Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1113/23.6T8CHV-A.G1
Relator: ANTÓNIO FIGUEIREDO DE ALMEIDA
Descritores: DISPENSA DE SIGILO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/22/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1) A dispensa de sigilo em matéria de seguros, que visa proteger a reserva da vida privada, é possível, para além do consentimento do sujeito beneficiário, mediante determinação judicial, para a qual se exige uma ponderação dos interesses em confronto;
2) Confrontando o interesse na realização da justiça, referente à necessidade de prosseguimento de uma ação executiva e o interesse na tutela do sigilo de seguros, terá de prevalecer aquele.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

A) A exequente EMP01... - Unipessoal, Lda., nos autos em que é executada AA, veio deduzir, no Tribunal Judicial da Comarca ..., incidente de Quebra de Sigilo Profissional onde requer a quebra de sigilo relativamente à EMP02... PLC - Sucursal em Portugal.
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Foi proferido o despacho de fls. 10 a 11, onde consta:

A exequente EMP01... - Unipessoal, Lda., veio nos termos dos artigos 135º, nº 3 do Código de Processo Penal e 417º, nº 3, alínea c) e nº 4 do Código de Processo Civil, deduzir Incidente de quebra do sigilo profissional, alegando, em síntese, que “(…) nos presente autos foi requerido à EMP02... PLC – Sucursal em Portugal, na qualidade de Seguradora, em 12/09/2023 que informasse qual o titular de contrato de seguro automóvel do veículo com a matrícula ..-CQ-.., marca e modelo AUDI ..., bem como a respetiva morada (…). O referido pedido de informação foi solicitado após ter sido proferido Despacho a autorizar o levantamento “do sigilo a que se encontram obrigadas diversas entidades, no caso concreto, a EMP02... PLC - Sucursal em Portugal, para informar qual o titular do contrato de seguro automóvel do veículo registado em nome da executada, bem como a respetiva morada” (…). No dia 13/09/2023 a EMP02... PLC – Sucursal em Portugal respondeu à Sra. Agente de Execução informando que “se encontra sujeita ao dever de sigilo profissional, nos termos do disposto no artigo 119º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo Decreto-Lei nº 72/2008, de 16 de Abril, com as alterações introduzidas pela Lei nº 147/2015, de 09 de Setembro, pelo que, sob pena de violação do referido dever, tais informações não poderão ser disponibilizadas, conforme previsto no artigo 417º, nº 3, alínea c) do Código de Processo Civil, sem prejuízo do disposto no artigo 135º do Código de Processo Penal, aplicável ex vi o disposto no nº 4 do artigo 417º do Código de Processo Civil.” (…). Pelo que, a Sra. Agente de Execução informou a EMP02... PLC – Sucursal em Portugal que foi proferido Despacho judicial a autorizar o levantamento de sigilo, e voltou a remeter o referido Despacho. Novamente veio a EMP02... PLC – Sucursal em Portugal comunicar “que a informação visada não poderá ser prestada nesta sede sem prévio despacho judicial que aprecie a legitimidade da escusa, sendo que, caso se julgue a escusa legítima, deverá ser requerido pelo interessado o levantamento do sigilo profissional junto do Tribunal Superior, nos termos do disposto no artigo 135º do CPP, para que possa ser prestada a informação pretendida sem se incorrer na violação do mencionado dever de sigilo profissional.” (…) A informação solicitada – titularidade do contrato de seguro automóvel do veículo com a matrícula ..-CQ-.., marca e modelo AUDI ..., bem como a respetiva morada - é necessária para o correto andamento do processo. No presente caso não há qualquer intromissão na vida privada da Executada ou qualquer violação de outro direito consagrado e por isso a divulgação da requerida informação, dentro dos limites consentidos pelos fins no âmbito do processo civil, não afeta a reserva de intimidade da vida privada e o interesse na boa administração da justiça apresenta-se, na situação concreta, superior ao decorrente do dever de confidencialidade e mantendo-se intangível o núcleo essencial daquilo que constitui o dever de sigilo propriamente dito. Nestes termos e nos demais de Direito, requer-se a V.ª Ex.ª se digne a aceitar o presente incidente e consequentemente a autorizar a quebra do sigilo relativamente à EMP02... PLC – Sucursal em Portugal”.
Cumpre apreciar:
O que está em causa é a obtenção de uma informação – titularidade do contrato de seguro automóvel do veículo com a matrícula ..-CQ-.., marca e modelo AUDI ..., bem como a respetiva morada – indiscutivelmente sujeita a sigilo profissional, face ao disposto no art. 119º do Dec. Lei n.º 72/2008 de 16 de abril (Regime Jurídico do Contrato de Seguro).
Assim sendo, dúvidas não existem, pelo menos para nós, que é legítima a recusa da prestação das aludidas informações pela EMP02... PLC – Sucursal em Portugal, por estar abrangida pelo sigilo profissional.
