Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2544/22.4T8GMR.G1
Relator: AFONSO CABRAL DE ANDRADE
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
CONTRATO DE SEGURO
LEGITIMIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1. A regra nos casos de contrato de seguro facultativo de responsabilidade civil é a da legitimidade passiva exclusiva do segurado, sendo excepcional a acção directa contra a seguradora.
2. Porém, no art. 140º,3 do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo Decreto Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril, consagra-se uma excepção a essa regra, permitindo ao lesado demandar directamente o segurador quando o segurado o tenha informado da existência de um contrato de seguro e tenha ocorrido início de negociações directas entre o lesado e o segurador.
3. O facto de o lesado ter sido inquirido por um perito averiguador contratado pela seguradora para efectuar a averiguação do sinistro, e o facto de a Seguradora enviar carta a comunicar-lhe que recusava o sinistro, por entender não se encontrar demonstrada a responsabilidade civil da segurada, não preenche o conceito de “início de negociações”, para efeito de aplicação da norma jurídica em causa.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I- Relatório

AA, residente na Rua ..., ..., intentou contra EMP01..., EMP02... SA, com sede na Rua ..., ..., ..., e EMP03... – COMPANHIA DE SEGUROS SA, com sede no Largo ..., ..., a presente acção declarativa de condenação sob a forma comum de processo, peticionando, pela sua procedência, a condenação das RR. no pagamento a seu favor da quantia de €22.847,80.
Alega, para o efeito e em síntese, que no dia ../../2021, pelas 14H45, dirigiu-se ao supermercado EMP04... sito na Rua ..., ..., propriedade da 1.ª Ré, e na secção da peixaria escorregou numa poça de água formada pelo gelo derretido que caía das bancadas onde estava exposto o peixe para venda, caindo desamparada para a frente e batendo com o queixo no solo.
Mais alega que o pavimento do supermercado não é antiderrapante e no local não existia qualquer sinalética a alertar os utentes da existência de piso escorregadio nem qualquer barreira que impedisse os clientes de se aproximarem dos expositores.
Aduz que na sequência da queda o telemóvel que transportava caiu ao chão, partindo-se, e ela, Autora, sofreu lesões que descreve, tendo sido transportada ao Centro Hospitalar... pelos Bombeiros Voluntários ..., pagando a tal entidade o custo com esse transporte.
As lesões e sequelas sofridas, diz, causam-lhe muitas dores, que a impedem de ingerir o mesmo tipo de alimentos que anteriormente ingeria bem como de conviver com pessoas, prestar atenção ao filho e fazer devidamente as tarefas domésticas.
Reclama, por isso, o reembolso das despesas com o transporte, no valor de €30,40, com as consultas de medicina dentária e episódios de urgência, no valor de €187,40, com a reparação do telemóvel, no valor de €130, e ainda o pagamento de €22.500, €10.000 para tratamento das lesões sofridas e €12.500 a título de indemnização por danos não patrimoniais.
Demanda a 2.ª Ré por para ela a 1.ª Ré ter transferido a responsabilidade civil, mediante contrato de seguro titulado pela apólice n.º ...38.

Regularmente citadas contestaram ambas as Rés, reconhecendo a existência do invocado contrato seguro bem como que lhes foi comunicada a queda relatada pela Autora, ainda que desconheçam se a mesma aconteceu e nos moldes em que foi descrita e ainda as consequências dela advindas. Alegam adicionalmente que ao contrário do relatado pela Autora, existia no local sinalética alertando para o estado escorregadio do piso, tendo sido a Autora quem, ignorando essa sinalética, se aproximou demasiado dos expositores do peixe, escorregando ao rodar sobre si mesma. Excepcionou ainda a 2.ª Ré a ineptidão da petição inicial relativamente a si, a sua ilegitimidade ad causam bem como a subsunção da situação sub iudice a uma das cláusulas de exclusão contratuais previstas.

Respondeu a Autora às excepções deduzidas, pugnando pela sua improcedência.

Realizada e frustrada a tentativa de conciliação, foi proferido despacho saneador, em que se indeferiu a alegada ineptidão da petição inicial relativamente à 2.ª Ré, se relegou para sede de sentença o conhecimento da invocada ilegitimidade passiva, por depender de prova a produzir, se identificou o objecto do litígio e se fixaram os temas da prova, de que não houve qualquer reclamação.

Procedeu-se à realização da audiência de julgamento, que decorreu com a observância das formalidades legais, como consta da respectiva acta.

