário que a esse mês respeita. Em consequência de um facto que, em si mesmo, é altamente penalizador para um trabalhador como é ter salários em atraso, a situação do insolvente poderia ser agravada pela circunstância, a que ele é alheio e que em nada o beneficiou, de receber 4 salários num só mês e ver uma parte desse rendimento integrada no rendimento disponível.
15.ª Pelo que parafraseando o referido aresto, (…) “ na ausência de fixação de critério diverso pelo juiz, no despacho inicial ou, na hipótese de alteração relevante das circunstâncias, em despacho posterior, o critério anual deverá ser adoptado para o cálculo do montante dos rendimentos do insolvente com vista a determinar a parte destes que fica excluída do rendimento disponível nos termos do artigo 239.º, n.º 3, alínea b), ponto i). Em casos como o dos autos, apenas esse critério permite soluções conformes com os princípios constitucionais acima referidos.
16.ª Assim, dúvidas não restam que só no final de um ano se deve aferir se a Recorrente deve ou não ficar isenta de entregar qualquer quantia, por ser o mais equitativo, de modo a prevenir oscilações no rendimento da Recorrente.
17.ª Por conseguinte a decisão recorrida não se poderá manter.
18.ª O Tribunal “a quo” fez errada interpretação do artigo 239.º do CIRE, bem como os artigos 615.º, n.º 1, alínea b), 613.º, n.º 3 e 195.º, n.º 1 do Código de Processo Civil;
19.ª O Tribunal recorrido viola também a Constituição da República Portuguesa, nomeadamente os seus artigos 1.º, 13.º e 59, n.º 2 na interpretação que faz do artigo 239. º do CIRE, de que a entrega imediata dos rendimentos corresponde a uma entrega mensal.
Termos em que deverá ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, ser revogada a decisão do Tribunal a “quo”, substituindo-a por outra que admita fixação do período anual para entrega de rendimentos à fidúcia seguindo-se os ulteriores termos processuais.”
8 Não foi apresentada resposta.
9 O recurso foi rejeitado pela 1.ª instância, através de despacho de 18 de setembro de 2023, decisão entretanto revertida por esta Relação, em sede de reclamação, através de decisão singular do ora Relator proferida no dia 11 de dezembro de 2023, que determinou a subida do recurso em separado e com efeito meramente devolutivo.
10 Foram colhidos os vistos legais.
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II.
11 As conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo da ampliação deste a requerimento do recorrido (arts. 635/4, 636 e 639/1 e 2 do CPC). Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas, salvo se forem do conhecimento oficioso (art. 608/2, parte final, ex vi do art. 663/2, parte final, ambos do CPC).
Também não é possível conhecer de questões novas – isto é, de questões que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida –, uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação.

Tento isto presente, as questões que se colocam neste recurso podem ser sintetizadas nos seguintes termos:

1.ª Saber se o despacho recorrido é nulo por falta de fundamentação;
2.ª Saber se o rendimento disponível a ceder à fidúcia, designadamente quando proveniente de salários, deve ser calculado por referência ao rendimento que o insolvente efetivamente aufere em cada mês ou por referência ao rendimento médio mensal auferido pelo insolvente ao longo de um ano.
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III.
12 1).1. Na resposta à 1.ª questão, começamos por respigar a decisão recorrida (transcrição):
“Req 13-6: O requerido não tem fundamento legal, tendo que ser indeferido, atento o disposto expressamente no artigo 239º, nº4 do CIRE: “Durante o período da cessão, o devedor fica ainda obrigado a: (…) c) Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão”.
Assim, é logo que é recebido que o rendimento tem de ser entregue ao fiduciário.
Notifique a insolvente, os credores e o fiduciário para se pronunciarem sobre a verificação dos pressupostos da cessação da exoneração.”
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13 1).2. A sentença – e, por extensão legal, os despachos judiciais (art. 613/3 do CPC) – pode estar viciada por duas causas distintas: por padecer de um erro no julgamento dos factos e do direito – o denominado error in judicando –, sendo a consequência a sua revogação pelo tribunal superior; por padecer de um erro na sua elaboração e estruturação ou por o julgador ter ficado aquém ou ter ido além daquilo que constituía o thema decidendum, sendo a consequência a nulidade, conforme previsto no art. 615 do CPC. Nas situações do primeiro tipo, estão em causa vícios intrínsecos do ato de julgamento; nas do segundo, vícios formais, extrínsecos ao ato de julgamento propriamente dito, antes relacionados com a sua exteriorização ou com os seus limites. Neste sentido, inter alia, RG 4.10.2018 (1716/17.8T8VNF.G1), RG 30.11.2022 (1360/22.8T8VCT.G1), RG 15.06.2022 (111742/20.8YIPRT.G1), RG 12.10.2023 (1890/22.1T8VCT.G1).
Diz o n.º 1 do art. 615 do CPC, na parte que releva, que “[é] nula a sentença quando: (…) b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.”
As regras a observar pelo juiz na elaboração da sentença estão enunciadas nos números 2 e 3 do art. 607 do CPC, nos termos dos quais a “sentença começa por identificar as partes e o objeto do litígio, enunciando, de seguida, as questões que ao tribunal cumpre conhecer”, seguindo-se “os fundamentos de facto”, onde o juiz deve “discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as regras jurídicas, concluindo pela decisão final”.
O n.º 4 do mesmo preceito acrescenta que, na “fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção”; e “tomando ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras da experiência”.
Finalmente, o n.º 5 diz que o “juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”, não abrangendo, porém, aquela livre apreciação “os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes”.
14 Reafirma-se, assim, em sede de sentença cível, a obrigação imposta pelo art. 154 do CPC, que é concretização do mandamento consagrado no art. 205/1 da Constituição da República, do juiz fundamentar as suas decisões, apenas o podendo fazer por simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade.
Conforme se pondera em RG 30.11.2022 (1360/22.8T8VCT.G1), relatado pela Juíza Desembargadora Maria João Matos, “visando-se com a decisão judicial resolver um conflito de interesses (art. 3.º, n.º 1, do CPC), a paz social só será efetivamente alcançada se o juiz passar de convencido a convincente, o que apenas se consegue através da fundamentação.”
No mesmo aresto escreve-se que, “[e]m termos de matéria de facto, impõe-se ao juiz que, na sentença, em parte própria, discrimine os factos tidos por si como provados e como não provados (por reporte aos factos oportunamente alegados pelas partes, ou por reporte a factos instrumentais, ou concretizadores ou complementares de outros essenciais oportunamente alegados, que hajam resultado da instrução da causa, justificando-se nestas três últimas hipóteses a respetiva natureza).
Impõe-se-lhe ainda que deixe bem claras, quer a indicação do elenco dos meios de prova que utilizou para formar a sua convicção (sobre a prova, ou não prova, dos factos objeto do processo), quer a relevância atribuída a cada um desses meios de prova (para o mesmo efeito), desse modo explicitando não só a respetiva decisão (“o que” decidiu), mas também quais os motivos que a determinaram (“o porquê” de ter decidido assim).”
15 O art. 607/ 3, do CPC, impõe ao juiz que proceda à indicação dos fundamentos de direito em que alicerça a sua decisão, nomeadamente identificando as normas e os institutos jurídicos de que se socorra, bem como a interpretação deles feita, concluindo com a subsunção do caso concreto aos mesmos.
Segundo Antunes Varela / J. Miguel Bezerra / Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1985, p. 666, “[é] na segunda parte da sentença, através da determinação, interpretação e aplicação das normas aos factos apurados, que reside a verdadeira motivação (fundamentação) da sentença. A importância capital desta parte da sentença reflete-se claramente no facto de o art. 668/1, b) [correspondente, no CPC de 1961, ao atual art. 615/1, b)] incluir entre as causas de nulidade da sentença a falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.”
16 Por outro lado, vem sendo pacificamente defendido, quer pela doutrina, quer pela jurisprudência, que só a falta absoluta da indicação dos fundamentos de facto ou de direito é geradora da nulidade em causa e não apenas a mera deficiência da dita fundamentação. Na doutrina, Antunes Varela / J. Miguel Bezerra / Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1985, p. 687; Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lisboa: Lex, 1997, p. 221, Lebre de Freitas, A Ação declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3.ª edição, Coimbra: Coimbra Editora, 2013, p. 332, Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Luís Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Coimbra: Almedina, 2018, p. 737, Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, II, Coimbra: Almedina, 2021, p. 179. Na jurisprudência, STJ 2.06.2016 (781/11.6TBMTJ.L1.S1) e 3.03.2021 (3157/17.8T8VFX.L1.S1), RP 5.06.2015 (1644/11.0TMPRT-A.P1), RG 2.11.2017 (42/14.9TBMDB.G1) e RC 13.12.2022 (98/17.2T8SRT.C1). Na clássica lição de José Alberto dos Reis (Código de Processo Civil Anotado, V, Coimbra: Coimbra Editora, 1948, p. 140), “há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afeta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade”; e, por “falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto (…).”A concreta medida da fundamentação é, portanto, “aquela que for necessária para permitir o controlo da racionalidade da decisão pelas partes e, em caso de recurso, pelo tribunal ad quem a que seja lícito conhecer da questão de facto” (RC 29.04.2014, 772/11.7TBVNO-A.C1).
