Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
5468/19.9T8VNF-AV.G1
Relator: MARIA JOÃO MATOS
Descritores: RECURSO
DESPACHO DE MERO EXPEDIENTE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/01/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECLAMAÇÃO
Decisão: RECLAMAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I. Um despacho deverá ser considerado de «mero expediente» quando, pese embora proferido pelo juiz, não decide qualquer questão de forma ou de fundo, e se destina principalmente a regular o andamento do processo: tem uma finalidade - prover ao andamento regular do processo - e um pressuposto - sem interferir no conflito de interesses entre as partes.

II. Sendo o processo um encadeamento de actos com vista à consecução de um determinado objectivo - a obtenção de uma decisão judicial -, na determinação da eventual natureza de mero expediente de um concreto despacho, este deverá ser analisado, não artificialmente de forma isolada, mas necessariamente na sequência dos actos processuais que o antecederam e da qual melhor resulta a intencional actividade processual por si determinada.

III. Tendo o concreto conflito de interesses em causa (pertinente ao direito de acesso a, e de utilização de, fracções autónomas que compõem o estabelecimento de insolvente) sido antes, e definitivamente, decidido nos autos por juiz, o seu posterior despacho que provê apenas à execução do por si previamente ordenado (sem modificar ou inviabilizar o juízo de mérito da questão antes submetida à sua apreciação) é de qualificar como de «mero expediente»; e, por natureza, irrecorrível.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
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ACÓRDÃO

I - RELATÓRIO
1.1. Despacho reclamado
1.1.1. EMP01..., S.A., com sede no Parque Industrial ..., 2ª Fase, freguesia ..., ... e ..., ... ..., foi declarada insolvente por sentença de 28 de Janeiro de 2020, transitada em julgado em 05 de Junho de 2020 (proferida nos autos n.º 5468/19...., que correm termos no Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo de Comércio ..., Juiz ...).

1.1.2. Em 17 de Dezembro de 2020, na sede da Insolvente (EMP01..., S.A.), foram apreendidos para a massa insolvente diversos bens móveis, (nomeadamente, mobília, máquinas e equipamentos de escritório, documentação e arquivo), considerando-se que as fracções autónomas designadas pelas letras ..., ..., ..., ... e ..., do prédio em regime de propriedade horizontal, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...62.º (...) e na matriz ...80 integravam o seu estabelecimento (por nelas ter a Insolvente desenvolvido a sua  actividade empresarial).

1.1.3. Grande parte dos bens apreendidos à Insolvente (EMP01..., S.A.) foram depois objecto de diversas acções de separação e restituição de bens (que correm por apenso aos autos principais de insolvência).

1.1.4. As fracções autónomas designadas pelas letras ..., ..., ..., ... e ... não foram apreendidas para a massa insolvente, estando, porém, a posse sobre elas a ser discutida no Processo n.º 622/19...., do Tribunal Judicial da Comarca ..., encontrando-se os autos em fase de julgamento.

1.1.5. Em 14 de Junho de 2021 o Administrador da Insolvência, tendo encontrado obstáculos à mudança de fechaduras das fracções autónomas designadas pelas letras ..., ..., ..., ... e ... (onde se encontravam bens móveis apreendidos a favor da massa insolvente) apresentou um requerimento ao Tribunal a quo, lendo-se nomeadamente no mesmo:
«(…)
28. É imperioso que se proceda ao encerramento efectivo do estabelecimento da sociedade insolvente, só lá permitindo entrar quem tem efectivamente de o fazer.
29. Para tal é necessário trocar as fechaduras das portas de forma a garantir que não há acessos não autorizados ao interior, até porque nesse interior estão bens apreendidos para a massa insolvente.
30. As fracções que fazem parte do estabelecimento da sociedade insolvente devem estar à guarda do Administrador da Insolvência, não só por causa da decisão de encerramento do estabelecimento e liquidação, mas também porque o poder de disposição e de administração da massa insolvente é do Administrador da Insolvência, pois cessou, há muito, a administração pelo devedor.
31. O facto de alguém se introduzir e/ou permanecer no interior das fracções sem que para tal esteja devidamente autorizado constitui, na minha modesta opinião, um ilícito criminal, devendo a autoridade policial diligenciar pela retirada dessas pessoas, mesmo que para isso tenha de actuar de forma mais musculada.
Face a todo o exposto, e não obstante o douto despacho do passado dia 20 de Maio ser muito claro quanto ao acesso ao interior das fracções que integram o estabelecimento da sociedade insolvente, venho requerer a V. Exa. que determine que o acesso e a permanência de quaisquer pessoas no interior das fracções que integram o estabelecimento da sociedade insolvente, apenas pode ser feito com a expressa autorização do Administrador da Insolvência.
Esclareço ainda V. Exa. de que este despacho tem por finalidade, com o auxílio da GNR (ou outra força policial/pública), repetir a diligência de mudança de fechaduras das portas das referidas fracções, retirando do interior destas quaisquer pessoas que lá possam estar sem a devida autorização.
(…)»

1.1.6. Em 15 de Junho de 2021 foi proferido despacho, apreciando e deferindo o requerimento do Administrador da Insolvência, lendo-se nomeadamente no mesmo:
«(…)
Fls 4193 e ss e requerimento do sr administrador de insolvência de 14-6-2021:
A posse das frações não está em causa quando se impõe à GNR que faça respeitar a obrigação de qualquer pessoa - mesmo que administrador da insolvente - de não entrar nas instalações daquela (frações ..., ..., ..., ... e ... na CRP ... sob o nº ...62 da freguesia ...) nem aí permanecer sem autorização do administrador de insolvência, que foram encerradas por ordem judicial de 13 de novembro do ano passado e contêm bens apreendidos nestes autos.
A desobediência a esta ordem constitui crime que não pode ser tolerado pela ordem jurídica e que as forças de segurança têm de fazer respeitar, fazendo uso da força, se necessário.
Assim sendo, a tentativa ou entrada nas instalações da insolvente encerradas pelo administrador de insolvência, a retirada de bens apreendidos ou a permanência física nas mesmas não pode ser tolerada pela força pública já que põe em causa os fins do processo de insolvência.
Notifique o Comando Territorial de ... da GNR do presente despacho.
(…)»

1.1.7. Em 15 de Junho de 2023 a credora EMP02..., S.A. veio informar os autos que «todos os bens que se encontravam no interior das frações autónomas designadas pelas letras ..., ..., ... e ..., do «Edifício ..., sito no Parque Industrial ..., 2.ª Fase», «foram deslocados para o interior do armazém que integra a fração autónoma designada pela letra ..., encontrando-se as demais frações - inclusivamente o escritório que integra a mencionada fração ... - livre de pessoas e bens».
Concluiu, por isso, que «não existem quaisquer bens da massa nas referidas frações ..., ..., ... e ... do referido edifício, encontrando-se as mesmas livres e desimpedidas, pelo que é agora possível dar início à realização das necessárias obras de conservação e manutenção que oportunamente se tinha fado conta serem necessárias».

