Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
12555/22.0T8SNT-A.G1
Relator: ANIZABEL SOUSA PEREIRA
Descritores: PROVA PERICIAL
JUNÇÃO DE DOCUMENTO
PRINCÍPIO INQUISITÓRIO
ARTIGO 411º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/15/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO DO EXEQUENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1- De acordo com o princípio do inquisitório, consagrado na lei processual civil, o juiz tem a iniciativa da prova, podendo realizar e ordenar oficiosamente todas as diligências necessárias para o apuramento da verdade.
2- Mas, o exercício dos poderes de investigação oficiosa do tribunal não serve para suprir comportamentos negligentes das partes - pressupõe que estas cumpriram minimamente o ónus que sobre elas recai de indicarem as provas de que pretendem socorrer-se.
3- O exequente/embargado não interpôs recurso de qualquer um daqueles despachos que rejeitaram seja o articulado, seja o requerimento de prova onde constava o pedido de realização desses meios de prova ( pericial e documental) que afinal foram rejeitados, apelações essas autónomas nos termos da al. d) do nº2 do art. 644º, pelo que se formou caso julgado em cada um desses casos.
4- Neste contexto, a investigação oficiosa não deve ser exercida com a finalidade da parte poder contornar a preclusão processual decorrente da sua inércia, sob pena de violação do princípio da preclusão e da autorresponsabilidade das partes conjugado com o princípio da igualdade das partes no processo.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:
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I- RELATÓRIO:

AA, residente na Rua ..., ... veio deduzir oposição, por embargos, à execução intentada por Banco 1..., SA, com sede na Av ... - Piso ..., ..., visando a extinção da instância executiva, nos termos e com os fundamentos constantes do requerimento inicial e para cujo teor remetemos.--
O exequente contestou, sustentando a regularidade da instância e a exequibilidade da livrança, nomeadamente por ter sido a mesma assinada pelo executado.—
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Por despacho datado de 26-06-2023, transitado em julgado, rejeitou-se, por extemporânea a contestação e, ordenou-se o seu desentranhamento e proferiu-se despacho saneador, no qual se afirmou a validade e regularidade da instância.---
Fixou-se o objeto da causa e os temas da prova, por despacho que não mereceu reclamação.—
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Por despacho datado de 06-09-2023, transitado em julgado, não se admitiu o requerimento do exequente junto aos autos em 04-09-2023 nos seguintes termos:
“ Requerimento de 4/9 (referência nº ...91):--
O requerimento apresentado pela embargada não é legalmente admissível.—
A ser o requerimento de prova inicial teria de ser apresentado com o articulado de contestação (que não foi admitido, por extemporâneo) – art. 572º, al d), do Cód. Proc.Civil.—
Acresce que, não tendo sido apresentado requerimento inicial de prova, carece a embargada de fundamento legal para o alterar (não se pode alterar o que não existe).---
Por último, importa atentar que, sob pena de violação do princípio da igualdade, não cabe ao tribunal substituir-se às partes quando estas, oportuna e atempadamente, não indicaram prova.—
Assim, não se admite o requerimento de 4/9 (referência nº ...91) e determina-se o respectivo desentranhamento.---
Notifique.—“.
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Realizou-se a audiência de discussão e julgamento com observância de todo o formalismo legal.----
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Após a competente audiência de julgamento, foi proferida sentença, da qual consta o seguinte dispositivo: 
“Pelo exposto, decide-se julgar totalmente procedentes os embargos, determinando-se a extinção da execução relativamente ao embargante.--
Custas a cargo da embargada – cfr. art. 527º, nºs 1 e 2, do Cód. Proc. Civil.--
Notifique e registe.----.
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É desta decisão-sentença- que vem interposto recurso pelo banco exequente, o qual terminou o seu recurso formulando as seguintes conclusões ( que se transcrevem):