Contudo, face à recusa justificada da prestação das aludidas informações, e persistindo o interesse na revelação da informação abrangida pelo sigilo, a única forma de ultrapassar a imposição decorrente de tal dever de segredo passa por suscitar o correspondente incidente de quebra de sigilo, regulado no artigo 135º, nº 3 do CPP, nos termos do qual só o tribunal superior àquele onde a questão foi suscitada pode pronunciar-se sobre a existência ou não de fundamento de quebra de sigilo.
No caso ora em apreço está a pertinência do levantamento do segredo profissional para se apurarem factos que consideramos relevantes para a descoberta da verdade e boa decisão da causa.
Como se sabe, estando o facto coberto pelo segredo, e sendo legítima a escusa, só a quebra do segredo pode obrigar a EMP02... PLC – Sucursal em Portugal à prestação da informação. Mas a quebra do segredo impõe um juízo de prevalência entre os interesses em conflito, que o legislador entendeu dever deferir a um tribunal superior, no caso concreto, ao Tribunal da Relação de Guimarães.
Face à posição assumida nos autos pelo da interveniente acidental EMP02... PLC – Sucursal em Portugal, entendemos que, sendo legítima a recusa em prestar as informações que lhe foram solicitadas nos autos por as mesmas estarem cobertas pelo segredo profissional, existem situações em que é admissível a quebra do sigilo profissional, pois não se deve considerar o direito ao segredo profissional como um direito de carácter absoluto ao ponto de pôr em causa, de fazer perigar, outros direitos que são igualmente dignos de proteção jurídica, tais como o direito ao acesso à justiça, o dever de cooperação e o princípio da descoberta da verdade material no processo civil.
Nestes termos, ao abrigo do disposto no art. 417º, nº 4, do Código de Processo Civil e no art. 135º, nº 3, do Código de Processo Penal, suscita-se junto do Venerando Tribunal da Relação de Guimarães o incidente sobre a quebra do segredo profissional por parte da interveniente acidental EMP02... PLC – Sucursal em Portugal.
Notifique.
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B) Foram colhidos os vistos legais.

C) A questão a decidir neste recurso é a de saber se no caso presente deverá ser autorizada a dispensa do dever de sigilo.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
A) Os factos a considerar são os que constam do relatório que antecede.
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B) Estabelece o artigo 417º do Novo Código de Processo Civil que:
“1. Todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspeções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os atos que forem determinados.
2…
3. A recusa é, porém, legítima se a obediência importar:
a) Violação da integridade física ou moral das pessoas;
b) Intromissão na vida privada ou familiar, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações;
c) Violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos, ou do segredo de Estado, sem prejuízo do disposto no nº 4.
4. Deduzida escusa com fundamento na alínea c) do número anterior, é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado.”
Por outro lado, o artigo 135º do Código de Processo Penal estatui que:
1. Os ministros de religião ou confissão religiosa e os advogados, médicos, jornalistas, membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos.
2. Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento.
3. O tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, ou, no caso de o incidente ter sido suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o pleno das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento.
….
Por sua vez o artigo 119º nº 1 do Decreto-Lei nº 72/2008, de 16/04, dispõe que o segurador deve guardar segredo de todas as informações de que tenha tomado conhecimento no âmbito da celebração ou da execução de um contrato de seguro, ainda que o contrato não se tenha celebrado, seja inválido ou tenha cessado.
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Foi solicitada à EMP02... PLC, informação sobre a identificação do titular do contrato de seguro automóvel do veículo com a matrícula ..-CQ-.., marca e modelo AUDI ..., vindo a companhia de seguros em causa a recusar a prestação dessa informação atento o dever de sigilo a que se encontra obrigada.
Tendo em conta as disposições legais aplicáveis, a recusa da prestação das informações é legítima, importando averiguar se, tendo em conta a salvaguarda dos valores jurídicos prevalecentes, se deverá determinar a quebra do dever de sigilo.
Conforme se refere no Acórdão da Relação de Coimbra de 12/06/2018, no processo 768/16.2T8CBR-C.C1, relatado pelo Desembargador Barateiro Martins, “ … o dever de segredo, a nível segurador, tem consagração legislativa no art. 119º do DL 72/2008 (que aprovou a Lei do Contrato de Seguro).
( … )
O dever de segredo é, assim, tratado como segredo profissional, vinculando todos aqueles que, por virtude das suas funções, têm acesso às referidas informações, concretamente: “os administradores, trabalhadores, agentes e demais auxiliares do segurador, não cessando com o termo das respetivas funções”” (referido art. 119.º/2).
