Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
4292/18.0T8VNF-D.G1
Relator: JOSÉ ALBERTO MOREIRA DIAS
Descritores: ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA
PEDIDO DE EXONERAÇÃO
PEDIDO DE ESCLARECIMENTOS
NULIDADES
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/22/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (elaborado pelo relator – art. 663º, n.º 7 do CPC).

1- As nulidades da sentença, acórdão ou despacho assumem uma das tipologias previstas no n.º 1 do art. 615º do CPC, tratando-se de vícios formais que os inquinam, de per se, de invalidade, por neles o tribunal não ter respeitado as normas legais que regulam a elaboração e/ou estruturação dessas peças e/ou os limites da decisão nelas proferida.
2- As nulidades processuais respeitam a vícios ocorridos ao longo do iter processual, decorrente de: a) ter sido praticado um ato proibido por lei; b) ter sido omitido um ato prescrito na lei; ou c) ter sido realizado um ato imposto ou permitido por lei, mas sem o formalismo requerido pela lei, em que o vício verificado não se reconduz a nenhuma causa determinativa da nulidade da sentença, acórdão ou despacho taxativamente enunciados taxativamente no n.º 1 do art. 615º do CPC, mas em que o vício é expressa ou implicitamente (neste caso, por ser suscetível de influir no exame ou na decisão da causa) cominado pela lei de nulidade.
3- Sem prejuízo do n.º 3 do art. 199º do CPC, as nulidades processuais secundárias não são do conhecimento oficioso do tribunal e têm de ser invocadas pelo interessado junto do tribunal que a cometeu, de acordo com as regras e prazos fixados nos arts. 199º, n.º 1 e 149º, n.º 1 do CPC, sob pena dessas nulidades se sanarem.
4- Quando a nulidade processual se reconduza a uma nulidade da própria sentença, acórdão ou despacho, como é o caso em que estes sejam proferidos com violação do princípio do contraditório, o meio de impugnação da nulidade processual cometida é o recurso ou, caso o processo não admita recurso ordinário, a reclamação.
5- O pedido de exoneração do passivo restante nunca pode ser formulado pelo devedor/insolvente após o termo da assembleia de credores designada para apreciação do relatório a que alude o art. 155º do CIRE, uma vez que é, nessa assembleia, que o administrador de insolvência e os credores do devedor/insolvente têm de ser confrontados com o pedido de exoneração e terá de ser observado o princípio do contraditório em relação a eles quanto a esse pedido (art. 236º, n.º 4 do CIRE).
6- O relatório do administrador de insolvência a que alude o art. 155º do CIRE destina-se a dar aos credores do devedor/insolvente uma panorâmica geral e circunstanciada sobre a situação da massa insolvente, das causas da insolvência do devedor e as perspetivas de solução, com vista a habilitar esses credores a decidir quanto ao destino futuro do devedor/insolvente (aprovação de plano de insolvência ou liquidação da massa insolvente), mas também a poderem pronunciar-se informadamente quanto à qualificação da insolvência e ao pedido de exoneração do passivo restante.
7- Ocorre o vício da nulidade por violação do princípio do contraditório do despacho que defere liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, quando, na sentença declaratória da insolvência, o tribunal decidiu não designar assembleia de credores para apreciação do relatório a que alude o art. 155º do CIRE e que os credores do insolvente/devedor votariam por escrito, em que tendo o administrador de insolvência apresentado esse relatório, um dos credores do devedor/insolvente pediu esclarecimentos em relação ao teor desse relatório, o tribunal deferiu esse pedido de esclarecimentos, os quais foram prestados pela administradora de insolvência, mas em que o tribunal proferiu decisão, deferindo liminarmente o pedido de exoneração, sem que esses esclarecimentos tivessem sido notificados aos credores, incluindo àquele que os requereu, para exercerem, querendo, o princípio do contraditório.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

Relatório

F. J., residente na Urbanização …, Vila Nova de Famalicão, instaurou a presente ação especial de insolvência contra N. F., residente na Rua …, Braga, pedindo que este fosse declarado insolvente e que “atendendo à previsível complexidade da insolvência, nos termos do disposto no art. 32º, n.º 2 do CIRE” se nomeie como administrador judicial o Exmo. Sr. N. R., economista, com domicílio profissional na Quinta …, Vila Nova de Famalicão, conhecido por esse tribunal pelo trabalho de grande mérito e credibilidade, o qual detém grande competência na área de insolvências em que a sua profissão o isenta de qualquer interesse, honrando o tribunal em defesa dos credores”.
Citado, o requerido deduziu oposição, invocando a exceção dilatória da ilegitimidade ativa do requerente para instaurar a presente ação de insolvência, alegando que este não é titular do crédito a que se arroga titular perante si;
Impugnou parte da facticidade alegada pelo requerente.
Conclui pedindo que a ação seja julgada improcedente e, subsidiariamente, que seja exonerado do passivo restante.
Designou-se data para a realização de audiência final, em que se proferiu despacho fixando o valor da presente ação em 5.000,01 euros, proferiu-se despacho saneador tabelar, fixou-se o objeto do litígio e os temas de prova e conheceu-se dos requerimentos de prova apresentados pelas partes, interrompendo-se, de seguida, a audiência final, “uma vez que o ilustre mandatário do requerente solicitou que a produção de prova só se inicie com a junção aos autos de toda a informação solicitada”.
Reaberta a audiência final em 20/11/2019, suspendeu-se a mesma ao abrigo do disposto no art. 222º-E, n.º 6 do CIRE, dado que se verificou que “no dia de ontem tinha entrado na distribuição a este Juiz 1 do Processo Especial para Acordo de Pagamento n.º 6959/19.7T8VNF, na qual é parte devedor o qui também devedor nestes autos, N. F.”.
Entretanto, na sequência do despacho proferido em 08/06/2020, em que se determina: “Cumpra-se o despacho hoje proferido no Proc. n.º 6959/19.7T8VNF, devendo o parecer ser notificado ao requerido, para que se pronuncie”, juntou-se aos presentes autos de insolvência cópia do parecer emanado pelo administrador judicial provisório no âmbito do PEAP, L. N., em que este requer que se declare a insolvência do aqui requerente, sustentando que até ao presente momento não lhe foi apresentado qualquer proposta de plano de pagamento.
Uma vez notificado essa cópia de parecer junta aos presentes autos de insolvência ao devedor/insolvente, que nada disse, designou-se data para a continuação da audiência final.
Reaberta a audiência final em 14/07/2020, na qual estava presente, além do mais, o requerente F. J., e o mandatário deste, o devedor N. F. requereu a palavra e no seu uso “admitiu a sua atual situação de insolvência, confirmando a sua incapacidade para fazer face às dividas e demais compromissos financeiros que tem neste momento”.
Nessa sequência, concedeu-se a palavra à patrona do devedor/insolvente, que requereu a exoneração do passivo restante e sugeriu que para desempenhar as funções de administrador de insolvência se nomeasse a Senhora Dr.ª C. M., com escritório na Praça … Porto.
Após, sem dar a palavra aos restantes sujeitos processuais presentes, incluindo ao credor requerente, F. J., a 1ª Instância proferiu sentença declarando a insolvência do devedor N. F., fixando em 30 dias o prazo para a reclamação de créditos, e decidindo, além do mais, nomear como administradora de insolvência a Sr.ª Dr.ª C. M., “constante da lista oficial” e, bem assim não designar data para a realização da assembleia de credores para apreciação do relatório a que alude o art. 155º do CIRE, e que esse relatório seria votado por escrito.
Dessa sentença foram os presentes notificados, que nada requereram, sequer dela interpuseram recurso.
Em 11/09/2020, a administradora de insolvência juntou aos autos o relatório a que alude o art. 155º do CIRE, onde, além do mais, se lê que a situação de insolvência do devedor “encontra-se fortemente indiciada, visto existirem obrigações incumpridas no valor de pelo menos 942.892,32 euros e à presente data”, os créditos ascendem aos montantes constantes da lista de créditos reconhecidos e não reconhecidos (que junta), “o que tornou impossível a manutenção de solvência”, sendo impossível a recuperação económica do devedor/insolvente.
Mais se lê que quanto à exoneração do passivo restante, que, na perspetiva da administradora de insolvência, o requerimento foi tempestivamente apresentado e aquela, “desde que respeitados os pressupostos determinados pelo tribunal nos termos do art. 239º do CIRE”, nada tem a opor a essa exoneração.
Notificado esse relatório ao devedor/insolvente, ao Ministério Público e a todos os credores, incluindo ao requerente e credor F. J., por requerimento entrado em juízo em 24/09/2020, este requereu que se notificasse a administradora de insolvência para prestar os esclarecimentos que identifica nesse requerimento e requerendo que se declarasse suspenso o prazo para se pronunciar quanto à requerida exoneração do passivo restante e, bem assim o prazo a que o alude o art. 188º do CIRE, até à notificação dos esclarecimentos pela administradora de insolvência e ulterior exercício do contraditório, alegando que, nesse relatório, a administradora de insolvência não explica a causa para o passivo do devedor/insolvente de 942.892,72 euros, a atividade ou atividades desenvolvidas pelo último ao longo dos últimos anos, sequer elenca as variações patrimoniais do devedor/insolvente ocorridas no passado recente suscetíveis de eventuais resoluções a favor da massa insolvente, assim como não explica a causa de não ter procedido à apreensão dos móveis do insolvente (ou da meação deste), existentes no interior da fração autónoma apreendidas, assim como aquele relatório não retrata que a sociedade “D. D., Lda.” foi declarada insolvente, por sentença transitada em julgado.
Por requerimento entrado em juízo em 09/10/2020, o devedor/insolvente opôs-se ao pedido de esclarecimentos apresentado pelo credor F. J. e ao pedido de suspensão dos prazos por este requerida.
Por despacho proferido em 29/10/2020, a 1ª Instância determinou o prosseguimento dos autos para liquidação “e, no mais, para que a administrador de insolvência se pronunciasse quanto ao teor do requerimento apresentado pelo credor”.
Esse despacho foi notificado ao credor F. J., na pessoa do seu mandatário, via Citius, em 29/10/2020, bem como à administradora de insolvência.
Por requerimento entrado em juízo em 09/11/2020, a administradora de insolvência respondeu àquele requerimento apresentado pelo credor F. J..
Esse requerimento apresentado em 09/11/2020 pela administradora de insolvência não foi notificado pela 1ª Instância a quem quer que fosse, incluindo ao credor F. J..
Por despacho proferido em 12/11/2020, a 1ª Instância deferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante deduzido pelo devedor/insolvente, constando esse despacho da seguinte parte dispositiva:
“Em consequência, determino que, durante no período de cinco anos, que se inicia no dia de hoje, o rendimento disponível que a insolvente venha a auferir em montante superior a dois SMN (contado 12 vezes por ano), seja cedido ao fiduciário que aqui se designa na pessoa da Sr.ª AI.
Notifique, publicite e registe (cfr. artigos 247.º, 240.º, n.º 2, 230.º, n.º 2, e 38.º, do CIRE)”.