1.1.8. Em 21 de Julho de 2023 o Administrador da Insolvência veio requerer que, assim «que a EMP02... terminar as obras nas frações, deve esta providenciar pela recolocação dos bens nas mesmas, no seu estado originário», aguardando-se «o desfecho das ações de separação e restituição, para definir o destino a dar aos bens objeto das mesmas», e mencionando a necessidade «de manutenção do acesso ao estabelecimento da Insolvente».

1.1.9. Em 21 de Julho de 2023 foi proferido despacho, sobre o anterior requerimento do Administrador da Insolvência, lendo-se nomeadamente no mesmo:
«(…)
Tomei conhecimento.
Logo que terminarem as obras, os bens devem ser recolocados no seu estado originário.
Qualquer autorização deverá ser dada por escrito.
Determino que o sr. Administrador da Insolvência mantenha pleno acesso ao estabelecimento da insolvente, ainda no decurso de quaisquer obras.
Esta permissão não constitui qualquer posição do Tribunal ou do Administrador da Insolvência quanto ao desfecho do processo que corre termos no Tribunal ....
(…)»

1.1.10. Em 31 de Julho de 2023 a   credora EMP02..., S.A., inconformada com o dito despacho, interpôs recurso de apelação do mesmo, pedindo que fosse julgado procedente e se revogasse a decisão recorrida.

1.1.11. Em 18 de Outubro de 2023 foi proferido despacho pelo Tribunal a quo, não admitindo o recurso apresentado, lendo-se nomeadamente no mesmo:
«(…)
Do recurso interposto pela EMP02..., S.A. em 31/7/2023: 
Veio a credora recorrer do despacho com a referência nº. ...82, datado de 2023.07.21, em que se decidiu “Logo que terminarem as obras, os bens devem ser recolocados no seu estado originário. Qualquer autorização deverá ser dada por escrito. Determino que o sr. Administrador da Insolvência mantenha pleno acesso ao estabelecimento da insolvente, ainda no decurso de quaisquer obras”.
Defende que o recurso seria de Apelação, com subida imediata, em separado e efeito meramente devolutivo, nos termos do conjugados dos artºs. 14º., nºs. 2 e 5, do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas (CIRE), e 644º., nº. 2, alínea h), do Código de Processo Civil.
Ora, o despacho em crise nada decide em definitivo, trata-se de um despacho de mero expediente, ou seja, que diz respeito apenas à tramitação do processo sem pôr em causa os direitos ou deveres das partes. Se os bens pertencem ou não à insolvente será decidido nos apensos de restituição e separação de bens, a reposição dos bens após as obras em nada afecta o direito de qualquer uma das partes em oposição e o acesso do sr. Administrador da Insolvência em nada preclude qualquer direito que esteja em discussão no Tribunal ..., sendo que a determinação do Tribunal se limitou a corresponder à posição do sr. Administrador da Insolvência que agiu no estrito limite das suas competências. 
Assim, por irrecorrível, decido não admitir o recurso interposto. 
(…)»

1.1.12. Inconformada com esta decisão, a credora EMP02..., S.A. veio reclamar, pedindo que se julgasse procedente a respectiva reclamação.

Concluiu as suas alegações da seguinte forma (reproduzindo-se ipsis verbis as respectivas conclusões, com excepção da concreta grafia utilizada e de manifestos e involuntários erros e/ou gralhas de redacção):

I - Tribunal a quo incorreu em erro ao qualificar o despacho recorrido como um despacho de mero expediente e, consequentemente, não ter admitido o recurso de apelação apresentado pela Reclamante com fundamento no disposto no artº. 630º., nº. 1 do CPC;
 
II - Pois que, apenas poderão ser qualificados como tais os despachos que visem, tão somente, regular ou disciplinar o normal andamento do processo;
 
III - Pelo que, a título meramente exemplificativa, poderão ser qualificados como despachos de mero expediente, o despacho que determine a data e hora para a realização de uma tentativa de conciliação, audiência prévia ou audiência de discussão e julgamento, que determine a notificação de determinada testemunha para comparecer em julgamento, de modo que aí possa ser inquirida, ou a decisão que determina à secretaria a realização de qualquer ato processual;
 
IV -  Decisões estas que, conforme facilmente se conclui, não acarretam uma tomada de posição por parte do Tribunal relativamente a algum conflito entre as partes envolvidas;
 
V - Contudo e salvo o devido respeito por entendimento contrário, não é isso que se verifica no caso dos autos, pois que o despacho recorrido não tem por finalidade, direta ou indireta, promover o normal andamento do processo ou sequer dar cumprimento aos legais trâmites que devem nortear esse andamento!
 