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17 1).3. Verificada a nulidade, cabe ao Tribunal ad quem supri-la, salvo se não dispuser dos elementos necessários para esse efeito, por força do disposto no art. 665/1 do CPC, donde resulta que, ainda “que declare nula a decisão que põe termo ao processo, o tribunal de recurso deve conhecer do objeto da apelação” (n.º 1); e, se “o tribunal recorrido tiver deixado de conhecer certas questões, designadamente por as considerar prejudicadas pela solução dada ao litígio, a Relação, se entender que a apelação procede e nada obsta à apreciação daquelas, deve delas conhecer no mesmo acórdão em que revogar a decisão recorrida, sempre que disponha dos elementos necessários” (n.º 2).
Deste modo, como escreve António Abrantes Geraldes (Recursos em Processo Civil, 7.ª ed., Coimbra: Almedina, julho de 2022, pp. 387-388), “ainda que a Relação confirme a arguição de alguma das (…) nulidades da sentença, não se limita a reenviar o processo para o tribunal a quo. Ao invés, deve prosseguir com a apreciação das demais questões que tenham sido suscitadas, conhecendo do mérito da apelação, nos termos do art. 665º, nº 2.” Logo, “a anulação da decisão (v.g. por contradição de fundamentos ou por omissão de pronúncia) não tem como efeito invariável a remessa imediata do processo para o tribunal a quo, devendo a Relação proceder à apreciação do objeto do recurso, salvo se não dispuser dos elementos necessários”, já que só “nesta eventualidade se justifica a devolução do processo para o tribunal a quo.”
Daqui não resulta qualquer preterição do contraditório do duplo grau de jurisdição: conforme escreve Miguel Teixeira de Sousa (“Nulidade da sentença; regra da substituição – Jurisprudência 2019 (83)”, Blog do IPPC), “a garantia do duplo grau de jurisdição vale para cima, não para baixo. Quer isto dizer que a consagração do duplo grau de jurisdição visa assegurar que uma decisão possa ser apreciada por um tribunal superior, não que o tribunal superior tenha de fazer baixar o processo ao tribunal inferior para que este o aprecie e para que, depois, o processo lhe seja remetido em recurso para nova apreciação.” Acrescentamos que já no preâmbulo do DL nº 329-A/95, de 12.12, se afirmava expressamente a opção do legislador pela supressão de um grau de jurisdição, a qual seria, no seu entendimento, largamente compensada pelos ganhos em termos de celeridade na apreciação das questões controvertidas pelo tribunal ad quem.
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18 1).4. Distintas das situações de falta de fundamentação de facto são aquelas em que essa fundamentação existe, mas se apresenta como deficiente, obscura ou contraditória. Nestas, segue-se o regime do art. 662/2, c) e d), do CPC (assim, RG 7.12.2013, 1285/21.4T8VCT-G.G1; RG 28.09.2023, 2539/22.8T8VNF-C.G1), RG 7.12.2023, 455/18.7T8EPS.G1), cabendo à parte interessada, no recurso da sentença, o ónus de impugnar a decisão da matéria de facto e sustentar a presença desses vícios. Confrontada com essa arguição, ou mesmo oficiosamente, a Relação pode anular a decisão, mas apenas se não tiver à sua disposição todos os meios de prova que lhe permitiriam sanar, por si mesma, a deficiência, obscuridade ou contradição. Tendo esses meios de prova à sua disposição, a Relação não pode anular a decisão da 1.ª instância, cabendo-lhe sanar ela mesma o vício, exceto se se tratar de falta da “devida” fundamentação, caso em que poderá ordenar à 1.ª instância que acrescente a fundamentação em falta, prosseguindo depois com o conhecimento do objeto do recurso. No dizer de António Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Luís Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, I, Coimbra: Almedina, 2018, p. 798), “quando estiver em causa a deficiente fundamentação da decisão da matéria de facto, a devolução do processo [à 1.ª instância] deve ser guardada para casos em que, além de serem efetivamente relevantes, não possam sequer ser remediados através do exercício autónomo do poder de reapreciação dos meios de prova.”
De acordo com a lição de Alberto dos Reis (Código de Processo Civil Anotado, IV, Coimbra: Coimbra Editora, 1948, p. 553), a decisão é deficiente quando aquilo que se deu como provado e não provado não corresponde a tudo o que, de forma relevante, foi previamente alegado – i. é, não foram considerados todos os pontos de facto controvertidos, ou a totalidade de um facto controvertido; é obscura quando o seu significado não pode ser apreendido com clareza e segurança – i. é, os pontos de facto considerados na sentença são ambíguos ou poucos claros, permitindo várias interpretações; e é contraditória quando pontos concretos que a integram têm um conteúdo logicamente incompatível, não podendo subsistir ambos utilmente – i. é, diversos pontos de facto colidem entre si, de forma inconciliável. Logo, quando se verifique que a decisão sobre a matéria de facto omitiu a “pronúncia sobre factos essenciais ou complementares”, possui uma “natureza ininteligível, equívoca ou imprecisa”, ou revela “incongruências, de modo que conjugadamente se mostre impedido o estabelecimento de uma plataforma sólida para a integração jurídica do caso”, deve o Tribunal da Relação, oficiosamente, anulá-la, quando não lhe seja possível” suprir tais vícios (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos cit., p. 356-357).
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19 1).5. Aproximando estas considerações do caso vertente, afigura-se que o despacho recorrido, não obedecendo ao arquétipo definido pelo legislador, contém, no entanto, o bastante para que os seus destinatários consigam compreender os factos e a norma jurídica em que o Tribunal a quo se baseou para indeferir a pretensão que lhe foi colocada pela Recorrente. Com efeito, por um lado, faz-se nele o enquadramento da questão, no âmbito dos critérios de cálculo do rendimento disponível da Recorrente, enquanto complemento do despacho liminar de exoneração e, por outro, indica-se nele, de forma expressa, a norma jurídica em que se estribou a decisão de indeferimento. Acrescenta-se, finalmente, um subsídio interpretativo da mesma.
Entendemos, assim, sem necessidade de outras considerações, que o despacho recorrido não padece da nulidade arguida pela Recorrente.
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20 2).1. Com isto passamos para a segunda questão, para cujo conhecimento relevam os factos constantes no relatório que compõem a Parte I. deste Acórdão e ainda os seguintes:
a) O despacho de 13 de janeiro de 2022, que deferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, é do seguinte teor (transcrição):
“O incidente em apreço, específico da insolvência das pessoas singulares, encontra-se regulado nos art°s 235° a 248°, e, como se pode ler no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 53/2004, que aprovou o CIRE, este diploma “conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica”, quando “de boa fé”, transpondo, assim, para o nosso ordenamento jurídico o instituto do «fresh start» do direito norte-americano.
Mais refere o legislador que “a efectiva obtenção de tal benefício supõe (...) que, após a sujeição a processo de insolvência, o devedor permaneça por um período de cinco anos - designado por «período de cessão» - ainda adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos”, abrindo-se, deste modo, “caminho para que as pessoas que podem dele beneficiar sejam poupadas a toda a tramitação do processo de insolvência (com apreensão de bens, liquidação, etc.), evitem quaisquer prejuízos para o seu bom nome ou reputação e se subtraiam às consequências associadas à qualificação da insolvência como culposa”, permitindo, no termo daquele período, “a sua reintegração plena na vida económica”.
Perante estes normativos podemos concluir que se trata de um benefício que constitui, para os insolventes pessoas singulares, uma medida de proteção que se pode traduzir num perdão de dívidas, exonerando-os dos seus débitos, com a contrapartida, para os credores, da perda correspondente dos seus créditos (neste sentido, os Acs. do Tribunal da Relação do Porto de 23/10/2008, proc. 0835723, de 05/11/2007, proc. 0754986, e de 20/4/2010, proc. 1617/09.3TBPVZ.C.Pi, publicados em www.dgsi.pt/jtrp e Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Juris, 2008, pág. 777 e segs., e Assunção Cristas, Exoneração do Devedor pelo Passivo Restante, Themis, 2005, pgs. 165 e segs.).
Estatui o art. 238.º, n.º 1, al. d) do C.I.R.E. que o pedido de exoneração do passivo restante é liminarmente indeferido se “o devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a apresentar-se, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica”.
Há, pois, lugar ao indeferimento liminar quando se verifiquem, cumulativamente, os seguintes requisitos: a) que o devedor/requerente não se apresente à insolvência nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência; b) que desse atraso resulte prejuízo para os credores e c) que o requerente soubesse, ou não pudesse ignorar sem culpa grave, da inexistência de qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica.
Não ocorrendo qualquer destes requisitos, o despacho liminar deve, consequentemente, ser de admissão do pedido.
No caso em apreço, considerando o que resulta do presente processo e o que foi alegado pela insolvente, não pode concluir-se pela existência de qualquer motivo para o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, pelo que admito o pedido de exoneração do passivo restante.
Como fiduciário nomeio, por razões de economia processual, o sr administrador de insolvência.
Nos termos do art. 239º do CIRE, o Tribunal determina que, durante os 5 anos posteriores ao encerramento do processo, o rendimento disponível do insolvente fica cedido ao Sr. fiduciário.
Durante o período de cessão – os referidos 5 anos após o encerramento do processo – o insolvente fica obrigado a observar as imposições previstas no nº4 do art. 239º do CIRE.
