Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
4231/20.0T8BRG.G1
Relator: CARLA OLIVEIRA
Descritores: PRESTAÇÃO DE CONTAS
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
DECISÃO SURPRESA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- Cabe ao juiz respeitar e fazer observar o princípio do contraditório ao longo de todo o processo, não lhe sendo lícito conhecer de questões sem dar a oportunidade às partes de, previamente, sobre elas se pronunciarem, sendo proibidas decisões-surpresa.
II- Decisão - surpresa é a solução dada a uma questão que, embora previsível, não tenha sido configurada pela parte e sem que a mesma tivesse obrigação de a prever.
III- No apuramento e aprovação das receitas e despesas das contas apresentadas, sejam elas contestadas ou não, o juiz, em vista das provas produzidas, procede, julga e decide especialmente, nos termos do nº 5, do art.º 945º, NCPC, segundo o seu prudente arbítrio e as regras da experiência.
IV- Porém, o juiz não deve prescindir de documentos de suporte das contas (das receitas ou das despesas) quando o normal é que eles existam e nenhuma justificação válida é apresentada para a sua falta ou não apresentação.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório

AA e BB,
instauraram a presente acção especial de prestação de contas, por apenso ao processo de inventário que corre termos no Juízo Local Cível ..., sob o nº 4231/20...., para partilha da herança aberta por óbito de CC contra
DD e EE,
peticionando a condenação das rés a apresentar contas relativamente à administração como cabeça-de-casal da herança da falecida CC.
Mais requereram a intervenção principal provocada da sociedade EMP01..., Unipessoal, Lda (por ter adquirido o quinhão hereditário pertencente a FF, filho da inventariada). 
Alegaram, para o efeito, que é a interessada EE quem sempre exerceu, de facto, o cargo de cabeça-de-casal, embora o mesmo pertencesse formalmente a GG e que aquela nunca justificou as movimentações bancárias realizadas através da conta bancária de que a inventariada era titular.
A ré DD contestou a obrigação de prestar contas, mas apresentou-as, ainda que a título subsidiário.
Por sua vez, a ré EE contestou a respectiva obrigação de prestar contas.
Admitida a intervir, a sociedade EMP01..., Unipessoal, Lda declarou fazer seu o articulado oferecido pela ré EE.
Por decisão proferida em 19.07.2022, a acção foi julgada parcialmente procedente, tendo sido absolvida a ré DD e condenada a ré EE a prestar contas da sua administração, desde a data do óbito da inventariada CC.
Tendo a ré EE apresentado as contas, os autores contestaram as mesmas, defendendo que deviam ser julgadas injustificadas as despesas com as verbas nºs 136, 199, 201, 211, 212, 214, 233, 238, 241, 242, 244, 245, 246, 247, 248, 249, 250, 254, 257, 258, 259, 268, 273, 275, 276, 278, 284, 287, 288, 293, 294, 296, 297, 304, 305, 335, 341 e 347, no montante global de € 25.784,06, com fundamento na desnecessidade na realização das ditas despesas e no prejuízo que as mesmas causaram à herança.
A ré apresentou articulado de resposta.
Foi dispensada a realização de audiência prévia, tendo sido proferido despacho saneador e fixado o valor da causa.

De seguida, foi ainda proferido despacho a identificar o objecto do litígio e a enunciar os temas de prova, nos seguintes termos:

“4. OBJECTO DO PROCESSO
Nos termos do artigo 596.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, o objecto do litígio consubstancia-se em apreciar a rectidão ou não das contas apresentadas pela ré EE, em virtude da sua administração como cabeça de casal da herança da inventariada (nos autos principais) CC, desde a data do seu óbito até .../.../2022.
Notifique-se.
***
5. TEMAS DA PROVA
Ainda, nos termos e para os efeitos do artigo 596.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, fixam-se como temas de prova os que ora se enunciam:
1. apurar se as despesas elencadas na conta corrente apresentada e sob as verbas com os n.ºs 136, 199, 201, 211, 212, 214, 233, 238, 241, 242, 244, 245, 246, 247, 248, 249, 250, 254, 257, 258, 259, 268, 273, 275, 276, 278, 284, 287, 288, 293, 294, 296, 297, 304, 305, 335, 341 e 347 foram realizadas por conta e interesse (incluindo-se a sua necessidade) da herança aberta por óbito da inventariada (nos autos principais) CC;
2. determinar se as despesas referidas no ponto 1 foram realizadas por conta e interesse da Ré EE, bem como se por iniciativa e/ou em conluio com o interessado FF;
3. apurar se as despesas referidas no ponto 1 foram realizadas contra a vontade dos demais herdeiros do de cujus CC;
4. aferir das demais despesas tidas pela Ré EE com a administração, como cabeça-de-casal, da herança da inventariada (nos autos principais) CC, desde a data do seu óbito até .../.../2022.”.
Ainda no âmbito da mesma peça processual foram admitidos os meios de prova oferecidos/requeridos pelas partes e designada data para a realização da audiência final.
Não foi apresentada qualquer reclamação aos supra aludidos despachos.

Realizou-se a audiência final, tendo de seguida sido proferida sentença, constando do respectivo dispositivo o seguinte:

VI – DECISÃO:
Pelo exposto, atentas as considerações expendidas e as normas legais citadas, julgo parcialmente boas as contas apresentadas pela Requerida EE, condenando-se esta a repor à herança de CC o montante de €: 9.741,59 (nove mil setecentos e quarenta e um euros e cinquenta e nove cêntimos).
*
Custas a cargo dos Requerentes e da Requerida, porque deram causa aos presentes autos e na proporção do respetivo decaimento – cfr. artigo 527º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil e Tribunal da Relação de Lisboa em acórdão de 07.02.2019, relator Adeodato Brotas, disponível em www.dgsi.pt.
*
Notifique e registe.”.

Notificada de tal decisão, veio a ré EE interpor o presente recurso, concluindo a sua alegação nos seguintes termos:

“I. A 05/06/2023 o Insigne Tribunal a quo proferiu douta Sentença quanto à prestação de contas apresentada pela Recorrente/Requerida, parcialmente impugnada pelos Recorridos/ Requerentes.
II. A Recorrente não pode anuir com os factos não provados – e respetiva motivação - que sustentam a Decisão:
“Em suma, de tudo quanto exposto, resulta que a Requerida, cabeça de casal da herança aberta por óbito de CC, terá de repor àquela o montante de €: 9.741,59 (nove mil setecentos e quarenta e um euros e cinquenta e nove cêntimos), correspondente às despesas que realizou que não se mostraram devidamente justificadas ou efetuadas no interesse da mencionada herança.” Cfr. Sentença
III. Isto porque, antes de mais, os Recorridos contestam não a realização das despesas constantes na prestação de contas – que reconhecem que foram efetuadas – mas, antes sim, apenas a responsabilidade da Herança por tais gastos!
IV. E não obstante ter o insigne Tribunal a quo reconhecido o interesse para Herança das despesas impugnadas, não as reconhece mas por outro motivo: falta de prova documental e/ou testemunhal – o que consubstancia também uma incorreta apreciação da prova, nomeadamente no toca à valoração do depoimento de HH e dos documentos juntos!
V. Grosso modo, o douto Aresto aqui em crise reconhece a relevância das despesas efetivamente efetuadas em benefício da Herança mas não aceita a documentação junta para a sua demonstração, não obstante Recorridos e MM.º Juiz a quo reconhecerem a sua realização!
VI. Isto sem antes notificar a Recorrida para, por exemplo, ter a hipótese de exercer o contraditório, proferindo quanto a estas verbas uma manifesta decisão surpresa, o que consubstancia nulidade expressamente arguida.
VII. Daí que não obstante Recorrente e Recorridos estarem de acordo no valor e no facto de terem sido realizadas as despesas – discordando apenas na pertinência das mesmas - apresenta a Sentença outro fundamento para as julgar não justificadas.
Assim,
VIII. Em relação às “- verbas n.ºs 196, 201, 242, 244, 245, 246, 247, 248, 250, 268, 287, 293, 294, 296, 297, no valor de €: 36,00 cada e perfazendo o montante global de €: 540,00, todas denominadas como «Deslocação a ...»;” deverão ser dadas como provadas e julgadas justificadas com base no seguinte:
IX. Depoimento de HH, supra transcrito, autor das deslocações, que as descreveu pormenorizadamente e teve o seu depoimento corroborado, além do mais, pela realização efetiva de limpezas, avaliações, levantamento topográficos, que resultam da própria Sentença. Cfr. Testemunha HH, registado digitalmente no aplicativo H@bilus Media Studio, assim como em suporte CD com início às 16:08:58 e terminus às 16:58:29, do dia 27/04/2023.
X. Deverá ser ainda considerado o depoimento das testemunhas, II, JJ e pelo facto de os Recorridos nunca colocarem em causa que as deslocações ocorreram – apenas a utilidade ou necessidade das mesmas para a Herança, situação que a Sentença, e bem, rejeita!
XI. HH no seu depoimento reconhece acompanhar de perto a sua esposa, Cabeça de Casal, no exercício das suas funções, demonstrando conhecer, como ninguém o histórico do processo e as diversas vicissitudes, apresentando um testemunho idóneo, coerente e exato na identificação das despesas!
XII. Assim deverá a douta Sentença ser revogada e passar aos factos provados:
“Na qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito de CC, a Ré suportou as verbas correspondentes às seguintes despesas, devidamente justificadas e efetuadas no interesse da herança:
- verbas n.ºs 196, 201, 242, 244, 245, 246, 247, 248, 250, 268, 287, 293, 294, 296, 297, no valor de €: 36,00 cada e perfazendo o montante global de €: 540,00, todas denominadas como «Deslocação a ...»;”
Acresce que,
XIII. Em relação à verba“- em 20-11-2018, o montante de €: 475,00, correspondente à verba n.º 238, denominada de «Pagamento Estado Demarcação (topógrafo)»;” deveria ser dada como provada e julgada justificada com base no seguinte:
XIV. Por um lado, o documento junto com o nº 238, em que pode ler-se, além do mais “Tipo Pagamento de impostos ... ...40 – Guias Tribunal Montante 475,00EUR”
XV. Por outro lado, o facto de estar assente que a dita ação de demarcação correu termos e que ocorreu a intervenção de um topógrafo;
XVI. Tal verba foi impugnada pelos Recorridos pelo facto de corresponder a despesa realizada no âmbito da ação de demarcação - que rejeitam por alegadamente inútil e não porque não tenha sido realizado tal pagamento!
XVII. Neste aspeto a Sentença recorrida não poderá deixar de ser considerada uma manifesta decisão surpresa, o que consubstancia que aquela padeça do vício de nulidade que expressamente se argui, pois não julga justificada tal despesa por alegada falta de prova!
XVIII. Assim deverá a douta Sentença ser revogada e passar aos factos provados:
“Na qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito de CC, a Ré suportou as verbas correspondentes às seguintes despesas, devidamente justificadas e efetuadas no interesse da herança:
- em 20-11-2018, o montante de €: 475,00, correspondente à verba n.º 238, denominada de «Pagamento Estado Demarcação (topógrafo)»;”
XIX. Em relação às verbas “- em 01.02.2019, o montante de €: 2.000,00, correspondente à verba n.º 254, denominada de «solicitador por conta dos registos prediais»;
- em 07.03.2019, o montante de €: 1.927,50, correspondente à verba n.º 259, denominada de «acerto de contas registos»; deveriam ser dadas como provadas e julgadas justificadas com base no seguinte:
XX. Documentos ...54 e ...59 juntos com a conta corrente, onde estão identificados os valores e o destinatário: KK, solicitador;
XXI. O facto de resultar do ponto 15 dos factos provados que os registos foram efetivamente efetuados;
XXII. Os Recorridos não contestam o valor ou realização dos ditos pagamentos/registos mas apenas a sua utilidade;
XXIII. O depoimento de HH é absolutamente coerente e fiável na explicação apresentada quanto aos registos, tal como supra transcrito.
XXIV. Em todo o caso, a Sentença recorrida não poderá deixar de ser considerada uma manifesta decisão surpresa, o que consubstancia que aquela padeça do vício de nulidade que expressamente se argui, pois fundamenta a sua motivação com factualidade não alegada pelas partes!
XXV. Assim deverá a douta Sentença ser revogada e passar aos factos provados:
“Na qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito de CC, a Ré suportou as verbas correspondentes às seguintes despesas, devidamente justificadas e efetuadas no interesse da herança:
- em 01.02.2019, o montante de €: 2.000,00, correspondente à verba n.º 254, denominada de «solicitador por conta dos registos prediais»;
- em 07.03.2019, o montante de €: 1.927,50, correspondente à verba n.º 259, denominada de «acerto de contas registos»;
XXVI. Em relação às verbas “- em 08.10.2019, o montante de €: 750,00, correspondente à verba n.º 275, denominada de «demarcação Dr. LL»;
- em 08.10.2019, o montante de €: 1,56, correspondente à verba n.º 276, denominada de «custos de transferência»;
- em 01.01.2021, o montante de €: 1.000,00, correspondente à verba n.º 304, denominada de «Advogado demarcação»;
- em 02.01.2021, o montante de €: 0,83, correspondente à verba n.º 305, denominada de «custos de transferência»;
- em 05.07.2022, o montante de €: 500,00, correspondente à verba n.º 347, denominada de «por conta execução sentença».” devem ser dadas como provadas e justificadas com base no seguinte:
XXVII. Está novamente em causa a dita ação de demarcação, a qual foi julgada como tendo sido apresentada no interesse da herança (ponto 17 dos factos provados) e, repita-se, os Recorridos apenas colocaram em causa a inutilidade da ação e não impugnaram a prestação de serviços nem o valor destes, valores e serviços confirmados também pelo depoimento de HH!
XXVIII. Neste aspeto a Sentença recorrida também não poderá deixar de ser considerada uma manifesta decisão surpresa, o que consubstancia que aquela padeça do vício de nulidade que expressamente se argui!
XXIX. Tais verbas estão devidamente documentadas através dos documentos ...75 e ...04, juntos com a conta corrente, onde estão identificados os valores, o mesmo IBAN, a ação e destinatário: demarcação, Dr. LL, com sinal nos autos.
XXX. Assim deverá a douta Sentença ser revogada e passar aos factos provados:
“Na qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito de CC, a Ré suportou as verbas correspondentes às seguintes despesas, devidamente justificadas e efetuadas no interesse da herança:
“- em 08.10.2019, o montante de €: 750,00, correspondente à verba n.º 275, denominada de «demarcação Dr. LL»;
- em 08.10.2019, o montante de €: 1,56, correspondente à verba n.º 276, denominada de «custos de transferência»;
- em 01.01.2021, o montante de €: 1.000,00, correspondente à verba n.º 304, denominada de «Advogado demarcação»;
- em 02.01.2021, o montante de €: 0,83, correspondente à verba n.º 305, denominada de «custos de transferência»;
- em 05.07.2022, o montante de €: 500,00, correspondente à verba n.º 347, denominada de «por conta execução sentença».”
XXXI. Relativamente à verba “- em 26.05.2020, o montante de €: 37,50, correspondente à verba n.º 288, denominada de «limpeza Código Penal Porta – Sr. MM»;” deverá ser julgada provada e justificada por conjugação do documento ...88 junto, com o depoimento de HH, supra transcrito, que confirmou tal despesa e serviço, ao que acresce, uma vez mais, os Recorridos não impugnaram o valor ou a prestação mas apenas a sua utilidade!
XXXII. Assim deverá a douta Sentença ser revogada e passar aos factos provados:
“- em 26.05.2020, o montante de €: 37,50, correspondente à verba n.º 288, denominada de «limpeza Código Penal Porta – Sr. MM»;”
XXXIII. Quanto à verba “- em 05-05-2022, o montante de €: 2.509,20, correspondente à verba n.º 341, denominada de «Avaliações -perito»;” deverá ser julgada provada e justificada porque da simples análise dos autos principais que estes são apenso, verifica-se que a Recorrente foi notificada para pagamento de tal quantia na qualidade de Cabeça de Casal, sendo tal avaliação realizada em prol de todos os herdeiros e para a justa composição dos quinhões, devidamente ordenada pelo Tribunal.
XXXIV. Assim deverá a douta Sentença ser revogada e passar aos factos provados:
“- em 05-05-2022, o montante de €: 2.509,20, correspondente à verba n.º 341, denominada de «Avaliações - perito»;”
Aqui chegados,
XXXV. A Sentença recorrida violou, além do mais, os princípios citados e o art.º 945.º, nº 5 do Cód. Proc. Civil, pelo que deverá nessa medida ser revogada nos termos e pelos fundamentos alegados.
XXXVI. Isto porque, tal como podemos ler naquela:
“Em todo o caso, nos termos do disposto no artigo 945.º, n.º 5 do Código de Processo Civil, o juiz pode considerar justificadas sem documentos as verbas de receita ou despesas em que não é costume exigi-los, mais acrescentando os autores supracitados, desde que seja objetivamente admissível a formulação de um juízo de probabilidade – in ob cit, pág. 398.”
XXXVII. Ora, neste caso existem documentos, prova testemunhal e alegação idónea para prova de que as despesas efetivamente ocorreram conforme descrição efetuada!
XXXVIII.
XXXIX.
Assim, alterada a matéria de facto dada como não provada para provada, considerando que todas as verbas aqui em crise estão sustentadas em mais que um elemento probatório: no mínimo a prova documental e a prova testemunhal,
Deverá a Sentença ser revogada nos termos expostos e deverão ser julgadas boas e justificadas as contas apresentadas pela Recorrente na sua totalidade!”.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II. Delimitação do objecto do recurso e questões a decidir