VI - Antes pelo contrário, o despacho recorrido vem dar acolhimento à pretensão do administrador da insolvência no sentido de ver os bens removidos pela Reclamante de novo colocado no interior das frações autónomas onde os mesmos anteriormente se encontravam depositados;
 
VII -  Situação que apesar de não consubstanciar uma decisão definitiva, quer sobre a propriedade dos bens em causa, quer sobre a propriedade ou posse dos imóveis, consubstancia uma manifesta restrição do direito de propriedade da Requerente sobre os imóveis em causa;
 
VIII -  Assim, inversamente ao que vem afirmado pelo Tribunal a quo não é verdade que o despacho recorrido consubstancie um despacho de mero expediente porquanto, desde logo, admite a pretensão de um interveniente processual em detrimento do outro,
 
IX - Impondo à Reclamante a obrigação de recolocar os bens em questão no interior das frações que compõem o edifício de que é a única e legítima proprietária;
 
X - Dilucidada a questão da errada qualificação do despacho recorrido como despacho de mero expediente, estatui o artº. 644º., nº. 2, alínea h) do CPC que cabe recurso de apelação das decisões cuja impugnação com o recurso da decisão final seria absolutamente inútil;
 
XI - De acordo com a doutrina e jurisprudência já sedimentada, só a absoluta inutilidade justifica a imediata recorribilidade de uma decisão interlocutória e não situações em que o provimento do recurso pode trazer prejuízos do ponto de vista da economia processual; ou seja, a eventual retenção (do recurso) deverá ter um resultado irreversível quanto ao recurso (de tal modo que, seja qual for a decisão do tribunal ad quem, ela será completamente inútil), não bastando uma mera inutilização de atos processuais (eventual anulação do processado), ainda que contrária ao princípio da economia processual, pelo que, não bastará o simples risco de inutilização ou de repetição do processado;
 
XII - In casu, a decisão do Tribunal a quo consubstancia uma restrição ao direito de propriedade da Reclamante, pois que acarretar que a mesma tenha de suportar a utilização por terceiros dos imóveis de que é legitima e exclusiva proprietária, ficando, por isso, impossibilitada de deles dispor;
 
XIII - Por outro lado, caso a decisão recorrida não tivesse sido impugnada e, consequentemente, tivesse transitado em julgado, tal acarretaria que a Reclamante se visse impossibilitada de reagir contra a referida decisão e não pudesse reagir contra a restrição do direito de propriedade que lhe foi imposta pelo Tribunal a quo;
 
XIV - Por conseguinte, sendo de concluir pelo preenchimento dos pressupostos de que se encontra dependente a admissibilidade do recurso com fundamento no artº. 644º., nº. 2, alínea h) do CPC.

1.1.13. Em 31 de Maio de 2023 foi proferida decisão singular pela Relatora, indeferindo a reclamação de EMP02..., S.A. (e, por isso, confirmando o despacho que não admitira o recurso por ela interposto,).
Ponderou-se na mesma, em síntese, que, considerando o despacho recorrido, não isoladamente mas no conjunto de todos os actos processuais que o antecederam, se limitou o mesmo a ordenar a tramitação dos autos de acordo com o que já antes tinha sido neles decidido; e, por isso, consubstancia um despacho de mero expediente, irrecorrível por natureza.
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1.2. Reclamação

1.2.1. Fundamentos
Inconformada com esta decisão, a credora EMP02..., S.A. veio reclamar, pedindo que a decisão singular da Relatora fosse substituída por acórdão a admitir o recurso por si interposto.

Concluiu as suas alegações da seguinte forma (reproduzindo-se ipsis verbis as respectivas conclusões, com excepção da concreta grafia utilizada e de manifestos e involuntários erros e/ou gralhas de redacção):

I - O Exmo. Juiz Relator considerou que, apesar de ser defensável que o despacho recorrido é suscetível de consubstanciar uma compressão do direito de propriedade sobre as frações autónomas designadas pelas letras ..., ..., ..., ... e ... na Conservatória do Registo Predial ... com o número ...62 e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ...80º., propriedade da Reclamante, ainda assim, estar em causa um despacho de mero expediente com base na prolação do despacho com a referência nº. ...01, datado de 2021.06.15;
 
II - Contudo, o Exmo. Senhor Juiz Relator desconsiderou que, mediante acórdão desta mesma Relação de Guimarães, datado de 2023.03.02, foi declarada a incompetência do Tribunal a quo para determinar a terceiros a remoção de bens que, pura e simplesmente, não se encontrem apreendidos a favor da massa insolvente;
 
III - Na sequência de tal decisão, a aqui Reclamante apresentou, em 2023.05.29, o requerimento com a referência nº. ...02, em que requereu que fosse declarada a ineficácia dos despachos com as referências nºs. ...89 e ...01, datados de 2021.05.17 e 2021.06.15;
 
IV - Tal requerimento, fundou-se precisamente na incompetência do Tribunal a quo para limitar o acesso a imóveis que não só não se encontram apreendidos a favor da massa insolvente, como relativamente aos quais a Insolvente não se arroga como titular de qualquer direito real ou pessoal de gozo;
 
V - Na verdade, tal como aí foi referido, o artº. 46º., nº. 1, do CIRE estatui que a “massa insolvente destina-se à satisfação dos credores da insolvência, depois de pagas as suas próprias dívidas, e, salvo disposição legal contrário, abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ela adquira na pendência do processo;
 
VI - E, dispõe o artº. 1º., nº. 1, do CIRE que o processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores, podendo, a referida satisfação ser alcançada quer pela aprovação e execução de um plano de insolvência – em que se visa a recuperação da empresa compreendida na massa insolvente -, ou, quando tal não se afigure possível, pela liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos seus credores;
 
VII - Da conjugação dos mencionados normativos legais, resulta que, tratando-se de um processo de insolvência de uma pessoa coletiva e tendo sido proposta a apresentação de um plano de insolvência, a sociedade insolvente integra a sua própria massa, apenas passando a ser composta pelo seu património quando se frustre a possibilidade de recuperação da respetiva sociedade;

VIII - Situação que se verificará, quer quando o plano não venha a ser apresentado dentro do prazo legal para tanto fixado, quer quando os credores rejeitem o plano de insolvência apresentado – tal como se verificou no caso sub judice;
 
IX - Por seu turno, a identificação dos bens do insolvente que integram a massa insolvente resulta da aplicação dos artºs. 601º. do Código Civil (CC), 46º., nº. 2, do CIRE, e 735º. do CPC;
 
X - Ora, dispõe o artº. 601º. do CC que pelo cumprimento da obrigação respondem todos os bens do devedor suscetíveis de penhora, sem prejuízo dos regimes especialmente estabelecidos em consequência da separação de patrimónios;
 