Quanto ao valor a atribuir à insolvente para o respetivo sustento: Nos termos do disposto no artigo 239º, nº 3, b), i) do C.I.R.E. o limite mínimo é o que seja razoavelmente necessário para garantir e salvaguardar o sustento minimamente digno dos devedores e seu agregado familiar e como o limite máximo o valor equivalente ao triplo do salário mínimo nacional (valor máximo este que só pode ser excedido em casos excecionais, devidamente fundamentados).

São os seguintes os factos relevantes:

1) A insolvente vive com o seu filho menor de idade..
2) Trabalha por conta de outrem, auferindo € 635,00 mensais.

Nos termos do disposto no art. 235º do C.I.R.E. a exoneração do passivo restante consiste na concessão de um perdão dos créditos sobre a insolvência que não fiquem integralmente pagos no decurso do processo ou nos cinco anos subsequentes.
Como se decidiu no Ac. da R.C. de 10.09.2013, disponível no sítio da DGSI: “Subjacente ao instituto está a ideia de um equilíbrio entre os interesses dos credores na satisfação dos seus créditos e o interesse do devedor, de redenção, para uma nova vida, o que passa por sacrifícios para ambas as partes.
O insolvente, ao longo dos 5 anos, irá somente dispor de um rendimento que lhes assegure o “sustento minimamente digno” para si (e seu agregado familiar), para o que eventualmente o fará mudar de hábitos de vida e de consumo, de acordo com a subalín. i), da alín. b), do n.º 3 do art.º 239.º do CIRE, sendo o restante rendimento disponível entregue a um fiduciário para posterior distribuição pelos credores (art.º 241.º n.º 1, alín. d) do CIRE).
Os credores, findo esse prazo, se não receberem, entretanto, a totalidade do crédito (com o que cessaria antecipadamente o procedimento de exoneração - n.º 4 do art.º 243.º do CIRE), receberão o possível, nada mais podendo exigir, do devedor insolvente a partir daí.
A lei não define o que possa entender-se com o conceito aberto de “sustento minimamente digno”, com o valor máximo legal equivalente, em princípio, a 3 salários mínimos nacionais, podendo-se considerar o seu mínimo como o valor correspondente a 1 salário mínimo nacional, enquanto limite mínimo para assegurar, em nome da dignidade da pessoa humana, as condições básicas essenciais.”
Como refere Menezes Leitão, em CIRE Anotado, 5.ª ed., p. 242., a previsão da cessão do rendimento disponível constitui um ónus imposto ao devedor como contrapartida do facto de ser exonerado do passivo que possuía.
No entanto, o princípio da dignidade humana, contido no princípio do Estado de direito, afirmado no art. 1º da C.R.P. e aludido também no artigo 59º, nº 1, a) da C.R.P., exige que salvaguarde ao devedor o mínimo julgado indispensável a uma existência condigna.
A questão está, pois, em determinar o que deve entender-se por sustento minimamente digno.
Claro se torna, vistos os fins do instituto, que o montante fixado a título de rendimento indisponível não pode, nem deve, coincidir com as despesas suportadas.
Isto porque, por um lado, todo o rendimento auferido é sempre passível de ser afeto a despesas, prejudicando-se assim os credores.
Por outro lado, e como supra referido, o insolvente terá que adaptar o seu nível de vida e consumos à realidade em que se encontra, não podendo ter a pretensão de manter os gastos nos termos em que o fazia antes da situação de insolvência.
Em nosso entender a exclusão de entrega ao fiduciário prevista no art. 239º, n.º 3, al. b), (i) do CIRE pode atingir um montante equivalente a 3 vezes o salário mínimo nacional, o qual funciona como limite máximo (só podendo ser excedido por decisão fundamentada), competindo ao juiz fixar, com razoabilidade, até esse limite, o montante que lhe pareça necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do respetivo agregado familiar.
Sobre a impenhorabilidade na execução singular, que visa assegurar o sustento do devedor com o mínimo de dignidade, o art. 738.º, n.º 3, do Código de Processo Civil dispõe que “a impenhorabilidade prescrita no número 1 tem como limite máximo o montante equivalente a três salários mínimos nacionais à data de cada apreensão e como limite mínimo, quando o executado não tenha outro rendimento e o crédito exequendo não seja de alimentos, o montante equivalente a um salário mínimo nacional.”
Assim sendo, tudo ponderado, fixo em 1 salário mínimo nacional e meio o montante necessário ao sustento digno da insolvente.
Como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10/05/2001, proferido no processo n.º 1292/10.2TJPRT-DP1, o Tribunal Constitucional (cf. acórdãos deste Tribunal n.º 117/2002, de 23.04.2002, publicado no DR I-A, de 02.07.2002, e n.º 96/2004, de 11.02.2004, publicado no DR, II, de 01.04.2004.) tem entendido, que “o salário mínimo nacional contém em si a ideia de que a remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador e que por ter sido concebido como o mínimo dos mínimos não pode ser, de todo em todo, reduzido, qualquer que seja o motivo.”
Assim sendo, tem de aceitar-se que o salário mínimo nacional é o limite que assegura a subsistência com o mínimo de dignidade.
Mais uma vez citando o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 15/9/2011, “como é sabido mais de 340 mil portugueses, muitos deles com família constituída, vive exclusivamente apenas de um salário mínimo nacional e parte significativa das famílias portuguesas não tem rendimento mensal superior a € 1000 mensais.
Para além disso, numerosas pessoas auferem rendimento inferior a esse mínimo de sobrevivência, como o denominado rendimento social de inserção. (…). Ora, o insolvente tem de consciencializar-se que os credores aguardam a satisfação dos seus créditos, mesmo que parcialmente, e que o período de cessão visa, precisamente, afetar o seu rendimento disponível a esse cumprimento, com a consequente redução do seu nível de vida.
Assim, se numa execução singular seria impenhorável apenas o equivalente ao salário mínimo nacional dos devedores, sendo a insolvência um processo de execução universal, não se afigura, por não se configurar qualquer situação que o justifique, que o insolvente tenha um tratamento mais favorável que o estabelecido para a execução singular.
Situação de favor é já a concedida pelo instituto de exoneração do passivo, ao limitar a cessão de rendimentos a 5 anos.
Advirta expressamente a devedora das obrigações a que fica sujeita, constantes dos artºs. 239º n.º 4 e 240º n.º 1, do CIRE e o fiduciário que fica obrigado a vigiar o cumprimento daquelas obrigações.”
b) De acordo com o relatório apresentado pelo fiduciário no dia 25 de maio de 2023, relativo ao período compreendido entre fevereiro de 2022 e janeiro de 2023 (ref. Citius 14624363), a Recorrente auferiu os seguintes rendimentos:

N.ºMêsValorA CederCedidoTotal FaltaDespesasSaldo
12/2022604,93 €0,00 €0,00 €0,00 €0,00 €0,00 €
23/2022579,08 €0,00 €0,00 €0,00 €0,00 €0,00 €
34/2022677,82 €0,00 €0,00 €0,00 €0,00 €0,00 €
45/2022693,45 €0,00 €0,00 €0,00 €0,00 €0,00 €
56/2022648,77 €0,00 €0,00 €0,00 €0,00 €0,00 €
67/2022428,77 €0,00 €0,00 €0,00 €0,00 €0,00 €
78/20221 284,90 €227,40 €0,00 €227,40 €0,00 €0,00 €
89/2022627,45 €0,00 €0,00 €227,40 €0,00 €0,00 €
910/20220,00 €0,00 €0,00 €227,40 €0,00 €0,00 €
1011/ 20220,00 €0,00 €0,00 €227,40 €0,00 €0,00 €
1112/ 20220,00 €0,00 €0,00 €227,40 €0,00 €0,00 €
121/2023611,66 €0,00 €0,00 €227,40 €0,00 €0,00 €
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21 2).2. O instituto da exoneração do passivo restante foi introduzido entre nós pelo CIRE (arts. 235 a 249), tendo por base o modelo do fresh start, com origem no ordenamento jurídico norte-americano (Bankruptcy Act de 1898), depois incorporado na legislação alemã (§§ 286 a 303 da InsO).
O modelo parte da constatação de que, numa economia de mercado, é comum que uma pessoa singular se torne devedora de créditos que excedem largamente a medida da sua capacidade patrimonial.
O que se pretende é evitar que aqueles que, tendo atuado de boa-fé, num sentido objetivo, enquanto norma de conduta, mas que, por circunstâncias várias, em virtude dos normais riscos associados à contratação, se viram na referida situação, sejam definitivamente afastados do mercado. Para tanto, procede-se à afetação, durante certo período de tempo após a conclusão do processo de insolvência, dos rendimentos do devedor à satisfação dos créditos remanescentes, produzindo-se, no final, a extinção daqueles que não puderam ser satisfeitos por essa via.[1] A intenção é, portanto, a de liberar o devedor das suas obrigações, realizando uma espécie de azzeramento da sua posição passiva remanescente, para que, “depois de aprendida a lição, ele possa retomar a sua vida e, se for o caso disso, o exercício da sua atividade económica ou empresarial” (Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2021, pp. 610-611).
