Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
123/15.1T8CBT.G1
Relator: JOSÉ CARLOS PEREIRA DUARTE
Descritores: DECISÃO SURPRESA
ACÇÃO DE DIVISÃO DE COISA COMUM
PROPRIEDADE HORIZONTAL
REQUISITOS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/15/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - O art.º 3º n.º 3 do CPC proíbe as decisões surpresa, ou seja, as decisões baseadas em fundamento de conhecimento oficioso não alegado por alguma das partes e sem que, nomeadamente a parte prejudicada com a decisão, tivesse a obrigação de prever que a mesma fosse proferida com aquele fundamento.
II – Não integra tal conceito a alegação de que o tribunal decidiu num sentido, quando devia ter decidido noutro, pois tal traduz-se num eventual erro de julgamento.
III - Numa acção de divisão de coisa comum de um edifício, relativamente ao qual se pretende a sua constituição em propriedade horizontal, cabe ao requerente alegar e demonstrar que estão verificados:
a) requisitos civis da constituição da propriedade horizontal;
b) requisitos administrativos, decorrentes das normas de urbanismo e edificação, mediante a certificação pela câmara municipal de que o edifício satisfaz os requisitos legais para a sua constituição em regime de propriedade horizontal de acordo com o RJEU.
IV – A não demonstração de tais requisitos impõe que se conclua pela indivisibilidade.
V – Os eventuais procedimentos administrativos que as partes tenham de desencadear para prossecução dos seus interesses, nomeadamente para a constituição de um edifício em propriedade horizontal, não integram o objecto do processo de divisão de coisa comum.
VI - Manifestando ambas as partes a vontade de instaurar o procedimento administrativo tendente à constituição do edifício em propriedade horizontal, o tribunal pode e deve, na medida das suas competências, cooperar com as partes no sentido de se obter a justa composição do litígio (art.º 7º, n.º 1 do CPC).
VII - Mas o tribunal não pode, de forma alguma, por absoluta falta de fundamento legal, impor a um comproprietário que colabore, seja de que forma for, na instauração e prosseguimento do procedimento administrativo tendente à constituição da propriedade horizontal ou substituir-se ao mesmo.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

1. Relatório[1]

A 19 de Junho de 2015, AA intentou contra BB e marido, CC (entretanto falecido, tendo sido habilitados como seus sucessores, por sentença de ../../2017, proferida no apenso A e transitada em julgado, o cônjuge sobrevivo, BB e os filhos, DD, EE e FF) pedindo seja:

a) Reconhecida e declarada a divisibilidade em substância do prédio identificado no art.º 1º da P.I.;
b) Declarada a constituição do mesmo em propriedade horizontal, composto de duas fracções, uma, a fracção ..., correspondente ao lado esquerdo do mesmo prédio, composta de ..., 1º e ... andar, e a fracção ..., correspondente ao lado direito do mesmo prédio, composta de ..., 1º e ... andar, cuja composição, especificação e partes do edifício correspondentes a ambas as fracções, bem como o valor relativo de cada fracção, deverão ser melhor definidas através de peritagem.
c) Adjudicadas, a final, a fracção ..., correspondente ao lado esquerdo do prédio, à requerente e a fracção ..., correspondente ao lado direito do mesmo prédio, aos requeridos.

Alegou para tanto e em síntese que, mediante escritura de partilhas que identifica, foi adjudicada, a si e à Requerida, respetivamente, metade indivisa de um prédio urbano que também identifica; a requerente não pretende permanecer na indivisão; o referido prédio é susceptível de ser dividido e constituído em propriedade horizontal, já que se trata de uma moradia composta de duas habitações distintas e isoladas entre si, com saída própria para uma parte comum do prédio; dois anos após a partilha, entre requerente e requerida ficou acordado que à requerida ficaria a pertencer a parte direita e à requerente a parte esquerda, incluindo metade da garagem existente no r/c e um pequeno logradouro do mesmo lado esquerdo; da divisão não resulta a alteração da sua substância, nem diminuição do valor, nem prejuízo para o fim a que se destina; o prédio integra, para efeitos fiscais, 5 divisões susceptíveis de utilização independente, nos termos que descreve; nada obsta à constituição do prédio em propriedade horizontal, integrando duas fracções, cuja composição, especificação e partes correspondentes a ambas as fracções, bem como o valor relativo de cada fracção, deverão ser definidas através de peritagem.

Citados, contestaram os requeridos dizendo que aquando das partilhas ficou estipulado que a requerida ficaria com o direito de uso do anexo existente na parte lateral esquerda do referido imóvel, anexo que só tem passagem pela lateral esquerda do mesmo; os requeridos não se opõem a que a requerente fique com a metade esquerda do imóvel mediante servidão de passagem para o referido anexo; sem que os requerentes dessem o seu consentimento, a requerente fechou a passagem que existia quer para o referido anexo, quer para o terreno envolvente do imóvel, construindo um muro em torno da lateral esquerda do imóvel, ficando com a maior parte do terreno comum; não podem os requeridos aceitar que a divisão seja efectuada tal e qual peticiona a requerente.
Terminaram dizendo que “deve [a] presente acção ser julgada improcedente por não provada e, em consequência, serem os réus absolvidos do pedido”.

A 13/10/2015 foi proferido o seguinte despacho (com excepção dos parágrafos que relatam as incidências processuais) e que no processo físico se encontra a fls. 76/78:

“(…)
Ora, de acordo com o disposto no art.º 1417º, nº1, do CC, para que a propriedade horizontal possa ser constituída por decisão judicial impõe-se que, a par dos requisitos civis referidos no art.º 1415º do CC, devem verificar-se ainda os requisitos administrativos de constituição da propriedade horizontal, designadamente as exigências legais em matéria arquitetónica, estética, urbanística, de segurança e salubridade, a certificar pelas câmaras municipais como claramente decorre do disposto no art.º 66º, nº 2 e 74º, do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação aprovado pelo Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro.
Com efeito, nos termos do art.º 209º do C. Civil as coisas são divisíveis quando, cumulativamente se verifique o concurso de três circunstâncias: - que não haja alteração da substância; - que não se verifique diminuição do valor (detrimento); - e, que não saia prejudicado o uso a que se destina. Quando tal não suceda a coisa não pode ser fracionada, sendo naturalmente indivisível.
Trata-se, como se infere do exposto, de um critério de divisibilidade que não é puramente naturalístico – uma coisa pode se considerada divisível em substancia apesar de resultar diminuído o seu valor ou prejudicado o fim a que normalmente se adequa.
Neste contexto tem pleno cabimento falar-se em requisitos administrativos de constituição da propriedade horizontal, para além dos requisitos civis enunciados.
Que assim é resulta do disposto no art.º 1418º, nº 3, do C. Civil, em que se faz menção á necessária intervenção da entidade pública na certificação da conformidade entre o fim a que as partes destinam cada fração e o fim que foi fixado no projeto previamente aprovado pela entidade publica competente. E bem assim o disposto nos artigos 1416º, nº 2, e 1418º, nº 3, do C. Civil, no qual se confere às entidades públicas competentes para a aprovação ou fiscalização da construção, a legitimidade para requerer a nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal que não preencha os requisitos administrativos legalmente fixados.
E a esse propósito igualmente o disposto nos arts. 2º, 4º, 60º, 62º a 66º e 70º, todos do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação, aprovado pelo DL n.º 555/99, de 16/12, entretanto alterado pelo DL. n.º 177/2001 e pela Lei n.º 60/2007, de 4/9, nos quais se regulamenta o regime de controlo ou licenciamento prévio das Câmaras Municipais as operações de urbanização e obras particulares, nomeadamente as “obras de alteração” de construções ou edifícios, em que se incluem necessariamente a modificação das características físicas de uma edificação destinada a comércio e habitação para um edifício em regime de propriedade horizontal
No mesmo sentido também o art. 64º-4) da Constituição da República, que comete às autarquias a definição dessas regras urbanísticas.
Ante o exposto e corroborando o que cremos ser o entendimento pacífico da jurisprudência atual, nomeadamente do Supremo Tribunal de Justiça entendemos que, para que possa proceder a pretensão de constituição da propriedade horizontal por decisão administrativa, no âmbito de uma ação de divisão de coisa comum, para além dos requisitos civis, a que se alude no art.º 1415º do C. Civil haverão de concorrer os referidos requisitos administrativos. E todos esses requisitos haverão de concorrer ou verificar-se no momento em que a divisão é requerida e se coloca a questão da divisibilidade. – neste sentido, entre outros, Acórdãos de 05-06-2008, processo nº 08A432; acórdão de 29-11-2006, processo nº 06A3355; acórdão de 03-07-2003, processo nº 03B1747; acórdão de 23-09-2008, processo nº 08B2121; acórdão de 13-12-2007 processo nº 07A3023;
Chamando à colação o entendimento vertido no Ac. da Relaçao do Porto de 17/11/2011, proc. n.º 335/10.4 TVPRT.P1 “Não é assim legítimo ao comproprietário de um prédio utilizar uma ação de divisão de coisa comum para, com o concurso do tribunal, mas sem a intervenção das entidades administrativas competentes, obter o efeito equivalente à constituição da propriedade horizontal.”
Exige-o, de resto, expressamente o Código do Notariado para a constituição por negócio jurídico titulado por escritura pública (art. 59º, nº 1), não se vendo como dispensá-lo para o reconhecimento judicial, tanto mais que se trata, inegavelmente, do cumprimento de normas de direito público, de interesse e ordem pública, ficando para a decisão judicial a resolução de divergências entre os interessados (cfr. RODRIGUES PARDAL e DIAS da FONSECA, “Da propriedade horizontal”, 5ª ed., 97-100).
Assim, esses requisitos administrativos que deverão ser certificados pelas Câmaras, configuram um elemento essencial ou constitutivo do direito à divisibilidade do prédio pelo que têm se ser juntos aos autos a fim de o Tribunal se pronunciar sobre a questão da divisibilidade.
Face ao exposto e uma vez que incumbe à requerente, para além de demonstrar os requisitos civis a que se alude no art.º 1415º do C. Civil, a demonstração do preenchimento dos requisitos administrativos para a constituição da propriedade horizontal, notifique aquela Requerente para, no prazo de 10 dias, juntar aos autos documento comprovativo da certificação pela Câmara Municipal de que o prédio em causa reúne as condições previstas e exigidas administrativamente e satisfaz os requisitos legais de divisibilidade para que se possa proceder à constituição da propriedade horizontal. “

Pronunciou-se a requerente dizendo, em síntese, que a certificação pela Câmara Municipal de que o prédio em causa reúne as condições e satisfaz os requisitos legais de divisibilidade, dependia de subscrição de requerimento conjunto de ambas as comproprietárias, o que a A. não logrou; sendo agora possível tal desiderato, em cumprimento do ordenado, o prazo é insuficiente.
Terminou requerendo a prorrogação do prazo por mais 30 dias.

Os requeridos nada disseram.

Por despacho de 29/10/2015 foi deferida a requerida prorrogação, tendo, na sequência de requerimento da requerente, sido proferido novo despacho de prorrogação, após o que a requerente requereu a suspensão da instância pelo prazo de três meses, a qual, após pronúncia dos requeridos, declarando nada ter a opor à mesma, foi deferida por despacho de 28/04/2016.

Por despacho de 19/09/2016 foi ordenada a notificação das partes para informarem o tribunal se haviam logrado transigir sobre o objecto do processo e, em caso afirmativo, indicarem os termos da transacção, as quais, notificadas, nada disseram.

Por despacho de 13/10/2016 foi ordenada a notificação da requerente para juntar aos autos o documento ordenado por despacho de 13/10/2015.

Foi dado conhecimento aos autos do falecimento do requerido CC e, após junção da certidão de óbito, foi proferido despacho de suspensão da instância.

A ../../2017 foi proferida sentença de habilitação de herdeiros.

A 18/12/2017 foi ordenada a notificação das partes para informarem se tinham logrado transigir sobre o objecto do processo.