XI - E, estatui o artº. 735º. do CPC que estão sujeitos à execução todos os bens do devedor suscetíveis de penhora que, nos termos da lei substantiva, respondem pela dívida exequenda;
 
XII - Por sua vez, lê-se no artº. 46º., nº. 2, do CIRE que os bens isentos de penhora só são integrados na massa insolvente se o devedor voluntariamente os apresentar e a impenhorabilidade não for absoluta;
 
XIII - De onde facilmente se conclui que apenas os bens e direitos que integram a esfera patrimonial da Insolvente podem integrar a massa insolvente e, por conseguinte, ser apreendidos pelo administrador da insolvência;
 
XIV - Acresce que, nos termos do artº. 55º., nº. 1, do CIRE, é da competência do administrador da insolvência, com cooperação e fiscalização da comissão de credores, preparar (i) o pagamento das dívidas da insolvente e (ii) prover, no entretanto, à conservação e frutificação dos direitos do insolvente e à continuação da exploração da empresa;
 
XV - Além da competência ali expressamente prevista, incumbe ainda ao administrador da insolvência (i) preparar o relatório da insolvência a apreciar em sede de assembleia de credores, (ii) a verificação dos créditos, (iii) a administração e liquidação da massa insolvente, (iv) o pagamento aos credores, (v) o controlo dos atos praticados pelo insolvente, prévia e posteriormente à prolação da sentença de declaração de insolvência e (vi) a decisão sobre os efeitos dos negócios em curso;
 
XVI - Pelo que, os poderes e atuação do administrador da insolvência se encontram limitados aos bens que efetivamente integram o acervo patrimonial da Insolvente, do qual não fazem parte qualquer uma das nove frações que constituem o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial ... com o número ...62 e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ...80º;
 
XVII - Assim, não integrando as referidas frações autónomas o património da Insolvente, o administrador da insolvência não possui qualquer poder sobre as mesmas, não lhe sendo lícito atuar ou solicitar atuação sobre os aludidos imóveis, propriedade da Recorrente, sob pena de extravasar as competências que lhe estão legalmente atribuídas, porquanto a este apenas são conferidos, nos termos do artigo 81.º, n.º 1, do CIRE “poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente”;
 
XVIII - Deste modo, o administrador da insolvência, ao requerer a recolocação dos bens atualmente depositados no armazém que integra a fração autónoma designada pela letra ... está na prática a dispor, sem título, de um bem que não faz parte da massa que administra, extravasando, por isso, a competência que se lhe encontra atribuída pelas referidas disposições legais,
 
XIX - Em face do exposto, também o Tribunal a quo se encontra impossibilitado de se pronunciar sobre a questão, pois que não lhe assiste poder para impor a terceiros a utilização pela massa de bens que não se encontram apreendidos a favor desta, pois que os poderes do juiz do processo de insolvência encontram-se circunscritos à fiscalização da atuação do administrador da insolvência, fruto da opção legislativa de desjudicialização do processo de insolvência;
 
XX - Na verdade, conforme antes se referiu, o artº. 1º. do CIRE dispõe que o processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e consequente repartição do respetivo produto pelos credores;
 
XXI - E, resulta do ponto 10 do preâmbulo do aludido diploma legal que a “afirmação da supremacia dos credores no processo de insolvência é acompanhada da intensificação da desjudicialização do processo. Por toda a parte se reconhece a indispensabilidade da intervenção do Juiz no processo concursal, tendo fracassado os intentos de o desjudicializar por completo. Tal indispensabilidade é compatível, todavia, com a redução da intervenção do Juiz ao que estritamente releva do exercício da função jurisdicional, permitindo a atribuição de competência para tudo o que com ela não colida aos demais sujeitos processuais (…) Ainda na vertente da desjudicialização, há também que mencionar o desaparecimento da possibilidade de impugnar junto do juiz tanto as deliberações da comissão de credores (que podem, não obstante, ser revogadas pela assembleia de credores), como os actos do administrador da insolvência (sem prejuízo dos poderes de fiscalização e de destituição por justa causa);
 
XXII - De não menor relevância é o facto de que, com a entrada em vigor do CIRE, foi expressamente revogado o disposto no artº. 141º. do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência (CPEREF) que estatuía que a “administração dos bens que compõem a massa falida, durante o período de liquidação, compete ao liquidatário judicial, sob a direcção do juiz e com a cooperação e fiscalização da comissão de credores.”,
 
XXIII - Passando a vigorar quanto a esta matéria o disposto no artº. 58º. do CIRE, nos termos do qual o administrador da insolvência exerce a sua atividade sob a fiscalização do juiz, que pode, a todo o tempo, exigir-lhe informações sobre quaisquer assuntos ou a apresentação de um relatório da atividade desenvolvida e do estado da administração e da liquidação;
 
XXIV - Nesta medida, com a revogação do artº. 141º. do CPEREF e subsequente entrada em vigor do artº. 58º. do CIRE, os poderes de direção do anteriormente conferidos ao juiz converteram-se em meros poderes de fiscalização da atividade do administrador da insolvência,
 
XXV - Pelo que, apesar do poder de fiscalização atribuir o poder de determinar que o administrador da insolvência preste quaisquer informações sobre o normal andamento do processo de insolvência, não permite, em nenhum caso, que o juiz assuma a direção do processo ou, sequer, que oriente o administrador da insolvência!
 