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22 2).3. Como escrevemos, a exoneração do passivo restante encontra-se regulada nos arts. 235 a 249, integrada no título XII, relativo à insolvência das pessoas singulares. Pode ser concedida quando os créditos da insolvência – i. é, todos os créditos de natureza patrimonial que existam sobre o insolvente ou garantidos por bens integrantes da massa insolvente, cujo fundamento seja anterior à data de declaração de insolvência (art. 47/1 e 2) – não obtenham pagamento integral no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao seu encerramento (art. 235, na redação da Lei n.º 9/2022, de 11.01).
Não existe, por contraposição, uma libertação quanto às dívidas da massa insolvente, previstas no art. 51, dada a sua natureza e o regime preferencial do seu pagamento.[2]
Apurados os créditos da insolvência e uma vez esgotada a massa insolvente sem que todos os créditos tenham ficado satisfeitos, o devedor pessoa singular fica adstrito ao pagamento aos credores, durante três anos, findos os quais, poderá ser-lhe judicialmente concedida a exoneração do passivo restante, uma vez cumpridos determinados requisitos.
23 Deste modo, a exoneração é, acima de tudo, uma medida de proteção do devedor (Assunção Cristas, “Exoneração do passivo restante”, Themis, Edição Especial – Novo Direito da Insolvência, 2005, p. 167).  Com efeito, se não fosse declarado insolvente, o devedor teria de pagar a totalidade das suas dívidas, sem prejuízo da eventual prescrição (art. 309 do Código Civil), em respeito pelo princípio pacta sunt servanda.
De acordo com Catarina Serra (Lições cit., p. 614), o instituto tem, no entanto, vantagens que apresentam um alcance mais geral: ao constituir um estímulo à diligência processual do devedor, permite o início mais atempado do processo de insolvência, ajudando a atenuar uma das maiores preocupações do legislador – o chamado timing problem; por outro lado, permite a tendencial uniformização dos efeitos da declaração de insolvência, mais particularmente dos efeitos do encerramento do processo, estendendo aos devedores singulares o benefício exoneratório que resulta para as sociedades comerciais do registo do encerramento após o rateio final (art. 234/3), consequência da extinção da respetiva personalidade jurídica; finalmente, acaba por produzir um impacto positivo na economia: “quanto mais restrito é o acesso ao crédito – mais exigente quem o concede e mais responsável quem o pede – menor é o risco de sobreendividamento e menos provável a insolvência dos consumidores e dos empresários em nome individual.”
Já do ponto de vista dos credores, afigura-se duvidoso que o instituto apresente vantagens, ao contrário do que escrevem autores como Luís Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 9.ª ed., Coimbra: Almedina, 2017, p. 366, e Letícia Gomes Marques, “O regime especial de insolvência de pessoas singulares”, Revista de Direito e Ciência Política da Universidade Lusófona do Porto, 2013, n.º 2, p. 137, disponível em https://revistas.ulusofona.pt/index.php/rfdulp/article/view/3260, para quem a exoneração constituiu uma dupla oportunidade de satisfação dos seus créditos: durante o processo de insolvência e durante o chamado “período de cessão.” No mesmo sentido, RP 10.20.2020, 1066/13.9TJPRT.P1. Na verdade, com a exoneração, cada um dos credores fica novamente sujeito a um rateio. Para os credores da insolvência, esse rateio é restrito ao remanescente do pagamento dos credores a massa (art. 241/1, d)). Como nota Catarina Serra, Lições cit., p. 614, nota 1168, “[s]e não houvesse exoneração, não haveria rateio; a satisfação do credor dependeria apenas da sua diligência processual e da data de prescrição do seu crédito, o que não poucas vezes representaria um aumento do prazo para agir executivamente contra o devedor. O período de cinco anos [que a Lei n.º 9/2022, de 11.01, reduziu para três] não é, além do mais, suficientemente longo para que seja frequente o devedor reconstituir-se in bonis de forma a pagar, dentro desse período, de formas satisfatória, a todos os que permanecessem seus credores.”
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24 2).4.1. Segundo o art. 236/1, na redação do DL n.º 79/2017, de 30.06, “[o] pedido de exoneração do passivo restante é feito pelo devedor no requerimento de apresentação à insolvência ou no prazo de 10 dias posteriores à citação, e será sempre rejeitado, se for deduzido após a assembleia de apreciação do relatório, ou, no caso de dispensa da realização desta, após os 60 dias subsequentes à sentença que tenha declarado a insolvência; o juiz decide livremente sobre a admissão ou rejeição de pedido apresentado no período intermédio.”
Não havendo fundamento para o indeferimento liminar, o juiz profere despacho inicial, em que determina que o devedor fica obrigado à cessão do seu rendimento disponível ao fiduciário durante o período de cessão que corresponde aos três anos subsequentes ao encerramento do processo (art. 239/1 e 2 do CIRE, na redação da Lei n.º 9/2022, de 11.04).
25 Somos assim remetidos para o conceito de rendimento disponível que, de acordo com o art. 239/3 do CIRE, é composto de todos os rendimentos líquidos (RC 04.02.2020, 695/13.5TBLSA.C1; RE 12.05.2022  (415/19.0T8STR-D.E1) que advenham ao devedor, com exclusão, a um tempo, dos créditos a que se refere o art. 115 (créditos futuros) cedidos a terceiro, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz (alínea a)), e, a outro, do que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar e que não deve exceder, salvo decisão fundamentada em contrário, três vezes o salário mínimo nacional (alínea b), i)), bem como exercício pelo devedor da sua atividade profissional (alínea b), ii)) e para outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor (alínea b), iii)).
A partir daqui, tem sido entendido que são suscetíveis de integrar o rendimento disponível todos os acréscimos patrimoniais ou rendimentos auferidos pelo devedor, nomeadamente os vencimentos, salários, pensões de reforma, os subsídios de férias e de Natal, alimentação, as ajudas de custo, ou outros suplementos remuneratórios, os reembolsos de IRS, as compensações decorrentes da cessação do contrato de trabalho, as quantias recebidas do Fundo de Garantia Salarial, para compensação por despedimento, bem como as indemnizações que o insolvente receba a título de despedimento. Particulariza-se, em RG 15.06.2021 (97/18.7T8MGD-B.G1), relatado pelo Juiz Desembargador José Alberto Moreira Dias, que “face a determinado suplemento pago pela entidade empregadora ao devedor/insolvente (ex: subsídio de alimentação, transporte, abono para falhas, Kms. em viatura própria, etc.) é de todo irrelevante determinar se esse suplemento tem ou não caráter retributivo face à legislação laboral, posto que o que releva é verificar se o suplemento em causa cai ou não no âmbito das exclusões do rendimento disponível elencados no nº 3 do art. 239º, em particular na sua subalínea ii)”; “Tendo o devedor recebido um determinado suplemento da sua entidade empregadora e pretendendo que este está excluído do rendimento disponível, cumpre-lhe o ónus da alegação e da prova de facticidade de onde decorra encontrarem-se preenchidos os seguintes pressupostos legais cumulativos: (i) que a entidade empregadora lhe pagou esse suplementos com vista a compensá-lo de determinadas despesas para lhe prestar a sua atividade profissional; (ii) que ele, devedor, despendeu efetivamente o montante desse suplemento em despesas para prestar a sua prestação de trabalho à sua entidade empregadora; e (iii) que esse dispêndio era razoavelmente necessário para que o mesmo pudesse exercer a sua atividade profissional.”
26 Especificamente a propósito dos subsídios de férias e de Natal, podem ver-se RG 14.02.2013 (3267/12.8TBGMR-C.G1), RC 11.02.2014 (467/11.1TBCND-C.C1), RC 13.05.2014 (1734/10.7TBFIG-G.C1), RG 26.03.2015 (952/14.3TBGMR.G1), RG de 26.11.2015 (3550/14.8T8GMR.G1), RG 12.07.2016 (4591/15.3T8VNF.G1), RP de 07.05.2018 (3728/13.1TBGDM.P1), RC de 16.10.2018 (1282/18.7T8LRA-C.C1), RG 17.12.2018 (2984/18.3T8GMR.G1), RE 26.09.2019 (2727/18.1TG8STR-C.E1), RP 18.11.2019 (1373/19.7T8AVR-C.P1), RC 03.12.2019 (8794/17.8T8CBR-B.C1), RP 24.03.2020 (971/17.8T8STS.P1), RP 08.09.2020 (950/20.8T8OAZ-B.P1), RG 17.09.2020 (1167/20.7T8VNF-C.G1), RP de 07.06.2021 (3410/20.3T8STS-B.P1), RG de 28.10.2021 (2161/18.3T8STS.P1), RP 08.06.2022 (2836/21.0T8STS.P1), RC 13.09.2022 (2100/14.0TBVIS.C1), RP de 08.11.2022 (2370/22.0T8VNG.P1), RG 10.07.2023 (2193/22.7T8VNF-B.G1), RG 28.09.2023 (2539/22.8T8VNF-C.G1). Em RG 22.06.2023 (1375/22.6T8VNF.G1) e RG 19.12.2013 (5315/21.1T8GMR-C.G1), ambos relatados pela Juíza Desembargadora Maria João Matos, tendo como Adjuntos, no primeiro, os Juízes Desembargadores Alexandra Viana Parente Lopes e José Carlos Pereira Duarte e, no segundo, os Juízes Desembargadores Alexandra Viana Parente Lopes e José Alberto Moreira Dias, admitiu-se, no entanto, “que, no caso de trabalhadores (ou pensionistas) que aufiram salários (ou pensões) mais baixos, nomeadamente inferiores ou no limite da retribuição mínima mensal garantida, os subsídios de férias e de natal sejam necessários para garantir o seu «sustento minimamente digno», sendo nomeadamente afectos à satisfação de regulares despesas anuais (v.g. prémios de seguro, contribuições de condomínio), bem como à aquisição de extraordinários bens ou serviços (v.g. óculos graduados, aparelhos dentários, electrodomésticos de primeira necessidade, tratamentos urgentes), ou mesmo para fazer face a curtos períodos de perda, parcial ou total, ou decréscimo, da habitual remuneração laboral (v.g. baixa médica, menor volume de trabalho - suplementar, extraordinário, nocturno, ou noutro regime que justifique um valor hora mais elevado -, vacatio entre a dispensa de um posto de trabalho e o encontrar de outro).