A. O presente recurso vem interposto de douta sentença, fls.__, que decidiu “julgar totalmente procedentes os embargos, determinando-se a extinção da execução relativamente ao embargante.”
B. Sucede que, a ora Recorrente não se conforma com a douta decisão proferida pelo tribunal a quo uma vez que a mesma fez uma incorreta aplicação do direito, tendo decidido erradamente a causa face aos factos e prova existente.
C. A Recorrente apresentou ação executiva contra, entre outros, o aqui Recorrido.
D. A referida execução teve por base duas livranças, cujos originais foram entregues, como dita a lei, ao Tribunal.
E. O Recorrido é Executado por ser avalista das referidas livranças, tendo inclusive assinado as livranças na qualidade de representante da empresa subscritora.
F. Apresentou o Recorrido oposição mediante embargos de executado, alegando, em 7 artigos, que não assinou nem deu aval às livranças.
G. O Recorrido não apresentou qualquer prova, apenas impugnou a assinatura nas ditas livranças.
H. A Recorrente não contestou em tempo, mas, apesar de tal facto, solicitou ao Tribunal a quo, a bem do princípio da verdade, a perícia à assinatura do Recorrido.
I. Além do que nos termos do que dispõe o artigo 732.º n.º 3 do CPC, ”À falta de contestação é aplicável o disposto no n.º 1 do artigo 567.º e no artigo 568.º, não se considerando, porém, confessados os factos que estiverem em oposição com os expressamente alegados pelo exequente no requerimento executivo.”
J. Sendo que o alegado pelo Recorrido está diretamente em oposição com o requerimento executivo, impunha-se, para descoberta da verdade, a junção dos contratos e pactos de preenchimento das livranças juntas no requerimento executivo.
K. Sucede que o Tribunal a quo entendeu não ser necessário qualquer um destes elementos para chegar à verdade.
L. O Tribunal a quo notificou em sede de despacho Saneador que, “Atento o disposto no art. 732, nº 3, do Cód. Proc. Civil e seguindo de perto o entendimento expendido no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 20/9/2007 (processo nº 6660/2007-A, acessível em www.dgsi.pt/jtrl), os autos prosseguirão, considerando-se que a exequente alegou (e tem de provar) a assinatura atribuída ao embargante e aposta nas livranças dada à execução.--- Notifique.—"
M. A Embargada, aqui recorrente, solicitou a perícia da assinatura e a junção dos contratos que originaram a entrega das livranças, justificando ao Tribunal a quo, que tais documentos possuíam reconhecimento de assinatura do Recorrido e, por esse motivo, seriam documentos essenciais para a boa decisão da causa.
N. Mas acontece que o Tribunal a quo não permitiu a junção por parte da Recorrente, nem oficiosamente achou pertinente a junção de tais documentos ou a realização de perícia.
O. Diligências que o julgador tem à sua disposição e o pode solicitar oficiosamente, para descoberta da verdade.
P. Aliás, a Recorrente solicitou ao Tribunal a quo, nos termos do disposto no artigo 467.ºn.º1doCPC, que o mesmo oficiosamente o licitasse perícia à assinatura.
Q. Isto porque, “O dever do juiz ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade material e à justa composição do litígio, quanto a factos que lhe é lícito conhecer, constitui um poder vinculado, de forma a permitir que o processo possa prosseguir com regularidade e possibilitar uma decisão de mérito sobre a pretensão das partes.” (sublinhado e negrito nosso)
R. Como também requereu a junção de documentos, nomeadamente dos contratos subjacentes às livranças, por constarem dos mesmos prova da autenticidade da assinatura do Recorrido, nos termos do disposto no artigo 423.º n.º 2 do CPC.
S. Qualquer um dos pedidos da aqui Recorrente foi descartado pelo Tribunal a quo.
T. A Recorrente, em sede de alegações finais no Julgamento, referiu como facto notório, nos termos do disposto no artigo 412.º n.º 1 do CPC, que o Recorrido era e é sócio-gerente da empresa subscritora, o que deveria desde logo suscitar dúvidas ao Tribunal a quo sobre as alegações realizadas em sede de oposição.
U. Facto totalmente ignorado pelo Douto Tribunal.
V. E o que surpreende a aqui Recorrente, é a decisão proferida, “No que concerne à autoria da assinatura atribuída ao executado/Embargante – ponto i) – não se reuniu prova que possibilite ao tribunal concluir pela respectiva autoria, sendo que não foi feita prova pericial nem foram arroladas testemunhas que o corroborassem.—”