A final foi proferida sentença que:
1. Julgou procedente a excepção dilatória de ilegitimidade passiva da 2.ª Ré, absolvendo-a, consequentemente, da instância;
2. Julgou a acção parcialmente procedente e condenou a 1.ª Ré no pagamento à Autora da quantia de €9.190,40 (nove mil, cento e noventa euros e quarenta cêntimos), absolvendo-a do mais peticionado.

Inconformada com esta decisão, a Ré EMP02... Lda, veio interpor recurso ordinário de apelação, a subir imediatamente nos próprios autos, com efeito meramente devolutivo (artigos 629º,1, 631º,1, 637º, 638º,1, 644º,1,a), 645º,1,a) e 647º,1 do Código de Processo Civil).

Termina a respectiva motivação com as seguintes conclusões:
I- Na Douta Sentença recorrida, decidiu o Tribunal a quo a ilegitimidade passiva da 2ª Ré (Companhia de Seguros) e, consequentemente, absolveu-a da instância, por ter formado a convicção que não só não ficou provado que a 1.ª R. tenha comunicado à A. a existência do contrato de seguro (cfr. supra 1.2.g)) como a circunstância de a 2.ª R. ter contactado a A. para efeitos de averiguação do sinistro. Ora,

II- Da relação e factos provado resulta que:
q) A A. foi inquirida por perito averiguador contratado pela 2.ª R. para efectuar a averiguação do sinistro no âmbito destes autos;
r) Por carta datada de 29.06.2021 a 2.ª R. comunicou à A. que recusava o sinistro, por entender não se encontrar demonstrada a responsabilidade civil da 1.ª R..