Nestes casos, e infelizmente para o trabalhador ou pensionista, os subsídios de férias e de Natal não cumprem a função social subjacente à sua consagração e pagamento, antes asseguram (exactamente como o demais rendimento laboral que aufira com carácter de habitualidade todos os meses) o pagamento das despesas inerentes ao seu sustento básico.         
Ora, não temos dúvidas de que, nestes casos, os ditos subsídios de férias e de natal deverão ser subtraídos ao rendimento a ceder pelo insolvente ao fiduciário (no âmbito do incidente de exoneração do passivo restante).”
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27 2).4.2. Na parte que releva para a situação decidenda, o legislador lança mão de conceitos indeterminados (razoavelmente necessário, sustento minimamente digno) cuja aplicação impõe um juízo e uma ponderação casuística do juiz relativamente ao montante a fixar (STJ 2.02.2016, 3562/14.1T8GMR.G1.S1; RL 30.11.2011, 8549/10.0TCLRS.L1-8; RG de 07.06.2023, 3916/22.0T8GMR.G1), feitos à luz do princípio da dignidade humana decorrente do princípio do Estado de Direito, consagrado, designadamente, nas disposições conjugadas dos arts. 1.º, 13/1 e 63/1 e 3 da Constituição da República, bem como no art. 25 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, o qual “impõe que todo o ser humano – e seu agregado familiar – tenha o necessário para um sustento minimamente digno” (RC 04.05.2020, 2194/19.2T8ACB-B.C1). Nesse juízo há que ter em consideração que o interesse do devedor está em confronto com o interesse dos credores, conforme se chama a atenção em STJ 2.02.2016 (3562/14.1T8GMR.G1.S1), já potencialmente prejudicado com a exoneração, o que permite sustentar que aquele deve ser sacrificado na medida do possível. Esta consideração permite afirmar que não é exigível que o devedor insolvente mantenha o nível de vida anterior. Dito de outra forma, a harmonização dos dois interesses conflituantes “impõe uma redução do nível de vida dos insolventes, conforme com as circunstâncias económicas em que se encontram e que estão na base da declaração de insolvência” (STJ 9.02.2021, 2194/19.2T8ACB-B.C1.S1).
28 Neste particular, apesar de a lei apenas estabelecer um limite máximo, correspondente a três salários mínimos nacionais, tem sido maioritariamente considerado como limite mínimo a quantia correspondente a um salário mínimo nacional, atento o facto de constituir o montante mínimo de referência quanto à subsistência em condições de dignidade. Neste sentido, RG 07.02.2012 (3178/11.4TBGMR-A.G1), RC 29.05.2012 (1908/11.3TBFIG-B.C1), RG 16.05.2013 (4466/11.5TBGMR-F.G1), RG 15.05.2014 (1020/13.0TBBRG-C. G1), RC 6.07.2016 (3347/15.8T8ACB-D.C1), RG 17.05.2018 (4074/17.7T8GMR.G1), RL 27.09.2018 (15558/16.4T8LSB-B.L1-6), RP 22.05.2019 (1756/16.4T8STS-D.P1), RC 18.12.2019 (1658/19.2T8LRA-B.C1), RC 14.01.2020 (2037/19.7T8VIS.C1), RC 13.07.2020 (1466/19.0T8VIS-D.C1), RE 29.04.2021 (5788/20.0T8STB.E1), RE 17.06.2021 (1722/20.5T8STR-B.E1), RE 30.06.2021 (781/20.5T8OLH.E1), RG de 28.10.2021 (2161/18.3T8STS.P1), RG 16.02.2023 (3923/22.2T8GMR-A.G1), RG 02.03.2023 (2148/22.1T8GMR.G1) e RE 15.06.2023 (462/22.5T8OLH.E1). Em RC 12.03.2013 (1245/12.5TBLRA-F.C1), RG 8.01.2015 (1980/14.4TBGMR-E.G1) e RL 11.100.2016 (1855/14.7TCLRS-7) considerou-se, com apelo à Escala de Oxford, adotada pela OCDE, que devem valer os seguintes limites: 1 salário mínimo nacional para o primeiro adulto, 0,7 para o segundo adulto e 0,5 para cada criança. Em sentido diverso, entendeu-se, em RG 03.05.2011 (4073/10.0TBGMR-A.G1), que cabe ao juiz fixar o limite mínimo do rendimento a ser atribuído ao insolvente, razão pela qual não é adequado considerar-se o salário mínimo nacional “como critério-base de referência para a determinação do limite mínimo”, e, em RL 21.03.2023 (4479/22.1T8FNC-C.L1-1), que “[o] limite mínimo do sustento minimamente digno do devedor abaixo do qual não se poderá descer, situa-se no montante equivalente a um salário mínimo nacional ou regional, sem que isso signifique ser esse valor o critério base de aferição.” Em RC 12.01.2016 (612/15.8T8GRD-C.P1), afastaram-se as regras da impenhorabilidade consagradas no art. 824 do CPC, entendendo-se que estas não são mais que um referencial a atender pelo tribunal. Em RG 20.03.2014 (8552/12.6TBBRG-E.G1) atendeu-se ao Indexante dos Apoios Sociais e em RL 20.09.2012 (134/ 12.9TBSSB-D.L1-6) decidiu-se que, “dada a ausência de outro critério legal, deverá ter-se como critério orientador que o rendimento per capita do agregado familiar do insolvente não deve, em princípio, ser inferior a 3⁄4 do indexante dos apoios sociais (IAS), em consonância com o regime previsto no art. 824/4 do CPC, sem esquecer os seus rendimentos, a composição e encargos do seu agregado familiar.” Pedro Pidwell (Insolvência das Pessoas Singulares. O Fresh Start – será mesmo começar de novo? O fiduciário. Algumas Notas, Almedina: Coimbra, 2016, p. 205) indica várias outras alternativas para a definição do limite mínimo.
No citado RG 02.03.2023 (2148/22.1T8GMR.G1), relatado pelo Juiz Desembargador José Alberto Moreira Dias, em que interveio como Adjunta a Juíza Desembargadora Rosália Cunha, particularizou-se que “[o] rendimento equivalente ao salário mínimo nacional constitui apenas o limite mínimo de referência abaixo do qual não pode ser fixado o rendimento indisponível devido ao devedor por ser necessário ao seu sustento minimamente condigno e do seu agregado familiar, mas esse limite mínimo tem de ser complementado com outros elementos específicos do caso concreto, incluindo com o número de pessoa que compõem o seu agregado familiar, a idade dessas pessoas, o estado de saúde delas, a realidade profissional desses membros e os rendimentos por eles auferidos.”
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29 2).4.2. Para estabelecer o valor razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do insolvente e do seu agregado familiar é, como bem se percebe, necessário estabelecer um referente temporal, aspeto acerca do qual o CIRE não consagra, aparentemente, norma expressa.
Parte da jurisprudência entende que o juiz deve tomar por referência o espaço de um mês. Servem de exemplo, STJ 9.03.2021 (11855/16.7T8SNT.L1.S1), RC 28.03.2017 (178/10.5TBNZR.C1RC), RP 7.05.2018 (3728/13.1TBGDM.P1), RC 22.10.2019 (2455/11.9TJCBR.C1), RP 30.04.2020 (2441/16.2T8AVR-D.P1), RG 14.05.2020 (4225/18.4T8GMR-D.G1), com voto de vencida da Juíza Desembargadora Maria dos Anjos Melo Nogueira, RE 12.05.2022 (2955/20.0TBSTB.E1), RE 3.12.2020 (612/14.5T8TSB-F.E1) e RL 6.09.2022 (3612/20.2T8FNC-C.L1-1), este com o voto de vencido do Juiz Desembargador Manuel Marques, e RE 29.09.2022 (380/13.8TBABT.E1), com voto de vencido da Juíza Desembargadora Maria Domingas Alves Simões, RG 10.07.2023 (2193/22.7T8VNF-B.G1), desta Secção, relatado pela Juíza Desembargadora Maria Eugénia Pedro, em que intervieram como  Adjuntos os Juízes Desembargadores José Alberto Moreira Dias e Maria João Marques Pinto de Matos, e RG 28.09.2023 (2539/22.8T8VNF-C.G1), também desta Secção, relatado pelo Juiz Desembargador José Carlos Pereira Duarte, em que intervieram como Adjuntas as Juízas Desembargadoras Maria Gorete Morais e Maria João Pinto de Matos. Na doutrina, parece ser este o entendimento sufragado por Marco Carvalho Gonçalves (Processo de Insolvência e Processos Pré-Insolvenciais, Coimbra: Almedina, 2023, pp. 637-638).