Como se afirma no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 2/2008, in DR lª série, de 31 de março de 2008, a propósito do segredo bancário, e vale, mutatis mutandis, para o caso, o dever de segredo tem em vista a salvaguarda de duas ordens de interesses: por um lado, o regular funcionamento da atividade em causa (seguradora) e, por outro, a reserva da intimidade da vida privada de cada um dos clientes das seguradoras.
No entanto, a lei concebe o dever de segredo essencialmente como proteção do direito fundamental à reserva da vida privada, consagrado no art. 26º/1 da CRP, porquanto o mesmo cessa quando exista autorização do cliente na sua revelação; como expressamente resulta, a propósito do segredo bancário, do art. 79º/1 do RGICSF, disposição esta que contém exceções ao dever de segredo, as quais valem, analogicamente, como exceções ao dever de segredo da atividade seguradora.
Assim, inexistindo ( … ) autorização do cliente, os factos e elementos cobertos pelo dever de segredo da seguradora só podem ser revelados às entidades reguladoras e de supervisão (no âmbito das atribuições destas); às autoridades judiciárias, no âmbito de um processo penal; à administração tributária, no âmbito das suas atribuições; e quando exista outra disposição legal que expressamente limite o dever de segredo.
Sendo justamente nesta última exceção que se insere o disposto no art. 417º/4 do NCPC: efetivamente, determina-se no art. 417º/1 do NCPC que “todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspeções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os atos que forem determinados”, considerando-se, porém, no seu nº 3/c), como legítima a recusa da mencionada colaboração sempre que a obediência importar “violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos, ou de segredo de Estado”, sem prejuízo de (como também consta do nº 4), sendo deduzida escusa com este fundamento, ser aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado.
Teve-se em vista (com as alterações introduzidas pelo DL nº 329-A/95 ao então art. 519º do CPC), delimitar com rigor as hipóteses de recusa legítima de colaboração em matéria probatória, acentuando-se «a vertente pública da realização da justiça e a permanência desse valor na tutela dos interesses particulares atendíveis dos cidadãos», sem deixar de respeitar «o conteúdo intrínseco e próprio dos diversos sigilos profissionais e similares, legalmente consagrados» cujo interesse de ordem também pública deve ceder, contudo, «em determinados casos concretos, mediante a respetiva dispensa», perante o «interesse público, conatural à função de administração da justiça, como valor intersubjetivo e de solidariedade e paz social (...), admitindo-se a aplicação, ponderada em função da natureza civil dos interesses conflituantes, do regime previsto na legislação processual penal para os casos de legitimação de escusa ou dispensa do dever de sigilo».
E, de acordo com o art. 135º do CPP, aqui aplicável com as devidas adaptações, concluindo o tribunal pela legitimidade da escusa — o que ocorre se o facto estiver abrangido pelo segredo e não houver autorização do titular da conta — terá então de se suscitar em incidente (de dispensa/quebra de segredo profissional) a intervenção do tribunal imediatamente superior, o qual pode autorizar a quebra do segredo profissional “sempre que esta se mostre justificada face às normas e princípios aplicáveis da lei penal, nomeadamente face ao princípio da prevalência do interesse preponderante” (nº 3).”
E a propósito do sigilo bancário, mas com igual interesse para a apreciação da questão que importa avaliar, como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 07/07/2009, disponível no endereço www.dgsi.pt e “ensina Paulo Mota Pinto (in “A Proteção da Vida Privada e a Constituição”, BFDUC ano 2000, vol. LXXVI, págs. 174 e 175), “o segredo bancário está ligado à reserva da vida privada” e corresponde “a um interesse geral do sistema bancário, para preservação das condições de captação de poupanças” e também “a um interesse privado dos clientes da instituição de crédito, tendo em vista a proteção da sua vida privada” (em sentido semelhante, Meneses Cordeiro, in “Manual de Direito Bancário”, 1998, págs. 313 e segs. e Capelo de Sousa, in “O Segredo Bancário – em especial face às alterações fiscais da Lei nº 30-G/2000, de 29/12, em Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Inocêncio Galvão Telles, II volume, 2002, págs. 176 e segs.).
Devido a esta ligação do segredo bancário à reserva da vida privada, constitucionalmente garantida no art. 26º nº 1 da CRP, é que, em obediência ao nº 2 deste normativo, o mesmo só pode deixar de ser observado, «grosso modo», em duas situações (que permitem concluir que o sigilo bancário, contrariamente a outros segredos, como o religioso, não tem carácter absoluto – assim, Acs. da Relação do Porto – e secção - de 17/12/2008, proc. 7459/08-2 e da Relação de Lisboa de 12/05/2009, proc. 341/06.3TBPDL-A.L1-7, in www.dgsi.pt/jtrl): por consentimento do próprio sujeito beneficiário ou por determinação judicial (não há aqui necessidade de abordarmos a questão do enquadramento do dever de segredo bancário no âmbito da reserva da vida privada e do que alguns autores – designadamente, Meneses Cordeiro, in “Tratado de Direito Civil Português”, I, Parte Geral, tomo III, 2004, págs. 200 e segs. – apelidam de “teoria das esferas” que compreende cinco itens: a esfera pública, a esfera individual-social, a esfera privada, a esfera secreta e a esfera íntima, sendo que as três últimas “nunca são acessíveis sem autorização”).