Inconformado com o assim decidido, o credor F. J. interpôs o presente recurso de apelação, em que formula as seguintes conclusões:

1. Vem o presente recurso interposto do douto despacho inicial de exoneração de passivo restante e nomeação de fiduciário.
2. A Meritíssima Juiz do Tribunal a quo - por quem aliás nutrimos o maior respeito - mas, decidindo como decidiu, violou o disposto nos artigos 3.º, n.º 3, 195.º e 199.º, todos o CPC, aplicável ex vi artigo 17.º do CIRE e, bem assim, o artigo 238.º, n.º 1 alíneas c) e f) do CIRE.
3. No passado dia 14.07.2020 realizou-se a audiência de discussão e julgamento que culminou na declaração de insolvência do ali requerido.
4. A Meritíssima Juiz a quo nomeou como Administradora Judicial a pessoa “indicada” pela Ilustre Patrona do requerido, prescindindo da aleatoriedade da nomeação,
5. De forma arbitrária e não fundamentada, ignorou a sugestão do apelante e aceitou a indicação do requerido…
6. Em 11.09.2020 a Senhora AJ, numa peça processual composta por três (03) páginas, juntou o relatório de insolvência e a sua posição quanto à exoneração do passivo restante.
7. Por requerimento de 24.09.2020 o apelante, perante um relatório ao bom estilo SIMPLEX, apresentou algumas dúvidas, “(…) a necessitarem de uma pronta explicação ou a destituição da Senhora AJ”.
8. Por douto despacho de 29.10.2020 a Meritíssima Juiz a quo decidiu que “No mais, pronuncie-se a Sr. AI sobre o teor do requerimento com a ref.ª 10521604”, ie, do requerimento do apelante de 24.09.2020.
9. Por requerimento de 09.11.2020, a Senhora AJ veio responder às questões colocadas pelo apelante.
10. Tal requerimento – que antecedeu e suportou a decisão de admissão liminar da exoneração do passivo restante - não foi notificado às partes.
11. Em 12.11.2020 é proferido o despacho aqui em crise.
12. Tal despacho padece, porém, de duas nulidades.
13. A primeira delas resulta da flagrante violação do princípio do contraditório.
14. O mesmo foi proferido no seguimento de um requerimento da Senhora AJ em que havia sido notificada para esclarecer algumas dúvidas do apelante.
15. O Tribunal a quo não notificou as partes dos esclarecimentos prestados, decidindo como quis sem facultar o pleno exercício do contraditório.
16. Nos termos do disposto no artigo 3.º, n.º 3 do CPC, aplicável ex vi artigo 17.º do CIRE, “o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.
17. Violação procedimental que, nos termos da leitura conjugada dos artigos 195.º e 199.º, ambos do CPC, importa a nulidade do despacho aqui em referência.
18. A segunda nulidade prende-se com uma questão de facto.
19. Nos termos do disposto no artigo 238.º do CIRE:
“1 - O pedido de exoneração é liminarmente indeferido se:
a) For apresentado fora de prazo;
b) O devedor, com dolo ou culpa grave, tiver fornecido por escrito, nos três anos anteriores à data do início do processo de insolvência, informações falsas ou incompletas sobre as suas circunstâncias económicas com vista à obtenção de crédito ou de subsídios de instituições públicas ou a fim de evitar pagamentos a instituições dessa natureza;
c) O devedor tiver já beneficiado da exoneração do passivo restante nos 10 anos anteriores à data do início do processo de insolvência;
d) O devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica;
e) Constarem já no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186.º;
f) O devedor tiver sido condenado por sentença transitada em julgado por algum dos crimes previstos e punidos nos artigos 227.º a 229.º do Código Penal nos 10 anos anteriores à data da entrada em juízo do pedido de declaração da insolvência ou posteriormente a esta data;
g) O devedor, com dolo ou culpa grave, tiver violado os deveres de informação, apresentação e colaboração que para ele resultam do presente Código, no decurso do processo de insolvência.
2 - O despacho de indeferimento liminar é proferido após a audição dos credores e do administrador da insolvência nos termos previstos no n.º 4 do artigo 236.º, exceto se o pedido for apresentado fora do prazo ou constar já dos autos documento autêntico comprovativo de algum dos factos referidos no número anterior”.
20. No despacho em crise é referido que “Dos documentos juntos aos autos e do relatório da AI, resultam provados os seguintes factos com relevo para a decisão:
1.Por sentença proferida no dia 14-7-20, já transitada em julgado, foi declarada a sua insolvência.
2.O insolvente é casado e tem dois filhos menores a cargo.
3.Não tem antecedentes criminais.”
21. De seguida é ainda dito que “Por fim, como resulta do CRC junto aos autos, o insolvente não tem antecedentes criminais pela prática dos crimes p.e. p. pelos artigos 227.º, a 229.º, do C.P. (cfr. artigo 238.º, n.º 1, als. f) e g), do CIRE)”.
22. O requerido - contrariamente ao que é alegado no despacho - tem antecedentes criminais.
23. De igual modo não existe qualquer certificado de registo criminal junto aos autos, não se percebendo qual a razão de ciência da Meritíssima Juiz a quo para sustentar tal afirmação.
24. Ou, se existe, o seu conteúdo não foi notificado às partes.
25. Dito isto, a Meritíssima Juiz a quo não dispunha de qualquer elemento factual capaz de sustentar o despacho que admitiu a exoneração do passivo restante.
26. Pelo que também por aqui, considerando que o “(…) legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”, violou o disposto no artigo 238.º, n.º 1 alíneas c) e f) do CIRE.
27. A decisão recorrida, tomada sem qualquer suporte legal, não fez uma correta nem concreta apreciação da Lei e do suporte documental junto aos Autos.
28. Pelo que deve ser revogada, substituindo-se por outra que, atendendo à letra e ao espírito do legislador, respeite o princípio do contraditório quanto aos esclarecimentos prestados pela Senhora AJ e, bem assim, tome em consideração o certificado de registo criminal que não se encontra ainda junto aos autos.
29. Violou assim o douto despacho o disposto nos artigos 3.º, n.º 3, 195.º e 199.º, todos o CPC, aplicável ex vi artigo 17.º do CIRE e, bem assim, o artigo 238.º, n.º 1 alíneas c) e f) do CIRE.

Nestes termos e nos melhores de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve o presente recurso ser admitido, julgado procedente, por provado de modo que a decisão ora recorrida seja substituída por outra que cumpra o princípio do contraditório quanto aos esclarecimentos prestados pela Senhora AJ e, bem assim, tome em consideração o certificado de registo criminal que não se encontra ainda junto aos autos.

O devedor/insolvente contra-alegou, pugnando pela improcedência da apelação, concluindo as suas contra-alegações nos termos que se seguem:

I. O recorrente vem peticionar no seu requerimento de interposição de recurso que: “(…) notificado do douto despacho inicial de exoneração do passivo restante e nomeação de fiduciário, e com o mesmo não se conformando, vem dele interpor recurso, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo (…)”.
II. O CIRE é muito concreto ao afirmar expressamente no seu n.º 5 do art.º 14.º que “5 – Os recursos sobem imediatamente, em separado e com efeito suspensivo.”, não deixando qualquer lacuna para resgatar as normas do CPC, conforme procurou fazer o recorrente.
III. Motivo pelo qual, deverá o presente recurso subir imediatamente, em separado e com efeito devolutivo.
IV. O recorrente vem, em sede de alegações de recurso, insurgir-se contra o despacho proferido pelo Venerando Tribunal a quo que iniciou a exoneração do passivo restante do ora recorrido.
V. Salvo o devido respeito, que, aliás, é muito, não pode o ora recorrido concordar em nada com a posição apresentada pelo recorrente.
VI. Em 11/09/2020 apresentou a Sra. Administradora o relatório nos termos do art.º 155.º do CIRE (requerimento este apresentado nos presentes autos com a ref.ª 36442248).
VII. Em 24/09/2020 veio o ora recorrente apresentar requerimento (apresentado nos presentes autos com a ref.ª 36583369) questionando o relatório apresentado, requerendo explicitações por parte da Sra. Administradora de Insolvência e até, insolitamente, levantando uma eventual possibilidade de destituição desta.
VIII. Em 09/10/2020 veio o ora recorrido apresentar requerimento (apresentado nos presentes autos com a ref.ª 36749843) para exercício do seu contraditório, face ao requerimento supramencionado apresentado pelo recorrente, pugnando pela não prestação dos esclarecimentos por parte da Sra. administradora de insolvência, uma vez que inexistia fundamento para tal petitório por parte deste credor.
IX. O Venerando Tribunal determinou que a Sra. Administradora de Insolvência deveria prestar os esclarecimentos solicitados pelo recorrente, tendo esta se pronunciado e apresentado os mesmos em 09/11/2020 (requerimento este apresentado com a ref.ª 37069286).
X. Não pode o ora recorrente estar constantemente a exigir que lhe seja concedida a “palavra”, existindo momentos próprios para o efeito.
XI. Os requerimentos apresentados pelo ora recorrente não têm qualquer sustentação factual ou legal, não passando de um conjunto de insinuações infundadas fruto da animosidade que este credor certamente nutre pelo insolvente.
XII. Após tais esclarecimentos, o Tribunal a quo, e bem, analisados os requerimentos apresentados por todas as partes, decidiu em conformidade com os mesmos e pronunciou-se através do despacho inicial de exoneração do passivo restante, em 12/11/2020, sob a ref.ª 170474904, decidindo a questão levantada pelo recorrente e concluindo pelo deferimento da exoneração do passivo restante requerida.
XIII. Houve, sim, cumprimento do princípio do contraditório por parte do Tribunal a quo, não se verificando, por isso a invocada violação processual nos termos do disposto nos art.º 195.º e 199.º do CPC.
XIV. Quanto à não junção aos presentes autos do certificado de registo criminal do ora recorrido, desconhece o ora recorrente se não terá o Venerando Tribunal a quo consultado informaticamente o dito certificado de registo criminal, uma vez que não declararia sem mais que o ora recorrido não tem antecedentes criminais.
XV. No mais, desde já ressalva o ora recorrido que não tem antecedentes criminais pelos crimes previstos nos artigos 227.º a 229.º do Código Penal (vide art. 238.º, n.º1 f) e g) do CIRE”, motivo pelo qual nunca poderia a exoneração do passivo restante ser vedada ao recorrido por este motivo.
XVI. Motivo pelo qual, não se verifica a nulidade invocada.
XVII. Em consequência, devem, por isso, improceder, “in totum”, as conclusões de recurso formuladas pelo credor, aqui recorrente.

NESTES TERMOS, não só pelo alegado, mas também pelo alto critério de V.ª Ex.ª, mantendo o despacho recorrido, farão V.ª Ex.ª a desejada J U S T I Ç A.
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Previamente à prolação de despacho de admissão do recurso, não se encontrando efetivamente junto aos autos o certificado de registo criminal do apelante, a 1ª Instância notificou-o para que juntasse o certificado de registo criminal em falta e para que uma vez junto este, se notificasse o mesmo e os esclarecimentos prestados pela administradora de insolvência em 09/11/2020, a todos os sujeitos processuais, incluindo ao apelante.

Cumprindo com o determinado, por requerimento entrado em juízo em 28/01/2021, o apelado/insolvente juntou aos autos o seu certificado de registo criminal, extraindo-se do teor deste a seguinte facticidade:

A- Por sentença proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo Local Criminal, Juiz 2, no âmbito do Processo Comum (Tribunal Singular) n.º 1548/13.2TABRG, em 22/06/2017, transitada em julgado em 07/09/2016, o devedor/insolvente, N. F., foi condenando pela prática em novembro de 2011, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, previsto e punido pelos artigos 107º, n.º 1 e 105º, n.º 1, da Lei n.º 15/2001, de 05/06, na pena de 250 dias de multa, à taxa diária de 7,00 euros, num total de 1.750,00 euros, pena essa que foi declarada extinta em 16/07/2020, pelo pagamento da multa.
B- Por sentença proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo Local Criminal, Juiz 4, no âmbito do Processo Comum (Tribunal Singular) n.º 29/18.2IDBRG, em 07/11/2019, transitada em julgado em 09/12/2019, o devedor/insolvente, N. F., foi condenado pela prática em 2017, de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelos artigos 105º, n.ºs 1 e 2 e 6º do RGIT, na pena de 160 dias de multa, à taxa diária de 5,50 euros, num total de 880,00 euros.
C- Por sentença proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo Local Criminal, Juiz 4, no âmbito do Processo Comum (Tribunal Singular) n.º 1275/14.3TABRG, em 09/07/2020, transitada em julgado em 24/09/2020, o devedor/insolvente, N. F., foi condenado pela prática em novembro de 2013, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada, previsto e punido pelos artigos 107º, n.º 1 e 105º, n.º 1, do RGIT e 30º, n.º 2 do Cód. Penal, especialmente atenuada nos termos do art. 22º, n.º 2 do RGIT, na pena de 90 dias de multa, à taxa diária de 7,00 euros, num total de 630,00 euros.
D- Por sentença proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo Local Criminal, Juiz 2, no âmbito do Processo Comum (Tribunal Singular) n.º 2083/16.2T9BRG, em 12/10/2020, transitada em julgado em 07/12/2020, o devedor/insolvente, N. F., foi condenado pela prática em 04/01/2016, de um crime de descaminho ou destruição de objeto colocado sob poder público, previsto e punido pelo artigo 355º do Cód. Penal, na pena de 9 meses de prisão, substituída por 220 dias de multa, à taxa diária de 7,00 euros, num total de 1.540,00 euros.
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Cumprido com o determinado, isto é, notificado o certificado do registo criminal do devedor/insolvente a todos os restantes sujeitos processuais, incluindo ao ora apelante e, bem assim o teor dos esclarecimentos prestados pela administradora de insolvência em 09/11/2020, a 1ª Instância proferiu em 03/03/2021, despacho de admissão do recurso, em que se pronuncia quanto às nulidades invocadas pelo apelante, nos seguintes termos:

“Entendo que o despacho posto em crise não padece das nulidades apontadas.
Com efeito, não foi desrespeitado o rito processual relativo à admissão liminar do incidente de exoneração do passivo restante”.
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Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do apelante, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC.