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do apelante, tal como decorre das disposições legais dos art.ºs 635º, nº 4 e 639º do NCPC, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (art.º 608º nº2 do NCPC). Por outro lado, não está o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (art.º 5º, nº 3 do citado diploma legal).
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No caso vertente, as questões a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pela recorrente são:

- da nulidade da sentença recorrida por se tratar de decisão surpresa;
- do erro de julgamento quanto à decisão da matéria de facto e consequente alteração da decisão de direito.
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III. Fundamentação

3.1. Fundamentos de facto
Com interesse para a decisão relevam as incidências fáctico-processuais que se evidenciam no relatório supra.
Ter-se-á ainda em consideração os seguintes factos que o tribunal recorrido considerou provados e não provados (destacando-se a negrito a matéria de facto ora impugnada):
“A) Dos Factos Provados:
1 – A Inventariada CC faleceu em .../.../2009;
2 – A Inventariada CC detinha, à data do seu óbito, a conta bancária a prazo n.º ...20 aberta no banco Banco 1... cotitulada com a Ré, com o saldo de €: 38.000,00 (trinta e oito mil euros), correspondente à verba n.º 1.
3 - A Inventariada CC detinha, à data do seu óbito, a conta bancária à ordem n.º ...00 aberta no banco Banco 1..., cotitulada com a Ré, com o saldo de €: 239,13, correspondente à verba n.º 2.
4 - Na qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito de CC, a Ré recebeu, desde .../.../2009 a 23 de agosto de 2022, na conta à ordem indicada em 2), o valor global de €: 46.416,48 (quarenta e seis mil quatrocentos e dezasseis euros e quarenta e oito cêntimos) a título de receitas, correspondente às verbas n.º 3, 9, 11, 17, 22, 27, 31, 36, 40, 46, 48, 59, 64, 65, 69, 78, 85, 87, 90, 99, 108, 112, 122, 128, 130, 139, 147, 150, 160, 166, 170, 181, 187, 191, 202, 209, 213, 217, 226, 232, 236, 243, 253, 264, 267, 272, 274, 279, 281, 283, 290, 292, 300, 302, 316, 325, 329, 334, 340, 345.
5 - Na qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito de CC, a Ré suportou, desde .../.../2009 a 13 de abril de 2017, o montante de €: 18.353,07 (dezoito mil trezentos e cinquenta e três euros e sete cêntimos) a título de despesas, correspondente às verbas n.ºs 4, 5, 6, 7, 8, 10, 12, 13, 14, 15, 16, 18, 19, 20, 21, 23, 24, 25, 26, 28, 29, 30, 32, 33, 34, 35, 37, 38, 39, 41, 42, 43, 44, 45, 47, 49, 50,51, 52, 53, 54, 55, 56, 57, 58, 60, 61, 62, 63, 66, 67, 68, 70, 71, 72, 73, 74, 75, 76, 77, 80, 81, 82, 83, 84, 86, 88, 89, 91, 92, 93, 94, 95, 96, 97, 98, 100, 101, 102, 103, 104, 105, 106, 107, 109, 110, 111, 113, 114, 115, 116, 117, 118, 119, 120, 121, 123, 124, 125, 126, 127, 129, 131, 132, 133, 134, 135, 136, 137, 138, 140, 141, 142, 143, 144, 145, 146, 148, 149, 151, 152, 153, 154, 155, 156, 157, 158, 159, 161, 162, 163, 164, 165, 167, 168, 169, 171, 172, 173, 174, 175, 176, 177, 178, 179, 180, 182, 183, 184, 185, 186, 188, 189, 190, 192, 193, 194 e 195.
6 – Em 02.02.2011, a Ré, na qualidade de cabeça-de-casal da herança aberta por óbito de CC, procedeu ao pagamento do montante de €: 500,00 a NN, correspondente à verba n.º 68, em virtude da avaliação realizada aos bens imóveis que compõem o acervo hereditário.
7 – Em 14.07.2011, a Ré, na qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito de CC, constituiu uma aplicação financeira denominada ‘...’ com o n.º ...61 no montante de €: 37.000,00 (trinta e sete mil euros), correspondente à verba n.º 79.
8 – A administração da herança aberta do óbito da Inventaria CC até abril de 2017, limitava-se ao recebimento das rendas dos prédios rústicos e às despesas correntes;
9 – Por escritura pública de compra e venda datada de 16 de março de 2010, perante a notária OO, os interessados nos presentes autos de inventário procederam à venda a PP do prédio rústico sito na ..., freguesia ..., ..., composto por terra com mato, com a área de 240m2, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...18 e omisso na Conservatória do Registo Predial ..., mais declarando que o prédio em causa integra a herança de CC.
10 – No ano de 2017, a Ré e FF intentaram ação de processo comum contra QQ, AA e BB, requerendo a intervenção ativa principal provocada de DD, e peticionando a demarcação física da linha de confinância entre os prédios rústicos com as matrizes nºs ...33 e ...31, ambos da União de freguesias ... (...) em ..., dando origem ao processo n.º 6059/17...., que correu termos no Juízo Local Cível ... – J....
11 – Para o efeito alegaram, no que importa aos presentes autos, que efetuaram levantamento topográfico no qual se apurou a área total de 24.574m2, cabendo a área de 12.176m2 ao prédio inscrito na matriz com o n.º ...33 (pertencente aos Autores) e a área de 11.796m2 para o prédio inscrito na matriz com o n.º ...31 (pertencente aos Réus).
12 – Contestando e reconvindo, os ali réus vieram alegar que o prédio inscrito na matriz com o n.º ...33 (pertencente aos Autores) tem apenas a área de 9.389m2, cuja declaração requereram, entre o mais.
13 – Por sentença datada de 18.05.2021, foi a ação e reconvenção julgadas parcialmente procedentes e decidido que a linha divisória entre os prédios identificado em 10) se estabelece através de uma linha reta a traçar no sentido nascente-poente, ficando a caber ao prédio daqueles autores a área de 10.441m2 e ao prédio dos réus a área de 13.043m2.
14 – No âmbito do processo judicial n.º 555/95...., que correu termos no Juízo Local Criminal ... – J..., por título de transmissão datado de 08 de janeiro de 2019 e exarado pela agente de execução RR, o quinhão hereditário que FF detinha na herança por óbito de CC foi adjudicado, em 26.10.2018, a EMP01..., Unipessoal, Lda.
15 – Pela Ap. ...53 de 2019/02/20, mostram-se registados a favor de EMP01..., Unipessoal, Lda., AA, EE, BB e DD os bens imóveis melhor descritos nas verbas n.º 25 a 37 da relação de bens junta a fls. 42 e ss dos autos principais, constando como causa para o registo a menção «Sucessão Hereditária».
16 – Nestes autos principais de inventário, a Ré requereu a avaliação dos bens, utilizando, para o efeito, dinheiro da herança.
17 - Na qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito de CC, a Ré suportou, desde .../.../2017 a 23 de agosto de 2022, o montante global de €: 16.042,47, correspondente às seguintes despesas:
- Verba n.º 199, datada de 11.05.2017, no montante de €: 250,00, com a denominação «Topógrafo – Levan. ...»;
- Verba n.º 211, datada de 28.11.2017, no montante de €: 612,00, com a denominação «Taxa de Justiça demarcação»;
- Verba n.º 212, datada de 28.11.2017, no montante de €: 408,00, com a denominação «Taxa de Justiça demarcação»;
- Verba n.º 214, datada de 30.11.2017, no montante de €: 3.382,50, com a denominação «Transferência pagamento honorários advogado»;
- Verba n.º 233, datada de 02.10.2018, no montante de €: 2.460,00, com a denominação «Transferência advogado – demarcação»;
- Verba n.º 241, datada de 09.12.2018, no montante de €: 195,00, com a denominação «SS»;
- Verba n.º 249, datada de 02.01.2019, no montante de €: 440,00, com a denominação «SS»;
- Verba n.º 257, datada de 21.02.2019, no montante de €: 60,00, com a denominação «EMP02... - ...»;
- Verba n.º 258, datada de 04.03.2019, no montante de €: 300,00, com a denominação «Limpeza Código Penal Porta – II»;
- Verba n.º 273, datada de 05.10.2019, no montante de €: 1.786,94, com a denominação «Dr. TT»;
- Verba n.º 278, datada de 16.10.2019, no montante de €: 0,83, com a denominação «custos transferência bancária»;
- Verba n.º 284, datada de 08.02.2020, no montante de €: 1.927,00, com a denominação «tribunal peritos (2.ª prestação)»;
- Verba n.º 335, datada de 23.03.2022, no montante de €: 4.220,20, com a denominação «LL Advogados».
18 - Na qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito de CC, a Ré suportou, desde .../.../2017 a 23 de agosto de 2022, o montante global de €: 3.827,47, correspondente às despesas descritas nas verbas n.ºs 197, 198, 200, 203, 204, 205, 206, 207, 208, 210, 215, 216, 218, 219, 220, 221, 222, 223, 224, 225, 227, 228, 229, 230, 231, 234, 235, 237, 239, 240, 251, 252, 255, 256, 260, 261, 262, 263, 265, 266, 269, 270, 271, 277, 280, 282, 285, 286, 289, 291, 295, 298, 299, 301, 303, 306, 307, 308, 309, 310, 311, 312, 313, 314, 315, 317, 318, 319, 320, 321, 322, 323, 324, 326, 327, 328, 330, 331, 332, 333, 336, 337, 338, 339, 342, 343, 344, 346, 348, 349, 350 e 351.
19 – À data de 30 de setembro de 2022, a aplicação financeira identificada em 7) apresentava o saldo de €: 19.523,66.
B) Dos Factos Não Provados:
Com interesse para a resolução da causa, não resultaram indiciariamente provados os seguintes factos:
a) Na qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito de CC, a Ré suportou, desde .../.../2017 a 23 de agosto de 2022, o montante global de €: 9.741,59, correspondente às seguintes despesas:
- verbas n.ºs 196, 201, 242, 244, 245, 246, 247, 248, 250, 268, 287, 293, 294, 296, 297, no valor de €: 36,00 cada e perfazendo o montante global de €: 540,00, todas denominadas como «Deslocação a ...»;
- em 20-11-2018, o montante de €: 475,00, correspondente à verba n.º 238, denominada de «Pagamento Estado Demarcação (topógrafo)»;
- em 01.02.2019, o montante de €: 2.000,00, correspondente à verba n.º 254, denominada de «solicitador por conta dos registos prediais»;
- em 07.03.2019, o montante de €: 1.927,50, correspondente à verba n.º 259, denominada de «acerto de contas registos»;
- em 08.10.2019, o montante de €: 750,00, correspondente à verba n.º 275, denominada de «demarcação Dr. LL»;
- em 08.10.2019, o montante de €: 1,56, correspondente à verba n.º 276, denominada de «custos de transferência»;
- em 26.05.2020, o montante de €: 37,50, correspondente à verba n.º 288, denominada de «limpeza Código Penal Porta – Sr. MM»;
- em 01.01.2021, o montante de €: 1.000,00, correspondente à verba n.º 304, denominada de «Advogado demarcação»;
- em 02.01.2021, o montante de €: 0,83, correspondente à verba n.º 305, denominada de «custos de transferência»;
- em 05-05-2022, o montante de €: 2.509,20, correspondente à verba n.º 341, denominada de «Avaliações - perito»;
- em 05.07.2022, o montante de €: 500,00, correspondente à verba n.º 347, denominada de «por conta execução sentença».”.
*
3.2. Apreciação do mérito do recurso
3.2.1. Da nulidade da sentença por se tratar de decisão surpresa