Ou seja,
III- Dos factos julgados provados resulta expressamente que a A. foi inquirida por perito averiguador contratado pela 2.ª R., facto do qual se extrai que a 1.ª R comunicou à A. a existência do contrato de seguro, bem como, como a circunstância de a 2.ª R. ter contactado a A. para efeitos de averiguação do sinistro.
IV- Conforme define, e bem, o Acórdão Rel. Lisboa de 17.02.2022, relatado pelo Des. Adeodato Brotas, que há negociações, para efeitos do art. 140.º n.º 3 do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo Decreto Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril, quando o segurador inicia a fase de instrução do sinistro, realizando perícia nos bens lesados e contacta o lesado para o efeito; e se, posteriormente, lhe comunica a recusa de sinistro e, perante a “reclamação” do lesado “reanalisa” o processo com vista a decidir sobre a recusa do sinistro ou o pagamento de indemnização, temos de convir que houve negociações, isto é, houve participação do lesado no processo de regularização do sinistro, julgados como provados que a A. foi inquirida por perito averiguador contratado pela 2.ª R. para efectuar a averiguação do sinistro no âmbito destes autos e Por carta datada de 29.06.2021 a 2.ª R. comunicou à A. que recusava o sinistro, por entender não se encontrar demonstrada a responsabilidade civil da 1.ª R.
Consequentemente,
V- Ao decidir como decidiu, violou o Tribunal a quo o disposto no art. 140.º n.º 3 do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo Decreto Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril,
Pelo que,
VII- Deverá, nos termos supra expostos, ser, nesta parte, revogada a Douta Sentença recorrida e substituída por outra que, porque o art.º. 140.º n.º 3 do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, permite à Autora, no caso dos presentes autos, demandar directamente o segurador, se julgue improcedente a excepção de ilegitimidade invocada pela 2.ª Ré e se declare esta como parte legitima a 2.ª Ré na presente lide.
Para tanto, e se necessário for,
VIII- Porque decorrentes dos factos julgados como provados, nomeadamente quando se julgou como provado que A A. foi inquirida por perito averiguador contratado pela 2.ª R. para efectuar a averiguação do sinistro no âmbito destes autos e por carta datada de 29.06.2021 a 2.ª R. comunicou à A. que recusava o sinistro, por entender não se encontrar demonstrada a responsabilidade civil da 1.ª R.. se julgue também como provado:
a. g) Que a 1.ª R. tenha comunicado à A. a existência de um contrato de seguro celebrado com a 2.ª R.;
b. h) Que entre a A. e a 2.ª R. tenha havido negociações directas com vista à resolução do sinistro.
IX- Na Douta Sentença Recorrida, julgou o Tribunal a quo como provados:
b) Quando se encontrava na secção da peixaria, ao virar-se do expositor do peixe, a A. escorregou numa poça de água que ali existia, formada pelo gelo colocado no expositor de peixe para conservação deste e que derretera, e caiu para a frente, embatendo com o queixo no solo;
c) No local referido em b) inexistia qualquer sinal de “Piso Escorregadio” ou barreira ou qualquer outro dispositivo que impedisse a aproximação dos clientes dos expositores do peixe ou alertasse para a existência de piso escorregadio;
Para tanto,
X- Desvalorizou o Tribunal a quo parte do depoimento da testemunha BB, com fundamento a BB afirmou encontrar-se colocado no chão junto à peixaria, do lado esquerdo, um sinal de “Piso Escorregadio.” Se o chão estava seco, não se percebe porque motivo haveria necessidade de colocar no local o referido sinal.
Ora,
XI- O depoimento da testemunha BB, resulta que:
00h13m49s – Advogada da ré EMP04...: Perguntar à testemunha se era exactamente ali que estava o sinal de piso escorregadio.
00h13m53s – BB: Sim, era aqui que estava. Agora, entretanto, meteram as correntes, nós metemos no meio e mesmo assim os clientes não respeitam. 00h14m02s – Advogada da ré EMP04...: Porque diz isso?
00h14m03s – BB: porque nós temos a corrente, agora pusemos a corrente e temos o sinal no meio e os clientes sabendo que está marcado, não é, e está o sinal de chão escorregadio, mesmo assim, eles entram pela peixaria dentro. E, nós estamos sempre a dizer: “Cuidado”.
Ou seja,
XII- O depoimento da testemunha esclareceu o Tribunal da razão pela qual, mesmo não existindo piso escorregadio, era colocado o sinal de “piso escorregadio” para as pessoas não entrarem na peixaria.
Pelo que,