Pronunciou-se a requerente dizendo, em síntese, que se mostrava gorada a hipótese de acordo e não tinha sido possível obter certidão comprovativa da divisibilidade do prédio.
E requereu o prosseguimento dos autos.

A 23/01/2018 foi proferido despacho a ordenar a realização de prova pericial para aferir da divisibilidade do prédio e determinar as áreas do prédio, assim como para determinar os quinhões de cada um dos comproprietários e a notificação das partes para indicarem perito, tendo ainda sido ordenado o registo da acção.

Por despacho de 14/02/2018 foram nomeados peritos e fixado prazo para a realização da perícia.

A CRPredial comunicou que a acção havia sido registada como provisória por natureza e por dúvidas, sendo estas devido, nomeadamente, ao facto de o prédio não ter inscrição de aquisição do direito de propriedade a favor das partes na acção e existir divergência injustificada entre a composição do prédio que consta da descrição predial e da matriz e a que consta da petição inicial.

A 27/06/2018 os Srs. Peritos juntaram aos autos Relatório pericial em que informam que o prédio não tem licença de utilização, tem uma área de terreno superior à indicada na CRP, tem condições para ser constituído em propriedade horizontal, com duas fracções autónomas, conforme plantas que anexam e com as percentagens que indicam.

Nenhuma das partes se pronunciou.

A 09/10/2018 foi proferido o seguinte despacho:
“Quando nos preparávamos para proferir sentença, melhor analisados os autos, verificamos que a requerente não juntou aos autos os elementos que lhe foram solicitados por despacho de fls. 76 a 78, os quais são essenciais para que o Tribunal possa aferir da verificação dos pressupostos para judicialmente ser constituída a propriedade horizontal.
Face ao exposto, notifique a requerente para, em 10 dias, juntar esses elementos aos autos, sendo ainda ambas as partes para, em igual prazo, em face do relatório apresentado, ponderarem a possibilidade de obterem uma solução consensual para o presente litígio.”

A partes requereram a “prorrogação de 10 dias” por se encontrarem em negociações, o que foi deferido.

Foi proferido despacho a ordenar a notificação das partes para formalizarem o acordo nos autos, as quais, notificadas, nada disseram, tendo sido proferido despacho a determinar que os autos aguardassem nos termos do art.º 281º do CPC.

A 10/04/2019 veio a requerente dizer que não foi possível alcançar acordo e requerer o prosseguimento dos autos.

A 23/04/2019 foi ordenada a notificação da requerente para juntar aos autos os elementos que lhe foram solicitados por despacho de fls. 76 a 78, a qual, notificada, nada fez ou disse, tendo a 15/05/2019 sido proferido novo despacho a ordenar a notificação da requerente, nos termos do despacho de 23/04/2019.

Pronunciou-se a requerente dizendo que a certificação dos requisitos administrativos, necessários à constituição da propriedade horizontal, depende de prévio requerimento nesse sentido, devidamente instruído e assinado por A. e RR.,; não obstante os esforços envidados pela A. nesse sentido, os RR. têm-se recusado a assinar tal requerimento; não é possível certificar os requisitos necessários à constituição do prédio em propriedade horizontal; devem os mesmos prosseguir os seus termos quanto à peticionada divisão.

Por despacho de 25/06/2019 foi designada data para inquirição de testemunhas.

A 30/09/2019 foi proferido o seguinte despacho:
“Compulsados os autos verifica-se que o processo esteve durante largo hiato temporal à espera que a Requerente juntasse o documento comprovativo da certificação pela Câmara Municipal de que o prédio em causa reúne as condições previstas e exigidas administrativamente e satisfaz os requisitos legais de divisibilidade para que se possa proceder à constituição da propriedade horizontal.
A 29/05/2019 veio a Requerente pedir o prosseguimento dos autos sem tal documento, alegando que não o consegue obter sem o acordo dos Requeridos.
Ora, os autos estão prontos para que seja encerrada a primeira fase do processo de divisão de coisa comum, ou seja, a declaração de compropriedade e a declaração de divisibilidade ou não, não sendo necessário produzir qualquer prova testemunhal dada a existência de relatório pericial que atesta como possível a divisibilidade do prédio em questão.
O único entrave neste momento prende-se com a falta do referido documento.
Importa esclarecer as partes que se tal documento não for junto o Tribunal poderá concluir pela indivisibilidade do prédio em questão, uma vez que a constituição de fracções autónomas sem a necessária certificação da Câmara não é possível pelos fundamentos já largamente explanados em despacho de 13/10/2015.
Pelo exposto, notifique a Requerente para, querendo e no prazo de dez dias, vir aos autos:
1) Juntar o documento comprovativo da certificação pela Câmara Municipal; ou
2) Dizer se mantem interesse na presente acção caso não seja junto o documento requerido.
Dá-se sem efeito a data designada para inquirição de testemunhas, uma vez que tal diligência se demonstra inútil.”

Pronunciou-se a requerente dizendo, em síntese, que a apreciação do pedido de divisão do prédio em substância,  depende dos requisitos civis da divisibilidade do prédio, já demonstrados pela perícia realizada, bem assim como pela própria posição de ambas as partes, as quais, de resto, na prática, já usufruem cada uma da parte que, após a partilha, lhes foi “adjudicada”; quanto ao pedido de simultânea constituição do prédio em propriedade horizontal, esse depende da verificação daqueles (requisitos civis), e da respetiva certificação pela entidade administrativa competente (Câmara Municipal); a dita certificação, não estando o prédio dividido, só pode ser requerida por ambas as partes, conjuntamente; não obstante as tentativas feitas ao longo de largo tempo não foi possível convencer os requeridos a aceitarem subscrever tal pedido em conformidade com o parecer da peritagem realizada; a questão da divisibilidade em substância ainda depende da realização de prova testemunhal complementar, a não ser que o douto Tribunal possa já dar como assente que A. e RR. usufruem, desde há já largos anos, da “parte” que “adjudicaram” entre si; a falta de certificação pela Câmara dos requisitos necessários à constituição do prédio em propriedade horizontal, apenas pode prejudicar o peticionado pela A. nesse sentido.
E declarou manter interesse em que os autos prossigam, com vista à prolação de decisão sobre a divisibilidade do prédio em substância.

Os requeridos nada disseram.

Por despacho de 05/11/2019 foi designada data para tentativa de conciliação, a qual teve lugar, tendo as partes requerido a suspensão da instância por cinco dias, o que foi deferido, tendo a 11/12/2019 a requerente informado que as partes não lograram o acordo.

A 18/12/2019 foi proferido o seguinte despacho:
“Uma vez que as partes não conseguem chegar a um consenso que lhes permita dar andamento aos presentes autos, não querendo o Tribunal com o presente processo chegar a um resultado que não é desejado por nenhuma das partes, determina-se o seguinte:
Oficie à Câmara Municipal ... para que esta informe se o fraccionamento proposto no relatório pericial de fls. 142/161 cumpre os requisitos administrativos de fraccionamento de bens imóveis.
Deverá a Câmara Municipal ... prestar todas as informações e opiniões necessárias para que, a final, o Tribunal possa decidir se existem condições para ordenar a divisão do bem imóvel ou se, pelo contrário, este é indivisível.
Prazo: dez dias.
O ofício em causa deverá ser acompanhado de cópia do referido relatório pericial.”

A 08/01/2020 a Câmara Municipal ... informou o seguinte:

“1. A edificação existente localiza-se em espaço classificado pelo PDM em vigor como Espaço de Uso Múltiplo Agrícola e Florestal, sendo possível a construção – e a divisão em propriedade horizontal  - de 2 fogos, no máximo, com o índice de 0,02m2 de construção por m2 de terreno;
2. A planta da implantação constante do relatório, a folhas 10, traduz limites e área de terreno afetos à edificação diferentes do constante no processo de licenciamento. Essas diferenças não estão explicadas e justificadas e podem ser relevantes em termos de verificação do cumprimento do PDM; a mesma planta não evidencia que as duas fracções tenham acesso direto desde a via pública ou desde área comum, o que é obrigatório por lei.
3. da planta do rés-do-chão, a folhas 10 do relatório, constam elementos construídos ou a construir, não previstos no projecto aprovado.
4. Qualquer eventual fracionamento em violação do PDM em vigor, ou do projeto aprovado, impossibilitará que a Câmara Municipal autorize a utilização das fracções.”

A 03/02/2020 foi proferido o seguinte despacho:
“Notifique as partes para, no prazo de dez dias, requererem o que tiverem por conveniente face ao ofício com referência n.º ...10.
Relembra-se as partes que caso o fracionamento proposto não respeite os requisitos administrativos o Tribunal não poderá considerar o prédio divisível, já que para tanto é necessário constituir as fracções em que este se irá dividir, respeitando todos os requisitos legais.”

Pronunciou-se a requerente, pedindo fosse considerado o fracionamento constante da escritura de partilha junta aos autos e o processo administrativo instruído com esses elementos junto da Município ...; caso a sua pronúncia seja positiva quanto ao fracionamento, têm os presentes autos elementos para a divisão.

Proferiu o tribunal despacho com o seguinte teor:
“ (…)
Desde logo, o fracionamento constante da escritura de partilha não tem qualquer valor, uma vez que foi pedida perícia para determinar as frações a constituir nos presentes autos, cujo relatório pericial foi aceite pelas partes.
Por outro lado, o Tribunal não tem conhecimento da existência de qualquer processo administrativo junto do Município ....
Aliás, a falta desse mesmo “processo administrativo” é o que tem determinado o atraso na resolução do presente litígio.
No processo apenas consta um ofício da Câmara Municipal ... a informar que “qualquer fracionamento em violação do PDM em vigor, ou do projeto aprovado, impossibilitará que a Câmara Municipal autorize a utilização das frações”.
Do referido ofício resulta que o fracionamento proposto no relatório pericial de fls. 142/148 não respeita o PDM nem o projecto de licenciamento aprovado.
Pelo exposto, indefere-se o requerido.
*
Chegados a este ponto, existem três “caminhos” que os autos podem tomar:
1) As partes iniciam o mencionado “processo administrativo” e, em conjunto com as autoridades administrativas, definem quais as fracções a constituir, informando posteriormente os autos e permitindo a divisão do prédio em causa;
2) A(s) parte(s) pretende(m) a realização de nova perícia para que seja proposto um fracionamento que respeite os requisitos administrativos, existindo posteriormente parecer positivo ou não por parte das autoridades administrativas;
3) O processo prossegue com a prova já efectuada, decidindo-se em conformidade com o direito aplicável.
Já foi largamente explicado às partes, tanto por despacho, como em sede de tentativa de conciliação, que o Tribunal não pretende chegar a um resultado que não é desejado por nenhuma delas.
Todavia, os autos têm de seguir o seu rumo, não podendo eternamente esperar pela iniciativa das partes para produzir prova que é do seu exclusivo interesse.
Assim, notifique as partes para, no prazo de dez dias, virem aos autos requerer o que tiverem por conveniente, relembrando que a constituição de frações autónomas sem a necessária certificação da Câmara não é possível pelos fundamentos já largamente explanados em despacho de 13/10/2015.”

Pronunciou-se a requerente, requerendo fosse ordenado o prosseguimento dos autos pelo caminho indicado no despacho sob o n.º 2.

Os requeridos nada disseram.

A 24/06/2020 foi proferido o seguinte despacho:
“Uma vez que o fracionamento proposto no primeiro relatório pericial não cumpre os requisitos administrativos necessários para a sua aprovação (cfr. ofício com ref. n.º ...10), impõe-se a realização de nova perícia para possibilitar o efectivo fracionamento do prédio em causa.
Pelo exposto, nos termos do art.º 926.º n.º 4 do C.P.Civil, defere-se o requerido, ordenando-se a realização de nova perícia.
O novo relatório pericial deverá ter em consideração as anotações feitas pela Câmara Municipal ... e definir, em consonância, a formação dos quinhões (cfr. art.º 926.º n.º 5 do C.P.Civil).”