Sustenta a apelante que a sentença traduziu, para si, decisão-surpresa, ao considerar que não resultaram demonstradas parte das despesas impugnadas pelos autores, com fundamento na falta de prova documental e/ou testemunhal e não com base na falta de interesse para a herança, quando os recorridos, na contestação, reconheceram que as despesas constantes da prestação de contas foram efectuadas e apenas questionaram a responsabilidade da herança por tais gastos.
Com efeito, nesta sede, a recorrente sustenta que o tribunal a quo não podia decidir com base em fundamento não invocado pelos recorridos, sobretudo sem antes notificar a recorrente para exercer o contraditório e conceder a possibilidade de produzir a prova que entendesse relevante.
Neste contexto, o vício apontado à decisão recorrida emerge de actos ou omissões praticadas pelo juiz no decurso da audiência de julgamento, que configuram violação de deveres processuais e que influem na decisão final da causa.
Ou seja, tal vício assim circunscrito decorre da inobservância do contraditório no decurso da audiência de julgamento.
Ora, não se questiona que o princípio do contraditório se configura como um princípio estruturante do processo civil, nem que da sua efectiva aplicação deve resultar a igualdade de tratamento dos litigantes.
Com efeito, na exacta medida da sua relevância, vem sendo tradicionalmente consagrada na lei o dever de o tribunal não poder resolver o conflito de interesses posto à sua apreciação por uma das partes, sem que a outra seja chamada a formular a sua oposição, querendo, em termos tais, que a actividade desenvolvida por um dos litigantes possa ser sempre controlada pelo oponente, permitindo uma interacção, propícia à melhor realização da justiça, conforme se alcança do plasmado no art.º 3, nº 1, do NCPC.
A este entendimento, tido por mais restrito, do princípio contraditório, acolhido entre nós no Código de Processo Civil desde a sua formulação de 1939, veio sobrepor-se, através da reforma operada pelo DL 329-A/95 e DL 120/96 e com a introdução dos nºs 3 e 4 do art.º 3, do dito diploma, um sentido mais amplo.
O mencionado art.º 3º, nº 3 do NCPC consagra que “[o] juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.
Tal sentido amplo atribuído ao princípio do contraditório - que impõe que seja concedida às partes a possibilidade de, antes de ser proferida a decisão, se pronunciarem sobre questões, suscitadas pelo juiz em termos inovatórios, mesmo que de conhecimento oficioso e apenas de direito - já há muito vinha sendo afirmado pela jurisprudência constitucional, especialmente no processo penal, devido às garantias de defesa do arguido.
A referida concepção ampla do princípio do contraditório, também já há muito defendida por Lebre de Freitas (in, “Inconstitucionalidades do Código de Processo Civil”, em Revista da Ordem dos Advogados, 1992, I, p. 35 a 38) para o processo civil, traduz um direito à fiscalização recíproca ao longo do processo visto como uma “garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, em termos de, em plena igualdade, poderem influenciar todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação, direta ou indireta, com o objeto da causa e em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão” [cfr. ainda Lebre de Freitas; João Redinha; Rui Pinto, Código de Processo Civil (anotado), vol. I, p. 8].
Esta vertente do contraditório, que surgiu no nosso direito processual como uma inovação, revela grandes potencialidades práticas em termos de cooperação, de lealdade recíproca dos vários intervenientes processuais e de eficácia das decisões judiciais que passam, sempre, a ser previstas pelas partes.
E, na medida em que garante a igualdade das partes - pela possibilidade de pronúncia e resposta - leva a que, mais fácil e frequentemente, se obtenha a verdade material e que a solução do litígio seja a mais adequada e justa, logrando-se atingir num maior número de casos a realização dos verdadeiros objetivos finais de que o processo é um mero instrumento para alcançar.
Note-se que o art.º 4º do mesmo diploma legal também impõe que: “[o] tribunal deve assegurar, ao longo de todo o processo, um estatuto de igualdade substancial das partes, designadamente no exercício de faculdades, no uso de meios de defesa e na aplicação de cominações ou de sanções processuais”.
Por outro lado, e como refere Lebre de Freitas, cuja lição vimos seguindo, o princípio do contraditório materializa-se em todas as fases do processo - quer ao nível dos factos, quer ao da prova, quer ao do direito propriamente dito - tendo as partes, em todos estes níveis, direito a, de modo participante e activo, influenciar a decisão, tentando convencer, em cada momento e ao longo de todo o processo, o julgador do acerto da sua posição.
Uma decorrência do princípio do contraditório é precisamente a proibição da decisão-surpresa, isto é, a decisão baseada em fundamento não previamente considerado pelas partes, como dispõe o nº 3, do referido art.º 3º.
Decisão-surpresa é a solução dada a uma questão que não tenha sido configurada pela parte e sem que esta tivesse obrigação de prever que fosse assim proferida.
Deste modo, a proibição da decisão surpresa reporta-se principalmente às questões suscitadas oficiosamente pelo tribunal. O juiz que pretenda basear a sua decisão em questões não suscitadas pelas partes, mas oficiosamente levantadas por si, ex novo, seja através de conhecimento do mérito da causa, seja no plano meramente processual, deve, previamente, convidar ambas as partes a sobre elas tomarem posição, só estando dispensado de o fazer, conforme dispõe o nº 3, do art.º 3º, em casos de manifesta desnecessidade.
Com este princípio quis-se impedir que as partes pudessem ser surpreendidas, no despacho saneador ou na decisão final, com soluções de facto e de direito inesperadas, por não discutidas no processo, as quais, no regime anterior, eram permitidas.
Pretendeu-se, pois, proibir as decisões-surpresa embora tal não retire a liberdade e independência que o juiz tem, em termos absolutos, de subsumir, seleccionar, qualificar, interpretar e aplicar a norma jurídica que bem entender, aplicando o direito aos factos de modo totalmente autónomo.
Impõe, sim, ao julgador que, para além de dar a possibilidade às partes de alegarem de direito, sempre que surge uma questão de direito ainda não discutida ao longo do processo tem de, antes de decidir, facultar às partes a sua discussão.