XIII- Seja porque o Tribunal a quo expressamente valorizou o referido depoimento para prova da ocorrência do sinistro, (factos descritos na aliena e e parte da aliena b) dos factos provados), seja porque o fundamento para a desvalorização (ausência de explicação da colocação do sinal de piso escorregadio se o piso se encontrava seco) não ocorre, tendo a testemunha explicado a razão pela qual o sinal de piso escorregadio é colocado, independentemente de existir piso escorregadio ou não, impunha-se ao Tribunal a quo a sua total valorização.
XIV- Tivesse o Tribunal a quo valorizado tal depoimento na sua totalidade, não poderia julgar como provado o facto descrito na alínea b) da relação de factos provados, na parte em que se decidiu que a A. escorregou numa poça de água que ali existia, formada pelo gelo colocado no expositor de peixe para conservação deste e que derretera, bem como, não poderia julgar como provado o facto descrito na aliena c) da relação de factos provados, quando se decidiu julgar como provado no local referido em b) inexistia qualquer sinal de “Piso Escorregadio” ou barreira ou qualquer outro dispositivo que impedisse a aproximação dos clientes dos expositores do peixe ou alertasse para a existência de piso escorregadio;
Na verdade,
XV- Se atendermos ao depoimento da testemunha BB, o mesmo foi coerente e, quanto a tais factos esclareceu, por mais que uma vez:
00h04m24s – BB: Quem vem de frente. Entretanto, a dona AA chega-se perto da banca e ela vira-se e ao virar dá-me a sensação que ela escorrega no seu próprio pé porque ela bate de cabeça, ou seja, ela não teve tempo de ir com as mãos. Ela bate de cabeça. Eu fui socorrê-la. A CC, entretanto, foi buscar o banco, nós sentámos a senhora. A CC foi buscar um copo de água com açúcar e eu virei-me para a senhora e disse-lhe…olhei para o chão a ver chão se estava molhado, o chão estava seco, seco, seco, seco. E virei-me para a senhora, ajoelhei-me à beira da senhora, enquanto a CC foi buscar a água e eu disse-lhe: “Olhe, mas você escorregou sozinha e o chão está seco.” E ela virou-se para mim e disse: “Eu sei menina que o chão está seco e eu sei que caí sozinha.”. A mim deu-me a sensação que ela escorrega no seu próprio pé, mas isso eu não vi. Entretanto a CC vem com o copo da água com açúcar.
00h10m04s – BB: A senhora vem daqui. Ela dá a sensação que vem directa para a peixaria, ela vem directa à peixaria e estava sinalizado o chão. Ela vai, entretanto, chega-se perto da banca e eu estou do lado de dentro, não é! Estava o chão sinalizado, isso recordo-me como se fosse hoje. Estava o sinal ali e a senhora chega-se ali perto.
Ela está assim e ao virar-se, dá-me a sensação que ela tropeça no seu próprio pé. Então, aí cai de cabeça. (…)
00h12m00s – Juíza de Direito: Era o que estava a dizer, nestas fotografias não se vê nenhuma fita delimitadora no chão e agora também aí acrescento estas fotografias foram tiradas cerca de 4 semanas depois da ocorrência, portanto. A senhora tem a certeza: (Imperceptível).
00h12m17s – BB: Absoluta, absoluta. Eu recordo-me que estava a fita no chão e a senhora passa a fita no chão sinalizado e ela aproxima-se e ela ao virar-se ela cai assim. Ela não tem tempo de ir com as mãos. Ela bate, ela dá-me a sensação que tropeça no pé e ela bate mesmo de boca. Mas estava o chão sinalizado.
Consequentemente,
XVI- Reapreciado o depoimento da testemunha BB, reforçado pelo relatório de peritagem (pág. 3), junto com a Contestação da 2ª Ré quando refere “existência de sinalização de ‘Perigo – Piso escorregadio’, deverá a Douta Sentença Recorrida ser, nesta parte revogada, e substituída por outra que julgue como não provado:
-A A. escorregou numa poça de água que ali existia, formada pelo gelo colocado no expositor de peixe para conservação deste e que derretera;
-No local referido em b) inexistia qualquer sinal de “Piso Escorregadio” ou barreira ou qualquer outro dispositivo que impedisse a aproximação dos clientes dos expositores do peixe ou alertasse para a existência de piso escorregadio;
Acresce que,
XVII- Na alínea d) da relação de factos provados, decidiu o Tribunal a quo julgar como provado que:
d) O piso no local referido em b) não consubstancia pavimento antiderrapante;
XVIII- Pela fundamentação vertida pelo Tribunal a quo na Douta Sentença recorrida resulta que tal facto foi julgado como provado porque a Senhora Juiz, invertendo totalmente o principio do ónus da prova, perante a ausência de afirmação de que o piso da peixaria era antiderrapante, extrai, com o devido respeito, para espanto da Recorrente e de quem conhece o processo legal de resistência ao deslizamento (norma UNE-ENV 12633:2003) se retira das fotografias anexas ao relatório de averiguação junto pela 2.ª R. com a sua contestação que assim não era.
No entanto,