No seguimento desta orientação, as questões que se encontram submetidas à apreciação desta Relação são as seguintes:

a- se a sentença proferida em 14/07/2020, que declarou o devedor N. F. insolvente e na qual a 1ª Instância nomeou para o cargo de administradora de insolvência a Senhora Dr.ª C. M., padece de erro de direito em virtude de nela o tribunal a quo ter ignorado, de forma arbitrária e não fundamentada, a sugestão feita pelo apelante para que fosse nomeado para o exercício desse cargo o Senhor Dr. N. R., aceitando, sem mais, a indicação feita pelo devedor/insolvente e prescindindo da aleatoriedade da nomeação para o exercício desse cargo;
A propósito desta questão suscita-se a questão prévia de se saber se a sentença declaratória da insolvência, em que entre outros, se procede à nomeação do administrador de insolvência, era imediatamente recorrível e, no caso positivo, se não tendo o apelante (ou quem quer que fosse) interposto recurso dessa sentença, se este pode agora, em sede da presente apelação, atacar essa sentença, nomeadamente, a nomeação nela feita da Senhora Dr.ª C. M. para o cargo de administradora de insolvência;
b- se o despacho proferido em 12/11/2020, em que a 1ª Instância admitiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante deduzido pelo devedor/insolvente, é nulo por:
b.1- violação do princípio do contraditório, em virtude de apresentado o relatório a que alude o art. 155º do CIRE, o apelante ter solicitado esclarecimentos à administradora de insolvência quanto ao teor desse relatório, o tribunal a quo ter deferido esses esclarecimentos, estes terem sido prestados pela administradora de insolvência em 09/11/2020, acabando, no entanto, a 1ª Instância por proferir a decisão recorrida, em que defere liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, sem que esses esclarecimentos tivessem sido notificados a quem quer que fosse, incluindo ao aqui apelante, que, consequentemente, não teve oportunidade de exercer, em pleno, o exercício do contraditório;
b.2- à data da prolação da decisão recorrida, não se encontrar junto aos autos o certificado do registo criminal relativo ao devedor/insolvente, não dispondo o tribunal a quo de qualquer elemento factual capaz de sustentar o despacho que admitiu liminarmente a exoneração do passivo restante e para julgar como provado que o devedor/insolvente não tem antecedentes criminais.
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A- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Os factos que relevam para apreciar os fundamentos do presente recurso de apelação são os que se encontram exarados no relatório acima explanado, a que acrescem os seguintes factos julgados provados pela 1ª Instância no despacho proferido em 12/11/2020, em que admitiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante:

1. Por sentença proferida no dia 14-7-20, já transitada em julgado, foi declarada sua insolvência.
2. O insolvente é casado e tem dois filhos menores a cargo.
3. Não tem antecedentes criminais.
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B- FUNDAMENTAÇÃO JURIDICA

B.1- Erro de direito de que enferma a sentença declaratória de insolvência – trânsito em julgado.

Advoga o apelante que o despacho em que a 1ª Instância nomeou para o exercício do cargo de administradora de insolvência a Senhora Dr.ª C. M., sugerida pelo credor/insolvente para o exercício desse cargo, padece de erro de direito, porquanto o próprio sugeriu, na petição inicial, que fosse nomeado para esse cargo o Senhor Dr. N. R., sugestão essa que, no entanto, foi ignorada, de forma arbitrária e não fundamentada, pela 1ª Instância, que aceitou, sem mais, a sugestão feita pelo devedor/insolvente e prescindindo da aleatoriedade da pessoa que tem de ser nomeada para o exercício desse cargo.
Acontece que a nomeação da administradora de insolvência foi feita, pela 1ª Instância, como o tinha de ser (art. 36º, n.º 1, al. d) do CIRE), na sentença que declarou a insolvência do devedor N. F..
Essa sentença foi proferida na sessão de audiência final que teve lugar no dia 14/07/2020.
Nessa sessão de audiência final estava presente o apelante, que então se encontrava devidamente representado por mandatário judicial, pelo que qualquer nulidade processual em que pudesse ter incorrido o tribunal, ao ignorar a sugestão feita pelo apelante, na petição inicial, para que fosse nomeado para o cargo de administrador de insolvência o Senhor Dr. N. F., nos termos do disposto nos arts. 195º, n.º 1, 197º, n.º 1, 199º, n.º 1 do CPC ex vi art. 17º do CIRE, tinha de ser imediatamente arguida pelo apelante, até ao termo dessa sessão de audiência final, sob pena dessa eventual nulidade processual se sanar.
Ora, não tendo o apelante, reafirma-se, presente e devidamente representado, através de mandatário judicial, nessa sessão de audiência final que teve lugar em 14/07/2020, em que foi proferida a sentença que declarou o requerido N. F. insolvente e em que se procedeu à nomeação, como se impunha (al. d), do n.º 1 do art. 36º do CIRE), para o exercício do cargo de administradora de insolvência a Senhora Dr.ª C. M., suscitado, até ao termo dessa sessão de audiência final, qualquer nulidade em que possa ter incorrido a 1ª Instância em sede dessa nomeação, qualquer nulidade processual em que pudesse ter incorrido o tribunal a quo na aludida nomeação encontra-se sanada, não podendo agora ser suscitada pelo apelante no presente recurso de apelação.
Acresce precisar que conforme decorre do disposto nos arts. 40º e 42º do CIRE, a sentença declaratória de insolvência é impugnável por duas vias alternativas ou cumulativas, a saber: a) mediante embargos, a serem deduzidos dentro do prazo de cincos dias subsequentes à notificação da mesma ao embargante, quando este pretenda exclusivamente arguir factos ou requerer provas não consideradas na sentença, suscetíveis de abalar os fundamentos da declaração da insolvência (n.º 2 do art. 40º); e/ou b) recurso, a ser interposto no prazo de quinze dias, a contar da notificação dessa sentença ao recorrente (arts. 14º, 9º e 17º do CIRE, ex vi, 638º, n.º 1 do CPC) (1), quando este pretenda invocar exclusivamente fundamentos de direito que, na sua perspetiva, levariam a que a sentença que declarou a insolvência tenha de ser, total ou parcialmente, anulada por via de um dos vícios previstos no n.º 1 do art. 615º do CPC, ou revogada.
Isto é, no âmbito do CIRE regressou-se “ao sistema da dupla via de reação, embargos e recursos, sendo que os legitimados são os mesmos (cfr. art. 42º). Mas separam-se as águas, de sorte que os embargos serão necessariamente fundados em razão de facto – novos factos alegados ou novas provas requeridas, segundo o texto do n.º 2 do art. 40º. Em contrapartida, o recurso deve basear-se em razões de direito – inadequação da decisão à factualidade apurada por má aplicação da lei -, de acordo com o n.º 1 do citado art. 42º”. Pode “cumular-se a dedução de embargos com a interposição de recurso, mesmo por iniciativa de um mesmo interessado, está, no entanto, assegurada, por pressuposto, a irrepetibilidade dos fundamentos”, pelo que, nos embargos e no recurso, respetivamente, o embargante e o recorrente devem “abster-se de invocar motivos que são próprios do outro meio de reação e, quando não suportados em fundamentos adequados, serão necessariamente indeferidos” (3).
Destarte, assacando o apelante erro de direito à sentença declaratória da insolvência do devedor/insolvente N. F., na parte em que nela se procede à nomeação da Senhora Dr.ª C. M. para o cargo de administradora de insolvência, decorrente de nela a 1ª Instância ter pretensamente ignorado, de forma arbitrária e não fundamentada, a sua sugestão para que fosse nomeado para o exercício desse cargo o Senhor Dr. N. R., tendo o tribunal a quo alegadamente, sem mais, aceite a sugestão feita pelo devedor/insolvente e prescindindo da aleatoriedade da pessoa a nomear para esse cargo, aquele tinha de interpor recurso dessa sentença, no prazo de quinze dias, a contar da notificação desta, invocando os pretensos erros de direito que agora, em sede do presente recurso de apelação, imputa a essa nomeação, o que igualmente não fez, pelo que essa sentença e, consequentemente, a nomeação que nela é feita da Senhora Dr.ª C. M. para o exercício do cargo de administradora de insolvência, consolidou-se na ordem jurídica, tendo-se tornado inatacável e incontestável, não podendo agora ser colocada em crise, sob pena de se postergar o caso julgado que cobre essa sentença.
Deste modo, em síntese, não tendo o apelante arguido, até ao termo da sessão de audiência final em que foi proferida a sentença declaratória da insolvência e em que se procede à nomeação da Senhora Dr.ª C. M. para o cargo de administradora de insolvência, qualquer nulidade processual que afete essa nomeação, tais nulidades processuais, a existirem, encontram-se sanadas, e não tendo o mesmo interposto recurso dessa sentença, esta consolidou-se na ordem jurídica, tornando-se o nela decidido inatacável, pelo que não assiste agora ao apelante o direito de no âmbito do presente recurso de apelação de imputar qualquer erro de direito que a possa efetuar, nomeadamente, na parte em que nela se nomeou a administradora de insolvência, sequer pode esta Relação ou quem quer que seja, conhecer desses pretensos erros de julgamento suscitados pelo apelante, sob pena de incorrer em violação do caso julgado que cobre a mesma.
Resulta do que se vem dizendo que atenta a sanação das eventuais nulidades processuais que possam afetar a sentença proferida em 14/07/2020, na parte em que nela se procede à nomeação da administradora de insolvência, e o trânsito em julgado dessa sentença, que levou à sua consolidação na ordem jurídica, impedindo que o apelante agora, em sede do presente recurso de apelação, impute à mesma qualquer nulidade, erro do julgamento da matéria de facto e/ou de direito que a possam eventualmente afetar, rejeita-se o presente recurso de apelação quanto a este fundamento de recurso deduzido pelo apelante.

B.2- Nulidade do despacho proferido em 12/11/2020, em que se admite liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante.
B.2.1- Nulidades processuais versus erros de julgamento e erros de julgamento.