A regra do contraditório passou, assim, a abarcar a própria decisão de uma questão de direito, decisiva para a sorte do pleito, inovatória, inesperada e não perspectivada pelas partes, tendo de ser dada a estas a possibilidade de, previamente, a discutirem sendo que tal «entendimento amplo da regra do contraditório, afirmado pelo nº 3, do art.º 3º, não limita obviamente a liberdade subsuntiva ou de qualificação jurídica dos factos pelo juiz – tarefa em que continua a não estar sujeito às alegações das partes relativas à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art.º 664º); trata-se apenas e tão somente, de, previamente ao exercício de tal “liberdade subsuntiva” do julgador, dever este facultar às partes a dedução das razões que considerem pertinentes, perante um possível enquadramento ou qualificação jurídica do pleito, ou uma eventual ocorrência de excepções dilatórias, com que elas não tinham razoavelmente podido contar» (Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, 2ª ed., vol. I, p. 32).
Não quis, pois, a lei excluir da decisão as subsunções que juridicamente são possíveis embora não tenham sido pedidas, antes estabeleceu que a concreta decisão a tomar tem de, previamente, ser prevista pelas partes, tendo, por isso, de lhes ser dada a priori possibilidade de se pronunciarem sobre o novo e possível enquadramento jurídico.
Assim, o princípio processual segundo o qual “o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação e aplicação do direito” tem, presentemente, de ser compatibilizado com a proibição das decisões surpresa tendo, desse modo, antes da prolação da decisão, de ser facultado às partes o exercício do contraditório sempre que a qualificação jurídica a dar não corresponda ao previsto pelas partes e plasmado no processo.
Nenhuma decisão deve, pois, ser tomada sem que previamente tenha sido dada efectiva possibilidade ao sujeito processual contra quem é dirigida de a discutir, de a contestar e de a valorar, possibilitando-se-lhe, assim, influir activamente na decisão.
A surpresa que se visa evitar não se prende com o conteúdo, com o sentido, da decisão em si mas com a circunstância de se decidir uma questão não prevista. Visa-se evitar a surpresa de se decidir uma questão com que se não estava a contar.
Tal solução legal confere ao juiz possibilidade de uma maior ponderação e contribui para uma maior eficácia e satisfação das partes ao verem, com o seu contributo, mais rapidamente resolvidos os seus interesses em litígio.
Assim, o exercício do contraditório é, sempre, justificável e desejável se puder gerar o efeito que com ele se pretende – permitir que a pronúncia das partes possa influenciar a decisão do Tribunal.
Como se diz no ac. da RC de 13.11.2012 (proferido no processo nº 572/11.4TBCND.C1 e acessível in www.dgsi.pt), na estruturação de um processo justo o tribunal deve prevenir e, na medida do possível, obviar a que os pleiteantes sejam surpreendidos com decisões para as quais as suas exposições, factuais e jurídicas, não foram tomadas em consideração.
Lopes do Rego (in Comentário ao Código de Processo Civil, I vol, 2ª edição, p. 32) salienta, contudo, que não se pode entender que toda e qualquer mutação do estrito enquadramento legal que as partes deram às suas pretensões passa necessariamente pelo preceituado no art.º 3, nº 3, mais mencionando: «…a negligência da parte interessada que v.g omite quaisquer “razões de direito”, alega frouxamente, situando de forma truncada e insuficiente o óbvio enquadramento da sua pretensão ou deixa escapar questões jurídicas clara e inquestionavelmente decorrentes dos autos, não merece naturalmente tutela, em termos de obrigar o tribunal… a sob pena de nulidade, realizar uma audição não compreendida no normal fluir da causa.».
Na verdade, e conforme lapidarmente se esclarece no ac. STJ de 19.01.2023, relatado por Nuno Ataíde das Neves (acessível in jurisprudência.pt):
«Na interpretação do conceito de “decisão-surpresa” o Supremo Tribunal de Justiça tem defendido que “o princípio do contraditório, na vertente proibitiva da decisão surpresa, não determina ao tribunal de recurso que, antes de decidir a questão proposta pelo recorrente e/ou recorrido, o alerte para a eventualidade de o fazer com base num quadro normativo distinto do por si invocado, desde que as normas concretamente aplicadas não exorbitem da esfera da alegação jurídica efetuada (Ac. STJ 11 de fevereiro de 2015, Proc. 877/12.7TVLSB.L1-A.S1).
Por outro lado, considera-se que o cumprimento do contraditório não significa “que o tribunal “discuta com as partes o que quer que seja” e que alivie as mesmas “de usarem a diligência devida para preverem as questões que vêm a ser, ou podem vir a ser, importantes para a decisão” (Ac. STJ 09 novembro de 2017, Proc. 26399/09.5T2SNT.L1.S1, Ac STJ 17 de junho de 2014, Proc. 233/2000.C2.S1).
São também paradigmáticas as palavras do Acórdão do STJ, de 27/09/2011 (Proc. Nº 2005/03.0TVLSB.L1.S1) quando afirma que “O juiz tem o dever de participar na decisão do litígio, participando na indagação do direito – iura novit curia –, sem que esteja peado ou confinado à alegação de direito feita pelas partes. Porém, a indagação do direito sofre constrangimentos endoprocessuais que atinam com a configuração factológica que as partes pretendam conferir ao processo. Há decisão surpresa se o juiz de forma absolutamente inopinada e apartado de qualquer aportamento factual ou jurídico envereda por uma solução que os sujeitos processuais não quiseram submeter ao seu juízo, ainda que possa ser a solução que mais se adeque a uma correcta e atinada decisão do litígio”.»
Feitas estas considerações, e reportando-nos ao caso em apreço, constituirá a sentença recorrida uma “decisão surpresa”, por aí se ter julgado não provadas algumas das despesas com fundamento na inexistência/insuficiência de prova testemunhal e/ou documental sobre a realização das mesmas, apesar dos recorridos não terem impugnado a sua realização, mas tão só a sua necessidade ou relevância?
Tendo presente que estamos perante uma acção de prestação de contas que obedece ao formalismo especial previsto no art.º 941º e seguintes do NCPC, desde já se responde negativamente.
O fim da acção de prestação de contas está indicado no art.º 941º do NCPC, no qual se diz que ele consiste em apurar e aprovar receitas obtidas e as despesas realizadas por quem administra bens alheios e na eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se.
Acresce que no caso de apresentação de contas pelo réu – como o presente -, o nº 2 do art.º 945º do NCPC que tem por epígrafe “Apreciação das contas apresentadas” dispõe que, na contestação, pode o autor impugnar as verbas de despesa apresentadas pelo réu.
Não dizendo a lei que formas é que pode revestir a impugnação, é de admitir que ela tanto possa consistir na negação da realização da despesa como na alegação de que a despesa efectivamente realizada é alheia à administração dos bens ou, não sendo totalmente alheia, não cabe nos poderes de administração daquele que presta as contas” (cfr. o recentíssimo ac. do STJ de 7.12.2023, relatado por Emídio Santos e acessível in www.dgsi.pt).
Contudo, e com especial interesse para a resolução da questão que ora nos ocupa, importa sobretudo não olvidar o preceituado nos nºs 3 a 5, do referido art.º 945º.