Por despacho de 14/09/2020 foi nomeado perito e fixado prazo.

A 05/02/2021 o Sr. Perito apresentou o seu Relatório em que, além do mais, refere que “a divisão do prédio em propriedade horizontal carece de autorização da Câmara Municipal ...”.

Por requerimento de 11/08/2021 a requerente pronunciou-se dizendo estar disponível para junto do Município ..., requerer o pedido de autorização de constituição de propriedade horizontal; deve a requerida dar o seu consentimento na sua divisão; caso a mesma não autorize, deve o seu consentimento ser suprido pelo Tribunal.

Por despacho de 29/10/2021 foi designada data para tentativa de conciliação, a qual teve lugar, tendo as partes requerido o prazo de 30 dias para ultimar as negociações, o que foi deferido.

As partes requereram a remessa dos autos para a Mediação e por despacho de 07/04/2022 foi determinada a suspensão da instância por três meses.

Por despacho de 29/09/2022 foi ordenada a notificação das partes para informarem os autos se lograram obter neste período algum acordo e, em caso positivo juntá-lo aos autos.

Pronunciou-se a requerente dizendo que o acordo não havia sido alcançado e pedindo o prosseguimento dos autos.

A 02/11/2022 foi proferido despacho a ordenar a notificação da requerente para juntar documento comprovativo do início do processo administrativo com vista à constituição da propriedade horizontal, sob pena de não o fazendo os autos prosseguirem e ser proferida sentença conhecendo-se da indivisibilidade do prédio.

A 25/11/2022, pronunciou-se a requerente dizendo que no período da suspensão as partes alcançaram entendimento quanto à divisão do prédio e adjudicação, a cada uma das partes, dos andares ou divisões correspondentes, tendo todos se proposto desencadear o processo administrativo de constituição da propriedade horizontal respectivo; mas constataram que as áreas correspondentes ao logradouro e caminho de acesso ao prédio não integram, afinal, o prédio aqui objecto de divisão, facto que impede a constituição da propriedade horizontal nos termos em que acordaram – ainda que verbalmente – dividir; desconhecem, à presente data, o titular do direito de propriedade do prédio onde as áreas de logradouro e caminho de acesso ao prédio dos presentes autos se encontram erradamente incorporadas; as partes estão impossibilitadas de iniciar o processo administrativo de constituição da propriedade horizontal; estarão em condições de desencadear o referido procedimento logo que conheçam o proprietário do prédio actualmente abrangente das áreas de logradouro e acesso ao prédio objecto de divisão.
Terminou requerendo que os autos aguardassem a prestação da informação competente, de modo a proporcionar às partes desencadear o processo de constituição de propriedade horizontal devido.

A requerida aderiu a este requerimento.

Por despacho de 05/12/2022 foi concedido o prazo de 20 dias.

A 03/02/2023 foi ordenada a notificação das partes para dizerem se lograram obter a informação necessária, de modo a proporcionar o desencadeamento do processo de constituição de propriedade horizontal.

A 20/02/2023 pronunciou-se a requerente dizendo que as áreas correspondentes ao logradouro e caminho de acesso ao prédio objecto dos autos encontrar-se-ão integradas no prédio rústico sito no “...”, da freguesia ..., ..., inscrito na matriz rústica da referida freguesia sob o artigo ...15, cuja propriedade se mostra registada a favor da Requerida BB.
E terminou requerendo fosse a Requerida notificada para desencadear o procedimento tendente à constituição da propriedade horizontal requerido, por ser a única com legitimidade para o efeito, em virtude de as áreas correspondentes ao logradouro e caminho de acesso ao prédio objecto de divisão se encontrarem integradas em prédio de que a mesma é proprietária.

A 13/03/2023 foi proferido despacho a ordenar a notificação dos requeridos para informarem se era sua intenção desencadear o processo de constituição de propriedade horizontal, sendo que, em caso positivo, deveriam fazer prova nos autos do seu início.

Pronunciou-se a requerida dizendo desconhecer o alegado pela requerente e que não iriam desencadear o processo de constituição de propriedade horizontal.

A 04/05/2023 foi proferida sentença cujo decisório tem o seguinte teor:
Nestes termos, tendo por base os preceitos legais supracitados, julga-se verificada a situação de compropriedade e declara-se o prédio descrito no ponto n.º 1 dos factos provados indivisível.
Fixa-se as quotas da Requerente em ½ e dos Requeridos em 1/2.
Custas da ação pela Requerente.
Registe e notifique.

E foi designada data para conferência de interessados nos termos do disposto no artigo 929.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.

A requerente interpôs recurso, pedindo a revogação da sentença e a sua substituição por Acórdão que declare a divisão do prédio, ou não se entendendo assim, determine o prosseguimento dos autos, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões:
1º. A Recorrente intentou contra os Recorridos a presente acção de divisão de coisa comum, destinada a colocar termo à compropriedade de prédio urbano, após adjudicação a si e à Requerida, respectivamente, de metade indivisa da verba n.º 15, consistente no “prédio urbano composto por casa de habitação de ré do chão, primeiro e ... andar”, sito no lugar ..., inscrito na respetiva matriz sob o artigo ...16, sendo que o prédio em questão é divisível em duas fracções, distintas e isoladas entre si, com saída directa para uma parte comum do prédio, podendo ser constituído em propriedade horizontal;
2º. Os Requeridos contestaram, alegando apenas que não se opõem a que a Requerente fique com a metade esquerda do imóvel, desde que seja salvaguardada a servidão de passagem daqueles ao anexo existente na parte lateral esquerda do aludido prédio, uma vez que detêm o direito de uso do mesmo;
3º. Foram realizadas duas perícias e solicitado ofício à Câmara Municipal competente, tendo em todos os elementos constado que o prédio tem condições para ser constituído em propriedade horizontal, com duas fracções autónomas;
4º. A Requerente constatou que as áreas correspondentes ao logradouro e caminho de acesso ao prédio objecto dos presentes autos integravam, afinal, um outro prédio rústico, propriedade da aqui Requerida BB, tendo esta, apesar de reconhecer que as referidas áreas não constavam da informação predial e matricial referente ao prédio objecto dos presentes autos, afirmado desconhecer o facto invocado, negando-se a desencadear o respectivo processo administrativo de propriedade horizontal;
5º. Ao declarar a indivisibilidade do prédio, pela inobservância, cumulativamente aos civis, dos requisitos legais administrativos de constituição da propriedade horizontal, desconsiderando a informação favorável à divisão, contida nos relatórios periciais e até no ofício da entidade administrativa certificadora dos referidos requisitos administrativos, promoveu o Douto Tribunal recorrido uma decisão desajustada com os interesses em litígio, contraditória ao entendimento da jurisprudência e doutrina, e que suportou a postura não cooperante dos Requeridos, com vista ao insucesso dos autos, em prejuízo da Recorrente;
6º. De igual modo, ao decidir do mérito da acção, na sua fase declarativa, sem conhecer previamente todas as questões suscitadas quanto às características físico-materiais da coisa - e de que dependem a legitimidade, inclusive, para desencadear o exigido procedimento administrativo de constituição da propriedade horizontal, a que a douta sentença recorrida faz constante apelo – proferiu o Douto Tribunal recorrido verdadeira “decisão- surpresa”, que viola flagrantemente o disposto no art.º 926.º, n.º 3, do CPC, que determina o prosseguimento da fase declarativa com a tramitação própria do processo comum.

2. Questões a apreciar

O objecto do recurso é balizado pelo teor do requerimento de interposição (artº 635º nº 2 do CPC), pelas conclusões (art.ºs 608º n.º 2, 609º, 635º n.º 4, 637º n.º 2 e 639º n.ºs 1 e 2 do CPC), pelas questões suscitadas pelo recorrido nas contra-alegações em oposição àquelas, ou por ampliação (art.º 636º CPC) e sem embargo de eventual recurso subordinado (art.º 633º CPC) e ainda pelas questões de conhecimento oficioso, cuja apreciação ainda não se mostre precludida.

O Tribunal ad quem não pode conhecer de questões novas (isto é, questões que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que “os recursos constituem mecanismos destinados a reapreciar decisões proferidas, e não a analisar questões novas, salvo quando… estas sejam do conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha elementos imprescindíveis” (cfr. António Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 7ª edição, Almedina, p. 139).

Pela sua própria natureza, os recursos destinam-se à reapreciação de decisões judiciais prévias e à consequente alteração e/ou revogação, pelo não é lícito invocar nos mesmos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida.

Muito embora nos recursos também vigore o princípio do dispositivo, o mesmo não abrange a precedência lógico-jurídica por que as questões devem ser apreciadas, o que resulta quer do disposto no art. 608º, nº 2 do CPC, aplicável ex vi art. 663º, n.º 2 também do CPC, ao dispor que o “juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras”, quer do princípio da utilidade processual, plasmado no art. 130º do CPC.

Assim, as questões que cumpre apreciar são as seguintes:
- ao decidir do mérito da acção, sem conhecer previamente as questões suscitadas quanto às características físicas da coisa, o tribunal proferiu decisão surpresa, que viola o n.º 3 do art.º 926º do CPC, pelo que deve ser revogada e substituída por Acórdão que determine o prosseguimento dos autos, como processo declarativo comum?
- ao declarar a indivisibilidade, desconsiderando a informação favorável à divisão, contida nos Relatórios periciais e no ofício da Câmara Municipal, a sentença recorrida é desajustada aos interesses em litígio, contraditória ao entendimento da jurisprudência e doutrina e suportou a postura não cooperante dos Requeridos, com vista ao insucesso dos autos, em prejuízo da Recorrente, pelo que deve ser revogada e substituída por Acórdão que declare a divisão do prédio?

3. Fundamentação de facto

Em primeiro lugar, são relevantes para a apreciação do recurso as incidências processuais indicadas no antecedente relatório e que aqui se dão por reproduzidas.

Em segundo lugar o tribunal a quo considerou:

A. Factos provados
Com interesse para a decisão da causa, consideram-se provados os seguintes factos:
1. Por escritura de partilha outorgada no cartório Notarial ... no dia 6 de janeiro de 2010, lavrada no livro ...3..., a fls. 64 a 67, foi adjudicada à Requerente metade indivisa da verba n.º 15, consistente no “prédio urbano composto por casa de habitação de ré do chão, primeiro e ... andar, no lugar de ..., com a superfície coberta de duzentos e quarenta e um metros virgula vinte metros quadrados, a confrontar de todos os lados com DD, não descrito na Conservatória do Registo Predial deste concelho, inscrito na respetiva matriz sob o artigo ...16, com o valor patrimonial e atribuído de quarenta e nove mil novecentos e vinte euros”.
2. Mediante a escritura de partilha referida em 1), foi também adjudicada à Requerida metade indivisa daquela verba n.º 15.
3. Na escritura referida em 1), os outorgantes declararam que a interessada BB, aqui Requerida, ficava com o direito ao uso do anexo existente na parte lateral esquerda do prédio da verba n.º 15.
4. A escritura de partilha referida em 1), foi alvo de retificação no dia 20 de agosto de 2010, lavrada no livro ...5..., a fls. 48 a 50, no sentido de eliminar a verba n.º 18 da relação de bens constante em documento complementar.
5. A verba n.º 15 encontra-se atualmente descrita na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...23.
6. Através da AP. ...59 de 2013/09/23 foi registada sob o prédio referido em 1) uma penhora tendo como sujeito ativo GG e como sujeito passivo a Requerida, sendo o valor da quantia exequenda de € 24.331,40.
7. Por documento particular datado de 20 de julho de 2012, Requerente e Requeridos declararam que a BB ficaria a pertencer a parte direita do prédio e a AA a parte esquerda, incluindo a metade da garagem existente no ... e um pequeno logradouro do mesmo lado esquerdo.
8. O prédio em causa tem três pisos, cinco divisões suscetíveis de utilização independente, uma área total de 299,88m2, sendo a área coberta de 241, 20m2 e a descoberta de 58, 68m2.
9. O prédio em causa não é passível de divisão.