Em suporte, escreve-se no citado RP 30.04.2020, relatado pelo Juiz Desembargador Carlos Gil, que:
“(…) tendo os rendimentos necessários ao sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar excluídos da cessão sido fixados no montante de um salário mínimo e meio, o apuramento do que em cada momento integra o rendimento disponível é feito mensalmente, já que a unidade temporal pela qual se afere o salário mínimo nacional é o mês (veja-se o artigo 273º do Código do Trabalho).
A circunstância de ser anual a informação prestada pelo fiduciário a cada credor e ao juiz nos termos do disposto no nº 2, do artigo 240º do CIRE e de a afetação dos rendimentos nos termos do disposto no nº 1, do artigo 241º do CIRE ser feita no final de cada ano não significa que o apuramento do rendimento disponível apenas se processe no final de cada ano apurando a média auferida nesse período temporal.
Se assim fosse, sendo cumprida a lei no que respeita a entrega dos rendimentos diretamente ao fiduciário, só no final de cada ano o devedor receberia o rendimento disponível, o que, convenhamos, o colocaria em sérias dificuldades financeiras.
De facto, aquilo que se processa no final de cada ano é a afetação dos montantes recebidos até então e não a liquidação do rendimento disponível nesse momento, liquidação que pelo contrário se foi processando, mensalmente, pelo menos, quando como sucede no caso, o devedor é trabalhador por conta de outrem, sendo os seus rendimentos percebidos mensalmente.
Assim, a regra da anualidade que decorre do nº 2, do artigo 240º e do nº 1, do artigo 241º, ambos os artigos do CIRE, dirige-se ao fiduciário, tendo em vista a prestação de informações aos credores e ao juiz e a afetação dos rendimentos que ao longo do ano foram sendo por ele recebidos.
A fixação do rendimento disponível do devedor num certo montante, no caso em apreço, em montante superior ao efetivamente auferido em regra em cada mês, não constitui qualquer garantia de que em cada mês receberá rendimentos desse montante, mas apenas que os receberá todos os meses em que os seus rendimentos excederem o aludido montante porque, não sendo esse o caso, isto é, ficando os seus rendimentos mensais aquém do montante do rendimento indisponível judicialmente fixado, apenas terá direito a haver os montantes efetivamente auferidos em cada mês.
Na situação hipotética que a recorrente refere do pagamento em duodécimos dos subsídios de férias e de Natal a pessoa com rendimentos do trabalho iguais aos da recorrente, nenhum rendimento disponível haveria a afetar pelo fiduciário porque em cada período mensal o montante auferido pela devedora ficaria sempre aquém do rendimento excluído da cessão por decisão judicial e nunca atingiria uma vez e meia o salário mínimo nacional.
Ao contrário, com o pagamento por inteiro do subsídio de férias e do subsídio de Natal, em cada um dos meses em que isso ocorre, o rendimento auferido pela devedora ultrapassa o montante de uma vez e meia o salário mínimo nacional, o que implica a afetação dos rendimentos que ultrapassem esse montante, nos termos previstos no nº 1 do artigo 241º do CIRE.
Significa isto que a interpretação e aplicação das regras relativas à determinação do rendimento indisponível do devedor beneficiário de exoneração do passivo restante nos termos que precedem é violadora do princípio da dignidade humana (artigo 1º da Constituição da República Portuguesa) e da igualdade de todos os cidadãos perante a lei (artigo 13º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa)?
Não o cremos.
A igualdade entre a situação da devedora dos autos e a pessoa colocada na situação hipotética configurada pela recorrente é apenas matemática, impendendo sobre esta última um esforço continuado de aforro em cada mês se quiser ter no período de férias ou no Natal os valores pagos em duodécimos a tal título, ao longo do ano.
Ao contrário, no caso da devedora, ao menos nos meses em que auferir o subsídio de férias e o subsídio de Natal, além do valor mensal do seu salário, terá logo disponível o valor de metade desse mesmo salário, sem ter que desenvolver um esforço continuado de aforro.
Esta diferença foi bem sentida recentemente entre nós quando por força das dificuldades financeiras atravessadas pelo nosso país se proveu no sentido dessas prestações serem pagas em duodécimos, aliviando as entidades pagadoras da necessidade de imobilização de montantes elevados de capital para fazer face aos pagamentos globais desses subsídios, distribuindo essa obrigação pelo ano e onerando os beneficiários desses subsídios com uma gestão cuidada dos valores a mais recebidos em cada mês, a fim de na altura própria deles poderem dispor para as finalidades para que foram previstos.
Deste modo, ao invés do que sustenta a recorrente, no caso concreto, entende-se que não resulta da interpretação e aplicação dos preceitos relativos à determinação dos rendimentos do trabalho excluídos da cessão do rendimento disponível na decisão recorrida e neste acórdão qualquer violação dos princípios da dignidade humana e da igualdade de todos os cidadãos perante a lei.”
No mesmo sentido, RP 8.10.2020 (9/20.8T8STS.P1), relatado pelo Juiz Desembargador Joaquim Correia Gomes, no qual se admite, porém, a possibilidade de “uma ponderação corretiva sempre que o rendimento mensal retido para o insolvente não atinja o RMMG, podendo para o efeito ponderar-se qualquer acréscimo de rendimentos posterior, como seja os subsídios de férias ou de Natal ou qualquer outro rendimento extra.”
30 Em sentido contrário, defendendo um referente anual, RE 17.01.2019 (344/16.0T8OLH.E1), RL 22.09.2020 (6074/13.7TBVFX-L1-1), RL 22.03.2022 (15004/21.1 T8LSB-B. L1), RE 7.04.2022 (78/13.7TBMAC.E1) e RL 2.05.2023 (2525/21.5T8BRR.L1-1).
Os argumentos a favor desta segunda tese são assim expostos no citado RE 7.04.2022:
“Vimos anteriormente que o princípio do respeito pela dignidade da pessoa humana, consagrado no artigo 1.º da Constituição, impõe a salvaguarda constante do artigo 239.º, n.º 3, alínea b), ponto i): Fica excluído do rendimento disponível o que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar. Na concretização deste regime legal, iluminado por aquele princípio constitucional, o juiz não pode fixar uma quantia exígua, que não garanta aquele sustento minimamente digno. A jurisprudência tem entendido, pacificamente, que o montante do salário mínimo nacional constitui um mínimo inultrapassável nesta matéria.
Do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição, decorre, nomeadamente, aquilo que, sem exagero, pode considerar-se a essência do conceito de justiça: deve tratar-se igualmente aquilo que é igual e diferenciadamente aquilo que é diferente, de acordo com a medida da diferença. Subjaz a este princípio uma ideia de proibição do arbítrio, concretizável, nomeadamente, na inadmissibilidade de diferenciação de tratamento sem fundamento material bastante, isto é, sem justificação razoável à luz dos valores que enformam a nossa ordem jurídica, encimados por aqueles que emanam da Constituição.
Tendo em conta os princípios enunciados, analisemos a concreta questão que se nos coloca começando por imaginar duas situações em que, para simplificar, os insolventes são os únicos membros dos seus agregados familiares e o montante excluído do rendimento disponível ao abrigo do disposto no artigo 239.º, n.º 3, alínea b), ponto i), é de € 750,00 mensais. Para evitar as especificidades decorrentes da legislação laboral, suponhamos que ambos exercem actividades económicas por conta própria. Num determinado ano civil, um dos insolventes auferiu um rendimento mensal de € 750,00 durante os 12 meses do ano e o outro auferiu € 300,00 em Janeiro, € 900,00 em Fevereiro, € 700,00 em Março, € 2.000,00 em Abril, € 1.500,00 em Maio, € 600,00 em Junho, € 0,00 em Julho e Agosto, € 500,00 em Setembro, € 500,00 em Outubro, € 1.000,00 em Novembro e € 1.000,00 em Dezembro. No ano em causa, qualquer destes dois insolventes auferiu, no total, € 9.000,00. Todavia, a seguir-se o critério mensal de aferição do montante dos rendimentos para o efeito de determinar a parte destes que fica excluída do rendimento disponível nos termos do artigo 239.º, n.º 3, alínea b), o primeiro não terá de entregar qualquer quantia ao fiduciário, a título de cessão de rendimento disponível, ao passo que o segundo terá de entregar € 2.650,00. O exercício a que vimos procedendo poderá ficar ainda mais expressivo imaginando um insolvente que tenha auferido € 4.500,00 em Janeiro e € 4.500,00 em Setembro (ainda que como contrapartida por trabalho desenvolvido ao longo dos meses anteriores, em que nada recebeu), o qual, de acordo com o critério mensal, teria de entregar ao fiduciário € 7.500,00. A desigualdade de tratamento destes três insolventes é patente e, dado terem auferido, no período de 1 ano, rendimentos idênticos, tem de considerar-se inadmissível. Não há, com efeito, fundamento material para a exposta desigualdade de tratamento.