W. Ora, o Tribunal a quo admite que não tem qualquer prova ou indício de prova que sustentem as alegações do Embargante, sendo que tem como meio de prova da Embargada os originais do título executivo, e decide, EM NOME DA JUSTIÇA, que só se pode considerar que o embargante tem razão.
X. O Tribunal a quo dita esta Sentença, quando recusou a produção de qualquer prova à aqui Recorrente.
Y. Não tendo a Recorrente apresentado Contestação, podia ainda assim ter junto documentos antes da Audiência, pretensão prontamente rejeitada pelo Tribunal a quo, nem tendo considerado a junção com aplicação de multa, como dita a lei civil.
Z. Simplesmente não permitiu qualquer diligência por parte da Embargada.
AA. Ora, se a prova da veracidade da assinatura cabia à Recorrente, se o Tribunal a quo vedou todo o pedido de produção de prova, como poderia a Recorrente provar?
BB. “Em sede de oposição à execução(anterior regime processual civil) não basta a falta de contestação para que se considerem provados os factos articulados pelo opoente/executado. Exige-se ainda que não estejam em oposição com os expressamente alegados pelo exequente no requerimento executivo.”
CC. No mesmo Acórdão podemos ler tranches que relembram o papel que o Tribunal a quo deveria ter assumido, e na nossa humilde opinião, não assumiu, “O art.º 158.º, do CPC, expressamente determina que as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas, sem que a justificação possa consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição (n.º 2 e 3).
(…)
Não basta, pois, a falta de contestação para que se considerem provados os factos articulados pelo autor. Exige-se ainda que não estejam em oposição com os expressamente alegados pelo exequente no requerimento executivo.
Não parece que o tribunal a quo tenha realizado esta ponderação, sendo certo que, se o fez, não consta dos autos.”
DD. Pois a Recorrente vem apresentar as presentes alegações porque lhe foi completamente vedado pelo Tribunal a quo, fazer prova.
EE. E tão pouco o Tribunal exerceu o seu dever de descoberta da verdade, apesar de ter na sua disponibilidade o de requerer diligências que considerasse essenciais para proferir uma decisão de mérito devidamente fundamentada.
FF. Não pode o Tribunal a quo refugiar-se no facto da Embragada ter apresentado Contestação extemporânea para, posteriormente, vedar qualquer pedido, nomeadamente o de juntar documentos e o de requerer produção de prova.
GG. Mas foi exatamente o que o Tribunal a quo fez, não permitiu a produção de prova nem tão pouco solicitou a perícia da assinatura, quando o próprio Tribunal tinha e tem, conforme assume na Sentença, dúvidas sobre a autoria da assinatura nas livranças.
HH. Tendo a aqui Recorrente alertado o Tribunal a quo de que existem documentos com reconhecimento de assinatura, que são documentos que podem e devem ser juntos por serem elementos intrinsecamente ligados ao requerimento executivo, que o Embargante era e é sócio-gerente da empresa subscritora, seria natural, para a descoberta da verdade, que o Tribunal admitisse tal junção.
II. “O Tribunal não pode ficar com dúvidas quando é possível saná-las com a realização de outras diligências de prova, devendo, até mesmo, ordená-las oficiosamente, caso não tenham sido requeridas pelas partes, estando tal procedimento inserido nos amplos poderes conferidos ao juiz (cfr. artºs 6º e 411º do NCPC).
IV) - Não tendo o juiz “a quo” tomado tal iniciativa e não constando do processo todos os elementos de prova que permitam a reapreciação da matéria de facto, nos termos do disposto no artº. 662º, nº. 2, al. c) do NCPC, deve a Relação, mesmo oficiosamente, anular a decisão proferida pela 1ª instância, devendo o Tribunal “a quo” ordenar oficiosamente a realização das diligências necessárias com vista a alcançar a verdade material, no âmbito do poder-dever de direcção do processo.”
JJ.Em suma, entenda a aqui Recorrente que o Tribunal a quo decidiu de forma prematura, escusando-se do seu dever de promover todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade, conforme princípio do inquisitório explanado no artigo 411.º do CPC, “Incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer.”
KK. “O artigo 411.º do CPC (princípio do inquisitório) estabelece um “poder-dever” do juiz que não se limita à prova de iniciativa oficiosa, incumbindo-lhe também realizar ou ordenar oficiosamente as diligências relativas aos meios de prova propostos pelas partes, na medida em que julgue que aquelas são necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio relativamente a factos que o Tribunal pode (e deve) conhecer.”