XIX- Nunca poderia o Tribunal a quo, pela visualização de uma fotografia de um pavimento, julgar como provado o facto descrito na aliena d) da relação de factos provados que:
d) O piso no local referido em b) não consubstancia pavimento antiderrapante;
Pelo que,
XX- Deve, nesta parte, ser a Douta Sentença recorrida revogada e substituída por Douto Acórdão que julgue como não provado:
-O piso no local referido em b) não consubstancia pavimento antiderrapante;
XXI- Na alínea f) da relação de factos provados, decidiu o Tribunal a quo julgar como provado que:
-Na sequência da queda referida em b) as peças dentárias 13, 12, 11 e 24 do maxilar superior encontravam-se fracturadas e apresentavam espessamento do ligamento periodontal e consequente mobilidade, susceptível de reversão; na mandíbula, as peças dentárias 44, 43 e 34 apresentavam espessamento do ligamento periodontal, susceptível de reversão;
No entanto,
XXII- Com a petição inicial juntou a Autora:
Relatório clínico (não datado) (Doc. ...) onde se alude às peças dentárias: 11, 12, 13 e 24 maxilar superior e 34 43, 44 da mandíbula;
Factura n.º 121/3405 de 10/12/2021 (Doc. ...) faz alusão aos dentes: 27 e 47 com o valor total de €60,00;
Plano de Tratamento n.º 615 de 25/01/2021 (antes do sinistro) (Doc. ...): dentes 35, 36, 46, 47 orçado em €10.000,00.
Por sua vez,
XXIII- Com a Contestação apresentada pela 2ª Ré (seguradora) foi junto:
Plano de Tratamento n.º 624 de 08/07/2021: dentes 11, 12, 13, 24, 34, 44 e 45 orçado em € 4.475,00.
Por fim,
XXIV- Na fase de aperfeiçoamento da Petição Inicial juntou-se:
Relatório clínico (não datado) alude às peças dentárias: 32, 43, 44 46, 47.
E assim,
XXV- A prova documental apresentada infirma que na sequência da queda referida em b) as peças dentárias 13, 12, 11 e 24 do maxilar superior encontravam-se fracturadas e apresentavam espessamento do ligamento periodontal e consequente mobilidade, susceptível de reversão; na mandíbula, as peças dentárias 44, 43 e 34 apresentavam espessamento do ligamento periodontal, susceptível de reversão;
Pelo que,
XXVI- Não poderia o Tribunal a quo julgar como provado o facto descrito na alínea f) da relação de facto provados, devendo, nesta parte ser revogada a Douta Sentença proferida e substituída por uma outra que, considerando a inconsistência da prova documental supra invocada, julgue como não provado:
-Na sequência da queda referida em b) as peças dentárias 13, 12, 11 e 24 do maxilar superior encontravam-se fracturadas e apresentavam espessamento do ligamento periodontal e consequente mobilidade, susceptível de reversão; na mandíbula, as peças dentárias 44, 43 e 34 apresentavam espessamento do ligamento periodontal, susceptível de reversão;
Consequentemente,
XXVI- Julgada improcedente a excepção de ilegitimidade da 2.ª Ré e corrigida a decisão da matéria de facto nos termos supra invocados, não ocorre demonstração nos presentes autos que o sinistro ocorrido com Autora no dia ../../2021, pelas 14H45, no supermercado EMP04... situado na Rua ..., em ..., ..., propriedade da Recorrente, haja ocorrido por culpa desta,
E assim,
XXVII- Deverá a Douta Sentença Recorrida ser revogada e substituída por Douto Acórdão que julgue totalmente improcedente o pedido formulado pela Autora contra a Recorrente.
XXVIII- Ainda que assim não se entenda, julgado que está nos presentes autos (alínea m) e n) da relação e factos provados) que:
-Por contrato de seguro titulado pela apólice n.º ...38 a 1.ª R. transferiu para a 2.ª R. a responsabilidade civil, entre outros:
-por danos patrimoniais e/ou não patrimoniais causados a clientes ou a terceiros ocorridos dentro das instalações cuja causa seja exclusivamente devida a, entre outros, acto ou omissão não doloso do Segurado ou qualquer dos seus empregados no exercício da sua actividade e ao seu serviço;
-por danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes de erro ou falta profissional cometida no exercício da sua actividade profissional (Hipermercado/Supermercado – Comércio de produtos provenientes do fornecedor EMP04...);
Entre a 1.ª e a 2.ª R. foi acordada para as coberturas referidas em m) uma franquia de 10% do valor dos prejuízos do mínimo de €250 por sinistro;
Bem como,
XXIX- Julgada improcedente, como supra se peticionou, a excepção de ilegitimidade da 2.ª Ré (Companhia de Seguros EMP03... S.A), em caso de condenação da Recorrente como responsável pelo sinistro ocorrido no malogrado dia ../../2021, pelas 14H45, no supermercado EMP04... situado na Rua ..., em ..., ..., propriedade da Recorrente, deverá o pagamento da indemnização à Autora ser repartida entre Recorrente e 2.ª Ré, na proporção de 10% à Recorrente e 90% 2.ª Ré, atento o contrato de seguro titulado pela apólice n.º ...38.