B. Factos não provados

Com relevância para a solução do pleito ficou por provar que:
a) Foi requerida a certificação pela Câmara Municipal ... de que o prédio referido em 1) dos factos provados satisfaz os requisitos legais para a sua constituição em regime de propriedade horizontal.

4. Fundamentação de direito
4.1. Facto conclusivo

No ponto 9 dos factos provados, o tribunal a quo consignou:
9. O prédio em causa não é passível de divisão.
           
Dispõe o n.º 4 do art.º 607º do CPC (sublinhado nosso):
“Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados….”

Na parte citada, este normativo dirige um comando ao juiz cujo primeiro sentido é este: na fundamentação (de facto) da sentença, só devem constar factos e não matéria de direito e/ou conclusões ou generalidades.

Ou seja: resulta claro deste normativo que na fundamentação de facto apenas cabem asserções de facto e não asserções conclusivas, genéricas, matéria de direito.

É objecto de discussão a distinção entre matéria de facto e de direito.

Tal discussão não tem aqui cabimento.

Apenas se impõe notar que: i) só casuisticamente se poderá afirmar o que é facto e o que é Direito; ii) em traços gerais podemos assentar que: a) é matéria de facto tudo o que respeita às ocorrências da vida real, todos os acontecimentos concretos da vida, que sirvam de pressuposto às normas legais aplicáveis, sejam eles realidades do mundo exterior, como realidades psíquicas ou emocionais do indivíduo; b) é matéria de direito tudo o que diz respeito à interpretação e aplicação da lei e dos negócios jurídicos.

Retomando a sequência, refere Manuel Tomé Soares Gomes, in Da Sentença Cível, CEJ, 2014, in https://elearning.cej.mj.pt/mod/folder/view.php?id=6202, pág. 19-22, sobre a  linguagem dos enunciados de facto (a expressão é do autor citado), que (o sublinhado é nosso) deve ser expurgada de valorações jurídicas, de locuções metafóricas e de excessos de adjetivação.

E também Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 6ª edição, pág. 350-351, refere:
“Outro vício que pode detetar-se (...), pode traduzir-se na integração na sentença, na parte em que se enuncia a matéria de facto provada (e não provada), de pura matéria de direito (…).
(…)
Por isso, a patologia da sentença neste segmento apenas se verificará, em linhas gerais, quando seja abertamente assumida como “matéria de facto provada” pura e inequívoca matéria de direito.”

Está em causa nos autos saber se o prédio identificado no ponto 1 dos factos provados é divisível ou não.

E, como veremos melhor, a divisibilidade ou indivisibilidade é a conclusão jurídica a que se chega em função dos factos provados.

Neste contexto, não é possível deixar de concluir que o ponto 9 dos factos provados não expressa um facto, mas uma conclusão jurídica.

Contendo a sentença juízos conclusivos ou matéria de direito, coloca-se a questão de saber como resolver.

Hoje não existe nenhum normativo idêntico ao artigo 646º, n.º 4 do CPC revogado, que determinava terem-se por não escritas as respostas do tribunal colectivo sobre questões de direito e que se aplicava, por analogia, à matéria conclusiva.
Mas o princípio que estava subjacente ao preceito não desapareceu, como tem vindo a decidir a jurisprudência.

Assim:
- no Ac. do STJ de 28/09/2017, proc. 809/10.7TBLMG.C1.S1, consultável in www.dgsi.pt/jstj:
 “Muito embora o art. 646.º, n.º 4, do anterior CPC tenha deixado de figurar expressamente na lei processual vigente, na medida em que, por imperativo do disposto no art.º 607.º, n.º 4, do CPC, devem constar da fundamentação da sentença os factos julgados provados e não provados, deve expurgar-se da matéria de facto a matéria susceptível de ser qualificada como questão de direito, conceito que, como vem sendo pacificamente aceite, engloba, por analogia, os juízos de valor ou conclusivos”.

- no Ac. desta RG de 20.09.2018, proc. 778/16.0T8BCL.G1, consultável in www.dgsi.pt/jtrg em cuja fundamentação consta:
“O Código do Processo Civil de 2013 eliminou o citado preceito [646º n.º 4 do CPC de 1961], no entanto é de considerar que se mantém tal entendimento, interpretando a contrario sensu o n.º 4 do art. 607.º, segundo o qual, na fundamentação da sentença o juiz declara quais os factos que julga provados. Ou seja o tribunal só pode e deve considerar como provado em resultado da prova produzida “os factos” e não as conclusões ou juízos de valor a extrair dos mesmos à luz das normas jurídicas aplicáveis, o que é uma operação intelectual bem distinta.

- no Ac. desta RG de 11.10.2018, proc. 616/16.3T8VNF-D.G1, consultável no mesmo sítio do anterior, onde consta:
“ De resto, ainda que o actual CPC não inclua uma disposição legal com o conteúdo do art.º 646º n.º 4 do pretérito CPC (o qual considerava não escritas as respostas sobre matéria de direito), (…) que tal não permite concluir que pode agora o juiz incluir no elenco dos factos provados meros conceitos de direito e/ou conclusões normativas, e as quais, a priori e antecipada e comodamente, acabem por condicionar e traçar desde logo o desfecho da acção ou incidente, resolvendo de imediato o “thema decidendum”.

- no Ac. do STJ de 19/01/2023, processo 15229/18.7T8PRT.P1.S1, consultável in www.dgsi.pt/jstj consta do respetivo texto que “por imperativo do estatuído no artigo 607º nº 4 do CPC, devem constar da fundamentação da sentença os factos – e apenas os factos – julgados provados e não provados, o que significa que deve ser suprimida toda a matéria deles constante susceptível de ser qualificada como questão de direito, conceito que, como vem sendo pacificamente aceite, engloba, por analogia, juízos de valor ou conclusivos.”
Este mesmo Ac. refere ainda que “saber se um concreto facto integra um conceito de direito ou assume feição conclusiva ou valorativa constitui questão de direito, porquanto não envolve um juízo sobre a idoneidade da prova produzida para a demonstração ou não desse mesmo facto enquanto realidade da vida.”

Em face do exposto, integrando o ponto 9 dos factos provados, uma conclusão jurídica, o mesmo não se pode manter, por violação do disposto no art.º 607º n.º 4 do CPC, pelo que se impõe e decide eliminar o mesmo.

4.2. Decisão surpresa – Enquadramento jurídico
Dispõe o art.º 3º n.º 3 do CPC que o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.

O princípio do contraditório era tradicionalmente entendido como impondo que: a) formulado um pedido ou tomada uma posição por uma parte, devia ser dada à outra a oportunidade de se pronunciar, antes de qualquer decisão; b) oferecida uma prova por uma parte, a parte contrária devia ser chamada a controlá-la e sobre ela tinham, ambas, o direito de se pronunciar.

A esta noção substitui-se uma mais lata, com origem na garantia constitucional do rectliches Gehör germânico, entendida como garantia da participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objecto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão (Lebre de Freitas, in Introdução ao Processo Civil, Coimbra Editora, 3ª edição, pág.124-125).

O principio do contraditório é uma decorrência do direito a um processo equitativo, consagrado no n.º 4 do art.º 20º da CRP.

O art.º 3º n.º 3 do CPC proíbe as decisões surpresa, ou seja, as decisões baseadas em fundamento de conhecimento oficioso não alegado por alguma das partes e sem que, nomeadamente a parte prejudicada com a decisão, tivesse a obrigação de prever que a mesma fosse proferida com aquele fundamento.

É no domínio das questões de conhecimento oficioso, que não foram suscitadas por nenhuma das partes e não foram objecto de discussão, que o normativo tem especial aplicação (cfr. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa, in CPC Anotado, I, pág. 22), devendo o juiz, antes de decidir, facultar às partes, a possibilidade de se pronunciarem.

Só assim não será, em caso de manifesta desnecessidade, refere o normativo supra citado.

Como referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa, in ob. cit., pág. 22, estamos perante um conceito indeterminado, que carece de preenchimento casuístico.

Aqueles autores, in ob. e loc. cit., adiantam que será o caso do indeferimento de nulidades (art.º 201º) e sempre que as partes não possam, objectivamente e de boa-fé, alegar o desconhecimento das questões de direito ou de facto a decidir ou as respectivas consequência, citando o Ac. da RL de 24/04/2018, processo 15582/17.

Por sua vez Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in CPC Anotado, I, 3ª edição, pág. 10, referem: ”Pode assim não ter lugar o convite para discutir uma questão de direito quando as partes, embora não a tenham invocado expressamente nem referido o preceito legal aplicável, implicitamente a tiveram em conta sem sombra de dúvida, designadamente por ter sido apresentada uma versão fáctica, não contrariada, que manifestamente não consentia outra qualificação. Pode ele também não ter lugar quando a questão seja decidida favoravelmente à parte não ouvida (195º n.º 1) ou quando seja proferido despacho que convide uma parte a sanar uma irregularidade (art.º 146º n.º 2; art.º 590º n.º 3) ou uma insuficiência expositiva ( art.º 590º n.º 4; art.º 6039º n.º 3).”

Miguel Teixeira de Sousa, no blog do IPPC, CPC on line, anotação ao art.º 3º, consultável  in https://drive.google.com/file/d/1CCNyWxqYK6Tv02v1qjlK_u_BRSsygqp1/view, refere que “ A auscultação prévia é dispensada quando teria sido exigível que as partes tivessem discutido a questão de direito ou de facto (STJ 20/5/2021 (81/14)) ou antecipado a alteração da qualificação jurídica, bem como em caso de manifesta desnecessidade (RP 8/3/2019 (14727/17)) (n.º 3). É o que se verifica, p. ex., quando o tribunal profere um despacho de mero expediente (art. 152.º, n.º 4 1.º parte) ou convida uma das partes a aperfeiçoar o seu articulado deficiente (art. 590.º, n.º 2, al. b), e 4).

Caso o tribunal decida uma questão de conhecimento oficioso, sem audição prévia das partes, coloca-se a questão da qualificação do vício dessa decisão – decisão surpresa - e do meio de reacção.
           
Neste ponto acompanhamos o que vem sendo afirmado por Miguel Teixeira de Sousa, no blog do IPPC e nomeadamente in https://blogippc.blogspot.com/2020/09/nulidades-do-processo-e-nulidades-da.html e que também colhe o apoio de Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa, in ob. cit., pág. 762, nota 1.
           
Assim, uma sentença (ou um despacho) pode ser visto como trâmite ou como acto: no primeiro caso, atende-se à sentença/despacho no quadro da tramitação da causa; no segundo, considera-se o conteúdo admissível ou necessário da sentença.
Enquanto trâmite está sujeita à nulidade processual plasmada no artigo 195º do CPC, se se verificar alguma das situações nele referidas: a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.
           
Enquanto acto está sujeito à nulidade da sentença, se se verificar alguma das situações plasmadas nas diversas alíneas do n.º 1 art.º 615º do CPC, nomeadamente, a referida na alínea d), quando o juiz conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
           
Sendo assim, é fácil verificar que os citados vícios não se confundem.
           
A decisão-surpresa, isto é, a decisão que não dá cumprimento ao disposto no art.º 3º n.º 3 do CPC, não constitui uma nulidade processual nos termos do art.º 195.º, n.º 1 do CPC, mas uma nulidade da sentença de acordo com o estabelecido no art.º 615.º, a qual é aplicável aos despachos nos termos do art.º 613º n.º 3 do CPC.
           
E isto porque a decisão-surpresa, isto é, a adopção de uma decisão com um fundamento de conhecimento oficioso, sem que tenha sido dada a possibilidade às partes de se pronunciarem, nada tem a ver com a decisão como trâmite, mas com a decisão como acto; a audição prévia das partes é um pressuposto ou uma condição para que a decisão não seja considerada uma decisão-surpresa e, assim, violadora do princípio do contraditório (o “contraditório” não é um acto da tramitação do processo, mas um princípio estruturante de todo o processo); a não audição prévia das partes numa situação em que a mesma se impunha repercute-se na própria decisão, constituindo um vício intrínseco da mesma, que determina a sua nulidade por excesso de pronúncia (art. 615.º, n.º 1, al. d), CPC), dado que se pronuncia sobre uma questão sobre a qual, sem a audição prévia das partes, não se pode pronunciar.
           