XXVI - Deste modo, a competência do Juiz da Insolvência em relação ao administrador da insolvência encontra-se limitada (i) à nomeação do administrador da insolvência, (ii) à fiscalização da atuação do administrador da insolvência, (iii) à competência para apreciar as reclamações do administrador da insolvência sobre as deliberações da assembleia que forem contrárias ao interesse comum dos credores e (iv) à destituição do administrador da insolvência por justa causa;
 
XXVII - Quer isto dizer que o juiz da insolvência, não obstante os importantes poderes que lhe são conferidos, não dispõe da faculdade de, por qualquer modo, impor ou autorizar que o administrador da insolvência atue de determinada forma;
 
XXVIII - E, muito menos pode impor a terceiros que adotem esta ou a aquela conduta, perante o Administrador de Insolvência ou qualquer outra pessoa ou entidade, seja relativamente a bens que integram a massa insolvente, seja principalmente a respeito de bens que não a integram e – pasme-se!! – são desse próprio terceiro, impondo ou autorizando a utilização dos seus bens por parte da massa insolvente, quando tais bens, pura e simplesmente, não se encontram apreendidos a favor desta última;
 
XXIX - Por conseguinte, é forçoso concluir que com a prolação do despacho com a referência nº. ...01, datado de 2021.06.15, o Tribunal a quo não só extravasou os poderes que lhe são conferidos pelo artº. 58º. do CIRE, como violou o disposto nos artºs. 46º. e 81º., nº. 1, do mesmo diploma legal;
 
XXX - Assim, tendo o Tribunal a quo, com a prolação dos despachos com as referências nºs. ...39 e ...01, datados respetivamente 2021.05.17 e 2021.07.15, extravasado as atribuições que se lhe encontram atribuídas, ter-se-á de concluir pela ineficácia do despacho invocado no despacho reclamado para qualificar o despacho recorrido como despacho de mero expediente;
 
XXXI - Deste modo, em face da ineficácia do despacho no qual o Exmo. Senhor Juiz Relator fundou a sua decisão, nunca se poderia considerar que o despacho recorrido se limitou a dar cumprimento a um despacho que já havia decidido a questão que aqui se coloca, porquanto tal despacho, uma vez mais se refira, não produz quaisquer efeitos jurídicos;
 
XXXII - A isto acresce que, contrariamente ao que parece ser o entendimento do Exmo. Senhor Juiz Relator, o despacho recorrido não tem por finalidade, direta ou indireta, promover o normal andamento do processo ou sequer dar cumprimento aos legais trâmites que devem nortear esse andamento!
 
XXXIII - Em face do que vem exposto é forçoso concluir que o Tribunal a quo qualificou incorretamente o despacho recorrido como despacho de mero expediente e que, por isso, não poderia rejeitar as alegações de recurso apresentadas com fundamento no disposto no artº. 630º., nº. 1 do CPC;
 
XXXIV - Dilucidada a questão da errada qualificação do despacho recorrido como despacho de mero expediente, estatui o artº. 644º., nº. 2, alínea h) do CPC que cabe recurso de apelação das decisões cuja impugnação com o recurso da decisão final seria absolutamente inútil;
 
XXXV - Normativo legal este ao abrigo do qual o Tribunal deveria ter admitido o recurso interposto pela ora Reclamante;
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1.2.2. Resposta
Não foi apresentada qualquer resposta.
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II - VALIDADE E REGULARIDADE DA INSTÂNCIA

O tribunal é o competente em razão da matéria, da nacionalidade e da hierarquia.
O processo é o próprio, e não enferma de outras nulidades que o invalidem na sua totalidade.
A credora EMP02..., S.A. dispõe de personalidade e de capacidade judiciárias, e bem assim de legitimidade.
Inexistem outras excepções dilatórias, nulidades parciais ou quaisquer questões prévias ou incidentais que obstem ao conhecimento de mérito e de que cumpra conhecer.
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III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A factualidade de facto relevante para a decisão a reclamação apresentada coincide com a descrição feita no «I - RELATÓRIO» da mesma, que aqui se dá por integralmente reproduzida.
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IV - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

4.1. Despacho de mero expediente
Lê-se no art.º 627.º, n.º 1, do CPC, que as «decisões judiciais podem ser impugnadas por meio de recursos».
Mais se lê, no art.º 630.º, n.º 1, do CPC, que, porém, não «admitem recurso os despachos de mero expediente nem os proferidos no uso legal de um poder discricionário».

Entende-se por «despachos de mero expediente» os destinados «a prover ao andamento regular do processo, sem interferir no conflito de interesses entre as partes» (art.º 152.º, n.º 4, I parte, do CPC), isto é, não são «susceptíveis de ofender direitos processuais das partes ou de terceiros», por se tratar de «despachos banais, que não põem em causa interesses das partes, dignos de protecção» (José Alberto dos Reis, Código Processo Civil, Volume V, Coimbra Editora, Limitada, págs. 249 e 250).
Será, grosso modo, despacho relativo à mera tramitação do processo, «no corrente entendimento jurisprudencial, aquele que, proferido pelo juiz, não decide qualquer questão de forma ou de fundo, e se destina principalmente a regular o andamento do processo»: tem «uma finalidade - prover ao andamento regular do processo - e um pressuposto - sem interferir no conflito de interesses entre as partes» (Ac. da RP, de 21.01.2014, António Gama, Processo n.º 12/12.1TXPRT-J.P1, in www.dgsi.pt, como todos os demais citados sem indicação de origem) [1].
Com efeito, «alguns despachos incidem somente sobre aspectos burocráticos do processo e da sua tramitação, e por isso, não possuem um conteúdo característico do exercício da função jurisdicional, nem afectam a posição processual das partes ou de terceiros» (Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, 1997, LEX, págs. 213 e 214).
«Assim, o despacho de mero expediente integra formalmente uma ordem ou determinação com o propósito de dar cumprimento à lei, fazer respeitar o ordenamento ou expediente processual», mas sem que «o juiz, seu autor, jamais se» proponha «dizer ou definir o direito. Semelhante actividade, a despeito da qualidade em que o juiz está investido, não constitui acto jurisdicional, mas somente um acto judicial, um acto que obriga.
Será ainda o caso dos despachos respeitantes às relações internas, entre o juiz e os funcionários quando, v.g., se ordenar que os autos sejam submetidos a despacho», em que «não são afectados os interesses ou deveres das partes.
Trata-se antes de acto não controverso e, consequentemente, insusceptível de melhoramento por via de reclamação ou de reapreciação mediante recurso» (Ac, da RE, de 18.03.2009, Manuel Nabais, Processo n.º 679/02.9PBBJA-E.E1, com bold apócrifo).
Acresce que, «sem possibilidade de ofenderem direitos processuais das partes ou de terceiros [os despachos de mero expediente], não envolvendo qualquer interpretação da lei, (…) não podem adquirir o valor de caso julgado, pois para haver caso julgado formal é indispensável a existência de uma decisão, de um julgamento» (Ac. do STJ, de 17.12.2009, Raúl Borges, Processo n.º 09P0612, com bold apócrifo).