Sustenta o apelante que o despacho proferido pela 1ª instância em 12/11/2020, em que admitiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelo devedor/insolvente padece de duas nulidades processuais, a saber: a) por nele a 1ª Instância ter incorrido em violação do princípio do contraditório, em virtude de tendo a administradora de insolvência apresentado o relatório a que alude o art. 155º do CIRE, o mesmo pediu esclarecimentos a esse relatório, os quais foram deferidos pelo tribunal a quo, acabando a administradora de insolvência por prestar esses esclarecimentos por requerimento entrado em juízo em 09/11/2020, os quais não lhe foram notificados, sequer ao devedor/insolvente e/ou aos restantes credores, acabando o tribunal por proferir o despacho sob sindicância, em que defere liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, sem que esses esclarecimentos lhe tivessem sido notificados e impedindo-o, assim, de exercer, em pleno, o seu direito ao contraditório; e b) por à data da prolação da decisão recorrida, contrariamente ao que nela se afirma, não se encontrar junto aos autos o certificado do registo criminal do devedor/insolvente, não dispondo, por isso, o tribunal de qualquer elemento factual capaz de sustentar o despacho que admitiu liminarmente a exoneração do passivo restante e para nele ter julgado provado, como fez, que o devedor/insolvente não tem antecedentes criminais.
Em relação a esta última pretensa nulidade processual que o apelante imputa à decisão recorrida, é indiscutível que o mesmo confunde nulidades processuais com erro de julgamento.
Com efeito, as nulidades processuais não se confundem com causas de nulidades da sentença, as quais se encontram taxativamente enunciadas no art. 615º do CPC (e que são extensivas aos acórdãos – art. 666º, n.º 1 do CPC – e aos despachos, embora, quanto a estes, com as necessárias adaptações – art. 613º, n.º 3, do mesmo Código, a que se referem todas as disposições infracitadas, sem menção em contrário), sequer com os erros de julgamento de facto ou de direito.
As causas determinativas da nulidade da sentença, acórdão ou despacho encontram-se taxativamente enunciadas no n.º 1 do art. 615º e tal como se extrai do teor desse preceito, reportam-se a vícios formais da sentença, acórdão ou despachos em si mesmos considerados, decorrente de neles o tribunal ter violado as normas legais que regulam a sua elaboração e/ou estruturação e/ou as que balizam os limites da decisão nela proferida (o campo de cognição do tribunal fixado pelas partes e de que era lícito ao tribunal conhecer oficiosamente, não foi respeitado, ficando a sentença, acórdão ou despacho aquém ou indo além desse campo de cognição), tratando-se, por isso, de defeitos de atividade ou de construção da própria sentença, acórdão ou despacho em si mesmos considerados, isto é, a vícios formais que os afetam de per se, ou os limites à sombra dos quais são proferidos.
Trata-se de vícios que “afetam formalmente a sentença e provocam a dúvida sobre a sua autenticidade, como é o caso da falta de assinatura do juiz, ou a ininteligibilidade do discurso decisório por ausência total de explicação da razão por que se decide de determinada maneira (falta de fundamentação), quer porque essa explicação conduzir logicamente a resultado oposto do adotado (contradição entre os fundamentos e a decisão), ou uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de se pretender resolver questões de que não podia conhecer (excesso de pronúncia) ou não tratar de questões que deveria conhecer (omissão de pronúncia)” (3).
Diferentemente das causas determinativas da nulidade da sentença, acórdão ou despacho, são as nulidades processuais.
As nulidades processuais são quaisquer desvios do formalismo seguido ao longo do iter processual em relação ao formalismo prescrito na lei e a que esta faça corresponder, embora não de modo expresso, uma invalidade mais ou menos extensa de atos processuais.
Esses desvios de caráter formal podem assumir, atento o disposto nos arts. 193º e segs. do CPC, um de três tipos: pática de um ato proibido, omissão de um ato prescrito na lei e, por último, realização de um ato imposto ou permitido por lei, mas sem o formalismo requerido (4).
Deste modo, enquanto as nulidades processuais decorrem de terem sido praticados num determinado processo ato ou atos ilegal(ais) ou ter(em) sido omitido(s) ato(s) ou formalidade(s) prescritos na lei que afetam a cadeia teleológica que liga os atos do processo, independentemente da bondade ou regularidade de cada um se desinserido do “iter processual”, as nulidades da sentença, acórdão ou despacho respeitam a vício(s) ou patologias que afetam esta concreta peça processual em si mesma considerada, consistente em nela terem ocorrido um dos desvios contemplados no art. 615º, n.º 1 do CPC (5).
Dito por outras palavras, as nulidades processuais identificam-se com quaisquer desvios ao formalismo processual prescrito na lei, mas que não se reconduzem a nenhum dos vícios formais taxativamente enunciados no n.º 1 do art. 615º, enquanto as nulidades da sentença, acórdão ou despacho situam-se no âmbito restrito da elaboração destes, desde que se reconduzam a um dos vícios contemplados no n.º 1 do art. 615º, tratando-se de vícios formais que afetam de per se a sentença, o acórdão ou o despacho ou os limites da decisão neles proferida (6).
As nulidades da sentença não se confundem, por isso, com as nulidades de processo previstas e reguladas nos arts. 195º e ss. do CPC, embora a verificação destas possa acarretar, nos termos do n.º 2 deste artigo, a nulidade da própria sentença, acórdão ou despacho, quando estes sejam posteriores à nulidade processual cometida e sejam dela dependentes.
Acresce que além de nulidades da sentença (acórdão ou despacho) e as nulidades processuais traduzirem tipos de patologias que se colocam em planos processuais distintos (as nulidades da sentença, acórdão ou despacho, reafirma-se, são vícios em que incorre o tribunal na própria elaboração da sentença, acórdão ou despacho e que assumem uma das tipologias previstas no n.º 1 do art. 615º e que, por isso, traduzem vícios que afetam intrinsecamente a sentença, o acórdão ou o despacho; as nulidades processuais respeitam a vícios ocorridos ao longo do iter processual, decorrente de ter sido praticado um ato proibido por lei ou ter sido omitido um ato prescrito na lei, ou por ter sido realizado um ato imposto ou permitido por lei, mas sem o formalismo requerido pela lei, mas não são reconduzíveis a nenhum dos vícios determinativos da nulidade da sentença, acórdão ou despacho taxativamente enunciados no n.º 1 do art 615º, mas a que a lei faz corresponder como consequência jurídica para esse desvio a nulidade (art. 195º, n.º 2), aquelas encontram-se sujeitas a regimes de arguição distintos e a consequências jurídicas também elas distintas.
Com efeito, segundo o velho brocardo, de acordo com o qual “das nulidades reclama-se e das sentenças recorre-se”, sem prejuízo do que infra se dirá a propósito dos casos em que a nulidade processual se reconduz a uma nulidade da própria sentença, acórdão ou despacho, a arguição da nulidade processual faz-se junto do próprio tribunal em que a nulidade processual foi cometida, sem prejuízo do disposto no n.º 3 do art. 199º do CPC, e caso se trate de nulidade secundária, isto é, subsumível ao disposto no art. 195º, n.º 1, a mesma não é do conhecimento oficioso do tribunal, tendo de ser invocada pelo interessado (n.º 1 do art. 197º), de acordo com as regras dos arts. 199º, n.º 1 e 149º, n.º 1, sob pena de se sanar.
Já as nulidades da sentença (acórdão ou despacho), quando o processo admita recurso ordinário, têm de ser suscitadas em sede de recurso e no prazo legalmente fixado para a interposição deste, ou seja, em regra, 30 dias (arts. 638º, n.º 1, 615º, n.º 4), ou não admitindo o processo recurso ordinário, junto do próprio tribunal que proferiu a sentença, através de reclamação, no prazo de dez dias a contar da notificação da sentença, acórdão ou despacho ao reclamante (arts. 615º, n.º 4 e 149º, n.º 1 do CPC).
Porém, apesar do que se acaba de dizer, casos existem em que a nulidade processual acaba por se traduzir numa nulidade da própria sentença, acórdão ou despacho, embora não do tipo enunciado no art. 615º, n.º 1, como é o caso do tribunal ter conhecido de determinada questão, sem que quanto à mesma tenha observado o princípio do contraditório, violando o comando do art. 3º, n.ºs 1 e 3 do CPC, incorrendo, por via da omissão da observância desse princípio, em nulidade processual, na medida em que esta é suscetível de influir no exame e na decisão da causa (art. 195º, n.º 1).
Nessa concreta situação, embora se esteja perante uma nulidade processual, esta acaba por se traduzir numa nulidade da própria sentença, acórdão ou despacho, ajustando-se, então, a interposição do recurso no âmbito do qual essa nulidade seja suscitada (7).
Diferentemente das nulidades processuais e das causas determinativas da nulidade da sentença, acórdão ou despacho, são os erros de julgamento.
Os erros de julgamento (error in judicando) contendem com vícios em que o tribunal possa ter incorrido em sede de julgamento da matéria de facto e/ou de direito.
Com efeito, nos erros de julgamento assiste-se ou a uma deficiente análise crítica da prova produzida, por esta não consentir o julgamento de facto realizado pelo tribunal a quo em sede de sentença, acórdão ou despacho, mas antes impor julgamento de facto diverso (error facti), e/ou por ter incorrido em erro de direito, por ter errado na identificação das normas e institutos jurídicos aplicáveis ao caso, ter incorrido numa incorreta interpretação dessas normas ou institutos jurídicos e/ou por ter incorrido numa incorreta aplicação dos mesmos aos concretos factos que se quedaram como provados e não provados (error de iuris), pelo que esses erros do julgamento da matéria de facto e/ou de direito que possam eventualmente inquinar a sentença, acórdão ou despacho, por não respeitarem a vícios formais destes, sequer aos limites à sombra dos quais são proferidos, mas sim ao mérito, não os inquinam de invalidade, mas sim de error in judicando, atacáveis em via de recurso, onde, uma vez cumpridos pelo recorrente os ónus impugnatórios do julgamento da matéria de facto previstos no art. 640º, n.ºs 1 e 2 do CPC (quanto se trate de facticidade submetida ao princípio da livre apreciação da prova), caberá ao tribunal da Relação alterar o julgamento de facto realizado pela 1ª Instância, de acordo com o que é imposto pela prova produzida, e no caso de erro de direito, à Relação ou ao STJ (caso, quanto a este, seja admissível recurso de revista) alterar o julgamento de facto (no caso de facticidade submetida a prova tarifada) e/ou de direito, em função do quadro jurídico efetivamente aplicável ao julgamento de facto e aos factos que se quedaram como provados e não provados nos autos, quando devidamente interpretados e aplicados a esse quadro fáctico que se quedou como provado e não provado (8).
Assentes nas mencionadas distinções jurídicas que têm de ser realizadas entre, por um lado, nulidades processuais, por outro, causas determinativas de nulidade da sentença (acórdão ou despacho) e, finalmente, erro de julgamento, imputando o apelante a pretensa nulidade que assaca ao despacho recorrido, em que a 1ª Instância deferiu liminarmente a exoneração do passivo restante pedida pelo devedor/insolvente à circunstância de, à data da prolação dessa decisão, não se encontrar junto aos autos o certificado do registo criminal respeitante ao devedor/insolvente, não dispondo, por isso, o tribunal a quo de qualquer elemento factual capaz de sustentar o despacho que admitiu liminarmente a exoneração do passivo restante e de julgar provado, conforme julgou, que o devedor/insolvente não tem antecedentes criminais, essa alegação traduz-se na imputação pelo apelante de erro de julgamento ao despacho sob sindicância, mais concretamente, erro de direito, por violação de regras de direito probatório material que, como tal, se repercute no julgamento da matéria de facto nele foi realizado pela 1ª Instância, ao ter julgado como facto provado que o devedor/insolvente não tem antecedentes criminais (e não a qualquer nulidade processual).
Na verdade, segundo o que resulta da enunciada alegação invocada pelo apelante é que, na sua perspetiva, que aliás, está correta, a ausência de antecedentes criminais por parte do devedor/insolvente apenas pode ser feita através de documento autêntico, mais concretamente, através de certificado do registo criminal, pelo que não se encontrando, à data da prolação do despacho sob sindicância, que deferiu liminarmente o pedido deduzido pelo devedor/insolvente em ser exonerado do passivo restante, esse registo criminal do devedor junto aos autos (independentemente da 1ª Instância ter ou não acesso à base de dados relativa aos registos criminais dos cidadãos e de ter ou não consultado essa base e de ter constatado que o devedor/insolvente não tinha antecedentes criminais, conforme julgou provado no despacho sob sindicância – o que nem sequer é certo, posto que este tinha, então, antecedentes criminais, mais concretamente os que se encontram exarados no seu registo criminal e supra identificados -, uma vez que o que não existe no processo não pode ser considerado, até porque isso violaria o princípio fundamental e basilar do processo civil do contraditório), não podia o tribunal a quo ter julgado como provado, conforme fez, que este concreto devedor/insolvente não tem antecedentes criminais e, por conseguinte, ter concluído, conforme concluiu, em sede de decisão recorrida, não se verificarem nenhum dos fundamentos de indeferimento liminar de exoneração do passivo restante taxativamente enunciados no n.º 1 do art. 238º do CIRE.
É que independentemente da questão de se saber sobre quem impende o ónus de alegação e da prova dos requisitos de indeferimento liminar da exoneração do passivo restante (9), atenta a enunciada alegação do apelante, esta reconduz-se na imputação pelo mesmo à decisão recorrida de erro de direito, decorrente em nela a 1ª Instância ter julgado determinado facto – a ausência de antecedentes criminais por parte do devedor/insolvente -, quando esse facto se encontrava, segundo as regras de direito probatório material, sujeita a prova tarifada, – registo criminal -, não substituível por outro elemento de prova, e que não deixa qualquer margem de subjetivismo ao juiz em sede de julgamento de facto, nada mais lhe restando que fazer esse julgamento de facto de acordo com os elementos de facto objetivamente extraídos do teor do registo criminal do devedor/insolvente, posto que, na altura da prolação dessa decisão, esse registo criminal não se encontrava junta aos autos.
Deste modo, resulta do que se vem dizendo que contrariamente ao pretendido pelo apelante, a pretensa nulidade processual que invoca em relação à decisão recorrida de 14/11/2020, em que a 1ª Instância admitiu liminarmente o pedido formulado pelo apelado devedor/insolvente em ser exonerado do passivo restante, não consubstancia efetivamente qualquer nulidade processual, mas antes erro de direito, e como tal será, e terá, de ser apreciada por esta Relação, naturalmente caso este concreto fundamento de recurso não resulte prejudicado em consequência da procedência dos restantes fundamentos de recurso invocados pelo apelante e que permanecem por apreciar.

B.2.2- Violação do princípio do contraditório – nulidade.