NESTES TERMOS E NOS DEMAIS DE DIREITO, DEVE SER DADO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO, REVOGANDO-SE A DOUTA SENTENÇA RECORRIDA, ORDENANDO-SE A PRODUÇÃO DE PROVA NECESSÁRIA À DESCOBERTA DA VERDADE!”
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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O recurso foi admitido, por despacho de 21 de dezembro de 2023, como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo.
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O recurso foi recebido nesta Relação, considerando-se devidamente admitido, no efeito legalmente previsto.
Assim, cumpre apreciar o recurso deduzido, após os vistos.
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II- FUNDAMENTAÇÃO

Sendo o objeto do recurso balizado pelas conclusões do Recorrente (artigos 635.º, n.º 4, 636.º, n.º 1, e 639.º, n.º 1, do CPC), a solução a alcançar pressupõe a análise das seguintes questões:

1- Cumpre ponderar se, quer a realização da perícia, quer a admissão dos documentos, ambos anteriormente requeridos e indeferidos por despachos interlocutórios e que não foram alvo de apelação autónoma, deviam ter sido ordenadas pelo tribunal, oficiosamente, por força do disposto no artigo 411.º do CPC, onde se dispõe que incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer.
2- Baseando-nos nos factos descritos no relatório supra exarado- que são os únicos relevantes para o efeito, vejamos, então, como solucionar esta questão: se analisarmos a argumentação do Apelante, facilmente verificamos que o mesmo pretende reverter o decidido na sentença recorrida, essencialmente, por duas vias: mediante a afirmação do seu direito à proposição dos referidos meios de prova; e, por recurso ao princípio do inquisitório.

Como veremos, no entanto, nenhum destes caminhos lhe pode ser facultado.
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III- Para a apreciação das questões elencadas, é importante atentar ainda na matéria que resultou provada e não provada, que o tribunal recorrido descreveu nos termos seguintes:

A) Factos provados:---
Com relevância para a decisão da causa, resultaram os seguintes:-----
Do requerimento executivo:--
a) Foram dadas à execução:--
- a livrança nº ...55, no valor de Eur: 91.753, emitida em ..., aos 18/2/2009, com data de vencimento de 17/5/2022 e na qual consta, ao lado dos dizeres “Assinatura(s) do(s) subscritor(es)”, um carimbo com os dizeres “EMP01... –Importação, Exportação e Representação de Moda, Lda” e uma assinatura manuscrita.----
- a livrança nº ...73, no valor de Eur: 72.041,46, emitida em ..., aos 17/9/2009, com data de vencimento de 17/5/2022 e na qual consta, ao lado dos dizeres “Assinatura(s) do(s) subscritor(es)”, um carimbo com os dizeres “EMP01... –Importação, Exportação e Representação de Moda, Lda” e uma assinatura manuscrita.----
b) No verso da livrança referida em a) com o valor €: 91.753 consta por 3 vezes os dizeres “Bom para aval subscritor” e por baixo de cada uma das vezes uma assinatura, sendo uma atribuída ao embargante.---
c) No verso da livrança referida em a) com o valor €: 72.041,46 consta por 3 vezes os dizeres “Bom por aval ao subscritor” e por baixo de cada uma das vezes uma assinatura, sendo uma atribuída ao embargante.---
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B) Factos não provados:---
Com relevância para a decisão a proferir, não se demonstrou que:---
Da contestação:--
i) As assinaturas atribuídas ao embargante e referidas em a) foram apostas pelo punho do mesmo.--
ii) O embargante foi notificado do preenchimento das livranças dadas à execução ou foi interpelado para o seu pagamento.--”
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IV. Do objeto do recurso:

Em termos mais concretos, a questão objeto de recurso é a de saber se, tendo sido indeferido o requerimento de prova do exequente/embargado, seja por despacho de 26-06-2023 ( o qual ordenou o desentranhamento da contestação e requerimento de prova), seja por despacho datado de 06-09-2023 ( ordenou o desentranhamento do requerimento junto em 04-09-2023), despachos que não foram alvo de apelação, podia a iniciativa do tribunal nos termos do art. 411º ter sido suscitada antes do julgamento ou pode ser suscitada pela parte agora em recurso da sentença?
Dito de outro modo: a realização da perícia, bem como a junção de documentos, deviam ter sido ordenadas pelo tribunal, sob pena de nulidade, por ter sido vedado ao exequente/embargado o direito a fazer prova, por despachos proferidos e transitados em julgado e por força do disposto no artigo 411.º do Código de Processo Civil?
Se analisarmos a argumentação do Apelante, facilmente verificamos que o mesmo pretende reverter o decidido na sentença recorrida, essencialmente, por duas vias: mediante a afirmação do seu direito à proposição dos referidos meios de prova e que, na sua ótica, lhe foi vedado pelo tribunal; e, por recurso ao princípio do inquisitório.
Como veremos, no entanto, nenhum destes caminhos lhe pode ser facultado.
Vejamos.
No que respeita à prova por perícia e prova por documento, nem sequer importa analisar o regime legal de cada um destes meios de prova, porquanto ressuma dos autos que o exequente/embargado não interpôs recurso de qualquer um daqueles despachos que rejeitaram seja o articulado, seja o requerimento de prova onde constava o pedido de realização desses meios de prova que afinal foram rejeitados, apelações essas autónomas nos termos da al. d) do nº2 do art. 644º, pelo que se formou caso julgado em cada um desses casos.
Com efeito, para que se impeça a formação de caso julgado, a parte vencida ( neste caso, o exequente/embargado) teria o ónus de interposição de recurso.[i]
Daí que, nunca em tempo algum lhe foi vedado o direito a fazer prova, conforme é afirmado pelo apelante. Outrossim, por opção sua, não interpôs recurso daquelas decisões judiciais quando as mesmas deveriam ter sido objeto de recurso autónomo e não o foram, tendo consequentemente transitado em julgado, pelo que não pode este tribunal ad quem, em sede de recurso da decisão final, contrariar a decisão anteriormente proferida e transitada, sob pena de violação do caso julgado formal.
Assim sendo, podemos concluir, desde já, que nenhum dos meios de prova indicados podia ser admitido, por iniciativa do exequente/embargado, porque seriam sempre intempestivos, atento o caso julgado que se formou com a prolação daqueles despachos judiciais.

E por iniciativa do tribunal, poderia e devia o tribunal oficiosamente ter ordenado a realização da perícia e ordenado a junção dos documentos referidos pelo exequente/apelante e conforme é sustentado no presente recurso?