Com efeito, pode aí ler-se o seguinte:
“3. Não sendo as contas contestadas, é notificado o réu para oferecer as provas que entender e, produzidas estas, o juiz decide.
4. Sendo contestadas algumas verbas, o oferecimento e a produção das provas relativas às verbas não contestadas têm lugar juntamente com os respeitantes às verbas contestadas.
5. O juiz ordena a realização de todas as diligências indispensáveis, decidindo segundo o seu prudente arbítrio e as regras da experiência, podendo considerar justificadas sem documentos as verbas de receita ou de despesa em que não é costume exigi-los.”.
Como é bom de ver, do regime jurídico ora transcrito, quer na hipótese de o autor apenas impugnar parte das despesas, quer mesmo na hipótese de nem sequer as contestar, resulta que o tribunal não está dispensado de proceder a todas as diligências que julgue indispensáveis para o apuramento e aprovação das contas e mais concretamente das despesas apresentadas.
Com efeito, a lei não associa qualquer efeito cominatório à falta de contestação das contas apresentadas pelo réu, devendo as contas a ser julgadas pelo juiz segundo o seu prudente arbítrio do julgador e o que demais se refere no art.º 945º, nº 5 do NCPC.
Ou seja, segundo o referido normativo, o juiz, usando de prudente arbítrio, deve utilizar dados da experiência comum, permitindo-se-lhe valorar a prova trazida para os autos em termos mais flexíveis do que numa mera análise estrita da prova, podendo considerar justificadas sem documentos verbas de receita ou de despesa em que não é costume exigi-los, sendo aqui admissível a formulação de um juízo de probabilidade favorável (ocorrendo pois aqui um desvio na regra da apreciação estrita da prova); mas deve naturalmente tomar em conta que o “ónus da prova” da exactidão das verbas das receitas e das despesas incumbe à pessoa que presta as contas (ou seja, ao réu) – cfr., sobre este tema, Luís Filipe Pires de Sousa, in Processos Especiais de Divisão de Coisa Comum e de Prestação de Contas, 3ª ed., p. 195 e diversa jurisprudência ali citada, bem como o ac. desta Relação de Guimarães de 24.04.2019, relatado por José Amaral e acessível in jurisprudência.pt.
De tal maneira – e como corolário de tudo isto - pode dizer-se que “mesmo que o autor não conteste as contas apresentadas pelo réu ainda assim estas carecem de prova” (cfr. Luís Filipe Pires de Sousa, ob. cit., p. 197 e o ac. da RP de 9.10.2014, relatado por Aristides Almeida, igualmente ali invocado).
Decorre do explanado que, ao contrário do que parece entender a recorrente, o tribunal recorrido, não só podia, como lhe estava legalmente imposto ajuizar da exactidão de todas as despesas que foram apresentadas pela ré, independentemente de terem sido ou não impugnadas e, por maioria de razão, acrescentamos nós, independentemente do motivo pelo qual foram impugnadas.
Acresce que os temas de prova elaborados nos autos são o espelho disso mesmo – cfr. nomeadamente, os temas de prova enunciados sob os pontos 1 e 4 e que se acham transcritos acima.
Na verdade, da redacção conferida aos aludidos temas de prova resulta cristalino que o tribunal recorrido entendeu estar carecida de prova não só a factualidade atinente à necessidade da concretização das despesas impugnadas, mas também os factos relativos à realização propriamente dita de tais gastos pela ré, por conta e no interesse da herança.
Como também é patente ter considerado o tribunal a quo, naquele despacho, necessitada de prova a efectivação das demais despesas tidas pela ré com a administração da herança da inventariada CC e que não mereceram qualquer impugnação.   
E como tal, não tem sustentação a afirmação da recorrente quando diz ter sido “surpreendida” com a decisão do tribunal quanto às despesas julgadas não provadas.
Para além do enquadramento fáctico e jurídico realizado pelo tribunal recorrido ter cabimento no supra descrito regime jurídico, a apelante teve oportunidade de, perante os temas de prova assim formulados, tomar a posição que entendesse quanto à factualidade ali considerada controvertida e, portanto, necessitada de prova (cfr. art.º 596º, nº 2, do NCPC, ex vi art.º 945º, do mesmo compêndio legal).
Além disso, depois de ter sido notificada do despacho que elencou os temas de prova, não podia a recorrente desconhecer que todas as despesas por si apresentadas careciam de ser demonstradas e que podia ainda requerer/oferecer os meios de prova que entendesse necessários a tal demonstração, nos termos previstos no art.º 598º, do NCPC, ex vi art.º 945º, nº 1, do mesmo diploma legal.
Evidencia-se, deste modo, e de acordo com o exposto, a desnecessidade da audição das partes, mormente da ré, antes de ser proferida a decisão sob recurso, pois aquela podia e devia contar com o enquadramento que veio a ser efectuado pelo tribunal a quo, vistos os normativos vigentes e a aplicar.
Questão diversa é saber se a prova efectivamente produzida nos autos devia ou não ter sido considerado suficiente para julgar boas as despesas dadas como não provadas, ou seja, se se verifica erro de julgamento na decisão da matéria de facto, questão esta que foi igualmente invocada pela recorrente e que analisaremos infra.
Assim, temos de concluir que, no caso que nos ocupa, o princípio do contraditório foi plenamente cumprido, não ocorrendo por via disso qualquer causa de nulidade da decisão recorrida, pelo que improcede o recurso neste particular.
*
3.2.2. Do erro no julgamento quanto à decisão da matéria de facto