Precisa-se, porém, que sendo o processo um encadeamento de actos com vista à consecução de um determinado objectivo - a obtenção de uma decisão judicial -, na determinação da natureza de mero expediente, o despacho sob análise deverá ser apreciado, não apenas de forma isolada, mas à luz da intencional actividade processual por si determinada.

Precisa-se, ainda, que os despachos de mero expediente só serão irrecorríveis se forem proferidos de forma conforme com a lei [2]. «Com efeito, nesta vertente, o juiz não actua de forma livre mas no cumprimento de uma actuação vinculada que se traduz na obrigação de ter de dar andamento ao processo no estrito cumprimento das “regras” legais pertinentes aplicáveis, e que no seu todo compõem o objecto dos vários códigos processuais» (Ac. da RG, de 14.11.2003, Lázaro Faria, Processo n.º 1760/03-2).
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4.2. Caso concreto (subsunção ao Direito aplicável)
4.2.1. Mera tramitação dos autos de acordo com o que já antes tinha sido neles decidido (quanto aos poderes do Administrador da Insolvência de acesso, guarda e controlo das fracções autónomas ..., ..., ..., ... e ...), nada mais, ou contrariamente, ordenando (o despacho reclamado)
Concretizando, a própria Reclamante (EMP02..., S.A.) reconhece que o despacho recorrido - ao ordenar que, uma vez terminadas as obras nas fracções autónomas ..., ..., ..., ... e ... (onde a Insolvente exercia a sua actividade), os bens apreendidos a favor da massa insolvente fossem recolocados no seu interior, no estado originário, e que o Administrador da Insolvência mantivesse pleno acesso ao estabelecimento da Insolvente (que desde cedo nos autos se entendeu que integraria as ditas fracções, independentemente de se estar a discutir em acção própria a propriedade e a posse sobre elas) - não aprecia ou decide:

i. a quem pertencem os ditos bens móveis apreendidos - que será decidido nas acções de restituição e separação de bens, apensas, que os têm por objecto;

ii. a quem pertence o direito de propriedade ou a posse sobre as referidas fracções - o que igualmente está a ser discutido em acção própria.
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Dir-se-á ainda que, considerando isoladamente o dito despacho, admite-se ser defensável o entendimento da Reclamante (EMP02..., S.A.), de que o mesmo é susceptível de consubstanciar uma compressão do direito de propriedade sobre as ditas fracções, sendo que ela própria defende nos autos ser dele titular.
Contudo, atendendo ao processo como um encadeamento de actos, verifica-se que, por despacho de 20 de Maio de 2021 e por despacho de 15 de Junho de 2021 (também eles suscitados pela discussão quanto aos poderes de acesso do Administrador da Insolvência às ditas fracções, enquanto parte do estabelecimento da Insolvente, e do controlo a exercer por ele face a qualquer pretendido acesso por terceiros), fora já decidido que o Administrador da Insolvência manteria o acesso, a guarda e o controlo das fracções autónomas ..., ..., ..., ... e ....

Com efeito, tendo a  «credora EMP02..., SA» vindo «reportar o arrombamento da porta do armazém da insolvente no dia 14-5-2021 alegadamente por parte de administradores e funcionários da insolvente, bem como de todas as portas que dão acesso às frações ocupadas pela insolvente e onde se encontrariam depositados bens apreendidos a favor da massa insolvente», por despacho de 20 de Maio de 2021 o Tribunal esclareceu que a «sra administradora de insolvência já comunicou a este tribunal ter encerrado a sede da insolvente e mudado as fechaduras, pelo que se a administração da insolvente tentar arrombar o local está a agir contra a lei».
Em conformidade, determinou que se oficiasse «ao Comando Territorial de ... da GNR informando que as instalações da insolvente estão encerradas e os administradores da insolvente EMP01..., SA não podem ter acesso às mesmas sem autorização expressa do administrador de insolvência agora nomeado nos autos».

Posteriormente, tendo o Administrador da Insolvência expressamente defendido, em 14 de Junho de 2021, que as «fracções que fazem parte do estabelecimento da sociedade insolvente devem estar à guarda do Administrador da Insolvência», e que o «facto de alguém se introduzir e/ou permanecer no interior das fracções sem que para tal esteja devidamente autorizado constitui (…)um ilícito criminal, devendo a autoridade policial diligenciar pela retirada dessas pessoas, mesmo que para isso tenha de actuar de forma mais musculada», o despacho de 15 de Junho de 2021 decidiu definitivamente esta questão.
Com efeito, nele se afirmou que, «não estando a  posse das frações (…) em causa quando se impõe à GNR que faça respeitar a obrigação de qualquer pessoa - mesmo que administrador da insolvente - de não entrar nas instalações daquela (frações ..., ..., ..., ... e ... na CRP ... sob o nº ...62 da freguesia ...) nem aí permanecer sem autorização do administrador de insolvência, que foram encerradas por ordem judicial de 13 de novembro do ano passado e contêm bens apreendidos nestes autos», não deixaria a «desobediência a esta ordem» de constituir «crime que não pode ser tolerado pela ordem jurídica e que as forças de segurança têm de fazer respeitar, fazendo uso da força, se necessário».
Declarou-se, assim, que «a tentativa ou entrada nas instalações da insolvente encerradas pelo administrador de insolvência, a retirada de bens apreendidos ou a permanência física nas mesmas não pode ser tolerada pela força pública já que põe em causa os fins do processo de insolvência».