A 2ª Ré, EMP03... – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A. contra-alegou, oferecendo as seguintes conclusões:

1. O Douto Tribunal a quo fez uma correcta interpretação e análise da prova produzida em sede de audiência de Julgamento e dos documentos juntos pelas partes aos autos, e julgou, além do mais, a 2ª R., ora Apelada parte ilegítima.
2. Aliás, da matéria factual dada como provada, outro não poderia ser o resultado encontrado por parte do Douto Tribunal a quo.
3. Claramente a ora Apelada é parte ilegítima nos autos, por força da não verificação dos requisitos cumulativos previstos no nº 3 do artigo 140º da Lei do Contrato de Seguro, aprovada pelo DL 72/2008 de 16.04.
4. De facto, a lei admite que o lesado possa demandar directamente o segurador quando ocorram cumulativamente os seguintes requisitos: que o segurado tenha informado o lesado da existência de um contrato de seguro, e que o segurador com ele tenha iniciado negociações directas.
5. E embora a a. tenha alegado que a 1ª R. a informou da existência do contrato de seguro, certo é que, nem a A., nem a Apelante lograram provar que tal sucedeu.
6. E teria sido fácil para ambas (A. e Apelante) terem demonstrado e provado tal situação de informação sobre a existência de contrato de seguro.
7. O que não sucedeu.
8. Igualmente, não resultou provada a alegação de que tenha havido qualquer tipo de negociação directa (ou sequer outra) entre a A. e a Apelada.
9. Para haver “negociações”, estas têm de reflectir uma vontade e atitude das partes, mormente da seguradora, no sentido de que, uma vez postas as partes em contacto e em face dos factos já averiguados e dos termos da apólice existente, elas, livre e voluntariamente, aceitem, no caso concreto e em termos análogos, tratar, de boa-fé, entre si e directamente, da questão e admitem resolvê-la e compô-la por consenso.
10. O que não é o caso dos autos.
11. A Apelada para poder responder à participação do sinistro promoveu a elaboração de uma averiguação com o objectivo de aferir das circunstâncias e causas do sinistro.
12. Sendo que, tal como ficou demonstrado e provado, a A. foi inquirida pelo perito averiguador no sentido de obter uma descrição do acidente.
13. Tal diligência não pode, de todo em todo, ser subsumida ao conceito de negociações directas.
14. O averiguador contratado pela Apelada para efectuar a averiguação não possui, como é evidente, qualquer mandato daquela para negociar o que quer que seja, nem tão pouco para apresentar eventuais valores indemnizatórios à A.
15. Uma negociação, não só consiste numa apresentação de propostas e contra propostas, como também terá que haver capacidade negocial para quem apresenta o recebe propostas ou contrapropostas, respectivamente.
16. De referir ainda que, quem tinha capacidade negocial para apresentar um qualquer tipo de proposta à A. com vista à solução do litígio, não o fez.
17. A Apelada comunicou à A. a sua recusa do sinistro, i.e. perante o resultado da averiguação entendeu que o sinistro não decorria de qualquer tipo de responsabilidade da sua segurada, ora apelante.
18. Não ocorreram conversações, diálogo, ou troca de correspondência concordando ou não com a tomada de posição da Apelada.
19. Pelo que, não podem -perante a factualidade dada como provada- ser incluídos nos factos provados 1) que a 1ª R. tenha comunicado à A. a existência de um contrato de seguro celebrado com a 2ª R.; 2) que entre a A. e a 2ª R. tenha havido negociações directas com vista à resolução do sinistro.
20. Pois que, nem tais factos se encontram demonstrados nos autos, nem a Apelante os logrou alegar ou se quer provar, nem tão pouco eles resultam de uma qualquer prova que tenha sido produzida nos autos.
21. O Douto Tribunal a quo (como qualquer outro, diga-se), labora sobre factos que tenham sido alegados e sobre os quais tenha sido produzida prova suficiente para que os considere como provados.
22. Não labora sobre o campo das hipóteses, conclusões ou sobre o vazio factual.
23. Pelo que, a decisão proferida pelo Douto Tribunal a quo não poderia ser outra que não a que foi proferida no tocante à ilegitimidade da ora apelada.
Devendo, assim, a Douta Decisão ser mantida neste conspecto.