Desde já adiantamos que a resposta é igualmente negativa, nomeadamente porque o exequente/embargado pretende, por esta via, apenas contornar a preclusão processual decorrente da sua inércia na não interposição das apelações autónomas daquelas decisões interlocutórias. Aliás, patente no facto de só esgrimir este argumento no presente recurso.
Vejamos o que dispõe a lei a propósito.
Sob a epígrafe “ princípio do inquisitório”, dispõe art. 411.º do CPC, “[i]ncumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer”.
O princípio do inquisitório não se confunde com o princípio da gestão processual ( art. 6º).
Alguns autores falam num princípio inquisitório amplo que encontra acolhimento, quer no âmbito do poder-dever de gestão processual, quer no campo das instrução ( princípio inquisitório em sentido estrito) .
Este último principio consignado no art. 411º do CPC aponta para uma conceção do processo em que a investigação da verdade material é também da responsabilidade do juiz, constituindo, dessa forma, uma compressão ao princípio do dispositivo.
Daí o juiz poder oficiosamente ordenar a realização de provas, como por exemplo a realização da perícia ( art. 467º,nº1) ou requisitar documentos ( art. 436º), ainda que restringido “ aos factos de que lhe é lícito conhecer” e que nos termos do art. 5º delimitam o âmbito dos poderes de cognição do tribunal.
Da conjugação dos artigos 411º e 467º e 436, todos do CPC, conclui-se que estes preceitos legais constituem uma materialização do princípio do inquisitório, resultando, assim, que o juiz deve exercitar os seus poderes inquisitórios- são poderes vinculados (nunca discricionários), embora “preservando o necessário equilíbrio de interesses, critérios de objetividade e uma relação de equidistância e de imparcialidade” , quando concluir pela necessidade ou conveniência, ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, de realização de diligências de prova suplementares às promovidas pelas partes.
Sem embargo, não se olvida que aquele mesmo princípio, porque coexiste com os princípios do dispositivo, da preclusão, da autorresponsabilidade das partes, não poderá ser invocado de forma automática, de modo a superar as eventuais falhas de instrução que seja de imputar a alguma das partes, designadamente quando esteja precludida a apresentação de meio de prova, como ocorreu no caso apreciado no Ac da RC de 12-03-2019 ( p.141/16).
Lê-se no sumário deste acordão:
II - A norma do artigo 411.º do Código de Processo Civil, segundo a qual incumbe ao juiz ordenar oficiosamente todas as diligências probatórias que se mostrem adequadas a provar uma afirmação factual, não comporta a interpretação no sentido das partes não terem quaisquer responsabilidades probatórias, tem antes de ser aplicada tendo em consideração outros princípios processuais, como o princípio dispositivo, o da autorresponsabilidade e da igualdade das partes e o da preclusão de direitos processuais probatórios, sem esquecer o dever de imparcialidade do juiz.
IV – Em regra, se a parte podia ter requerido certa diligência probatória e não o fez, a intervenção do juiz substituindo-se a ela, violará o princípio da preclusão e o da autorresponsabilidade das partes conjugado com o princípio da igualdade das partes no processo, pois estaria a permitir a prática de um ato já precludido, a esvaziar a autorresponsabilidade de uma das partes e eventualmente a favorecer a outra.
V – A omissão da diligência probatória tem de ser analisada tendo em conta os conhecimentos que o processo fornecia ao juiz no exato momento em que é assinalada a existência da omissão e não à luz dos conhecimentos posteriores que o processo permitiu adquirir.”
Ali tratou-se de um caso de total inércia da parte e que perante tal circunstância a parte pretendia ver colmatada tal falha com a posterior intervenção oficiosa do tribunal.
É o que ocorre no caso sub judicio.
Com efeito, como vimos, reconhecendo embora a lei às partes um interesse legítimo na instrução da causa, não lhes permite o exercício desse direito de forma arbitrária. Bem pelo contrário, condiciona esse exercício a determinados pressupostos, fora dos quais aquele direito pode ficar comprometido. E, neste contexto, não faz sentido que esses pressupostos possam ser contornados por recurso aos poderes/deveres que a lei comete ao juiz em sede instrutória.
Como salienta Lopes do Rego[ii]: “O exercício dos poderes de investigação oficiosa do tribunal pressupõe que as partes cumpriram minimamente o ónus que sobre elas prioritariamente recai de indicarem tempestivamente as provas de que pretendem socorrer-se para demonstrarem os factos cujo ónus probatório lhes assiste - não podendo naturalmente configurar-se como uma forma de suprimento oficioso de comportamentos grosseira ou indesculpavelmente negligentes das partes”.