Logo, e salvo o devido respeito por opinião contrária, foi então, e não no despacho de 21 de Julho de 2023 (de que se pretende agora recorrer), que se afirmou nos autos o direito de acesso irrestrito do Administrador da Insolvência ao estabelecimento da Insolvente (que, repete-se, até decisão judicial definitiva em contrário, se vem entendendo que integra as referidas fracções autónomas, por nelas ter aquela desenvolvido a sua actividade), bem como os poderes exclusivos do mesmo para controlar qualquer pretendido acesso de terceiro às ditas fracções.
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Dir-se-á ainda que o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães em 02 de Março de 2023 e que a Reclamante agora invoca (nesta sua reclamação para a conferência)[3], não teve por objecto os despachos proferidos em 20 de Maio de 2021 e/ou em 15 de Junho de 2021, mas sim um outro e distinto, proferido em  07 de Abril de 2022 (que ordenou a notificação de Sociedades que teriam documentos no interior das fracções em causa, para os removerem das mesmas) [4], que, efectivamente, revogou [5].

Ora, se é certo que a Reclamante (EMP02..., S.A.) entendeu, em 29 de Maio de 2023, requerer que, na sequência do dito acórdão de 02 de Março de 2023, fosse declarada a ineficácia dos despachos de 20 de Maio de 2021 e de 15 de Junho de 2021, certo é que esta sua pretensão - tendo efectivamente sido conhecida pelo Tribunal a quo - não foi ainda deferida, nomeadamente antes da posterior prolação do seu despacho de 21 de Julho de 2023 (de que agora pretende recorrer) [6].
Nessa medida, mantêm-se os ditos despachos de 20 de Maio de 2021 e de 15 de Junho de 2021 plenamente válidos e eficazes no processo, não podendo ser - aqui e agora - desconsiderados. (nomeadamente, para apreciação da natureza do despacho de 21 de Julho de 2023, de que se pretende recorrer).
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Ora, e com estas precisões, o despacho de 21 de Julho de 2023 limita-se a ordenar a tramitação dos autos de acordo com o que já antes tinha sido neles decidido, a propósito destas concretas questões, nada mais, ou contrariamente, decidindo quanto a elas.
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4.2.2. Concreto e limitado fim da prévia autorização de acesso da Reclamante às fracções autónomas ..., ..., ..., ... e ...
Prosseguindo, é a própria Reclamante (EMP02..., S.A.) e pretendida Recorrente quem reconhece que o acesso às fracções e a remoção dos bens aprendidos a favor da massa insolvente (até então nelas depositados) foram alegadamente autorizados pelo anterior Administrador da Insolvência (embora sem o ter sido por escrito), e por forma a viabilizar alegadas e necessárias obras de reparação e conservação das ditas fracções
Logo, e salvo novamente o devido respeito por opinião contrária, se assim foi (repete-se, na própria versão da agora Reclamante) o despacho de 21 de Julho de 2023 limita-se a ordenar a tramitação dos autos de acordo com o que já antes tinha sido neles decidido pelo Administrador da Insolvência (isto é, a necessária e prévia permissão, por ele próprio, de acesso da Reclamante ao interior das fracções, para aquele exclusivo e limitado fim, de realização de obras de reparação e conservação, sendo que após a sua conclusão necessariamente se reflectiria no ulterior processado o que já antes fora determinado quanto a ele, no caso, o depósito dos bens móveis apreendidos no interior das fracções que, até decisão em contrário, compõem o estabelecimento da Insolvente).
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Reconhece-se, é certo, que, tal como a Reclamante (EMP02..., S.A.) alega agora (na sua reclamação para a conferência), o despacho recorrido, «obriga a que a Reclamante recoloque os bens no interior das frações, obstando a que a mesma possa fazer uso das mesmas».
Contudo, salvo sempre o devido respeito por opinião contrária e de forma conforme com o que se afirmou antes, o despacho de 21 de Julho de 2023 não impôs essa (ou qualquer outra) obrigação de forma inédita.
Com efeito, limita-se o dito despacho (e como ela própria também reconhece ) a ordenar a tramitação dos autos de acordo com o que já antes tinha sido neles decidido pelo Administrador da Insolvência, isto é, uma limitada - no fim e no tempo - permissão de acesso da Reclamante (EMP02..., S.A.) ao interior das fracções; e, realizado o primeiro e esgotado o segundo, necessariamente que se manteriam os efeitos da prévia decisão (não revogada ou alterada, quer pelo Tribunal a quo, quer por qualquer Tribunal Superior) que determinara o depósito dos bens móveis apreendidos no interior das fracções (que, reitera-se, até decisão em contrário compõem o estabelecimento da Insolvente).
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Entende-se, por isso, que, considerando o despacho recorrido, não artificialmente de forma isolada, mas necessariamente na sequência dos actos processuais que o antecederam (nomeadamente, de prévios  despachos judiciais e de prévias decisões do Administrador da Insolvência) e que o processo documenta, o mesmo limitou-se efectivamente a «prover ao andamento regular do processo», «não interferindo no conflito de interesses entre as partes», uma vez que: neste particular, o dito conflito já fora antecipadamente apreciado e decidido pelo Tribunal a quo (quanto ao acesso, e controlo por parte, do Administrador da Insolvência às fracções autónomas em causa), decisão que até este momento não se mostra por qualquer Tribunal revogada ou alterada; e a Reclamante (EMP02..., S.A.) estribou o seu concreto agir em prévia decisão do referido Administrador da Insolvência, que alegadamente lhe autorizou o acesso às ditas fracções, para um concreto e limitado fim (que, uma vez consumado, esgotará o âmbito e propósito da dita autorização).
Logo, o concreto conflito de interesses em causa (pertinente ao direito de acesso às, e de utilização das, referidas fracções autónomas) foi antes e definitivamente decidido nos autos pelo próprio Tribunal a quo, não lhe cabendo depois senão prover à execução do por si previamente decidido (e, por isso, sem qualquer possibilidade de modificar ou inviabilizar o juízo de mérito da questão antes submetida à sua apreciação).
Agindo o Tribunal a quo deste modo, no seu despacho recorrido, não poderia deixar de se considerar o mesmo como de «mero expediente»; e, por isso, é o mesmo por natureza irrecorrível.
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Deverá decidir-se em conformidade, considerando o recurso interposto pela credora EMP02..., S.A. legalmente inadmissível; e, por isso, se decidindo pela improcedência da reclamação apresentada.
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V - DECISÃO

Pelo exposto, nos termos das disposições legais citadas e do art.º 643.º, n.º 4, do CPC, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em, julgar improcedente a reclamação apresentada pela credora EMP02..., S.A. e, em consequência,

· Confirmam o despacho do Tribunal de 1.ª instância que, não admitiu o recurso por ela interposto, do despacho proferido em 21 de Julho de 2023 (que reafirmou o direito de pleno acesso do Administrador da Insolvência ao estabelecimento da Insolvente, ainda que no decurso de quaisquer obras de que o mesmo fosse alvo, e ordenou a reposição no seu interior dos bens móveis apreendidos, logo que as ditas obras que alegadamente justificaram a sua prévia remoção terminassem).
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Custas pela Reclamante (art.º 527.º, n.º 1, do CPC).
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Notifique.
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Guimarães, 01 de Fevereiro de 2024.