Assim, a sua invocação deve ser feita através da interposição de recurso, como dispõe o n.º 4 do art.º 615º do CPC, a menos que a decisão não o admita, situação em que cabe reclamação para o tribunal que proferiu a decisão (sobre esta matéria pode ainda ver-se Abrantes Geraldes, in Recursos em processo civil, 6ª Edição, 2021, págs. 23-28).
           
4.3. Em concreto
A recorrente invoca que “constatou que as áreas correspondentes ao logradouro e caminho de acesso ao prédio objecto dos presentes autos integravam, afinal, um outro prédio rústico, propriedade da aqui Requerida BB, (…) negando-se a desencadear o respectivo processo administrativo de propriedade horizontal”; o tribunal a quo “ao decidir do mérito da acção, na sua fase declarativa, sem conhecer previamente todas as questões suscitadas quanto às características físico-materiais da coisa - e de que dependem a legitimidade, inclusive, para desencadear o exigido procedimento administrativo de constituição da propriedade horizontal, a que a douta sentença recorrida faz constante apelo – proferiu o Douto Tribunal recorrido verdadeira “decisão-surpresa”, que viola flagrantemente o disposto no art.º 926.º, n.º 3, do CPC, que determina o prosseguimento da fase declarativa com a tramitação própria do processo comum.”

Vejamos as incidências processuais relevantes.

A requerente intentou a presente acção de divisão de coisa comum do “Prédio urbano composto por CASA DE HABITAÇÃO DE ..., PRIMEIRO E ..., no lugar ..., com a superfície coberta de duzentos e quarenta e um metros virgula vinte metros quadrados, a confrontar de todos os lados com DD, não descrito na Conservatória ... pedido fosse:
a) Reconhecida e declarada a divisibilidade em substância do prédio identificado no art.º 1º da P.I.;
b) Declarada a constituição do mesmo em propriedade horizontal, composto de duas fracções, uma, a fracção ..., correspondente ao lado esquerdo do mesmo prédio, composta de ..., 1º e ... andar, e a fracção ..., correspondente ao lado direito do mesmo prédio, composta de ..., 1º e ... andar, cuja composição, especificação e partes do edifício correspondentes a ambas as fracções, bem como o valor relativo de cada fracção, deverão ser melhor definidas através de peritagem.
c) Adjudicadas, a final, a fracção ..., correspondente ao lado esquerdo do prédio, à requerente e a fracção ..., correspondente ao lado direito do mesmo prédio, aos requeridos.

A 25/11/2022, a requerente veio aos autos dizer que as partes alcançaram entendimento quanto à divisão do prédio e adjudicação, a cada uma das partes, dos andares ou divisões correspondentes, tendo todos se proposto desencadear o processo administrativo de constituição da propriedade horizontal respectivo; mas constataram que as áreas correspondentes ao logradouro e caminho de acesso ao prédio não integram, afinal, o prédio aqui objecto de divisão, facto que impede a constituição da propriedade horizontal nos termos em que acordaram – ainda que verbalmente – dividir; desconhecem, à presente data, o titular do direito de propriedade do prédio onde as áreas de logradouro e caminho de acesso ao prédio dos presentes autos se encontram erradamente incorporadas; as partes estão impossibilitadas de iniciar o processo administrativo de constituição da propriedade horizontal; estarão em condições de desencadear o referido procedimento logo que conheçam o proprietário do prédio actualmente abrangente das áreas de logradouro e acesso ao prédio objecto de divisão.

E terminou requerendo que os autos aguardassem a prestação da informação competente, de modo a proporcionar às partes desencadear o processo de constituição de propriedade horizontal devido.

A requerida aderiu a este requerimento.

Por despacho de 05/12/2022 foi concedido o prazo de 20 dias.

A 03/02/2023 foi ordenada a notificação das partes para dizerem se lograram obter a informação necessária, de modo a proporcionar o desencadeamento do processo de constituição de propriedade horizontal.

A 20/02/2023 pronunciou-se a requerente dizendo que as áreas correspondentes ao logradouro e caminho de acesso ao prédio objecto dos autos encontrar-se-ão integradas no prédio rústico sito no “...”, da freguesia ..., ..., inscrito na matriz rústica da referida freguesia sob o artigo ...15, cuja propriedade se mostra registada a favor da Requerida BB.

E terminou requerendo fosse a Requerida notificada para desencadear o procedimento tendente à constituição da propriedade horizontal requerido, por ser a única com legitimidade para o efeito, em virtude de as áreas correspondentes ao logradouro e caminho de acesso ao prédio objecto de divisão se encontrarem integradas em prédio de que a mesma é proprietária.

A 13/03/2023 foi proferido despacho a ordenar a notificação dos requeridos para informarem se era sua intenção desencadear o processo de constituição de propriedade horizontal, sendo que, em caso positivo, deveriam fazer prova nos autos do seu inicio.

Pronunciou-se a requerida dizendo desconhecer o alegado pela requerente e que não iriam desencadear o processo de constituição de propriedade horizontal.

E finalmente, a 04/05/2023 foi proferida sentença cujo decisório tem o seguinte teor:
Nestes termos, tendo por base os preceitos legais supracitados, julga-se verificada a situação de compropriedade e declara-se o prédio descrito no ponto n.º 1 dos factos provados indivisível.
Fixa-se as quotas da Requerente em ½ e dos Requeridos em 1/2.
Custas da ação pela Requerente.
Registe e notifique.

Vejamos

A primeira observação que se impõe é que, tendo em consideração o itinerário processual, o tribunal tinha que decidir uma questão: o prédio cuja divisão vinha pedida era divisível, no caso mediante a constituição em propriedade horizontal, ou indivisível (sendo que, como decorre do n.º 4 do art.º 926º do CPC, a indivisibilidade é de conhecimento oficioso).

E decidiu essa questão.

Assinale-se que não o fez, sem antes e logo a 13/10/2015, ter manifestado o entendimento de que ”para que possa proceder a pretensão de constituição da propriedade horizontal por decisão administrativa, no âmbito de uma ação de divisão de coisa comum, para além dos requisitos civis, a que se alude no art.º 1415º do C. Civil haverão de concorrer os referidos requisitos administrativos. E todos esses requisitos haverão de concorrer ou verificar-se no momento em que a divisão é requerida e se coloca a questão da divisibilidade “.

E, em coerência com tal entendimento, observou o disposto no art.º 590º, n.º 3 do CPC, aplicável ex vi art.º 549º do CPC, ordenando a notificação da requerente para juntar “documento comprovativo da certificação pela Câmara Municipal de que o prédio em causa reúne as condições previstas e exigidas administrativamente e satisfaz os requisitos legais de divisibilidade para que se possa proceder à constituição da propriedade horizontal “.

O que repetiu por despachos de 13/10/2016, 09/10/2018, 23/04/2019, 15/05/2019, 30/09/2019 e 22/11/2022, este último com a advertência de não o fazendo, os autos prosseguirem e ser proferida sentença, conhecendo-se da indivisibilidade do prédio.

É certo que a recorrente, pelo requerimento de 25/11/2022, veio dizer que, muito embora tivessem chegado a acordo quanto à divisão da coisa mediante a constituição do prédio em propriedade horizontal, depararam-se com o facto de as áreas correspondentes ao logradouro e caminho de acesso ao prédio não integrarem, afinal, o prédio objecto de divisão, facto que impedia a constituição da propriedade horizontal nos termos em que acordaram.

Alega então a recorrente que o tribunal não se podia pronunciar sobre a divisibilidade ou indivisibilidade sem conhecer “as questões suscitadas quanto às características físico-materiais da coisa”, que implicam com a “legitimidade (…) para desencadear o exigido procedimento administrativo de constituição da propriedade horizontal”, as quais “determinam o prosseguimento da fase declarativa com a tramitação própria do processo comum.”
 
Resulta evidente que esta alegação não integra o conceito de decisão surpresa.

Traduz, antes, a alegação de erro de julgamento: o tribunal decidiu num sentido, quando devia ter sentido noutro sentido.

Mas então cabe perguntar se a recorrente suscitou alguma questão relativa “às características físico-materiais da coisa” e, tendo-o feito, se era uma questão que não podia ser sumariamente decidida e devia o tribunal ter mandado seguir os termos do processo comum.

Vejamos o enquadramento jurídico

Dispõe o n.º 1 do art.º 926º do CPC que os requeridos são citados para contestar, no prazo de 30 dias, oferecendo logo as provas de que dispuserem.
E, nos termos do n.º 2, se houver contestação ou a revelia não for operante, o juiz, produzidas as provas necessárias, profere logo decisão sobre as questões suscitadas pelo pedido de divisão, aplicando-se o disposto nos artigos 294.º e 295.º.
Mas, ressalva o n.º 3, que, se o juiz verificar que a questão não pode ser sumariamente decidida, conforme o preceituado no número anterior, ou seja, aplicando-se o disposto nos artigos 294.º e 295.º, manda seguir os termos, subsequentes à contestação, do processo comum.

A resposta à questão colocada é claramente negativa: o que a recorrente veio dizer foi que havia surgido um obstáculo à constituição da propriedade horizontal…nos termos em que as partes haviam acordado verbalmente.

E o que requereu foi que os autos aguardassem a prestação da informação competente, de modo a proporcionar às partes desencadear o processo de constituição de propriedade horizontal devido.

Ou seja: a alegação de que as áreas correspondentes ao logradouro e caminho de acesso ao prédio não integravam, afinal, o prédio objecto de divisão, não foi uma questão colocada ao tribunal para decidir, mas apenas a justificação para o facto de as partes não poderem desencadear, junto da entidade competente, o procedimento administrativo tendente à constituição da propriedade horizontal.

E sendo assim – independentemente de a questão ter sido suscitada pela própria requerente já numa fase adiantada – não se verifica o pressuposto essencial para os autos seguirem os termos do processo comum: ter sido uma questão que ao tribunal coubesse decidir.

Sempre se dirá o seguinte.

Na sequência da identificação da requerida como sendo a alegada proprietária das áreas correspondentes ao logradouro e caminho de acesso ao prédio, a requerente pediu que a mesma fosse notificada para desencadear o procedimento tendente à constituição da propriedade horizontal.

E por despacho de 13/03/2023 foi ordenada a notificação dos requeridos para informarem se era sua intenção desencadear o processo de constituição de propriedade horizontal, tendo a requerida se pronunciado dizendo desconhecer o alegado pela requerente e que não iriam desencadear o processo de constituição de propriedade horizontal.

Manifestando ambas as partes a vontade de instaurar o procedimento administrativo tendente à constituição do edifício em propriedade horizontal, o tribunal pode e deve, na medida das suas competências, cooperar com as partes no sentido de se obter a justa composição do litígio (art.º 7º, n.º 1 do CPC)

Mas o tribunal não pode, de forma alguma, impor a um comproprietário que colabore, seja de que forma for, na constituição da propriedade horizontal ou na ultrapassagem de obstáculos à mesma, quando tal esteja dependente, única e exclusivamente, da sua vontade, como é o caso da instauração e prosseguimento do procedimento administrativo tendente à constituição daquela.

Dizendo uma das partes que não iria desencadear o processo administrativo de constituição da propriedade horizontal, nada mais cabia ao tribunal fazer senão decidir a questão essencial que era colocada nos autos: divisibilidade do prédio dos autos, mediante a constituição da propriedade horizontal, ou a sua indivisibilidade, por inverificação dos requisitos civis e administrativos necessários para a constituição da mesma.

E para tomar esta decisão e, nomeadamente, para concluir pela inviabilidade da constituição da propriedade horizontal, por inverificação dos requisitos civis e administrativos necessários para a constituição da mesma, era irrelevante saber se as áreas correspondentes ao logradouro e caminho de acesso ao prédio não integram o prédio objecto de divisão, pois tal apenas foi invocado como justificação para a impossibilidade de instauração, por acordo entre todos os comproprietários, do procedimento administrativo da constituição da propriedade horizontal.