Estas duas exceções à observância do dever de sigilo bancário estão previstas no art. 79º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF) que no seu nº 1 dispõe que “os factos ou elementos das relações do cliente com a instituição (bancária) podem ser revelados mediante autorização do cliente, transmitida à instituição”, acrescentando no nº 2 que os mesmos factos e elementos também podem ser revelados, nomeadamente, “nos termos previstos na lei penal e de processo penal” [al. d)], ou “quando exista outra disposição legal que expressamente limite o dever de segredo” [al. e)] – cfr. também o nº 2 do art. 80º do mesmo diploma legal.
Da conjugação destes normativos resulta que as informações bancárias que forem prestadas/obtidas fora (em contravenção) dos casos (excecionais) previstos neste artigo 79º traduzirão provas nulas, nos exatos termos prescritos no nº 8 do artigo 32º da CRP que embora se refira diretamente à obtenção de provas no âmbito do processo criminal (veja-se a epígrafe do preceito), também é analogicamente aplicável às provas em processo civil (neste sentido, Teixeira de Sousa, in “A Livre Apreciação da Prova em Processo Civil”, Scientia Iuridica, Revista de Direito Comparado Português e Brasileiro, 1984, pág. 140 e Isabel Alexandre, in “Provas Ilícitas em Processo Civil”, 1998, págs. 233 a 242; esta última autora à pergunta que faz acerca da aplicação analógica do artigo 32º nº 8 da CRP ao processo civil, logo refere que “a resposta deverá ser afirmativa, uma vez aceite que «no caso omisso procedem razões justificativas da regulamentação do caso previsto na lei», acrescentando que “se se entender que o artigo 32º nº 8 CRP, ao prever a nulidade de certas provas, visa conferir maior eficácia aos direitos fundamentais violados aquando da sua obtenção, não existem motivos para restringir o preceito ao âmbito do processo penal, já que a lesão desses direitos não é menor pela circunstância de as provas se destinarem ao processo civil”)…
Um dos “interesses legítimos” que pode justificar a limitação à reserva da vida privada – e, logo também, a exceção do dever de sigilo bancário – é precisamente o “interesse na realização da justiça” – ou, se se preferir, na boa administração da justiça – seja ele “em relação às testemunhas, aos documentos do processo ou aos meios de prova (…), ou para publicidade do processo e das decisões”.
Atendo-nos diretamente à situação dos autos, o que está em causa é, precisamente, o confronto entre o interesse na realização da justiça, referente à necessidade de permitir identificar o titular do contrato de seguro automóvel do veículo ..., marca e modelo AUDI ..., com vista ao prosseguimento da execução apensa e o interesse privado do titular do contrato de seguro referido, da proteção da sua vida privada, pelo que importa ponderar entre os interesses em litígio e avaliar qual deles deve prevalecer por ser o preponderante, à luz dos princípios da proporcionalidade, adequação e necessidade (cfr. Acórdão da Relação de Lisboa de 19/09/2006, no endereço www.dgsi.pt).
E se é certo que ambos têm consagração constitucional – artigos 18º nº 1 e 2 e 20º nº 1 e 5 da Constituição da República – a verdade é que, no confronto dos interesses em causa – reserva da vida privada e interesse na realização da justiça - em que está em causa permitir identificar o titular do contrato de seguro automóvel do veículo ..., marca e modelo AUDI ..., terá de prevalecer o interesse na realização da justiça e, como tal, terá de se dispensar a seguradora acima mencionada do dever de sigilo e determinar que preste ao Tribunal «a quo» a informação que anteriormente lhe foi solicitada, a que legitimamente se recusou, isto é, “identificar o titular do contrato de seguro automóvel do veículo ..., marca e modelo AUDI ...”.
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III. DECISÃO

Pelo exposto, tendo em conta o que antecede, acorda-se em dispensar a Companhia de Seguros EMP02... PLC – Sucursal em Portugal, do dever de sigilo e determinar que preste ao Tribunal «a quo» a informação que anteriormente lhe foi solicitada de identificar o titular do contrato de seguro automóvel do veículo ..., marca e modelo AUDI ....
Sem custas.
Notifique.
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Guimarães, 22/02/2024

Relator: António Figueiredo de Almeida
1ª Adjunta: Desembargadora Raquel Baptista Tavares
2ª Adjunta: Desembargadora Alexandra Rolim Mendes