E neste sentido se tem também pronunciado a esmagadora maioria da jurisprudência[iii].
Se, como salienta Nuno Lemos Jorge, referido num dos arestos por nós citados em nota infra, a necessidade de promoção de diligências probatórias pelo juiz “não for patentemente justificada pelos elementos constantes dos autos, a promoção de qualquer outra diligência resultará, apenas, da vontade da parte nesse sentido, a qual, não se tendo traduzido pela forma e no momento processualmente adequados, não deverá agora ser substituída pela vontade do juiz, como se de um seu sucedâneo se tratasse”.
Ora, no caso sub judicio, o que o exequente/apelante pretende neste recurso é justamente esse resultado; ou seja, obter por via oficiosa aquilo que, por sua iniciativa, oportunamente não requereu ou requereu, mas, por despacho judicial, foi indeferido, despachos esses que formaram caso julgado, porquanto não foram alvo de interposição de recurso, oportunamente.
É patente, assim, que nenhum dos meios de prova indicados podia ser admitido.
Por iniciativa do exequente/apelante porque seriam sempre intempestivos; e, por iniciativa do tribunal, porque o exequente/apelante pretende, por esta via, apenas contornar a preclusão processual decorrente da sua inércia. Aliás, patente no facto de só esgrimir este argumento no presente recurso, conforme já referimos.
Daí que o apelante não tem qualquer razão para que se possa concluir por qualquer nulidade cometida pelo tribunal a quo por violação do princípio do inquisitório ou ainda para que se possa lançar mão do disposto no art. 662º,nº2, al. c) do CPC e anular a decisão, conforme é defendido na conclusão II).
A este respeito, Abrantes Geraldes, referindo-se aos poderes inquisitoriais conferidos pelo art. 662º do CPC à Relação, refere o seguinte: “Trata-se de uma diligência que não está circunscrita a depoimentos, podendo incidir sobre quaisquer meios de prova, desde que se revele a existência de dúvida fundada sobre a prova realizada que seja suscetível de sanação mediante a produção de novos meios de prova. (…) não estamos perante um direito potestativo de natureza processual que seja conferido às partes e que à Relação apenas cumpra corresponder, antes deve ser encarado como um poder/dever atribuído à Relação e que esta usará de acordo com critérios de objetividade, quando percecione que determinadas dúvidas sobre a prova ou falta de prova de factos essenciais poderão ser superados mediante a realização de diligências probatórias suplementares. Afinal, a alteração legislativa não modificou as regras de distribuição do ónus da prova que se colhem do direito material, nem aboliu os efeitos que emanam de um sistema em que ainda predomina o princípio do dispositivo (e também o da aquisição processual, nos termos do art. 413º). Igualmente não poderá deixar de ser ponderado que o ónus de proposição de meios de prova se deve materializar também através da sua apresentação em momentos processualmente ajustados, com previsão de efeitos preclusivos que não podem ser ultrapassados só pela livre iniciativa da parte. (…), como critério orientador, pode servir a apreciação critica da atuação que o juiz de 1ª instância teve ou deveria ter tido aquando da realização da audiência final, ponderando casuisticamente a amplitude dos poderes de averiguação que a lei lhe confere (art. 411º) e que podem ser transpostos naqueles circunstâncias para a Relação quando esta se depare com as aludidas dúvidas sérias suscetíveis de serem dirimidas”, trata-se de “uma medida paliativa destinada a resolver situações patológicas que emergem simplesmente de uma nebulosa que envolva a prova que foi produzida e que não foi convenientemente resolvida (devendo sê-lo) segundo o juízo crítico da Relação[iv].
Decorre do que se vem dizendo que o cumprimento do art. 662º do CPC pelo Tribunal da Relação pressupõe, desde logo, que seja impugnada a decisão da matéria de facto, com cumprimento dos requisitos do art. 640º.
Sem embargo, e conforme ressuma da conclusão B) das alegações de recurso, o apelante assume que o objeto do recurso se subsume a uma questão de direito e não indica qualquer impugnação do julgamento da matéria de facto realizado pela 1ª Instância como fazendo parte desse objeto.
Acresce que nas restantes conclusões não afirma pretender impugnar o julgamento da matéria de facto operado pela 1ª Instância e, muito menos, o faz mediante o cumprimento dos ónus impugnatórios enunciados no art. 640º, n.ºs 1 e 2, al. a) do CPC, pelo que caso seja seu efetivo ensejo impugnar o julgamento da matéria de facto realizado pela 1ª Instância, sempre se impunha rejeitar essa impugnação por incumprimento dos mencionados ónus impugnatórios do julgamento da matéria de facto.
Por tudo o exposto, e não se verificando qualquer causa de nulidade, nem estando perante qualquer circunstância consubstanciadora de anulação da decisão proferida pela primeira instância, deverá manter-se a decisão recorrida.

V- Decisão:

Pelo exposto, acordam os juízes que constituem este Tribunal:
A) em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.
B) Custas da apelação pelo apelante.
Notifique.
Guimarães, 15 de fevereiro de 2024

Relatora: Anizabel Sousa Pereira
 Adjuntos: José Manuel Flores e
Jorge dos Santos


[i] Vide neste sentido, AC do STJ de 19-11-15, 271/14 e Ac da R.E de 30-11-2016, 46142/14, ambos citado in “ Recursos no Novo CPC”, de A. Geraldes, p. 200, nota 311, 5ª ed.
[ii] Comentários ao Código de Processo Civil, Almedina, 1999, pág. 425.
[iii] Como se pode constatar da leitura, entre outros, e para além do citado AC RC de 12/03/2019, ainda do Acórdão do STJ, de 28/05/2002, Processo n.º 02A1605, Ac.s RP, de 02/01/2006, Processo n.º 0613159, de 22/02/2011, Processo n.º 476/09.0TBVFR-B.P1 Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 04/03/2013, Processo n.º 293/12.0TBVCT-J.G1, e Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 20/03/2018, Processo 14/15.6T8VRL-C.G1 todos consultáveis em www.dgsi.pt
[iv] Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, pág. 296, 5ª ed.