E para terminar cumpre referir que o tribunal considerou provado, sob o ponto 8 dos factos provados que “O prédio em causa tem três pisos, cinco divisões suscetíveis de utilização independente, uma área total de 299,88m2, sendo a área coberta de 241, 20m2 e a descoberta de 58, 68m2.”, ponto da matéria de facto que não foi objecto de qualquer impugnação por parte da recorrente.

Em face do exposto e em resposta às questões colocadas pelas conclusões 4 e 6, conclui-se que o tribunal não proferiu qualquer decisão surpresa e, mesmo colocando a questão pela perspectiva do erro de julgamento, não foi colocada ao tribunal qualquer questão relativamente às características físico-materiais da coisa, que ao tribunal coubesse decidir, pelo que improcede a pretensão da decisão recorrida ser substituída por outra que determine o prosseguimento dos autos, como processo declarativo comum.

4.4. Divisão da coisa comum mediante a constituição do edifício em propriedade horizontal - Enquadramento jurídico

Dispõe o n.º 1 do art.º 1403.º do CC que “[e]xiste propriedade em comum, ou compropriedade, quando duas ou mais pessoas são simultaneamente titulares do direito de propriedade sobre a mesma coisa.”

E nos termos do n.º 2 do mesmo normativo, “[o]s direitos dos consortes ou comproprietários sobre a coisa comum são qualitativamente iguais, embora possam ser quantitativamente diferentes; as quotas presumem-se, todavia, quantitativamente iguais na falta de indicação em contrário do título constitutivo.”

Finalmente o art.º 1405º, n.º 1 dispõe que “[o]s comproprietários exercem, em conjunto, todos os direitos que pertencem ao proprietário singular; separadamente, participam nas vantagens e encargos da coisa, em proporção das suas quotas e nos termos dos artigos seguintes.”

Como refere José Alberto Vieira, in Direitos Reais, Almedina, 3ª edição, pág. 332 e pág. 362, onde adere à tese da natureza jurídica da compropriedade apresentada por Luís Pinto Coelho, a “comunhão representa simplesmente uma situação de concurso de direitos reais da mesma espécie, todos eles tendo a mesma coisa por objecto. Este concurso projecta-se (…) no conteúdo de cada um dos direitos dos comunheiros, particularmente no conteúdo negativo…”

E, mais adiante, pág. 339, refere que “[c]ada comunheiro é titular de um direito independente dos demais, com a particularidade deste direito partilhar o seu objecto com outros direitos reais da mesma espécie.”

Precisa o referido autor, in ob. cit. pág. 363, que os “direitos dos comunheiros oneram-se reciprocamente, limitando o exercício de cada um deles no respeito pelo conteúdo do aproveitamento dos outros.”

Não importa aqui dar conta de todos os poderes dos comproprietários (a este respeito cfr. José Alberto Vieira, ob. cit. pág. 343 e ss).

Apenas cumpre verificar que um dos poderes é o de suscitar a divisão da coisa comum, o qual está inscrito no art.º ...12..., ..., onde se dispõe que “[n]enhum dos comproprietários é obrigado a permanecer na indivisão, salvo quando se houver convencionado que a coisa se conserve indivisa”, dispondo o n.º 2 que “[o] prazo fixado para a indivisão da coisa não excederá cinco anos; mas é lícito renovar este prazo, uma ou mais vezes, por nova convenção.”

A este respeito refere José Alberto Vieira, ob. cit. pág. 354:
“A ideia de que o aproveitamento da coisa é mais profícuo havendo um só titular do direito e de que isso corresponde a um interesse público tem feito subsistir nos dias de hoje o carácter provisório que a comunhão tinha no Direito romano.”

Como resulta do disposto no art.º 1413º, n.º 1, a divisão é feita: i) amigavelmente - isto é, por acordo entre todos os consortes ou comproprietários, a qual, nos termos do n.º 2, está sujeita à forma exigida para a alienação onerosa da coisa – ii) ou nos termos da lei de processo, ou seja, através do processo especial de divisão de coisa comum, o qual consta dos art.ºs 925º a 930º do CPC.

Dispõe o art.º 925º do CPC:
Todo aquele que pretenda pôr termo à indivisão de coisa comum requer, no confronto dos demais consortes, que, fixadas as respetivas quotas, se proceda à divisão em substância da coisa comum ou à adjudicação ou venda desta, com repartição do respetivo valor, quando a considere indivisível, indicando logo as provas.

O processo especial de divisão de coisa comum comporta duas fases: uma declarativa a que se reportam os art.ºs 925.º a 928.º do CPC e outra executiva, a que se reporta o art.º 929.º do CPC e , havendo lugar à venda, “esta é feita pelas formas estabelecidas para o processo de execução e precedida das citações ordenadas no artigo 786.º, observando-se quanto à reclamação e verificação dos créditos as disposições dos artigos 788.º e seguintes, com as necessárias adaptações, incumbindo ao oficial de justiça a prática dos atos que, no âmbito do processo executivo, são da competência do agente de execução.”, como dispõe o art.º 549º, n.º 2 do CPC.
A fase declarativa processa-se de acordo com as regras aplicáveis aos incidentes da instância, como determina o n.º 2 do art.º 926.º, ao mandar aplicar o disposto nos artigos 294.º e 295.º, excepto se o Juiz verificar que a questão não pode ser sumariamente decidida, caso em que os autos deverão seguir os termos do processo comum, como dispõe o n.º 3 do art.º 926.º.
Quer se siga a tramitação do modelo incidental (n.º 2 do art. 926º), quer a do processo comum (n.º 3 do art. 926º), a decisão final poderá consistir numa das seguintes decisões alternativas: a) julgar improcedente a contestação e procedente a ação, caso em que o processo segue para a fase destinada à fixação dos quinhões nos termos do art. 927º, n.º 1; b) julgar totalmente improcedente a ação, terminando o processo; c) julgar parcialmente procedente a ação, por eventual reconhecimento da indivisibilidade material da coisa, caso em que o processo seguirá para a conferência de interessados nos termos do art. 929º, n.º 2 (cfr. Ac. desta RG de 28/01/2021, processo 43/18.8T8GMR.G1, consultável in www.dgsi.pt/jtrg).
A fase declarativa visa decidir sobre a existência e os termos do direito à divisão.
É nesta fase que se apreciam as questões relativas à natureza comum da mesma, às suas características materiais, aos quinhões e à divisibilidade da coisa
A fase executiva dirige-se ao preenchimento dos quinhões em espécie ou por equivalente, mediante adjudicação, por acordo ou por sorteio, ou, se a coisa for indivisível, à sua adjudicação a algum dos interessados ou à sua venda.
A definição das características materiais é relevante na medida em que constitui jurisprudência uniforme que o juízo acerca da divisibilidade da coisa comum deve reportar-se ao momento em que a divisão é requerida, ou seja, “atende-se ao que a coisa é (realidade predial existente) e não ao que poderá vir a ser futuro com mais ou menos obras e trabalhos. A questão da divisibilidade não pode ficar à mercê de situações futuras e hipotéticas.” (cfr. Luís Sousa, ob. cit., pág. 31 com recensão de jurisprudência na nota 70 e Ac. desta RG de 29/09/2022, proc. 367/21.7T8MNC.G1, consultável in www.dgsi.pt/jtrg).

Quanto à divisibilidade, dispõe o art.º 209º do CC:
São divisíveis as coisas que podem ser fraccionadas sem alteração da sua substância, diminuição de valor ou prejuízo para o uso a que se destinam.

Da definição de divisibilidade decorre a definição de indivisibilidade: são indivisíveis as coisas que não podem ser fraccionadas sem que isso tenha como consequência a alteração da sua substância, diminuição de valor ou prejuízo para o uso a que se destinam.

Constitui entendimento uniforme que o conceito de divisibilidade ou indivisibilidade de um prédio é um conceito jurídico, e não naturalístico ou físico, uma vez que, materialmente, todas as coisas são divisíveis (Luís Sousa, ob. cit. pág. 28).

Do citado art.º 209º decorre que desde que falhe um dos critérios de divisibilidade referidos, impõe-se considerar a coisa indivisível (cfr. José Alberto Vieira, ob. cit. pág. 179-180).

Importa ainda considerar a “indivisibilidade legal”, que, como afirma Luís Sousa, in Processos Especiais de Divisão de Coisa Comum e de prestação de contas, Almedina, 3ª edição, pág. 31, “resulta de normas imperativas (…), quer as que regulam o fracionamento de prédios rústicos, quer as que regem sobre as operações de loteamento, bem como as normas imperativas sobre a constituição da propriedade horizontal.”
Importa aqui ter em consideração que no âmbito do processo especial de divisão de coisa comum a indivisibilidade é de conhecimento oficioso pois dispõe o n.º 4 do art.º 926º: “Ainda que as partes não hajam suscitado a questão da indivisibilidade, o juiz conhece dela oficiosamente, determinando a realização das diligências instrutórias que se mostrem necessárias.”
No âmbito do processo especial de divisão de coisa comum, sendo a coisa indivisível, a comunhão extingue-se com a adjudicação da coisa a um dos consortes ou venda da mesma – à qual podem concorrer os consortes -, com repartição do respetivo valor na proporção da sua quota (art.ºs 925º, n.º 1 e 929º, n.ºs 1, 2 e 3);  sendo a coisa divisível, a comunhão extingue-se com a adjudicação, por acordo ou por sorteio (929º, n.º 1).
Nos autos está em causa um edifício, tendo sido pedido que o mesmo fosse declarado divisível e constituída a propriedade horizontal.
Tratando-se de um edifício, a divisibilidade em substância, o seu fracionamento (que, resulta evidente, se traduz numa transformação do mesmo, pois se a coisa se divide em outras, não é mais a mesma) pode resultar em outros edifícios ou em fracções autónomas, neste caso mediante a sujeição daquele ao regime da propriedade horizontal, que, nos termos do art.º 1414º, se traduz no seguinte:
As fracções de que um edifício se compõe, em condições de constituírem unidades independentes, podem pertencer a proprietários diversos em regime de propriedade horizontal.

Acrescenta o art.º 1415º que “[s]ó podem ser objecto de propriedade horizontal as fracções autónomas que, além de constituírem unidades independentes, sejam distintas e isoladas entre si, com saída própria para uma parte comum do prédio ou para a via pública.”

Destarte, só será possível a constituição de um edifício em propriedade horizontal desde que as fracções autónomas constituam:
- unidades independentes;
- distintas e isoladas entre si;
- com saída própria para uma parte comum do prédio ou para a via pública

Mas as fracções autónomas não são o único elemento da propriedade horizontal, pois a mesma contempla ainda partes comuns, a que se referem o art.º 1421º e, nessa medida, o n.º 1 do art.º 1420º dispõe que “[c]ada condómino é proprietário exclusivo da fracção que lhe pertence e comproprietário das partes comuns do edifício.”, dispondo ainda o n.º 2 que “[o] conjunto dos dois direitos é incindível; nenhum deles pode ser alienado separadamente, nem é lícito renunciar à parte comum como meio de o condómino se desonerar das despesas necessárias à sua conservação ou fruição.”

Quanto à constituição da propriedade horizontal, decorre do disposto no art.º 1417º, n.º 1 (sublinhado nosso) que “[a] propriedade horizontal pode ser constituída por negócio jurídico, usucapião, decisão administrativa ou decisão judicial, proferida em acção de divisão de coisa comum ou em processo de inventário.”

Especificamente quanto à constituição por decisão judicial, dispõe o n.º 2 do mesmo preceito que “pode ter lugar a requerimento de qualquer consorte, desde que no caso se verifiquem os requisitos exigidos pelo artigo 1415.º.”

O art.º 1415º diz respeito aos denominados requisitos civis da constituição da propriedade horizontal, que já ficaram referidos.