O presente acórdão é assinado electronicamente pelas respectivas

Relatora - Maria João Marques Pinto de Matos;
1.ª Adjunta - Rosália Margarida Rodrigues da Cunha;
2.ª Adjunta - Alexandra Maria Viana Parente Lopes.


[1] No mesmo sentido:
. Ac. da RC, de 06.06.2018, Belmiro Andrade, Processo n.º 517/16.5GCLRA.C1 - onde se lê que constituem «despachos de mero expediente aqueles que apenas têm por finalidade regular ou disciplinar o andamento ou a tramitação processual e que não importam decisão ou julgamento, denegação, reconhecimento ou aceitação de qualquer direito. A designação de data para a realização da audiência, por efeito de adiamento em data previamente designada para o mesmo efeito, não define, não nega ou reconhece qualquer direito que constitua objecto do processo. Constitui um típico ato de gestão processual, na livre resolução do juiz, no pressuposto de que não viole norma legal expressa».
. Ac. da RE, de 02.07.2019, Carlos Berguete Coelho, Processo n.º 232/11.6GDCTX-A.E1 - onde se lê que,   segundo «o corrente entendimento jurisprudencial, constitui despacho de mero expediente aquele que, proferido pelo juiz, não decidindo qualquer questão de forma ou de fundo, se destina principalmente a regular o andamento do processo. Caracteriza-se, assim, pela sua natureza de se limitar a dar cumprimento aos legais trâmites que devem nortear esse andamento do processo, sem envolver uma apreciação concreta que se projecte nos direitos dos intervenientes».
[2] Neste sentido:
. na doutrina -  Luís Filipe Brites Lameiras, Notas Práticas ao Regime dos Recursos em Processo Civil, 2.ª edição, Almedina, pág. 77; ou Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 8.ª edição, Almedina, pág. 122.
. na jurisprudência - Ac. da RP, de 21.01.2014, António Gama, Processo n.º 12/12.1TXPRT-J.P1, onde se lê que o «despacho que a pretexto de dar andamento ao processo, o faz de forma não regular, não preenche tal conceito; neste caso, o despacho não é de mero expediente pois que o juiz não actua de forma livre, mas no cumprimento de uma actuação vinculada que se traduz na obrigação de ter de dar andamento ao processo no estrito cumprimento das “regras” processuais”».
[3] O acórdão em causa foi proferido no Apenso n.º 5468/19.9T8VNF-AJ.G1 - Recurso em separado (CIRE). 
[4] É do seguinte teor o despacho de 07 de Abril de 2022 (que deferiu prévio requerimento do Administrador da Insolvência no mesmo sentido):
«Req de 4-4-2022: Visto. Notifique as sociedades requeridas e os seus legais representantes nos termos e para os efeitos requeridos de em 30 dias, a começar a 2-5-2022, removerem o acervo documental e bens que lhes pertençam das instalações da insolvente, desde que não estejam apreendidos para a massa».
[5] Lê-se no acórdão de 02 de Março de 2023, do Tribunal da Relação de Guimarães:
«(…)
Destarte e em face de tudo o exposto o despacho recorrido excede os poderes jurisdicionais do juiz titular no âmbito do apenso de liquidação e, como tal, é absolutamente ineficaz, pelo que não se pode manter, devendo, assim o recurso proceder, ainda que por razões de conhecimento oficioso e em consequência a decisão deve ser revogada.
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5. Decisão
Termos em que acordam os Juízes que compõem a 1ª secção da Relação de Guimarães em julgar procedente o recurso, ainda que por fundamentos diversos e em consequência revogar o despacho recorrido, proferido a 04/04/2022, no apenso de liquidação.
(…)».
[6] Em 26 de Junho de 2023, na sequência da substituição do Administrador da Insolvência e da substituição legal do anterior juiz titular dos autos (que apresentara pedido de escusa), foi proferido despacho conhecendo o requerido pela Reclamante, lendo-se no mesmo:
«(…)
d) Dos requerimentos n.ºs ...23 e ...25 e resposta de ...52 e requerimento ...83 da devedora e requerimento ...95 e requerimento de ...31 e requerimento de ...14 e demais requerimentos avulsos relativos à retirada de bens, a putativos direitos de retenção, à realização de obras no imóvel e à intervenção da GNR:
O processamento dos autos não se compadece com sucessivos requerimentos da devedora, de credores, de administradores e de terceiros. Consideramos que é do interesse de todos que os autos prossigam a sua normal tramitação, sendo certo que o processo tem comissão de credores nomeada e o sr. Administrador da Insolvência tem um vasto leque de poderes que lhe permite fazer escolhas com perfeita legitimidade. Por outro lado, o que quer que seja aqui decidido não pode antecipar a decisão a tomar no processo que corre termos no Tribunal ... e que terá influência decisiva na liquidação destes autos.
Assim, consideramos que o bom senso obrigada a que se permita ao novo sr. Administrador da Insolvência inteirar-se das questões pendentes, deslocar-se ao(s) local(ais) onde se encontram os bens e tomar ele posição quanto às questões que afastam os diversos intervenientes.
Após, em 30 dias, deverá o sr. Administrador da Insolvência juntar aos autos um relatório actualizado e circunstanciado no qual tome posição quanto a todas essas questões, após ouvir a comissão de credores. Nessa data, caso sejam colocadas questões ao Tribunal, este decidir este decidirá, como lhe compete.
(…)»