II
As conclusões das alegações de recurso, conforme o disposto nos artigos 635º,3 e 639º,1,3 do Código de Processo Civil, delimitam os poderes de cognição deste Tribunal, sem esquecer as questões que sejam de conhecimento oficioso. Assim, e, considerando as referidas conclusões, as questões a decidir consistem em saber se:
a) ocorreu erro no julgamento da matéria de facto
b) a ré Seguradora é parte legítima nesta acção;

III
A sentença considerou provados os seguintes factos:

a) No dia ../../2021, pelas 14H45, a Autora encontrava-se no supermercado EMP04... situado na Rua ..., em ..., ..., propriedade da 1.ª Ré;
b) Quando se encontrava na secção da peixaria, ao virar-se do expositor do peixe, a Autora escorregou numa poça de água que ali existia, formada pelo gelo colocado no expositor de peixe para conservação deste e que derretera, e caiu para a frente, embatendo com o queixo no solo;
c) No local referido em b) inexistia qualquer sinal de “Piso Escorregadio” ou barreira ou qualquer outro dispositivo que impedisse a aproximação dos clientes dos expositores do peixe ou alertasse para a existência de piso escorregadio;
d) O piso no local referido em b) não consubstancia pavimento antiderrapante;
e) Na sequência da queda referida em b) a Autora foi transportada ao Centro Hospitalar... pelos Bombeiros Voluntários ..., tendo pago €30,40 pelo serviço de transporte;
f) Na sequência da queda referida em b) as peças dentárias 13, 12, 11 e 24 do maxilar superior encontravam-se fracturadas e apresentavam espessamento do ligamento periodontal e consequente mobilidade, susceptível de reversão; na mandíbula, as peças dentárias 44, 43 e 34 apresentavam espessamento do ligamento periodontal, susceptível de reversão;
g) O referido em b) e f) causou na Autora muitas dores de dentes e de cabeça;
h) As dores de dentes sentidas pela Autora levaram-na a, num período inicial, comer os alimentos triturados;
i) Por causa do referido em g) a Autora passou a depender da ajuda do marido e do filho maior para realizar as tarefas domésticas;
j) A Autora encontra-se a fazer um tratamento dentário cujo custo foi orçamentado em €10.000,00, que se traduzem na colocação de uma prótese fixa no maxilar superior, com exodontia de todos os dentes do maxilar, e no restauro de outros na mandíbula;
k) Para reparação dos danos referidos em 1.1.f) era necessário realizar os seguintes tratamentos:
-Quatro consultas médicas;
-Uma ortopantomografia;
-Implantes com coroa nos dentes 13, 11 e 24;
-Colocação de uma coroa no dente 12;
-Possivelmente, endodontia dos dentes 34, 44 e 45;
l) A totalidade dos tratamentos mencionados em k) têm um valor de €4.475, ascendendo a possível endodontia dos 34, 44 e 45 a €315;
m) Por contrato de seguro titulado pela apólice n.º ...38 a 1.ª R. transferiu para a 2.ª R. a responsabilidade civil, entre outros:
-por danos patrimoniais e/ou não patrimoniais causados a clientes ou a terceiros ocorridos dentro das instalações cuja causa seja exclusivamente devida a, entre outros, acto ou omissão não doloso do Segurado ou qualquer dos seus empregados no exercício da sua actividade e ao seu serviço;
-por danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes de erro ou falta profissional cometida no exercício da sua actividade profissional (Hipermercado/Supermercado – Comércio de produtos provenientes do fornecedor EMP04...);
n) Entre a 1.ª e a 2.ª R. foi acordada para as coberturas referidas em m) uma franquia de 10% do valor dos prejuízos do mínimo de €250 por sinistro;
o) Lê-se sob a epígrafe “Exclusões Específicas” da cláusula particular “Responsabilidade Civil Profissional (Profissões Diversas)”, referida em m), que “Para além das exclusões previstas no artigo 6.º das Condições Gerais, a garantia desta cláusula particular não abrange os danos causados por: a) Os danos decorrentes de actos ou omissões dolosos do Segurado ou de pessoas por quem este seja civilmente responsável, bem como de actos ou omissões que constituam violação dolosa de normas legais ou regulamentares, por parte do Segurado ou por parte de pessoas por quem este seja civilmente responsável”;
p) Lê-se no art. 6.º, al. a) das Condições Gerais do contrato referido em m) que “O presente contrato nunca garante os danos decorrentes de actos ou omissões dolosos do Segurado ou de pessoas por quem este seja civilmente responsável”;
q) A A. foi inquirida por perito averiguador contratado pela 2.ª R. para efectuar a averiguação do sinistro no âmbito destes autos;
r) Por carta datada de 29.06.2021 a 2.ª R. comunicou à A. que recusava o sinistro, por entender não se encontrar demonstrada a responsabilidade civil da 1.ª R..

1.2. Factos Não Provados:
Com relevo para a decisão a proferir não se provaram quaisquer outros factos que não os enumerados em 1.1., designadamente:
a) Que junto à banca de exposição da peixaria existisse em ../../2021 uma fita delimitadora da zona de distância de segurança;
b) Que na sequência da queda referida em 1.1.b) o telemóvel que a A. transportava tenha caído ao solo, partindo o touch/display e a capa traseira;
c) Que na reparação dos danos referidos em 1.2.b) a A. tenha despendido €130;
d) Que na sequência do referido em 1.1.b) e f) a A. tenha recorrido a consultas de urgência e de medicina dentária, suportando um custo de €187,40;
e) Que para reparação dos danos referidos em 1.1.f) tivesse sido necessário realizar os tratamentos mencionados em 1.1.j), designadamente proceder à colocação de uma prótese fixa no maxilar superior, com exodontia de todos os dentes do maxilar, e restaurar outros na mandíbula;
f) Que o referido em 1.1.b), f) e g) tenha levado a A. a deixar de conviver com familiares e amigos e a prestar atenção ao seu filho menor;
g) Que a 1.ª R. tenha comunicado à A. a existência de um contrato de seguro celebrado com a 2.ª R.;
h) Que entre a A. e a 2.ª R. tenha havido negociações directas com vista à resolução do sinistro.