Analisando as situações expostas sob o ponto de vista do princípio do respeito pela dignidade da pessoa humana, a conclusão a que chegamos é idêntica. Enquanto o primeiro insolvente pôde afectar ao seu sustento a quantia mensal de € 750,00 e anual de € 9.000,00, superior ao salário mínimo nacional, o segundo e o terceiro apenas puderam afectar ao mesmo fim, respectivamente, as quantias mensais de € 519,17 e € 125,00 e anuais de € 6.350,00 e € 1.500,00. Ou seja, os segundo e terceiro insolventes ficaram abaixo daquilo que é razoavelmente necessário para o seu sustento minimamente digno e isso aconteceu, sublinhamos, por efeito do funcionamento do critério mensal de cálculo da parte dos rendimentos do insolvente que fica excluída do rendimento disponível nos termos do artigo 239.º, n.º 3, alínea b), ponto i). O segundo e, de forma ainda mais evidente, o terceiro insolvente, ficaram, em consequência da rigidez do critério mensal, impedidos de fazer aquilo que qualquer pessoa diligente faz para assegurar o seu sustento minimamente digno nas circunstâncias descritas: poupar quando ganha mais com vista a poder gastar quando ganha menos, ou nada ganha.
Isto demonstra a inadequação do critério mensal. A sua rigidez torna-o cego em relação a situações em que, como as descritas, os rendimentos do insolvente são variáveis, impedindo este último de fazer uma coisa tão simples como poupar em meses melhores para poder gastar em meses piores e assim pondo em causa o sustento minimamente digno daquele e do seu agregado familiar.
Não se pense que o critério mensal apenas produz resultados inadmissíveis quando os rendimentos do insolvente provenham de trabalho por conta própria. Também o rendimento mensal de um insolvente que trabalhe por conta de outrem pode variar. Mesmo pondo de lado a questão resultante da percepção dos subsídios de Natal e de férias (cuja análise, tendo em conta a abundante jurisprudência existente sobre a matéria, nos levaria longe demais, tendo em conta o objecto deste recurso), um insolvente que trabalhe por conta de outrem pode ver o seu salário variar de mês para mês em função de situações como, por exemplo, períodos de desemprego ou de baixa por doença, a prestação de trabalho suplementar ou salários em atraso. Imaginemos, por exemplo, um insolvente a quem não são pagos os salários durante 3 meses seguidos, sendo esse pagamento efectuado no mês seguinte, juntamente com o salário que a esse mês respeita. Em consequência de um facto que, em si mesmo, é altamente penalizador para um trabalhador como é ter salários em atraso, a situação do insolvente poderia ser agravada pela circunstância, a que ele é alheio e que em nada o beneficiou, de receber 4 salários num só mês e ver uma parte desse rendimento integrada no rendimento disponível.
Analisando o problema pelo lado dos credores da insolvência, resulta do artigo 241.º que estes em nada são prejudicados se se adoptar o critério anual ou, eventualmente, outro que não exceda o período de 1 ano. O n.º 1 daquele artigo estabelece que o fiduciário notifica a cessão dos rendimentos do devedor àqueles de quem ele tenha direito a havê-los e afecta os montantes recebidos no final de cada ano em que dure a cessão, nomeadamente, nos termos da al. d), à distribuição pelos credores da insolvência. Logo, a circunstância de o critério ser mensal, anual ou outro inferior a 1 ano é indiferente do ponto de vista do interesse destes últimos: em qualquer hipótese, só anualmente receberão as quantias a que tiverem direito.
Concluindo, na ausência de fixação de critério diverso pelo juiz, no despacho inicial ou, na hipótese de alteração relevante das circunstâncias, em despacho posterior, o critério anual deverá ser adoptado para o cálculo do montante dos rendimentos do insolvente com vista a determinar a parte destes que fica excluída do rendimento disponível nos termos do artigo 239.º, n.º 3, alínea b), ponto i). Em casos como o dos autos, apenas esse critério permite soluções conformes com os princípios constitucionais acima referidos.”

Quid inde?
31 Afigura-se-nos que o CIRE não impõe um critério ao juiz, permitindo-lhe assim que, em cada caso, pondere todas condicionantes de modo a encontrar o ponto certo do equilíbrio entre os dois interesses conflituantes.
Para isso, há que atender à natureza e ao montante dos rendimentos que previsivelmente serão auferidos pelo devedor ao longo do período de cessão. Assim, quando estejam em causa rendimentos auferidos com periodicidade mensal, de valor pré-definido, como sucede com os provenientes do trabalho dependente e de pensões, que, no mínimo, seja sempre superiores ao tido como razoável para salvaguarda do interesse do devedor, aferido em atenção das particularidades do caso em concreto, mais concretamente, a idade do insolvente, a composição do seu agregado familiar, as suas despesas normais, quaisquer despesas especiais relativas à sua saúde ou encargos com ascendentes ou descendentes, etc., e respetivos rendimentos, fará sentido suportar esse cálculo com base no critério mensal. Já se estiverem em causa rendimentos esporádicos ou rendimentos que, revestindo embora natureza periódica, não atingirão sempre aquele valor razoável, fará sentido o recurso ao a um fator corretivo, que poderá ser o indicado no citado RP 8.10.2020, somando-se os rendimentos e dividindo depois o total obtido por cada um dos meses do ano.
32 Cremos que a isto não se opõe a natureza da cessão que, como a doutrina entende, se traduz numa efetiva cessão de bens ou de créditos futuros, que tem fonte na lei, sendo-lhe, por isso, aplicável o disposto nos arts. 577 e ss. do Código Civil. Em consequência, defende-se que os rendimentos auferidos durante este período se transferem no momento em que são adquiridos e independentemente do consentimento dos devedores dos rendimentos (arts. 408/1 e 577/1 do Código Civil), sendo acompanhados das garantias e outros acessórios dos créditos que não sejam inseparáveis da pessoa do cedente (art. 582/1 do Código Civil). Neste sentido Carvalho Fernandes / João Labareda (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado cit., p. 860), Carvalho Fernandes (“A exoneração do passivo restante na insolvência das pessoas singulares no Direito Português” Carvalho Fernandes / João Labareda, Coletânea de Estudos sobre a Insolvência, Lisboa: Quid Juris, 2009, pp. 275 e ss., Alexandre de Soveral Martins (Um Curso de Direito da Insolvência, I, 4.ª ed., Coimbra: Almedina, 2022, pp. 627-628), Maria do Rosário Epifânio (Manual de Direito da Insolvência, 8.ª ed., Coimbra: Almedina, p. 411) e Luís Menezes Leitão (Direito da Insolvência, 10.ª edição, Coimbra: Almedina, Coimbra, 2021, p. 329).
Na verdade, não passando a cessão de uma fictio iuris, posto que os rendimentos são efetivamente recebidos pelo insolvente e depois entregues ao fiduciário, que os afeta, no final de cada ano, aos pagamentos e reembolsos previstos no n.º 1 do art. 241 do CIRE, a sua concretização pressupõe, a montante, a definição do rendimento disponível, a qual é feita por via da exclusão do que seja indisponível. É nesse momento que o juiz tem de definir o critério a atender para esse efeito. Nesta perspetiva, o advérbio de modo imediatamente que é utilizado na alínea c) do n.º 4 do art. 239 do CIRE mais não significa que a rendimento disponível, aquele que é objeto de cessão, deve ser entregue assim que realizada a dita operação de liquidação, sem necessidade de qualquer interpelação para esse efeito.
***
33 2).4.3. O juízo a fazer no despacho inicial de exoneração assenta na situação de facto existente nesse momento. Trata-se de um juízo de prognose: o juiz perspetiva, com os dados aos seu dispor, o que previsivelmente irá suceder ao longo do período da cessão.
Como é evidente, a realidade ulterior pode vir a infirmar esse juízo. Nesta hipótese, é de admitir a modificação do decidido com fundamento na cláusula rebus sic stantibus (arts. 282/2 e 619/2 do CPC). Neste sentido, pode ver-se RC 03.06.2014 (747/11.6TBTNV-J.C1), relatado pelo Juiz Desembargador Henrique Antunes, no qual se escreve que "[a] fixação, no despacho inicial, do rendimento disponível não é imodificável, já que, mesmo depois do seu proferimento - e mesmo depois do seu trânsito em julgado - o juiz pode excluir desse rendimento, a requerimento do insolvente, do que seja razoavelmente necessário para quaisquer despesas do devedor (artº 239 nº 3, iii), do CIRE)." De igual modo, RP 13.06.2023 (1804/18.3T8VNG.P1), relatado pelo Juiz Desembargador Artur Dionísio Oliveira, RG 15.05.2021 (97/18.7T8MGD-B.G1), já citado, relatado pelo Juiz Desembargador José Alberto Moreira Dias, RG 10.07.2023 (3785/20.4T8VCT-B.G1), relatado pelo Juiz Desembargador José Carlos Pereira Duarte, em que intervieram como Adjuntos os Juízes Desembargadores Rosália Cunha e José Alberto Moreira Dias, e RG 7.12.2023 (5365/19.8T8VNF.G1), relatado pela Juíza Desembargadora Alexandra Viana Parente Lopes.
***
34 2).5. Transpondo estas considerações para o caso dos autos, temos como adquirido que, no despacho inicial, proferido no dia 13 de janeiro de 2022, o Tribunal a quo, partindo do pressuposto de facto de que a ora Recorrente trabalhava por conta de outrem, auferia € 635,00 mensais e tinha um filho menor a seu cargo, fixou como rendimento indisponível o correspondente a um salário mínimo nacional e meio, o que não pode deixar de significar que atendeu ao referido critério mensal.