Mas existem requisitos administrativos, porquanto a constituição da propriedade horizontal sobre um edifício só pode ocorrer desde que seja apresentado documento, passado pela câmara municipal, comprovativo de que as fracções autónomas satisfazem os requisitos legais.

Na linha lógica do que já se referiu, quer os requisitos civis, quer os requisitos administrativos, hão-de verificar-se no momento em que a divisão é requerida (cfr. Luís Sousa, ob. cit. pág. 63 e pág. 66 quanto aos primeiros e Acs. desta RG de 25/11/2003, proc. 52/12.0TBCMN.G1, de 29/09/2022, proc. 367/21.7T8MNC.G1 e de 22/11/2007, proc. 1824/07-2, ambos consultáveis in www.dgsi.pt/jtrg, da RC de 24/10/2006, proc. 40012-A/1985.C1, consultável in www.dgsi.pt/jtrc, da RL de 02/03/2006, proc. 1539/2006-6, consultável in www.dgsi.pt/jtrl e da RP de 17/11/2017, proc. 335/10.4TVPRT.P1, consultável in www.dgsi.pt/jtrp).     

Dispõe o art.º 59º n.º 1 do Código de Notariado que “[o]s instrumentos de constituição da propriedade horizontal só podem ser lavrados se for junto documento, passado pela câmara municipal, comprovativo de que as fracções autónomas satisfazem os requisitos legais”, ainda que o n.º 2 disponha que “[t]ratando-se de prédio construído para transmissão em fracções autónomas, o documento a que se refere o número anterior pode ser substituído pela exibição do respectivo projecto de construção e, sendo caso disso, dos posteriores projectos de alteração aprovados pela câmara municipal.”

E mesmo o documento autêntico que se destine a completar o título constitutivo da propriedade horizontal, quanto à especificação das partes do edifício correspondentes às fracções autónomas ou ao seu valor relativo, expresso em percentagem ou permilagem, não pode ser lavrado sem a observância do disposto nos citados n.ºs 1 e 2, como resulta do n.º 3 do citado art.º 59º do C Not.

No que diz respeito às regras urbanísticas, há que ter em consideração o disposto no Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, aprovado pelo DL 555/99, de 16 de dezembro e objecto de várias alterações.

Assim o art.º 4º, n.º 1 do RJUE (na redação em vigor à data da publicação do DL n.º 10/2024, de 08 de Fevereiro) dispunha:
A realização de operações urbanísticas depende de licença, comunicação prévia com prazo, adiante designada abreviadamente por comunicação prévia ou comunicação, ou autorização de utilização, nos termos e com as exceções constantes da presente secção.

O n.º 2 definia as situações sujeitas a licença administrativa, o n.º 4 as situações sujeitas a comunicação prévia e o n.º 5, as situações sujeitas a autorização de utilização, dispondo este último:
Está sujeita a autorização a utilização dos edifícios ou suas frações, bem como as alterações da utilização dos mesmos.

E o art.º 66º, n.º 3 dispunha:
3 - Caso o interessado não tenha ainda requerido a certificação pela câmara municipal de que o edifício satisfaz os requisitos legais para a sua constituição em regime de propriedade horizontal, tal pedido pode integrar o requerimento de autorização de utilização.

Finalmente o art.º 77º, n.º 6 dispunha que o alvará a que se refere o número anterior [refere-se ao alvará de autorização de utilização relativo à utilização de edifício ou de sua fração] deve ainda mencionar, quando for caso disso, que o edifício a que respeita preenche os requisitos legais para a constituição da propriedade horizontal.

O DL 10/2024, de 08 de Fevereiro “aprova medidas para promover a habitação e reduzir os encargos e simplificar os procedimentos administrativos em matéria de urbanismo e ordenamento do território, sobre as empresas”. (n.º 1 do seu art.º 1º) e  alterou profundamente o RJUE:

Assim o seu art.º 3º alterou a redacção daquele art.º 4º, n.º 1, que passou a ser:
1 - A realização de operações urbanísticas depende, nos termos e com as exceções constantes da presente secção, de:
a) Licença;
b) Comunicação prévia.

E alterou também a redacção do n.º 5 do art.º 4º, que passou a ser:
5 - A utilização dos edifícios ou suas frações autónomas na sequência de realização de operação urbanística sujeita a controlo prévio não carece de qualquer ato permissivo, ficando apenas sujeita ao disposto no artigo 62.º-A.

O art.º 62º-A foi aditado pelo art.º 4º do citado diploma, tendo o seguinte teor:
1 - A utilização de edifício ou fração após a realização de operação urbanística sujeita a controlo prévio depende da entrega à câmara municipal dos seguintes documentos:
a) Termo de responsabilidade subscrito pelo diretor de obra ou pelo diretor de fiscalização de obra, no qual aqueles devem declarar que a obra está concluída e que foi executada de acordo com o projeto;
b) As telas finais, mas apenas quando tenham existido alterações do projeto, devendo as mesmas estar devidamente assinaladas.
2 - A entrega das telas finais destina-se a:
a) Dar a conhecer a conclusão da operação urbanística, no todo ou em parte;
b) Arquivo na câmara municipal.
3 - O edifício ou suas frações autónomas pode ser utilizado para a finalidade pretendida imediatamente após a submissão da documentação prevista no n.º 1.
4 - A entrega da documentação não pode ser recusada nem indeferida, exceto se os documentos previstos no n.º 1 não tiverem sido remetidos, devendo nesse caso, o remetente ser notificado para remeter os documentos em falta.

Ainda o art.º 3º, em consonância com a alteração da redacção do art.º 4º, n.º 5 alterou a redacção do n.º 3 do art.º 66º, que passou a dispor:
3 — Caso o interessado não tenha ainda requerido a certificação pela câmara municipal de que o edifício satisfaz os requisitos legais para a sua constituição em regime de propriedade horizontal, tal pedido pode acompanhar a comunicação a que se refere o n.º 1 do artigo 63.º
Finalmente,  a alínea c) do art.º 24º daquele DL 10/2024, revogou o art.º 77º do RJUE.

Importa aqui ter em consideração as regras do citado diploma relativas à aplicação no tempo e à entrada em vigor.

Assim, o art.º 23º dispõe que:
As alterações promovidas pelo presente decreto-lei aplicam-se aos procedimentos iniciados antes da entrada em vigor e que se encontrem pendentes, com exceção da formação de deferimento tácito em procedimentos urbanísticos.

Por sua vez, o corpo do art.º 26º do DL 10/2024, dispõe que este diploma entra em vigor a 4 de março de 2024, com as exceções que indica a seguir.

Em tais excepções não consta o art.º 66º.

Destarte, a alteração ao mesmo, só entra em vigor a 4 de Março de 2024.

O mesmo não sucede com a eliminação da obrigação de apresentação da autorização de utilização e da ficha técnica de habitação nos atos de transmissão da propriedade de prédios urbanos, porquanto, nos termos da alínea f) do art.º 26º,  entra em vigor a 1 de janeiro de 2024.

Mas, para o que nos ocupa – a necessidade de certificação pela câmara municipal de que o edifício satisfaz os requisitos legais para a sua constituição em regime de propriedade horizontal –, a alteração ao n.º 3 do art.º 66º apenas diz respeito ao procedimento administrativo relativo à urbanização e edificação, pelo que aqui não releva.

O que releva é que aquela certificação se mantém no RJUE, como se mantém no CNot a sua necessidade para que os instrumentos de constituição da propriedade horizontal possam ser lavrados.

Se assim é para os negócios jurídicos, nada justifica que não se se aplique semelhante exigência à constituição da propriedade horizontal por decisão judicial.

É que dispõe o art.º 1416º n.º 1 do CC:
1. A falta de requisitos legalmente exigidos importa a nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal e a sujeição do prédio ao regime da compropriedade, pela atribuição a cada consorte da quota que lhe tiver sido fixada nos termos do artigo 1418.º ou, na falta de fixação, da quota correspondente ao valor relativo da sua fracção.
2. Têm legitimidade para arguir a nulidade do título os condóminos, e também o Ministério Público sobre participação da entidade pública a quem caiba a aprovação ou fiscalização das construções.

A expressão “falta de requisitos legalmente exigidos”, não distinguindo a lei, deve ser interpretada em termos amplos, abrangendo quer os requisitos civis, quer os requisitos administrativos e, assim, a referida certificação pela câmara municipal de que o edifício satisfaz os requisitos legais para a sua constituição em regime de propriedade horizontal.

Por outro lado, a lei não faz qualquer distinção quanto ao título constitutivo, sendo que, como ficou referido, um deles pode ser decisão judicial.

E como dispõe o art.º 202º, n.º 1 da CRPortuguesa, os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo e como dispõe o n.º 2, nessa tarefa incumbe aos tribunais, além do mais, reprimir a violação da legalidade democrática, sendo que, como dispõe o art.º 203º os tribunais estão sujeitos à lei.

Assim, em acção de divisão de coisa comum, não pode o tribunal proferir sentença que tenha como efeito a constituição da propriedade horizontal, sem que estejam verificados os respectivos requisitos legais, civis e administrativos.

No que aos últimos diz respeito, decidiu o STJ, no Ac. de 18/06/2002, proc. 03B1747: “O que a Administração não pode conceder – ou ainda não pode conceder porque não estão preenchidos os requisitos legais – não pode a Jurisdição autorizar.”

Ou, de forma mais precisa, não é legítimo a um comproprietário de um prédio utilizar uma ação de divisão de coisa comum para, com o concurso do tribunal, mas sem a intervenção das entidades administrativas competentes, obter o efeito equivalente a um loteamento, a um destaque ou à constituição da propriedade horizontal, não cabendo aos tribunais substituir-se a tais entidades para verificar os requisitos da divisão pretendida (cfr. Acs. do STJ de 23/09/2008 proc. 08B2121, o qual também entendia ser necessário a concordância de todos os comproprietários para a constituição da propriedade horizontal, tendo decidido em sentido diverso o Ac. do STJ de 15/11/2012, proc. 261/09.0TBCHV.P1.S1)

Assim, e numa acção de divisão de coisa comum de um edifício, relativamente ao qual se pretenda a sua constituição em propriedade horizontal, cabe ao requerente alegar e demonstrar que estão verificados:
a) os requisitos civis da constituição da propriedade horizontal – art.º 1415º do CC;
b) os requisitos administrativos decorrentes das normas de urbanismo e edificação, mediante a certificação pela câmara municipal de que o edifício satisfaz os requisitos legais para a sua constituição em regime de propriedade horizontal de acordo com o RJEU (cfr. Luís Sousa, ob. cit., pág. 65 e recensão de jurisprudência na nota 160, de que se cita, a título exemplificativo, os Acs. desta RG de 22/11/2007, processo 1824/07-2 e de 25/11/2013, proc. 52/12.0TBCMN.G1, consultáveis in www.dgsi.pt/jtrg, o Ac. da RE de 22/03/2018, processo 151/17.2T8ODM.E1, consultável in www.dgsi.pt/jtre,  os Acs. da RL de 09/02/2023, proc. 21576/19.3T8LSB.L1-8, de 18/05/2010, proc. 4933/07.5TVLSB.L1-1e de 09/06/2009, proc. 8744/2008-7, consultáveis in www.dgsi.pt/jtrl, os Acs. da RP de 14/09/2021, processo 442/19.8T8PVZ.P2 e de 22/03/2021, processo 7489/20.0T8PRT.P1, ambos consultáveis in www.dgsi.pt/jtrp).

Não estando demonstrado algum dos referidos requisitos e sem prejuízo da prolação de despacho de aperfeiçoamento a convidar o autor a juntar a certificação em falta (art.º 590º, n.º 3º, parte final, ex vi art.º 549º, n.1. ambos do CPC), deve a ação ser julgada parcialmente procedente por reconhecimento da indivisibilidade, prosseguindo o processo para a fase de conferência de interessados nos termos do art. 929º, n.º 2 do CPC (cfr. o já citado Ac. desta RG de 22/11/2007, processo 1824/07-2, consultável in www.dgsi.pt/jtrg, o já citado Ac. da RE de 22/03/2018, processo 151/17.2T8ODM.E1, consultável in www.dgsi.pt/jtre e o já citado Ac. desta RG de 28/01/2021, processo 43/18.8T8GMR.G1, consultável in www.dgsi.pt/jtrg).