Como decorre do acima exposto, a recorrente invocou também o erro no julgamento quanto à decisão da matéria de facto, considerando que o tribunal deveria ter dado como provadas todas as despesas alegadamente efectuadas pela cabeça de casal e que todas elas foram realizadas, por conta e no interesse da herança aberta por óbito de CC, louvando-se na sua divergência sobre a apreciação da prova testemunhal e documental.

Porém, para que o conhecimento da matéria de facto ocorra, deve previamente o recorrente, que impugne a decisão relativa à matéria de facto, cumprir o (triplo) ónus de impugnação a seu cargo, previsto no art.º 640º do NCPC, o qual dispõe que:

“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do nº 2 do artigo 636º.”.
Aplicando tais critérios ao caso, constata-se que a recorrente indicou quais os factos que pretende que sejam decididos de modo diverso, bem como a redacção que deve ser dada quanto à factualidade que entende estar mal julgada, como ainda o(s) meio(s) probatório(s) que na sua óptica o impõe(m), incluindo, no que se refere à prova gravada em que faz assentar a sua discordância, a indicação dos elementos que permitem a sua identificação e localização, pelo que podemos concluir que cumpriu suficientemente o triplo ónus de impugnação estabelecido no citado art.º 640º.
Isto posto, urge então verificar se, na parte colocada em crise, a análise crítica da prova corresponde à realidade dos factos ou se a matéria em questão merece, e em que medida, a alteração pretendida pela apelante.
Com efeito, dispõe o art.º 662º, nº 1, do NCPC que “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”.
Para tanto, importa ter presente que conforme decorre do disposto no art.º 607º, nº 5 do NCPC a prova é apreciada livremente. Prevê expressamente este preceito que o “juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”.
Todavia, importa também nesta sede sublinhar que nos encontramos no âmbito de uma acção especial para prestação de contas, devendo, portanto, a impugnação das verbas da despesa ou as da receita ser julgada, não tanto segundo os critérios gerais em matéria de direito probatório, mas sobretudo segundo o “prudente arbítrio” e as “regras da experiência”, nos termos previstos no art.º 945º, nº 5, do NCPC, como já aludimos supra.
Sobre as “regras da experiência”, diz-se no ac. do STJ, de 06.07.2011 (relatado por Hélder Roque e acessível in www.dgsi.pt):
III - As regras da experiência não são meios de prova, mas antes raciocínios, juízos hipotéticos do conteúdo genérico, assentes na experiência comum, independentes dos casos individuais em que se alicerçam, com validade, muitas vezes, para além do caso a que respeitem, adquiridas, em parte, mediante observação do mundo exterior e da conduta humana, e, noutra parte, mediante investigação ou exercício científico de uma profissão ou indústria, permitindo fundar as presunções naturais, mas sem abdicar da explicitação de um processo cognitivo, lógico, sem espaços ocos e vazios, conduzindo à extracção de facto desconhecido do facto conhecido, porque conformes à realidade reiterada, de verificação muito frequente e, por isso, verosímil.
IV - O uso, pelas instâncias, em processo civil, de regras de experiência comum é um critério de julgamento, aplicável na resolução de questões de facto, não na interpretação e aplicação de normas legais, que fortalece o princípio da livre apreciação da prova, como meio de descoberta da verdade, apenas subordinado à razão e à lógica, que, consequentemente, não pode ser sindicado pelo STJ, a menos que, excepcionalmente, através da necessária objectivação e motivação, se alcance, inequivocamente, que foi usado para além do que é consentido pelas regras da experiência comum de vida, fundando, assim, uma conclusão inaceitável.”.
Por outro lado, e quanto ao “prudente arbítrio”, refere Lopes do Rego: «o “prudente arbítrio” do julgador tem de ser entendido como pressupondo uma apreciação jurisdicional necessariamente “não arbitrária”, efectuada segundo critérios de ponderação e razoabilidade, que oriente os critérios de conveniência e oportunidade que estão na sua base sempre em função da realização dos fins do processo.» (in Comentários ao Código de Processo Civil, vol. I, 2ª ed., p. 168).
Tendo presentes estes considerandos, passaremos então a apreciar os motivos da discordância da recorrente quanto à decisão da matéria de facto.
- Quanto às verbas denominadas de “Deslocação a ...”:
Defende a recorrente que, no que concerne às verbas denominadas de “Deslocação a ...” – correspondentes às verbas nºs 196, 201, 242, 244, 245, 246, 247, 248, 250, 268, 287, 293, 294, 296, 297, no valor de € 36,00 cada uma e perfazendo o montante global de € 540,00, deverão ser dadas como provadas e julgadas justificadas com base no depoimento da testemunha HH, marido da recorrente e autor das deslocações, o qual foi corroborado pelo depoimento das testemunhas II e JJ.
Mais argumenta que na sentença se deu como demonstrada a realização efectiva de limpezas, avaliações, levantamento topográficos no terreno da herança situado em ..., ... e que os recorridos nunca colocarem em causa que as deslocações ocorreram, mas apenas a utilidade ou necessidade das mesmas para a herança, o que a sentença rejeitou.
Ora, começando por este último argumento, e para além do que já acima afirmamos quanto à necessidade da ré produzir prova sobre a exactidão de todas as verbas de despesa, importa dizer que não é rigorosa a afirmação de que o tribunal recorrido reconheceu a necessidade de realização das aludidas despesas de deslocação.
Com efeito, e muito embora o tribunal recorrido tenha considerado justificada a interposição da acção de demarcação (sendo que tal nem sequer resulta explícito na matéria de facto dada como provada, mas apenas da respetiva motivação e da fundamentação de direito da sentença), quanto às despesas ora em análise referiu (ainda que laconicamente, é certo) “este Tribunal não conseguiu apurar (…) da efetiva necessidade das mesmas para a administração da herança agora em apreço”.
E a verdade é que, revisitada a prova testemunhal indicada pela recorrente, bem como a prova documental carreada para os autos, o tribunal ad quem também não logrou concluir de forma diversa do da primeira instância.
A testemunha HH, cujo depoimento não podemos deixar de se considerar notoriamente interessado (o qual declaradamente assumiu a realização de muitas das tarefas que cabiam à cabeça de casal, apesar de modestamente se ter auto-intitulado de “moço de recados” daquela) procurou justificar as deslocações ao prédio sito em ..., ... com a necessidade de acompanhar os trabalhos do topografo, das pessoas que encarregou da limpeza do terreno, das perícias, etc. Todavia, nem do seu depoimento, nem dos demais depoimentos indicados pela recorrente no recurso se consegue extrair com clareza e segurança qualquer razão suficientemente válida para as inúmeras deslocações que constam registadas na conta-corrente da prestação de contas junta aos autos e muito menos se encontra uma justificação razoável para o valor global alegadamente despendido com cada uma das ditas deslocações, valor esse que o aludido HH acabou por admitir ter-lhe sido indicado pela advogada.
Aliás, não será despiciendo desde logo fazer notar que do depoimento da aludida testemunha resulta ter ocorrido muitas outras situações relacionadas com outros bens da herança que careceram da sua intervenção em “representação” ou auxílio da cabeça de casal, sem que tenha tido necessidade de registar despesas de deslocação associadas a tais situações, redundando óbvio que só passou a ocorrer tal registo a partir do momento em que a cabeça de casal e outro dos herdeiros intentaram a acção de demarcação (entre um prédio da herança aberta por óbito de CC e um prédio que não pertence à herança, mas apenas a dois herdeiros da mesma) e se agudizou o conflito entre os herdeiros. 
Encontramos um exemplo do que acabamos de dizer no âmbito das denominadas deslocações para acompanhamento de levantamento topográfico. Com efeito, da análise da conta-corrente, verificamos que se encontra aí registada uma despesa ocorrida em Dezembro de 2016 referente ao pagamento pela realização de serviços prestado pela testemunha JJ (verba nº 189 - realização de levantamento topográfico noutros prédios da herança situados em ...), que inclusive a testemunha HH aludiu no decurso do seu depoimento - mas não se vislumbra ter sido registada qualquer despesa de deslocação nessa ocasião.
Também quanto às deslocações para acompanhamento das limpezas (alegadamente efectuadas nos dias 13, 26, 27, 28, 29, 30.12.2018 – sendo este um domingo - e 2.01.2019), a prova produzida revela incongruências e fragilidades.
De facto e ainda que a testemunha HH tenha sido muito veemente quanto à existência e necessidade das mesmas, tendo ainda referido que a limpeza terá sido iniciada pela testemunha II e depois continuada pela testemunha SS por se ter revelado ser necessário o recurso a uma máquina e que tenha sido confirmado pelas aludidas testemunhas a realização da limpeza e que o aludido HH se deslocou algumas vezes ao prédio por ocasião da mesma; a verdade é que, analisados os documentos referentes aos serviços prestados por aquelas constata-se que os serviços efectuados pela testemunha SS terão ocorrido apenas nos dias 29.12.2018, durante 6,5 horas e no dia 2.01 durante 5,5 horas (cfr. documentos ...41 e ...49) e o pagamento dos serviços da testemunha II só foi efectuado em 4.03.2019 - ou seja, cerca de dois meses após supostamente a dita testemunha ter iniciado a dita limpeza.
Por fim e no que concerne às deslocações alegadamente efectuadas aquando da realização das perícias, não foi adiantada qualquer justificação para a aludida testemunha HH ter tido necessidade de se deslocar ao terreno por mais seis vezes, apenas com o aludido propósito.
Do que deixamos dito, não podemos deixar de concordar com o tribunal recorrido quando afirma que não foi produzida prova minimamente reveladora de quantas vezes a aludida testemunha se deslocou ao terreno, dos custos que tais deslocações importaram para a herança e muito menos que a situação implicasse ou impusesse o gasto do valor apreciável de € 540,00 apenas em deslocações, as quais nem sequer foram realizadas pela cabeça de casal, mas pelo marido desta a quem solicitou colaboração.
Ou seja e concluindo, não foi produzida qualquer prova que permitisse justificar a aprovação de tais despesas de deslocação como tendo sido realizadas em benefício da herança, ainda que ao abrigo do disposto no art.º 945º, nº 5, parte final do NCPC.
- Quanto às verbas nºs 238, 254, 259, 275, 276, 304, 305 e 347:
A recorrente veio ainda insurgir-se quanto à decisão da matéria de facto no que respeita aos seguintes pontos que foram dados não provados:
“- em 20-11-2018, o montante de €: 475,00, correspondente à verba n.º 238, denominada de «Pagamento Estado Demarcação (topógrafo)»;
- em 01.02.2019, o montante de €: 2.000,00, correspondente à verba n.º 254, denominada de «solicitador por conta dos registos prediais»;
- em 07.03.2019, o montante de €: 1.927,50, correspondente à verba n.º 259, denominada de «acerto de contas registos»;
- em 08.10.2019, o montante de €: 750,00, correspondente à verba n.º 275, denominada de «demarcação Dr. LL»;
- em 08.10.2019, o montante de €: 1,56, correspondente à verba n.º 276, denominada de «custos de transferência»;
- em 01.01.2021, o montante de €: 1.000,00, correspondente à verba n.º 304, denominada de «Advogado demarcação»;
- em 02.01.2021, o montante de €: 0,83, correspondente à verba n.º 305, denominada de «custos de transferência»;
- em 05.07.2022, o montante de €: 500,00, correspondente à verba n.º 347, denominada de «por conta execução sentença».”.
Relativamente a tais despesas, a recorrente argumenta novamente existir nos autos prova documental e testemunhal suficiente para permitir ao tribunal recorrido ter dado como provadas tais despesas, quanto mais não seja ao abrigo do disposto no art.º 945º, nº 5, do NCPC.
Mas, novamente sem razão, adianta-se.
Na motivação, o tribunal recorrido quanto a tais despesas considerou e bem não ser suficiente para a demonstração das mesmas a junção de meros comprovativos de transferências - cujos descritivos, acrescentamos nós, são da exclusiva responsabilidade da cabeça de casal que elaborou ou ordenou a elaboração da conta-corrente -, mas que deviam estar suportadas através de outro tipo de documentos, como sejam, facturas, notas de honorários, guias do tribunal, etc.
E, com efeito, não se pode dizer que relativamente a tais encargos não é costume exigir-se documentos, não podendo basear-se o tribunal num mero juízo de probabilidade para concluir pela demonstração de tal realidade, com base no disposto na parte final do nº 5, do art.º 945º, do NCPC. Vide, o ac. desta Relação de Guimarães de 24.04.2019, já acima citado.
De todo o modo, não é minimamente consentâneo com as regras da normalidade e da experiência comum a falta de oferecimento de prova documental onde necessariamente ela devia existir. Muito menos quando estamos perante uma situação de conflito agudo entre a cabeça de casal e alguns dos herdeiros.
Não é de todo consentâneo com as regras da normalidade e experiência comum que a ré não tenha tido a preocupação de guardar os documentos comprovativos de todas as despesas relacionadas com o processo de demarcação que, evidentemente, um dia os herdeiros em litígio poderiam querer consultar, nem tenha tido a preocupação de juntar ao processo informações que muito facilmente obteria nas instituições próprias ou junto do respectivo advogado ou solicitador a quem terá liquidado os valores em causa.
E era à parte, não ao tribunal ou a terceiros, que cabia procurar fazer essa prova: o tribunal interviria se e quando a parte alegasse fundadamente ter encontrado obstáculos na obtenção, não oficiosamente.
E, como vimos, não pode também aqui a ré refugiar-se no facto da parte contrária apenas ter posto em causa a utilidade da realização de tais despesas e que o tribunal devia concluir pela realização das mesmas porquanto está comprovado nos autos que foi necessária a intervenção de topografo e de advogados na acção de demarcação e que os registos foram efectuados.
Ora, mesmo que se admitisse que algumas das despesas foram pagas pela ré no contexto em causa, poderá não ter pago outras, pelo que sempre se ficaria sem qualquer base para, mesmo com recurso à prudência e à experiência comum, arbitrar que valores foram efectivamente pagos, a menos que se ficcionasse um qualquer valor ou acreditasse piamente na palavra da ré para aceitar os valores parcelares que a mesma distingue e afirma ter pago.
Depois não se pode deixar de estranhar que a ré não tenha exibido nos autos qualquer documento emitido pelo tribunal, advogado ou solicitador a quem terão sido endereçados os pagamentos ora causa, quando relativamente a muitos outras despesas (e de valores muito mais insignificantes) existem documentos juntos. Saliente-se, como fez o tribunal recorrido, que a ré juntou aos autos comprovativos de todas as outras despesas de tribunal, bem como várias notas de honorários de advogados, para além de centenas de documentos referentes a despesas com outros prestadores de serviços.
Assim, não se percebe, à míngua de qualquer justificação plausível, porque não existem documentos suficientemente justificativos das despesas em causa, caso tivessem sido feitos ou estivessem efectivamente relacionados com a herança.
Como eloquentemente se diz no ac. da RC de 12.02.2019, relatado por Barateiro Martins, apud Luís Filipe Pires de Sousa (ob cit, p. 193): “Quem gere bens alheios (ou parcialmente alheios, deve ser escrupuloso e rigoroso na sua administração, não podendo deixar de ter elementos e informações para apresentar quando lhe são pedidas contas, pelo que qualquer dúvida, situada no espectro dos elementos e informações que é suposto dever ter, tem de ser decidida/julgada contra si.» (o sublinhado é nosso).
Ou como se salienta no recente ac. da RP de 27.11.2023, relatado por Fernanda Almeida (acessível in www.dgsi.pt): “O juiz não deve prescindir de documentos de suporte de contas (das receitas ou das despesas) quando o normal é que eles existam e nenhuma justificação válida é apresentada para a sua falta ou não apresentação.”. 
Não podemos deixar de acrescentar ainda que, no que respeita às despesas com registos dos imóveis da herança a favor dos herdeiros antes desses bens se encontrarem partilhados, nunca poderia ser dado como provado que as mesmas foram efectuadas pela recorrente, na qualidade de cabeça de casal, e no interesse e em benefício da herança.
Como enfatizou a testemunha HH, tal registo visou facilitar a partilha dos bens entre os herdeiros e não salvaguardar a titularidade de tais bens da herança relativamente a terceiros.
Por outro lado, e apesar de esta se tratar de uma prática comum, a verdade é que antes de ser realizada a partilha, os herdeiros não são titulares de quaisquer bens em concreto, mas apenas de um quinhão hereditário, sendo que o direito do herdeiro a herança indivisa nem sequer está sujeito a registo. Cfr., a este propósito, o ac. RL de 15.09.2020, relatado por Luís Espirito Santo, acessível in www.dgsi.pt. 
Não se acolhe, pois, a impugnação quanto à decisão da matéria de facto nesta parte.
- Quanto à verba nº 288 “limpeza do Campo ...”:
No que a este segmento do recurso concerne, a recorrente procurou apenas colocar em evidência o depoimento da testemunha HH, nada dizendo ou contrapondo à valoração que o tribunal fez da prova realizada quanto a tal despesa.
A este propósito, pode ler-se na motivação da decisão de facto: “No que concerne à verba n.º 288, de 26.05.2020, no montante de €: 37,50, denominada de «limpeza CP Porta – Sr. MM», teve-se em conta o testemunho de MM, que confrontado com o documento junto a fls. 173 (através do qual a Requerida pretendia justificar a despesa), de modo espontâneo afirmou que a assinatura ali aposta não corresponde à sua, mais acrescentado que não cobrou qualquer valor pelos serviços que executou no terreno da herança. No mais, nenhuma outra prova se fez sobre a verba em causa, pelo que se teve a mesma como não justificada.”.
Como se constata o depoimento da testemunha MM – que ouvimos na íntegra e se nos afigurou desinteressado e sério - veio infirmar totalmente a prova apresentada pela ré, quer a documental, quer a testemunhal (mormente, o depoimento da testemunha HH que disse ter procedido à entrega de tal verba ao aludido MM), não se vislumbrando, portanto, que haja razão fundada para a pretendida alteração da decisão da matéria de facto neste ponto.
- Quanto à verba 341 “avaliações –perito
No que respeita a esta verba, defende essencialmente a recorrente que certamente, por lapso, o tribunal recorrido não teve em consideração que a avaliação em causa foi requerida pela ré, no âmbito do inventário apenso, na qualidade de cabeça de casal e em benefício dos herdeiros.
Ora, salvo o devido respeito, afigura-se-nos de linear clareza que quem labora em erro é a recorrente. A avaliação dos imóveis no âmbito do inventário para partilha dos bens da herança, quando não é feito por acordo de todos os herdeiros, para além de não consubstanciar qualquer acto de administração da herança, nem sequer visa salvaguardar qualquer interesse da herança, mas providenciar pelos interesses individuais do herdeiro que a peticiona no confronto com os demais (quer seja ou não cabeça de casal).
Como muito bem se diz na decisão proferida pelo tribunal a quo, não podem deixar de se considerar excluídas da administração da herança todas as despesas que tenham sido efectuadas por força do conflito entre os herdeiros relativamente à herança, mormente no âmbito do processo de inventário.   
Veja-se a este propósito o ac. do STJ de 24.05.2007, relatado por Bettencourt de Faria, disponível in www.dgsi.pt e citado na sentença recorrida. 
E não se diga que o que deixamos ora dito contradiz o reconhecimento da utilidade das despesas realizadas no âmbito da acção de demarcação, na qual também figurava como autora a aqui ré e réus os aqui autores. É que os autores desta acção não foram demandados na qualidade de herdeiros na propalada acção de demarcação, mas tão só na qualidade de proprietários do prédio confinante com o pertencente à herança.
Pelo exposto, necessário é concluir, pois, pela improcedência do recurso também neste ponto.
*
Mantendo-se inalterado o quadro factual julgado provado e não provado pelo tribunal a quo, a decisão jurídica da causa também terá que se manter, tanto mais que a alteração da decisão jurídica no sentido pretendido pela recorrente, mesmo na sua perspectiva, pressupunha a alteração da decisão de facto, pelo que, não tendo procedido a sua pretensão de ver alterada a matéria de facto fixada pelo tribunal a quo, terá de se manter a decisão por este proferida.
As custas do presente recurso são, pois, da responsabilidade da recorrente, atento o total decaimento (art.º 527º, nºs 1 e 2 do NCPC).
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IV. Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação e, em consequência, mantém-se a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.
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Guimarães, 8.02.2024
Texto elaborado em computador e integralmente revisto pela signatária

Juíza Desembargadora Relatora: Dra. Carla Maria da Silva Sousa Oliveira
1ª Adjunta: Juíza Desembargadora: Dra. Alexandra Rolim Mendes
2º Adjunto: Juiz Desembargador: Dr. Afonso Cabral de Andrade