Advoga o apelante que ao proferir o despacho recorrido, deferindo liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelo devedor/insolvente, a 1ª Instância violou o seu direito ao contraditório, incorrendo em nulidade processual, porquanto tendo a administradora de insolvência junto aos autos o relatório a que alude o art. 155º do CIRE, aquele pediu esclarecimentos em relação ao teor desse relatório, esse pedido de esclarecimentos foi deferido pela 1ª Instância, tendo a administradora de insolvência, nessa sequência, prestado esses esclarecimentos por requerimento entrado em juízo em 09/11/2020, mas estes não lhe foram notificados, antes da prolação da decisão recorrida.
Verificando-se que a alegação do apelante é certa – vide relatório supra elaborado -, resta verificar se ao deferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, sem que previamente tivessem sido notificados ao apelante os esclarecimentos prestados pela senhora administradora de insolvência e de, nessa sequência, o tribunal a quo se ter pronunciado quanto ao pedido de exoneração formulado pelo devedor/insolvente, deferindo-o liminarmente, a 1ª Instância incorreu em violação do princípio do contraditório que assiste ao apelante e, consequentemente, na nulidade processual secundária prevista no n.º 1 do art. 195º do CPC.
Precise-se que a verificar-se essa concreta nulidade processual está-se perante um daqueles casos em que essa nulidade processual acaba por se traduzir numa nulidade do próprio despacho recorrido, que deferiu liminarmente o pedido de exoneração, ajustando-se como meio de reação a essa nulidade a interposição do presente recurso de apelação pelo apelante.
Posto isto, o princípio do contraditório é um dos princípios basilares que norteiam o processo civil nacional.
Em si mesmo, o princípio do contraditório é uma decorrência do princípio da igualdade das partes.
Com efeito, por via do princípio do contraditório exige-se, antes de mais, que instaurada determinada ação declarativa, incidente ou ação executiva, o demandado ou executado tenha conhecimento que contra si foi instaurada essa concreta ação, por um determinado sujeito (demandante ou exequente) em que este formula contra si uma determinada pretensão de tutela judiciária (pedido), com fundamento em determinada causa de pedir (ou, tratando-se de execução, com fundamento num determinado título executivo) e dando-lhe oportunidade de se defender.
Essa finalidade, conforme é bom de ver, é atingida por via da citação do demandado ou do executado, respetivamente, para a ação ou para a execução, e concedendo àquele prazo para que, querendo, apresente contestação ou oposição à execução contra si instaurada.
Depois exige-se que ao longo de toda a tramitação do processo declarativo ou executivo, qualquer das partes tenha conhecimento das iniciativas ou pretensões deduzidas pela sua contraparte, com a inerente possibilidade de se pronunciar quanto às mesmas antes do tribunal proferir decisão, deferindo ou indeferindo a pretensão em causa.
Na verdade, só mediante a realização daqueles duas exigências, isto é: a citação do demandante ou do executado, dando-lhe conhecimento da ação declarativa ou da execução que contra ele foi intentada, transmitindo-lhe os elementos fundamentais da relação jurídica material controvertida (sujeitos, pedido e causa de pedir ou, tratando-se de execução, título executivo que serve de base e fundamento à execução contra ele é instaurada) e dando-lhe prazo para se defender, e depois, dando ao longo do processo, conhecimento a ambas as partes das pretensões formuladas pela sua contraparte e oportunidade de se pronunciar quanto às mesmas antes do tribunal decidir, é que se logrará assegurar uma efetiva igualdade de tratamento das partes ao longo de todo o processo e um cabal cumprimento do princípio do contraditório e, consequentemente, se promoverá uma decisão formal e materialmente justa e equitativa, onde ambas as partes tiveram oportunidade de expor os seus fundamentos de facto e de direito e esgrimir os seus pontos de vista e de, assim, influírem ativamente para a decisão que acabou por ser proferida pelo tribunal.
A razão de ser do princípio do contraditório radica, ainda, na circunstância de perante a “estruturação dialética ou polémica do processo”, em que os pleiteantes apresentam interesses ou opiniões contraditórias, se esperar que da “discussão nasça à luz” e que “as partes (ou os seus patronos), integrados no caso e acicatados pelo interesse ou pela paixão, tragam ao debate elementos de apreciação (razões e provas) que o juiz, mais sereno mas mais distante dos factos e menos ativo, dificilmente seria capaz de descobrir por si” (10).
Deste modo, para além do princípio do contraditório ser uma decorrência do princípio da igualdade, que demanda igualdade de tratamento dos litigantes, e ser condição de um processo material e formalmente justo e equitativo, a observância desse princípio traz vantagens inequívocas em sede de descoberta da verdade material.
A vertente do princípio do contraditório, entendido como o direito do demandado conhecer a pretensão que contra si é deduzida, com fundamento numa determinada causa de pedir ou, tratando-se de execução, alicerçada em determinado título executivo, e o direito de pronúncia prévia à decisão, corresponde à conceção tradicional desse princípio e tem consagração legal na segunda parte do n.º 1 do art. 3º do atual vigente CPC (11).
Nessa conceção tradicional o princípio do contraditório tem como escopo principal a defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à atuação alheia.
No entanto, como tem sido posto em destaque pela doutrina e pela jurisprudência, embora a conceção tradicional do princípio do contraditório continue válida e tenha acolhimento legal no atual vigente processo civil, nele adotou-se uma conceção ampla de contrariedade ao estatuir-se no art. 3º, n.º 3 do CPC que “o juiz deve observar e fazer cumprir ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.
Mediante a consagração deste dispositivo legal consagra-se no âmbito do processo civil o princípio constitucional da proibição da indefesa, associada à regra do contraditório, visando-se conferir às partes uma efetiva participação no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objeto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão, proibindo-se ao juiz a prolação de qualquer decisão, ainda que interlocutória, sobre qualquer questão, processual ou substantiva, de facto ou de direito, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que, previamente, tenha sido conferido às partes, especialmente àquela contra quem é ela dirigida, a efetiva possibilidade de a discutir, contestar e valorar (12).
Nessa conceção ampla do princípio do contraditório, em que se proíbe a indefesa e, nessa medida, a prolação de decisões-surpresa, visando-se assegurar às partes o direito de influenciarem o rumo do processo e a decisão nele a proferir, o escopo principal desse princípio, contrariamente ao que acontece com a conceção tradicional, deixou de ser a defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à atuação alheia, para passar a ser a influência, no sentido positivo do direito das partes de influírem ativa e decididamente no desenvolvimento e no êxito do processo (13).
Essa vertente positiva do princípio do contraditório, tal como todos os outros princípios, não tem, no entanto, um sentido absoluto e inelutável.
Com efeito é o próprio n.º 3 do art. 3º que admite que essa vertente positiva de proibição de prolação de decisões surpresa possa ser afastado pelo juiz nos casos de “manifesta desnecessidade”, sem que, contudo, se esclareça quais são esses concretos casos, cumprindo à doutrina e à jurisprudência preencher esse conceito indeterminado, tendo sempre presente a finalidade central por ele prosseguido no âmbito do processo e as finalidades que o legislador visa acautelar com a consagração legal do mesmo.
Abrantes Geraldes sustenta que são limitadas as situações enquadráveis nesse conceito genérico, em que o juiz fica legitimado a afastar o cumprimento do princípio do contraditório com fundamento em “manifesta desnecessidade”, apontando como exemplos do afastamento legítimo do mesmo: a) o indeferimento de qualquer nulidade invocada por uma das partes; b) em matéria de procedimentos cautelares, quando seja necessário prevenir a violação do direito ou garantir o resultado útil da demanda (14).
Por sua vez, Lebre de Freitas, João Rendinha e Rui Pinto sustentam que o contraditório prévio pode ser dispensado em procedimentos cautelares e no processo executivo, em que a penhora seja realizada sem audiência prévia do executado, propugnando que igualmente não deve ter lugar o convite dirigido às partes para discutirem uma questão de direito fundada em determinada norma jurídica quando as partes, “embora não tenham invocado expressamente nem referido esse preceito legal como sendo aplicável, implicitamente o tiveram em conta sem sombra de dúvida, designadamente, por ter sido apresentada uma versão fáctica não contrariada que manifestamente não consentia outra qualificação” (15).
Como é bom de ver, a observância do principio do contraditório nesta dimensão positiva “tem sobretudo interesse para as questões, de direito material ou de direito processual, de que que o tribunal possa conhecer oficiosamente e que nenhuma das partes suscitou ao longo dos autos: se nenhuma das partes as tiver suscitado, com a concessão à parte contrária do direito de resposta, o juiz – ou o relator, no caso de recurso – que nelas entenda dever basear a sua decisão, seja mediante o conhecimento do mérito da causa, seja no plano meramente processual, deve previamente convidar as partes a tomarem posição sobre essa concreta questão, só estando dispensado de o fazer em caso de manifesta necessidade” (16).
No entanto, se o princípio do contraditório nesta dimensão positiva de conferir às partes o direito de poderem influenciar ativamente o rumo do processo e da decisão nele a proferir assume especial relevância no âmbito das questões de conhecimento oficioso do tribunal, o seu campo de aplicação não se esgota nesses casos, na medida que essa dimensão positiva do princípio do contraditório é aplicável ao longo de todo o processo.
Deste modo, impõe-se afinar o conceito de “manifesta desnecessidade” tendo presente que casos existem em que, não obstante se tratar de questões processuais ou de mérito, de facto ou de direito, não suscitadas pelas partes, estas tinham obrigação de prever que o tribunal podia decidir o litigio com base no conhecimento dessas questões e decidi-las em determinado sentido, pelo que se não as suscitaram e se não cuidaram em as discutir no processo, sib imputet, não podendo razoavelmente considerar-se que, nesses casos, a decisão proferida pelo tribunal configure uma decisão-surpresa.
Deste modo é que a jurisprudência nacional tem considerado que a decisão-surpresa a que alude o n.º 3 do art. 3º, pressupõe que as partes tenham sido apanhadas de surpresa por uma decisão do tribunal que embora pudesse ser juridicamente possível, não estivesse prevista nem tivesse sido configurada por aquelas como fundamento de procedência ou improcedência da acção (17).
Se por hipótese, numa ação para ressarcimento de um lesado com fundamento na responsabilidade civil extracontratual decorrente de acidente de viação, o autor pede, com base na culpa efetiva do demandado, o pagamento de determinada quantia, e o tribunal, na sequência da audiência de julgamento e após alegações de direitos das partes, em que cada uma sustenta que a culpa deve ser atribuída à sua contraparte, acaba por decidir que cada uma delas contribuiu com uma quota de 50% para a produção do evento danoso e fixa em metade a indemnização da quantia peticionada pelo demandante, ou conclui que, em caso de colisão de veículos, em que não logrou apurar as concretas circunstâncias concretas em que se deu a colisão, concluiu pela aplicação, ao caso, das regras do instituto da responsabilidade pelo risco, e condena o demandado a indemnizar o demandante em função dessas regras, nessas situações não existe decisão-surpresa alguma que exigisse a observância do princípio do contraditório a que alude o art. 3º, n.º 3 do CPC, uma vez que a decisão tomada pelo tribunal não só é emanação dos factos alegados e debatidos pelas partes, em que o tribunal se cingiu a esses factos, sem recurso a factos novos não alegados por aquelas, como o enquadramento jurídico feito pelo tribunal consubstancia algo que as mesmas previram ou, pelo menos, tinham a obrigação legal de prever como possível, uma vez que quem instaura uma ação de indemnização tendo em vista obter a indemnização pelos danos sofridos emergentes de acidente de viação com fundamento em responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, imputando ao demandado a culpa exclusiva pelo acidente, que nega essa culpa, antes a imputando ao demandante, não pode apartar-se da hipótese de o tribunal, em face da discussão da causa, vir a optar por uma partição de culpas na produção do acidente ou pelo risco.
Da mesma forma, intentada uma determinada ação com fundamento no incumprimento de um contrato-promessa e imputando cada um dos pleiteantes esse incumprimento à sua contraparte, tendo cada uma delas a possibilidade de esgrimir os seus argumentos de facto e de direito para defesa da respetiva posição processual, era previsível que o tribunal pudesse vir a enveredar por uma posição em que a atribuição da responsabilidade pelo incumprimento fosse parcial.
Deste modo, tem-se entendido que apenas ocorre uma decisão-surpresa quando a solução seguida pelo tribunal se desvincula “totalmente do alegado pelas partes na sua substancialidade ou na sua adjetividade, isto é, se a decisão não se ativer, com um mínimo de arrimo, ao que foi alegado e sufragado pelas partes durante o curso do processo. Assim, se as partes não tiveram hipótese de aportar e debater factos – novos e condizentes com a realidade jurídica prefigurada pelo tribunal antes da decisão – que poderiam trazer alguma luz sobre a “questão nova” oficiosamente assumida pelo tribunal -, então as partes terão o direito de tentar refazer a atividade do tribunal de modo a encarrilar e adequar a estrutura do processo ao resultado decisório”. Nesta situação poderemos dizer que “o tribunal apartou-se do dever de cooperação, colaboração e boa-fé que deve nortear o princípio de imparcialidade e de posição super partes constitucionalmente atribuído ao julgador” (18).
Nesta perspetiva, segundo a jurisprudência, não existirá decisão-surpresa quando a decisão, rectius, os seus fundamentos, estejam ínsitos ou relacionados com o pedido formulado e se situem dentro do geral e abstratamente permitido pela lei e que de antemão possa, e deva ser conhecido ou perspetivado como possível e em relação ao que, consequentemente, a parte podia ter-se pronunciado, pelo que se não o fez, sib imputet. Ao invés, estaremos perante uma decisão-surpresa para efeitos do art. 3º, n.º 3 quando a questão decidida comporte uma solução jurídica, que embora juridicamente possível, as partes não tinham obrigação de prever, isto é, quando não fosse exigível que estas tomassem oportunamente posição sobre essa concreta solução que acabou por ser sufragada pelo tribunal ou, no mínimo, quando a decisão coloca a discussão jurídica num módulo ou plano diferente daquele em que as partes o haviam feito (19).
Enuncie-se que a violação do princípio do contraditório mediante a prolação de uma decisão-surpresa insere-se na cláusula geral das nulidades processuais prevista no art. 195º, n.º 1 do CPC, onde se prevê que “a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreve, só produz nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa”.
Na verdade, dada a importância do contraditório é indiscutível que a omissão do cumprimento desse princípio, isto é, quando ocorra a prolação de uma efetiva decisão-surpresa, é suscetível de influir no exame ou na decisão da causa, pelo que a decisão-surpresa assim proferida encontra-se eivada de nulidade.
Trata-se de nulidade processual que como já dito, não é do conhecimento oficioso do tribunal, carecendo de ser invocada pelo interessado na omissão da formalidade ou na repetição desta ou na sua eliminação (art. 197º, n.º 1 do CPC), no prazo de dez dias após a respetiva intervenção em algum ato praticado no processo (art. 199º, n.º 1 do CPC), sob pena de ficar sanada.
No entanto, nos casos em que a nulidade processual esteja coberta por decisão judicial, conforme é entendimento pacífico da jurisprudência e já referimos, a mesma acaba por configurar uma nulidade da própria decisão, nada obstando a que seja invocada e conhecida em sede de recurso a interpor dessa decisão (20).
Revertendo ao caso dos autos, tendo o apelante instaurado ação especial de insolvência contra o devedor N. F., pedindo que este fosse declarado insolvente, o último deduziu oposição, em que subsidiariamente pede que seja exonerado do passivo restante.
Por sentença proferida em 14/07/2020, entretanto transitada em julgado, declarou-se a insolvência do devedor N., nomeou-se administradora de insolvência, fixou-se o prazo de reclamação de créditos em 30 dias, e decidiu-se não se designar data para a realização da assembleia de credores para efeitos de apreciação do relatório a que alude o art. 155º do CIRE, determinando-se que esse relatório ou as medidas de recuperação ou a liquidação que, na sequência daquele, viessem a ser apresentadas fossem votadas por escrito.
Em 11/09/2020 a administradora de insolvência juntou aos autos o relatório a que alude o art. 155º do CIRE, em que conclui pela impossibilidade de recuperação do devedor/insolvente e em que declara nada ter a opor à exoneração do passivo restante, “desde que respeitados os pressupostos determinados pelo tribunal nos termos do art. 239º do CIRE”.
Notificado esse relatório ao devedor/insolvente, ao Ministério Público e a todos os credores, onde se inclui o ora apelante, este, por requerimento entrado em juízo em 24/09/2020, imputou várias omissões e incongruências a esse relatório e pediu que se notificasse a administradora de insolvência para prestar esclarecimentos relativamente a essas omissões e incongruências e se declarasse suspenso o prazo para se pronunciar quanto à exoneração do passivo restante e, bem assim o prazo a que alude o art. 188º do CIRE, isto é, para alegar, por escrito, o que lhe aprouvesse para efeitos de qualificação da insolvência como culposa e indicar as pessoas que devem ser afetadas por tal qualificação, até à notificação dos esclarecimentos pela administradora de insolvência e ulterior exercício do contraditório quanto a esses esclarecimentos.
Apesar dessa pretensão do apelante ter merecido a oposição do devedor/insolvente, que se opôs não só aos esclarecimentos solicitados pelo apelante, como ao pedido de suspensão dos prazos para se pronunciar quanto à exoneração e à qualificação da insolvência, a 1ª Instância, por despacho de 29/10/2020, determinou o prosseguimento dos autos para liquidação e, no mais, se notificasse a administradora de insolvência para se pronunciar quanto ao requerimento apresentado pelo apelante, ou seja, em síntese, tal como aliás, foi entendido pela própria administradora de insolvência, para prestar os esclarecimentos solicitados pelo apelante, tanto assim que esta, por requerimento entrado em juízo em 09/11/2020, respondeu a esse requerimento e nele esclarece várias das questões solicitadas naquele requerimento de 09/10/2020.
Acontece que o requerimento apresentado pela administradora de insolvência em 09/11/2020, em que presta vários dos esclarecimentos solicitados pelo apelante, não foi notificado ao devedor/insolvente, sequer a qualquer credores, onde se inclui o apelante, vindo a 1ª Instância em 12/11/2020, a proferir a decisão recorrida, deferindo liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, pelo que urge verificar se, em consequência dessa não notificação dos mencionados esclarecimentos, ocorre ou não violação do princípio do contraditório que assiste ao apelante.
Neste âmbito incumbe precisar que apesar da finalidade do processo de insolvência ser a satisfação dos interesses dos credores, por uma das vias alternativas previstas no art. 1º, n.º 1 do CIRE, isto é, através da execução das providências definidas num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente ou, não sendo tal possível, mediante a liquidação do património do devedor e mediante o produto dessa liquidação, isto é, da venda desse património, entretanto alienado, pagar aos credores os créditos que foram julgados verificados e graduados na sentença de graduação e verificação de créditos, transitada em julgado (21), quanto a processos de insolvência de pessoas singulares, o CIRE institui nos arts. 235º e segs. do CIRE o denominado instituto da exoneração do passivo restante, permitindo que estes, quando a insolvência ocorra em determinadas condições e mediante o cumprimento de determinados requisitos, se libertem das dívidas que os onerem e que não venham a obter satisfação no processo de insolvência, recomeçando de novo a sua vida económica, sem o mencionado passivo insatisfeito.
Mediante esse instituto, adotou-se na ordem jurídica nacional o denominado princípio do “start fresh”, em que sem esquecer os interesses dos credores, promove-se fundamentalmente o interesse do devedor/insolvente, pessoa singular.
O princípio do start fresh consubstancia o princípio fundamental e básico do instituto da exoneração do passivo restante ao permitir ao devedor, pessoa singular, a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste, quando sejam observadas certas condições, e configura uma inovação no sistema jurídico nacional, que visa conjugar os interesses do insolvente, pessoa singular, com os interesses dos respetivos credores.
Nesta linha, lê-se no Preambulo do Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18/03, que: “O Código conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. O princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa-fé incorridas em situação de insolvência, tão difundido nos Estados Unidos, e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência, é agora também acolhido entre nós, através do regime da «exoneração do passivo restante». O princípio geral nesta matéria é o de poder ser concedida ao devedor pessoa singular a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não foram integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste. A efetiva obtenção de tal benefício supõe, portanto, que, após a sujeição a processo de insolvência, o devedor permaneça por um período de cinco anos – designado período da cessão – ainda adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos. Durante esse período, ele assume, entre várias outras obrigações, a de ceder o seu rendimento disponível (tal como definido no Código) a um fiduciário (entidade designada pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência), que afetará os montantes recebidos ao pagamento dos credores. No termo desse período, tendo o devedor cumprido, para com os credores, todos os deveres que sobre ele impendiam, é proferido despacho de exoneração, que liberta o devedor das eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento. A ponderação dos requisitos exigidos ao devedor e da conduta reta que ele teve necessariamente de adotar justificará, então, que lhe seja concedido o benefício da exoneração, permitindo a sua reintegração plena na vida económica”.