4.5. Em concreto
Alega a recorrente que o tribunal, ao “declarar a indivisibilidade do prédio, pela inobservância, cumulativamente aos civis, dos requisitos legais administrativos de constituição da propriedade horizontal, desconsiderando a informação favorável à divisão, contida nos relatórios periciais e até no ofício da entidade administrativa certificadora dos referidos requisitos administrativos, promoveu o Douto Tribunal recorrido uma decisão desajustada com os interesses em litígio, contraditória ao entendimento da jurisprudência e doutrina, e que suportou a postura não cooperante dos Requeridos, com vista ao insucesso dos autos, em prejuízo da Recorrente.”

Em primeiro lugar impõe-se observar que, como já ficou referido, pese embora logo a 13/10/2015, o tribunal tenha manifestado o entendimento correcto de que ”para que possa proceder a pretensão de constituição da propriedade horizontal por decisão administrativa, no âmbito de uma ação de divisão de coisa comum, para além dos requisitos civis, a que se alude no art.º 1415º do C. Civil haverão de concorrer os referidos requisitos administrativos. E todos esses requisitos haverão de concorrer ou verificar-se no momento em que a divisão é requerida e se coloca a questão da divisibilidade “  e, em coerência com tal entendimento, tenha observado o disposto no art.º 590º, n.º 3 do CPC, aplicável ex vi art.º 549º do CPC, ordenando a notificação da requerente para juntar “documento comprovativo da certificação pela Câmara Municipal de que o prédio em causa reúne as condições previstas e exigidas administrativamente e satisfaz os requisitos legais de divisibilidade para que se possa proceder à constituição da propriedade horizontal “ e, pese embora o tenha repetido por despachos de 13/10/2016, 09/10/2018, 23/04/2019, 15/05/2019, 30/09/2019 e 22/11/2022, este último com a advertência de não o fazendo, os autos prosseguirem e ser proferida sentença, conhecendo-se da indivisibilidade do prédio, a requerente nunca juntou aos autos – diga-se, apesar das múltiplas possibilidades concedidas para tal ao longo de 8 anos - a certificação pela câmara municipal de que o edifício satisfaz os requisitos legais para a sua constituição em regime de propriedade horizontal de acordo com o RJEU.

Opõe a recorrente que o tribunal desconsiderou “o ofício da entidade administrativa certificadora dos referidos requisitos administrativos.”

Refere-se a recorrente ao ofício da Câmara Municipal ..., de 08/01/2020, que tem o seguinte teor:

“1. A edificação existente localiza-se em espaço classificado pelo PDM em vigor como Espaço de Uso Múltiplo Agrícola e Florestal, sendo possível a construção – e a divisão em propriedade horizontal  - de 2 fogos, no máximo, com o índice de 0,02m2 de construção por m2 de terreno;
2. A planta da implantação constante do relatório, a folhas 10, traduz limites e área de terreno afetos à edificação diferentes do constante no processo de licenciamento. Essas diferenças não estão explicadas e justificadas e podem ser relevantes em termos de verificação do cumprimento do PDM; a mesma planta não evidencia que as duas fracções tenham acesso direto desde a via pública ou desde área comum, o que é obrigatório por lei.
3. da planta do rés-do-chão, a folhas 10 do relatório, constam elementos construídos ou a construir, não previstos no projecto aprovado.
4. Qualquer eventual fracionamento em violação do PDM em vigor, ou do projeto aprovado, impossibilitará que a Câmara Municipal autorize a utilização das fracções.”

A alegação da recorrente carece de fundamento.

Da simples leitura do ofício da CM..., em momento ou de modo algum a mesma certifica que o edifício dos autos satisfaz os requisitos legais para a sua constituição em regime de propriedade horizontal de acordo com o RJEU.

O que a CM... diz, logo no ponto1, é que “edificação existente localiza-se em espaço classificado pelo PDM em vigor como Espaço de Uso Múltiplo Agrícola e Florestal “ e que o facto de ter essa localização, permite, em abstracto – “sendo possível” – “ a construção – e a divisão em propriedade horizontal  - de 2 fogos, no máximo, com o índice de 0,02m2 de construção por m2 de terreno.”

Não diz, em parte alguma, que o edifício em causa reúne os requisitos administrativos, decorrentes das normas de urbanismo e edificação, para a constituição da propriedade horizontal.

Aliás, logo no ponto 2, alerta para o facto de o edifício não reunir os requisitos para a constituição em propriedade horizontal porque a “planta da implantação constante do relatório, a folhas 10, traduz limites e área de terreno afetos à edificação diferentes do constante no processo de licenciamento. Essas diferenças não estão explicadas e justificadas e podem ser relevantes em termos de verificação do cumprimento do PDM; a mesma planta não evidencia que as duas fracções tenham acesso direto desde a via pública ou desde área comum, o que é obrigatório por lei.
           
E no ponto 3 refere que “[d]a planta do rés-do-chão, a folhas 10 do relatório, constam elementos construídos ou a construir, não previstos no projecto aprovado.

E, finalmente, no ponto 4, refere que “[q]ualquer eventual fracionamento em violação do PDM em vigor, ou do projeto aprovado, impossibilitará que a Câmara Municipal autorize a utilização das fracções.”

Refira-se que já no Relatório pericial de 27/06/2018 os senhores peritos mencionaram que o prédio não tem, sequer, licença de utilização para a configuração que apresentava.

Portanto, e ao contrário do que alega a recorrente, não consta dos autos a certificação pela câmara municipal de que o edifício satisfaz os requisitos legais para a sua constituição em regime de propriedade horizontal de acordo com o RJEU.

Alega a recorrente que o tribunal a quo desconsiderou a informação favorável à divisão, contida nos relatórios periciais.

Sucede que, ainda que a coisa reúna os requisitos civis para a constituição da propriedade horizontal, isso não é suficiente.

Como ficou referido, numa acção de divisão de coisa comum que tenha por objecto um  edifício, relativamente ao qual se pretenda a sua constituição em propriedade horizontal,  cabe ao requerente alegar e demonstrar que estão verificados, alem dos requisitos civis da constituição da mesma, requisitos administrativos decorrentes das normas de urbanismo e edificação, mediante a certificação pela câmara municipal de que o edifício satisfaz os requisitos legais para a sua constituição em regime de propriedade horizontal de acordo com o RJEU.

E, como referido, tal certificação não foi junta.

Alega ainda a recorrente que o Tribunal recorrido promoveu uma decisão desajustada com os interesses em litígio.

A recorrida pretendia, efectivamente, a divisão mediante a constituição do edifício em propriedade horizontal.

E a decisão recorrida afastou a sua pretensão.

Porém, as partes não podem pretender alcançar os seus objectivos sem cumprir a lei.
E, no caso, a recorrente não o fez, no sentido em que não cumpriu, como lhe cabia, o ónus de demonstrar que estavam verificados os requisitos administrativos de constituição do edifício em propriedade horizontal decorrentes das normas de urbanismo e edificação, mediante a certificação pela câmara municipal de que o edifício satisfaz os requisitos legais para a sua constituição em regime de propriedade horizontal de acordo com o RJEU.

E, assinale-se, que foram inúmeras as oportunidades que lhe foram dadas para o fazer.

Destarte, se a decisão não prossegue o interesse da recorrente, isso fica-se a dever única e exclusivamente ao facto de a recorrente não ter demonstrado os requisitos administrativos.

Alega ainda a recorrente que a decisão é contrária ao entendimento da doutrina e jurisprudência.

Esta afirmação é destituída de fundamento, como resulta do que ficou dito em sede de enquadramento jurídico.
A decisão recorrida compagina-se de forma clara com o entendimento uniforme da doutrina e jurisprudência quanto aos requisitos de constituição da propriedade horizontal em acção de divisão de coisa comum.

Finalmente a recorrente alega que a decisão recorrida “suportou a postura não cooperante dos Requeridos, com vista ao insucesso dos autos, em prejuízo da Recorrente.”

Tem a recorrente em vista, certamente, o facto de os requeridos não terem pretendido participar num eventual procedimento administrativo de constituição da propriedade horizontal, como já ficou referido no ponto 4.2.

Dir-se-á, em primeiro lugar, que se trata de matéria que não é, nem podia ser, objecto dos autos. Os eventuais procedimentos administrativos que as partes tenham de desencadear para prossecução dos seus interesses, estão arredados do âmbito do processo de divisão de coisa comum.

Em segundo lugar, já aquando da apreciação constante do ponto 4.2. deixámos dito que manifestando ambas as partes a vontade de instaurar o procedimento administrativo tendente à constituição do edifício em propriedade horizontal, o tribunal pode e deve, na medida das suas competências, cooperar com as partes no sentido de se obter a justa composição do litígio (art.º 7º, n.º 1 do CPC)

E o tribunal fê-lo, dando todas as oportunidades para que as partes, por si, alcançassem aquele desiderato, tendo admitido e feito inúmeras tentativas para o efeito, nomeadamente concedendo prazos e prorrogações, suspensões da instância, diligenciando junto da CM... e tentativas de conciliação.

Mas o tribunal não pode, de forma alguma, por absoluta falta de fundamento legal, impor a um comproprietário que colabore, seja de que forma for, na constituição da propriedade horizontal ou na ultrapassagem de obstáculos à mesma, quando tal esteja dependente, única e exclusivamente, da sua vontade, como é o caso da instauração e prosseguimento do procedimento administrativo tendente à constituição daquela, ou substituir-se ao mesmo.

Isto do ponto de vista negativo.

Do ponto de vista positivo, falece qualquer sustentáculo à alegação de que o tribunal “suportou a postura não cooperante dos Requeridos, com vista ao insucesso dos autos, em prejuízo da Recorrente” - pois o tribunal a quo limitou-se a decidir o que tinha de decidir – a divisibilidade ou indivisibilidade do prédio dos autos –, tendo-o feito de forma objectiva, de acordo com os elementos dos autos e aplicando correctamente o Direito aplicável.

Em face do exposto e em resposta às questões colocadas pela conclusão 5, a decisão recorrida, ao considerar que não é suficiente a verificação dos requisitos civis para a constituição do edifício em propriedade horizontal, sendo também necessária a demonstração da verificação de requisitos administrativos e ao considerar que a requerente não logrou fazer tal demonstração (pese embora as múltiplas oportunidades que lhe foram concedidas para o efeito), fez uma correcta e objectiva aplicação do Direito, tendo tido em consideração o entendimento doutrinário e jurisprudencial uniforme sobre a matéria, sendo que o ofício da CM..., constante dos autos, não certifica que o edifício satisfaz os requisitos legais para a sua constituição em regime de propriedade horizontal de acordo com o RJEU e não está nos poderes do tribunal impor a um comproprietário que colabore na instauração e prosseguimento do procedimento administrativo tendente à constituição daquela ou substituir-se ao mesmo.

E sendo assim, a decisão recorrida deve ser mantida e o recurso julgado improcedente.

4.6. Custas
As custas da apelação são a cargo da recorrente por vencida no recurso – art.º 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC.

5. Decisão

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes da 1ª Secção da Relação de Guimarães em manter a decisão recorrida e, em consequência, julgar improcedente a apelação.

Custas da apelação pelo recorrente.

Notifique.
*
Guimarães, 15/02/2024
(O presente acórdão é assinado electronicamente)

Relator: José Carlos Pereira Duarte
1º Adjunto: Rosália Cunha
2º Adjunto: Lígia Paula Ferreira de Sousa Santos Venade


[1] O presente Relatório apresenta-se anormalmente extenso. Porém, assim se impõe para cabal compreensão do contexto substantivo e processual que está na base da decisão recorrida e, assim, do recurso.