Tendo presente o que escrevemos no ponto anterior, essa opção, da qual decorre que, em cada mês, a Recorrente estava obrigada a entregar ao fiduciário todo o seu rendimento que excedesse um salário mínimo nacional e meio, inclusive o que fosse proveniente de subsídios de férias e de Natal, fazia então todo o sentido.
Simplesmente, a situação de facto que se veio a verificar ao longo do 1.º ano de cessão não correspondeu ao juízo de prognose feito na decisão recorrida.
Com efeito, nos meses de fevereiro, março, abril, junho, julho e setembro de 2022, o rendimento auferido pela Recorrente foi inferior aos € 635,00 tidos como pressuposto de facto no despacho inicial. Nos meses de setembro, outubro, novembro e dezembro de 2022 e no mês de janeiro de 2023, a insolvente não auferiu mesmo qualquer rendimento.
Perante esta disparidade, entendemos que a salvaguarda do interesse da insolvente, consubstanciado na subsistência digna de si própria e do respetivo agregado familiar, pressupõe que, modificando o adrede decidido, se permita que o montante recebido em excesso no mês de agosto de 2022 (€ 227,40) se repercuta nos meses discriminados no § anterior, compensando, nessa medida, as perdas de rendimentos verificadas.
Quanto aos anos seguintes, o quadro inserido no relatório do fiduciário evidencia que o rendimento mensal da insolvente não tem sido constante ao longo do ano. Na maioria dos meses não atinge o rendimento indisponível fixado no despacho inicial de exoneração. Por identidade de razões, justifica-se que o que neste foi decidido possa ser corrigido, adequando-se à realidade, em termos que permitam repercutir o que eventualmente venha a ser auferido em excesso relativamente ao rendimento indisponível fixado (um salário mínimo nacional e meio) nos meses em que esse valor não seja atingido.
Tudo redunda, portanto, na procedência parcial do recurso mediante a introdução, de um factor de correção que salvaguarde, tanto quanto possível, o montante que foi considerado necessário para o sustento minimamente digno da insolvente e do seu agregado familiar. Por via do funcionamento desse fator, deverá permitir-se que nos meses em que o rendimento auferido pela Recorrente não atinja o valor do rendimento indisponível este seja compensado com rendimentos de outros meses do período (um ano), de modo a encontrar-se um constante e consistente “sustento minimamente digno.”
***
35 3) Não havendo norma que preveja isenção (art. 4.º/2 do RCP), o presente recurso está sujeito a custas. A responsabilidade pelo seu pagamento deve ser fixada nesta sede: art. 607/6, ex vi do art. 663/2.
No art. 527/1 diz-se que “[a] decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, quem do processo tirou proveito.”
De acordo com o n.º 2 do preceito, presume-se iuris et de iure que dá causa à ação, incidente ou recurso quem perde. Assim, de acordo com José Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, II, 4.ª ed., Coimbra: Almedina, p. 419, “[q]uanto à ação, perde-a o réu quando é condenado no pedido; perde-a o autor quando o réu é absolvido do pedido ou da instância. Quanto aos incidentes, paralelamente, é parte vencida aquela contra a qual a decisão é proferida: se o incidente for julgado procedente, paga as custas o requerido; se for rejeitado ou julgado improcedente, paga-as o requerente. No caso dos recursos, as custas ficam por conta do recorrido ou do recorrente, conforme o recurso obtenha ou não provimento).”
Concluímos, deste modo, que o princípio da causalidade continua a funcionar em sede de recurso, devendo a parte neste vencida ser condenada no pagamento das custas, tendo presente, contudo, a especificidade acima apontada quanto à constituição da obrigação de pagamento da taxa de justiça, pelo que tal condenação envolve apenas as custas de parte e, em alguns casos, os encargos. Apenas nos casos em que não haja vencedor nem vencido, onde, por isso, não pode funcionar o princípio da causalidade consubstanciado no da sucumbência, rege o princípio subsidiário do proveito processual, de acordo com o qual pagará as custas do processo quem deste beneficiou. Dito de outra forma, sempre que haja um vencido, com perda de causa, é sobre ele que deve recair, na precisa medida desse decaimento, a responsabilidade pela dívida de custas. Fica vencido quem na causa não viu os seus interesses satisfeitos; se tais interesses ficam totalmente postergados, o vencimento é total; se os interesses são parcialmente satisfeitos, o vencimento é parcial. Conforme se referiu em RL 22.01.2019 (45824/18.8YIPRT-A.L1), “existindo um vencedor, por princípio e natureza, não lhe pode ser imputada a responsabilidade pela obrigação do pagamento das custas por ser de afastar, naturalmente, a causalidade. Ou seja, por regra, o vencedor é aquele que obteve ganho de causa. Ainda que este ganho de causa implique necessariamente um proveito, não é este proveito que releva quando se recorre ao respetivo princípio subsidiário, pois que, tal como resulta do n.° 1 do art. 527°, n.° 1 do CPC, apenas não havendo vencimento é que funciona o critério subsidiário do proveito.
Mas havendo um vencedor e não se encontrando uma parte vencida, esta não pode ser condenada no pagamento de custas porque não se verifica a causalidade (não deu causa à ação ou ao recurso), mas também aquele não o pode ser precisamente por ter havido vencimento (o que afasta o critério do proveito). Nestas situações, impõe-se encontrar uma outra solução. Será apenas quando perante a resolução do litígio não se descortine nem um vencido, nem um vencedor, que a responsabilidade tributária terá de assentar então no critério do proveito, isto é, em função das vantagens obtidas.”
No caso vertente, perante a procedência parcial do recurso, as custas devem ser suportadas pela Recorrente: numa parte do recurso ficou vencida; na outra, em que não há parte vencida, tirou proveito do recurso. Isto sem prejuízo do benefício do apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo de que beneficia.
***
IV.
Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores que compõem o presente coletivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente o presente recurso de apelação e, em consequência:
Revogar parcialmente o despacho recorrido;
Em substituição do Tribunal a quo, estabelecer que nos meses em que o rendimento auferido pela insolvente não atinja o montante do rendimento indisponível definido no despacho inicial de exoneração, a diferença seja compensada, na medida do necessário, com os rendimentos auferidos noutros meses do mesmo período anual que excedam aquele montante;
No mais, confirmar o despacho recorrido.
Custas do recurso a cargo da Recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo.
Notifique.
*
Guimarães, 01-02-2024

Os Juízes Desembargadores,
Gonçalo Oliveira Magalhães (Relator)
José Alberto Moreira Dias (2.º Adjunto)
Rosália Cunha (1.ª Adjunta), com o seguinte voto de vencida:

-Voto de vencida:
Perfilho a corrente jurisprudencial que considera que o rendimento a ceder pelo devedor à fidúcia tem de ser calculado mensalmente, e não anualmente, conforme orientação sufragada pelos diversos acórdãos que são referidos supra e cujos argumentos também supra estão explanados, dispensando-nos de os aqui reproduzir
No essencial, os argumentos de ser esta a base de cálculo a considerar estão resumidos no sumário do acórdão do STJ, de 9.3.2021, Relator José Rainho (disponível in www.dgsi.pt), segundo o qual:
I - O instituto da exoneração do passivo restante não tem por finalidade precípua garantir ao devedor o recebimento de um certo montante a título de sustento, pelo que o devedor não goza da garantia da intangibilidade do montante estabelecido para seu sustento.
II - Se a cessão do rendimento disponível e o montante arbitrado ao devedor a título de sustento foram estabelecidos numa base mensal pelo tribunal, não pode o apuramento do rendimento disponível ser feito numa base anual.
III - Se em determinado mês o rendimento do insolvente não alcança o montante que lhe foi arbitrado para sustento, nem por isso lhe assiste o direito de, mediante “compensação” ou “ajuste de contas”, não entregar ao fiduciário o excesso que se verifique nos demais meses.
IV - A interpretação do art. 239.º, n.º 4, al. c), do CIRE no sentido de impor ao devedor a obrigação de entregar imediatamente/mensalmente os rendimentos recebidos ao fiduciário sem operar a compensação dos rendimentos com os montantes auferidos nos meses anteriores e posteriores não viola os arts. 1.º, 67.º e 205.º, n.º 2, da CRP.
Assim, entendendo que o cálculo deve ser feito por referência ao valor mensal e, atenta a não admissibilidade de compensação ou ajustes, teria confirmado a decisão recorrida.
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Rosália Cunha



[1] No entender de Paulo Mota Pinto, “Exoneração do passivo restante: fundamento e constitucionalidade”, AAVV, Catarina Serra (coord.), III Congresso de Direito da Insolvência, Coimbra: Almedina, 2015, pp. 195, as obrigações continuam a existir, não como obrigações civis, suscetíveis de execução judicial, mas como obrigações naturais, cujo cumprimento, não sendo judicialmente exigível, corresponde a um dever de justiça.
[2] Para maiores desenvolvimentos, vide a exaustiva exposição feita em RG 7.10.2021 (1/08.0TJVNF-ET.G1), relatado pelo Desembargador José Alberto Moreira Dias, aqui 1.º Adjunto.