Como resulta do que se vem dizendo e vem sustentado por Luís M. Martins, a exoneração do passivo restante constitui assim “uma medida de proteção” do devedor, pessoa singular, cujo objetivo primordial é reabilitá-lo e dar-lhe “uma segunda oportunidade, para que possa recomeçar a sua vida evitando a indigência que nada beneficia a sociedade” (22).
No mesmo sentido escreve Luís Menezes Leitão, que a figura da exoneração do passivo traduz-se num benefício concedido ao insolvente, com a inerente possibilidade de se exonerar “dos créditos sobre a insolvência que não sejam integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste”, visando, desta forma, conceder ao devedor um fresh start, “permitindo-lhe recomeçar de novo a sua atividade, sem o peso da insolvência anterior” (23).
Precisamente porque o instituto em causa visa salvaguardar os interesses do devedor insolvente, sem esquecer o dos credores, naturalmente que este não consubstancia, sequer pode consubstanciar, “um brinde ao incumpridor” (24), pelo que esse perdão não pode ser concedido ao insolvente, pessoa singular, sem critérios mínimos de razoabilidade, sob pena de se banalizar o próprio instituto ao qual todos recorrem sem qualquer sentido de responsabilidade e sacrifício, pois que não foi manifesto propósito do legislador que a exoneração tivesse como escopo a desresponsabilização do devedor, sequer que o processo judicial possa ser uma porta aberta para atingir semelhante desiderato.
Deste modo, para que a exoneração do passivo restante seja concedido é necessário que antes do processo de insolvência, durante este e, bem assim até ao termo do ano subsequente ao trânsito em julgado da decisão que lhe confira a exoneração (art. 246º, n.º 2 do CIRE), o devedor tenha de justificar ser merecedor de uma segunda oportunidade, que lhe permita “começar de novo”.
“Neste âmbito, quem antes ou depois do procedimento não procura um trabalho remunerado, tem ou revela intenção de nada pagar, não pretende nem demonstra fazer qualquer esforço na alteração do seu estilo de vida tem que ver negada a exoneração do passivo” (25).
Para que a exoneração do passivo restante seja concedida é necessário, além do mais, que se percorra um processo próprio, onde se destacam, como principais fases: o pedido de exoneração, o despacho liminar ou inicial e o despacho final.
O pedido de concessão do benefício de exoneração do passivo restante tem de ser deduzido pelo devedor no requerimento inicial de apresentação à insolvência, ou não sendo ele o demandante, mas sim, o demandado, no prazo de dez dias subsequentes à sua citação para ação de insolvência, podendo ainda ser deduzido pelo devedor até ao termo da assembleia de credores para apreciação do relatório a que alude o art. 155º do CIRE, ou não existindo esta, até ao 45º dia posterior à sentença declaratória da insolvência (o denominado «período intermédio»), mas neste último caso, cabe ao juiz decidir sobre a admissão ou rejeição do pedido de exoneração (arts. 236º, n.º 1 e 36º, n.º 4 do CIRE), e terá de ser rejeitado quando o devedor, aquando da apresentação de um plano de pagamento, não declare pretender essa exoneração, na hipótese de o plano não ser aprovado (art. 254º do CIRE).
Nesse requerimento o devedor tem de declarar expressamente que preenche os requisitos para que esse benefício lhe seja concedido e se dispõe a observar todas as condições e obrigações decorrentes da concessão ao mesmo desse benefício (n.º 3 do art. 236º do CIRE).
O instituto do pedido da exoneração do passivo restante caracteriza-se, assim, pela voluntariedade, isto é, não pode ser imposto ou ser reconhecido oficiosamente pelo tribunal ao devedor/insolvente, pessoa singular, mas terá de ser requerido pelo último, dentro de prazos limitados e perentórios, mediante a apresentação de requerimento em que solicite a concessão desse beneficio, instruído com a mencionada declaração.
Esse pedido, como se viu, tem de ser formulado pelo devedor/insolvente, pessoa singular, quando seja ele a apresentar-se à insolvência, na petição inicial; quando seja solicitada a declaração de insolvência deste e, em que, consequentemente, seja demandado, no prazo de dez dias a contar da sua citação para a ação de insolvência; o devedor poderá ainda formular o pedido de exoneração durante o «período intermédio», isto é, após o decurso daqueles momentos processuais (apresentação de petição inicial, quando se trate de se apresentar à insolvência, ou o decurso do prazo de dez dias, após a sua citação para o processo de insolvência, quando seja requerido) até “ao termo da assembleia ou, não existindo ela, até ao 45º dia posterior à sentença declaratória” da insolvência (26), mas quando se trate de pedido de exoneração formulado pelo devedor no «período intermédio», cabe ao juiz decidir livremente sobre a admissão ou rejeição do pedido de exoneração, pois que na fase do período intermédio, tendo o devedor falhado os prazos de que beneficiava para deduzir o pedido de exoneração, “fica sujeito a critérios de ponderação definidos pelo próprio julgador, o qual, pese embora tenha de fundamentar a sua decisão, não tem que seguir o crivo do art. 238º, podendo ir mais além e, sobretudo, ser mais rigoroso” (27).
O pedido de exoneração nunca pode, assim, ser apresentado após a realização da assembleia de credores designada para apreciação do relatório a que alude o art. 155º do CIRE, tendo o juiz de o indeferir liminarmente quando tal aconteça (al. a), do n.º 1 do art. 238º do CIRE).
Este limite final para o devedor/insolvente formular o pedido de exoneração – o termo da assembleia de credores para apreciar o relatório a que alude o art. 155º do CIRE -, prende-se com a circunstância do administrador ter de elaborar esse relatório e de juntá-lo aos autos, pelo menos, até oito dias antes da data designada para a realização da assembleia de credores a fim de apreciar esse relatório (n.º 3 do art. 155º).
Nesse relatório, como se extrai do n.º 1 do art. 155º do CIRE, o administrador de insolvência tem de fazer uma análise dos elementos incluídos nos documentos juntos pelo devedor/insolvente em anexo à petição inicial, em que se apresente à insolvência ou, quando se trate de processo em que é requerida a sua insolvência, que o mesmo terá de preparar para imediata entrega ao administrador da insolvência, na eventualidade de a sua insolvência vir a ser declarada (art. 29º, n.º 2 do CIRE), em que explicite a atividade ou atividades a que se tenha dedicado nos últimos três anos e os estabelecimentos de que seja titular, bem como o que ele, administrador de insolvência, entenda serem as causas da situação em que se encontra o devedor/insolvente (al. a)); tem de fazer uma análise do estado da contabilidade do devedor/insolvente e indicar a sua opinião em relação aos documentos de prestação de contas e de informação financeira juntos aos autos pelos devedor/insolvente (al. b)); assim como terá de indicar quais as suas perspetivas sobre a manutenção da empresa do devedor/insolvente, no todo ou em parte, da conveniência de se aprovar (ou não) um plano de insolvência, e das consequências decorrentes para os credores nos diversos cenários figuráveis (respetiva al. c)); sempre que se afigure ao administrador de insolvência conveniente a aprovação de um plano de insolvência, este terá de indicar, nesse relatório, a remuneração que se propõe auferir pela elaboração desse plano (al. d)); e, bem assim terá de indicar todos os elementos que no seu entender possam ser importantes para a tramitação ulterior do processo (al. e) do n.º 1 do art. 155º do CIRE), devendo instruir esse relatório com o inventário e a lista de credores (n.º 3 do art. 155º).
Na verdade, cabe à assembleia de credores ponderar e decidir sobre o destino futuro do insolvente com vista à melhor realização dos respetivos interesses, ou seja, aprovar um plano de insolvência ou determinar a liquidação do património do devedor/insolvente.
É “exatamente com vista à preparação da assembleia e em ordem a permitir aos credores obter uma panorâmica geral e circunstanciada sobre a situação da massa insolvente, as causas da quebra e as perspetivas de solução, com o selo de independência e de descomprometimento que a intervenção do administrador da insolvência faz presumir, que se lhe comete a tarefa de elaboração do relatório com o conteúdo descrito nas diferentes alíneas do n.º 1” do art. 155º (28).
Deste modo, a informação contida nesse relatório assume importância decisiva para habilitar os credores a decidir quanto à sorte futura do devedor/insolvente sobre o qual são chamados a deliberar, mas também para se habilitem a pronunciar-se quanto à qualificação da insolvência como fortuita ou culposa, compreendendo-se, por isso, que nos termos do n.º 1 do art. 188º do CIRE, até 15 dias após a realização da assembleia de apreciação do relatório, o administrador de insolvência ou qualquer interessado possam alegar, fundadamente, por escrito, em requerimento autuado por apenso, o que tiverem por conveniente para efeito da qualificação da insolvência como culposa e indicar as pessoas que devem ser afetadas por tal qualificação e, bem assim, para que se habilitem a pronunciar-se quanto à exoneração do passivo restante.
Como referem Carvalho Fernandes e João Labareda, é na assembleia designada para apreciar esse relatório que é dado a conhecer aos credores e ao administrador de insolvência o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelo devedor/insolvente, pessoa singular, e em que é concedida àqueles a possibilidade de se pronunciarem sobre esse pedido (n.º 4 do art. 236º do CIRE), trâmite este que necessariamente ficaria prejudicado caso se admitisse que o devedor/insolvente pudesse apresentar pedido de exoneração após a realização dessa assembleia (29).
Note-se que quanto ao pedido de exoneração do passivo restante, cumpre ao juiz, uma vez ouvidos os credores e o administrador da insolvência, na assembleia de credores designada para apreciar o relatório elaborado pelo administrado de insolvência a que alude o art. 155º do CPC., proferir despacho liminar, pronunciando-se sobre a admissibilidade ou não de tal pedido, deferindo-o ou indeferindo-o liminarmente e, no caso de deferimento liminar, fixar as condições a que a concessão desse benefício fica sujeito (art. 237º).
Trata-se de um despacho liminar, reclamando apenas da parte do juiz uma análise e ponderação sumárias acerca da existência ou não de condições de admissibilidade ou de indeferimento da exoneração do passivo restante legalmente especificadas: admitirá liminarmente o pedido quando nenhuma circunstância tida pela lei, mais concretamente no art. 238º, n.º 1 do CIRE, como obstáculo ao seu deferimento ocorra; indeferi-lo-á liminarmente quando se verifique alguma dessas circunstância apontadas pela lei como causa de indeferimento liminar (30).
O despacho inicial tem, por conseguinte, como único objetivo a aferição da existência de condições mínimas, a ser emitido segundo um juízo de prognose e prova sumária, para o pedido de exoneração do passivo restante, aferição liminar e sumária essa que se destina a decidir se ao devedor deve ser dada uma oportunidade de se submeter a uma espécie de período de prova (o denominado “período de cessão”) que, uma vez terminado, pode resultar ou não na exoneração do passivo restante e, no caso positivo, fixar as obrigações a que o devedor, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência fica sujeito (arts. 239º, 244º e 245º do CIRE).
O deferimento liminar do pedido de exoneração não significa, por isso, que esta vai efetivamente ser concedida ao devedor/insolvente, mas apenas tem o alcance e o sentido de que existem condições para proferir o despacho inicial em que se determina o início do prazo de cinco anos – período de cessão -, durante o qual o rendimento disponível do devedor se considera cedido a uma entidade, denominado fiduciário, e fixa os comportamentos a que o devedor fica adstrito durante esse período, e só findo este é que o juiz decide, em definitivo, sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante ao devedor/insolvente, pessoa singular (arts. 239º, n.ºs 2, 3 e 4 e 244º, n.º 1 do CIRE) (31).
O despacho inicial só promete, assim, “conceder a exoneração efetiva se o devedor, ao longo de cinco anos, observar certo comportamento que lhe é imposto. A concessão efetiva da exoneração depende, pois, da verificação dessas condições (…) e é decidida no despacho regulado no art. 244º, se, entretanto, não tiver havido cessão antecipada do procedimento de exoneração, nos termos do art. 243º” (32).
Destarte, deferido liminarmente o pedido de concessão da exoneração, o que reafirma-se, significa apenas e só que não foi feita prova em como se verifiquem os requisitos taxativos enunciados no n.º 1 do art. 238º que levam ao indeferimento liminar do pedido de exoneração formulado pelo devedor/insolvente, pessoa singular, e fixadas, no despacho de deferimento liminar do incidente, as obrigações que aquele terá de cumprir durante o período de cessão para que esse benefício lhe seja concedido a final, isto é, caso não ocorra a cessação antecipada do incidente em causa, no termo do período de cessão é que o juiz decide, no prazo de dez dias, se o insolvente cumpriu com as obrigações que lhe foram impostas no despacho de deferimento liminar do incidente e se, consequentemente, é ou não merecedor desse perdão, pois só então disporá dos elementos necessários e suficientes para avaliar da boa-fé, diligência e propósitos de vida futura do devedor/insolvente e, consequentemente, para deferir ou indeferir o pedido de exoneração (33).
Note-se que as causas de indeferimento liminar do pedido de exoneração encontram-se taxativamente enunciadas no n.º 1 do art. 238º e apesar da oposição dos credores e/ou do administrador de insolvência a esse pedido não ser fundamento legal para o indeferimento liminar desse pedido (34), sendo o n.º 4 do art. 236º expresso que aos credores e ao administrador da insolvente assiste o direito de se pronunciarem sobre o pedido de exoneração na assembleia de credores designada para a apreciação do relatório a que alude o art. 155º, não só “a audição dos credores e do administrador é especialmente relevante, exatamente para que possam trazer aos autos factos que devem impedir o prosseguimento do incidente” (35), como o relatório a que alude o art. 155º assume especial relevância para que os credores se possam cabalmente habilitar a se pronunciarem sobre o destino futuro do devedor (aprovação de plano de insolvência ou liquidação do respetivo património) como no sentido do deferimento ou indeferimento liminar do pedido de exoneração.
Na verdade, conforme decorre do art. 238º, n.º 1, entre as causas de indeferimento liminar do pedido de exoneração conta-se a circunstância do devedor, como dolo ou culpa, tiver fornecido por escrito, nos três anos anteriores à data do início do processo de insolvência, informações falsas ou incompletas sobre as suas circunstâncias económicas com vista à obtenção de crédito ou de subsídios de instituições públicas ou a fim de evitar pagamentos a instituições dessa natureza (al. b)); o facto do devedor ter incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se ter abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica (al. d)); a circunstância de constarem já no processo, ou terem sido fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do art. 186º (al. e)); e o facto do devedor, com dolo ou culpa grave, ter violado os deveres de informação, apresentação e colaboração que para ele resultam do CIRE, no decurso do processo de insolvência (al. g), do n.º 1 do art. 238º) e uma vez confrontado esses fundamentos de indeferimento liminar do pedido de exoneração com o conteúdo do relatório a elaborar pelo administrador de insolvência fixado no n.º 1 do art. 155º, prefigura-se-nos ser indiscutível que o conteúdo desse relatório, isoladamente ou conjuntamente com outros factos e elementos de prova de que os credores do devedor/insolvente sejam, respetivamente, conhecedores e titulares e que entendam dever carrear para os autos aquando da sua audição, naquela assembleia de credores para aprovação do relatório, para se pronunciarem sobre o pedido de exoneração (n.º 4 do art. 184º), poderão resultar demonstrados um ou mais desses fundamentos de indeferimento liminar do pedido de exoneração, não se sufragando, portanto, a posição de Carvalho Fernandes e João Labareda quando sustentam bastar “(…) confrontar o conteúdo do relatório fixado no art. 155º para se verificar que não contém elementos que interessem à admissão ou rejeição do pedido de exoneração” (36), mas antes essa relevância do conteúdo do relatório a que alude o art. 155º é, na nossa perspetiva, manifesta e indiscutível.
Aqui chegados, tendo a administradora de insolvência junto aos autos em 11/09/2020 o relatório a que alude o art. 155º do CIRE, e tendo o apelante, um dos credores do devedor/insolvente, face à notificação desse relatório e à decisão proferida pelo tribunal, na sentença declaratória de insolvência, de que não designava assembleia de credores para apreciação desse relatório e que a sorte futura do devedor/insolvente (aprovação de plano de insolvência ou liquidação do património do devedor/insolvente) seria deliberada pela assembleia de credores, por voto escrito dos credores, não existindo, por isso, assembleia de credores em que os credores, o devedor/insolvente e a administradora de insolvência pudessem analisar o relatório apresentado pela última e de obter junto desta os esclarecimentos que o conteúdo desse relatório lhes pudesse suscitar, apresentado requerimento, entrado em juízo em 24/09/2020, onde dirigiu várias críticas ao mencionado relatório apresentado pela administradora de insolvência, acusando que o mesmo padece de várias omissões e solicitando vários esclarecimentos à senhora administradora de insolvência, salvo o devido respeito por entendimento contrário, ou essas omissões e esclarecimentos apresentados pelo apelante eram meramente dilatórias e impertinentes, por o relatório em causa conter todos os elementos previstos no n.º 1 do art. 155º e, por conseguinte, não existir fundamento fáctico e legal para os esclarecimentos solicitados pelo apelante, e o tribunal a quo tinha de indeferir esse pedido de esclarecimentos, ou esse relatório apresentava-se efetivamente incompleto e/ou existia outro ou outros fundamentos para o pedido de esclarecimentos apresentado pelo apelante, e o tribunal tinha de deferir esse pedido de esclarecimentos.
Ora, tendo a 1ª Instância, por despacho de 29/10/2020, determinado o prosseguimento do processo de insolvência para liquidação e, bem assim ordenado a notificação da administradora de insolvência para se pronunciar quanto ao teor do pedido de esclarecimentos apresentado pelo apelante, daqui deriva que, na perspetiva desse tribunal, existia fundamento fáctico e legal bastante para o pedido de esclarecimentos apresentado pelo apelante e o consequente reconhecimento que a informação constante do relatório elaborado pela administradora de insolvência, dada a sua incompletude, não cumpria integralmente o comando legal do n.º 3 do art. 155º do CIRE, não facultando ao apelante e aos demais credores do devedor/insolvente a informação necessária para que pudessem, cabal e informadamente, ficar habilitados a decidir quanto ao futuro do devedor/insolvente (aprovação do plano de insolvência ou liquidação – questão essa que não faz parte do objeto da presente apelação, estando, aliás, o despacho de 29/10/2020, em que a 1ª Instância ordenou o prosseguimento do processo de insolvência para liquidação da massa insolvente, porque não impugnado, transitado em julgado), sequer para, fundada e esclarecidamente, se pronunciarem quanto à qualificação da insolvência como fortuita ou culposa e, bem assim quanto ao pedido de exoneração do passivo restante formulado pelo devedor, pelo que naturalmente que o apelante e os demais credores da devedora/insolvente apenas se podiam pronunciar, nos termos do n.º 4 do art. 236º do CIRE, quanto ao pedido de exoneração, uma notificados dos esclarecimentos que viessem a ser prestados pela administradora de insolvência.
Por sua vez, uma vez prestados esses esclarecimentos pela administradora de insolvência, o que sucedeu por requerimento entrado em juízo em 09/11/2020, e notificados estes ao apelante e aos demais credores do devedor/insolvente para, no prazo geral de dez dias, se pronunciarem, querendo, sob o pedido de exoneração (n.º 4 do art. 236º), apenas uma vez decorrido esse prazo de pronúncia podia a 1ª Instância decidir o pedido de exoneração, deferindo-o ou indeferindo-o liminarmente, sob pena de incorrer em violação do princípio do contraditório na sua dimensão positiva e, consequentemente, na nulidade secundária a que alude o art. 195º, n.º 1 do CPC.
Ora, tendo a administradora de insolvência prestado esses esclarecimentos por requerimento entrado em juízo em 09/11/2020, sem que este tivesse sido notificado ao apelante e aos demais credores do devedor/insolvente, e tendo o tribunal a quo, por decisão proferida em 12/11/2020, conhecido do pedido de exoneração, deferindo-o liminarmente, é indiscutível ter ocorrido violação do enunciado princípio do contraditório, que inquina essa decisão da nulidade a que alude o art. 195º, n.º 1 do CPC, determinativa da nulidade do despacho recorrido, proferido em 12/11/2020, em que se defere liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante.
Deste modo, impõe-se anular a decisão recorrida, proferida pela 1ª Instância em 12/11/2020, na parte em que admite liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante e determinar que esta notifique o apelante, os demais credores do devedor/insolvente para o teor desses esclarecimentos prestados pela administradora de insolvência, por requerimento entrado em juízo em 9/11/2020, para no prazo de dez dias, se pronunciarem, querendo, sobre o requerimento de exoneração do passivo restante, nos termos do n.º 4 do art. 236º do CIRE, seguindo-se após a prolação de nova decisão, em que se defira ou indefira liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelo devedor/insolvente.
Face à anulação desta decisão, encontram-se prejudicados os demais erros de julgamento suscitados pelo apelante em relação a esta concreta decisão.
Resulta do que se vem dizendo, proceder parcialmente a presente apelação.
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Decisão:

Nesta conformidade, os Juízes Desembargadores da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, acordam em julgar a presente apelação parcialmente procedente e, em consequência:

I- rejeitam o presente recurso de apelação quanto aos fundamentos de recurso invocados pelo apelante quanto à sentença proferida em 14/07/2020, que declarou o devedor N. F. insolvente e que nomeou para o cargo de administradora de insolvência a Senhora Dr.ª C. M., atento o trânsito em julgado dessa sentença;
II- no mais, julgam a presente apelação procedente e acordam em anular a decisão proferida em 12/11/2020, em que se defere liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, e determinam que a 1ª Instância notifique o apelante e os demais credores do insolvente, para o teor dos esclarecimentos prestados pela administradora de insolvência, por requerimento entrado em juízo em 9/11/2020, para no prazo de dez dias, se pronunciarem, querendo, sobre o requerimento de exoneração do passivo restante, nos termos do n.º 4 do art. 236º do CIRE, seguindo-se, após, a prolação de nova decisão, em que se defira ou indefira liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelo devedor/insolvente.
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Custas por apelante e massa insolvente, na proporção do respetivo decaimento, que se fixa em partes iguais (art. 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
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Notifique.
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Guimarães, 22 de abril de 2021
Assinado eletronicamente pelos Juízes Desembargadores:

José Alberto Moreira Dias (relator)
António José Saúde Barroca Penha (1º Adjunto)
José Manuel Alves Flores (2º Adjunto)



1. Acs. RE de 02/10/2018, Proc. 1845/15.2T8EVR-K.E1; de 14/04/2011, Proc. 865/08.8TBTVR-F.E1, in base de dados da DGSI.
2. Carvalho Fernandes e João Labareda, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, 3ª ed., Quid Juris, págs. 279 e 286.
3. Abílio Neto, in “Novo Código de Processo Civil Anotado”, 2ª ed., janeiro/2014, pág. 734.
4. Antunes Varela e outros, “Manual de Processo Civil”, Coimbra Editora, 1985, pág. 387, em que se lê: “(…), a nulidade do processo consiste sempre num vício de caráter formal, traduzido num dos três tipos: a) prática de um ato proibido; b) omissão de um ato prescrito na lei; c) realização de um ato imposto ou permitido por lei, mas sem as formalidades requeridas. Pode assim dizer-se, com M. Andrade, que a nulidade processual consiste sempre num desvio entre o formalismo prescrito na lei e o formalismo efetivamente seguidos nos autos. Para que haja nulidade do processo é necessário, porém, que ao desvio registado corresponda, segundo o critério legal aplicável na matéria, uma inutilização, mais ou menos extensa, dos atos praticados”.
5. Ac. STJ. de 25/11/2008, Proc. 08A3501, in base de dados da DGSI.
6. Ac. STJ. de 17/19/2007, AD, 554º, pág. 461.
7. António Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, 2ª ed., Almedina, pág. 762, notas 1 e 2.
8. Ac. STJ. 08/03/2001, Proc. 00A3277, in base de dados da DGSI.
9. A corrente jurisprudencial largamente dominante, com a qual se concorda, é no sentido de que o ónus da prova dos fundamentos taxativos de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante previstos no n.º 1 do art. 238º do CIRE impende, não sobre o devedor/insolvente, requerente do pedido de exoneração, mas sobre os interessados, ou seja, o devedor não tem de fazer prova da não verificação dos requisitos de indeferimento liminar do pedido de exoneração, porquanto, tratando-se de motivos de indeferimento liminar do pedido de exoneração formulado pelo devedor/insolvente, isto é, facos impeditivos do direito deste, pessoa singular, a ser exonerado do passivo restante, nos termos do art. 342º, n.º 2 do CC, cabe aos interessados, ou seja, aos credores e ao administrador de insolvência o ónus da prova da verificação desses fundamentos de indeferimento liminar do pedido de exoneração taxativamente elencados naquele art. 238º, n.º 1 do CIRE – cfr., a título exemplificativo, Acs. STJ. 19/04/2012, Proc. 434/11.5TJCBR-D.C1-S1; de 07/07/2011, Proc. 7295/08.TBBRG.G1-S1; RP. de 20/12/2011, Proc. 740/10.6TBPVZ-D.P1; RL de 17/11/2011, Proc. 921/11.5TJLSB-E.L1-8.
10. Manuel de Andrade, “Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra Editora, 1979, pág. 379.
11. Paulo Pimenta, “Processo Civil Declarativo”, Almedina, 2014, pág. 24
12. Ac. RC. de 20/09/2016, Proc. 1215/14.0TBPBL-B.C1, in base de dados da DGSI.
13. Lebre de Freitas, “Introdução ao Processo Civil Conceito e Princípios Gerais à Luz do Código Revisto”, Coimbra Editora, 1996, págs. 96 e 97.
14. Abrantes Geraldes, “Temas da Reforma do Processo Civil”, Almedina, 2006, pág. 82.
15. Lebre de Freitas, João Rendinha e Rui Pinto, “Código de processo Civil Anotado”, vol. 1º, 1999, pág. 10
16. Lebre de Freitas, “Introdução ao Processo Civil, Conceito e Princípios Gerais à Luz do Código Revisto”, 1996, Almedina, págs. 102 a 103, lendo-se na nota 24 que é “manifestamente desnecessário convidar as partes a pronunciar-se sobre a qualificação dum contrato, integrando a causa de pedir, como compra e venda, se o autor, embora não invocando explicitamente esta qualificação, o descreveu facticamente como tal, em termos inequívocos e não contrariados, de facto nem de direito, pelo réu. Mas já será necessário o convite se o juiz entender que, não obstante as partes, explicita ou implicitamente, terem tomado o contrato como de compra e venda ao longo de todo o processo, a sua qualificação jurídica correta é de empreitada ou de doação; ou ainda se, concordando embora com a qualificação que as partes lhe atribuíram, o juiz se propuser aplicar uma norma jurídica, específica ou genérica, do respetivo regime (por exemplo, o art. 895º CC ou o art. 280-2 cc) que as partes durante o processo não tiveram em conta. A falta deste convite, quando deva ter lugar, gera a nulidade (art. 201). No mesmo sentido, Abílio Neto, in “Novo Código de Processo Civil Anotado”, 2ª ed. revista e ampliada, janeiro/2014, Ediforum, pág. 18, onde se lê: “A proibição das decisões-surpresa (art. 3º, 3) constitui uma garantia cuja manifestação predominantemente se situa no âmbito das questões de conhecimento oficioso não levantadas no decurso do processo, das quais o tribunal se propõe conhecer no momento da decisão. Verificando-se em concreto uma situação deste tipo, deve o tribunal criar condições para o exercício do contraditório sobre o ponto em causa, relativamente a ambas as partes, em momento anterior à decisão e seja qual for a fase que o processo esteja a atravessar. Se, p. ex., o tribunal «ad quem» entender que os factos apurados nos autos devem ser submetidos a enquadramento normativo diverso daquele que foi considerado pelas partes e pelo tribunal «a quo», a vinculação do julgador ao contraditório – princípio que «o juiz deve observar e fazer cumprir ao longo de todo o processo», conforme preceitua o n.º 3 do art. 3º - impõe-lhe que adapte a tramitação do recurso, de maneira a que nela se encaixe a tomada de posição das partes sobre a mudança a efetuar na qualificação jurídica da matéria de facto”.
17. Acs. STJ. de 14/05/2002, Proc. 02A1353; de 24/02/2015, Proc. 116/14.6YLSB, ambos in base de dados da DGSI.
18. Ac. STJ. 27/09/2011, Proc. 2005/03.0TVLSB.L1.S1, in base de dados da DGSI.
19. Ac. RC. de 13/11/2012, Proc. 572/11.4TBCND.C1, in base de dados da DGSI.
20. Acs. STJ. de 13/01/2005, Proc. 04B4031; RP de 18/06/2007, Proc. 0733086, in base de dados da DGSI.
21. Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., pág. 71, nota 6.
22. Luís M. Martins, “Processo de Insolvência”, 2016, 4ª ed., Almedina, pág. 535.
23. Luís Menezes Leitão, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, 4ª ed., págs. 236 e segs. Em sentido idêntico, Catarina Serra, “O Novo Regime Português da Insolvência – Uma Introdução”, 2008, 3ª ed. Almedina, págs. 102 e 103.
24. Alexandre de Soveral, “Um Curso de Direito de Insolvência”, 2016, 2ª ed., pág. 584.
25. Luís M. Martins, ob. cit. pág. 535. No mesmo sentido, vide Ac. RP. de 06/04/2017, Proc. 1288/12.0TJPRT.P1, in base de dados da DGSI.
26. Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., págs. 849 e 850.
27. Luís M. Martins, “Processo de Insolvência”, 2016, 4ª ed., Almedina, pág. 539.
28. Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., pág.580.
29. Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., pág. 850.
30. Ac. RP. de 06/04/2017, Proc. 1288/12.0TJPRT.P1, in base de dados da DGSI.
31. Ac. RC. de 03/06/2014, Proc. 747/11.6TBTNV-J.C1, in base de dados da DGSI.
32. Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., pág. 853.
33. Ac. RL. de 12/12/2013, Proc. 1367/13.6TJLSB-C.L1-8, in base de dados da DGSI.
34. Luís M. Martins, ob. cit., pág. 545; Carvalho Fernandes e Carvalho Fernandes, ob. cit., pág. 855, nota 3; e Ac. RP. de 23/10/2008, Proc. 5723/08- 3ª Sec..
35. Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., pág. 856.
36. Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., pág. 855, nota 3.