IV Conhecendo do recurso.

A- Julgamento da matéria de facto

Começa a recorrente por querer impugnar a decisão sobre matéria de facto.
Como é sabido, há regras apertadas para poder impugnar a decisão sobre matéria de facto.
Constam do art. 640º CPC os requisitos formais de admissibilidade do recurso sobre matéria de facto. Como escreve Abrantes Geraldes (Recursos, 2017, fls. 158):
“a rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve verificar-se em algumas das seguintes situações:
a) falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (arts. 635º, nº 4 e 641º, nº 2, al. b);
b) falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados (art. 640º, nº 1, al. a);
c) falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (vg. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc);
d) falta de indicação exacta, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e) falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação”.

No caso concreto, a recorrente indica de forma clara quais os pontos de facto que considera mal julgados e quais as respostas que entende que o Tribunal deveria ter dado aos mesmos, e indica em concreto os meios de prova que em seu entender deveriam ter levado a decisão diversa.

Podemos pois conhecer desta parte do recurso.

A.1. Em primeiro lugar, a recorrente insurge-se contra as alíneas b) e c) dos factos provados, dizendo, em síntese, que reapreciado devidamente o depoimento da testemunha BB, reforçado pelo relatório de peritagem (pág. 3), junto com a Contestação da 2ª Ré quando refere “existência de sinalização de ‘Perigo – Piso escorregadio’, deverá a Douta Sentença Recorrida ser, nesta parte revogada, e substituída por outra que julgue como não provado que:
-A A. escorregou numa poça de água que ali existia, formada pelo gelo colocado no expositor de peixe para conservação deste e que derretera;
-No local referido em b) inexistia qualquer sinal de “Piso Escorregadio” ou barreira ou qualquer outro dispositivo que impedisse a aproximação dos clientes dos expositores do peixe ou alertasse para a existência de piso escorregadio;
No fundo, os factos que estão aqui em causa são os que constituem a essência do litígio: saber se os danos que sobrevieram à autora podem ser assacados a conduta culposa da primeira ré. Que é o mesmo que perguntar por que razão a autora caiu enquanto estava em frente à peixaria no estabelecimento comercial da primeira ré.
Antes de passar à solução importa referir um princípio fundamental do direito probatório, que é o da livre apreciação da prova, e que se revela essencial também no caso destes autos.
O art. 607º,4 CPC estabelece que “na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência”.
E o nº 5 acrescenta que “o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”.
Em anotação a este artigo, escreve Lebre de Freitas (CPC anotado, 3ª edição): “o princípio da livre apreciação da prova situa-se na linha lógica dos princípios da imediação, oralidade e concentração (ver o nº 2 da anotação ao art. 604º): é porque há imediação, oralidade e concentração que ao julgador cabe, depois da prova produzida, tirar as suas conclusões, em conformidade com as impressões recém-colhidas e com a convicção de que, através delas, se foi gerando no seu espírito, de acordo com as máximas da experiência aplicáveis”.
De seguida o mesmo autor faz uma breve nótula sobre a evolução histórica do princípio da livre apreciação.
Seguidamente acrescenta que estão sujeitas à livre apreciação do julgador a prova testemunhal (art. 396º CC), a prova por inspecção (art. 391º CC), a prova pericial (art. 389º CC), e a prova por declarações de parte (art. 466º,3 CPC)”.
Ora, quando temos duas versões diferentes sobre a mesma realidade, por definição, sabemos que uma delas é falsa e alguém está a mentir. Quando assim é, a experiência judiciária demonstra-nos que primeiro devemos olhar para as declarações em confronto e tentar detectar se alguma merece mais credibilidade que a outra, pela forma como foi prestada, e pela sua coerência interna. Nessa tarefa, as Relações deparam-se com uma dificuldade suplementar, mas que é ultrapassável: é que “a gravação dos depoimentos por registo áudio ou por meio que permita a fixação da imagem (video) nem sempre consegue traduzir tudo quanto pôde ser observado no Tribunal a quo. Como a experiência o demonstra frequentemente, tanto ou mais importante que o conteúdo das declarações é o modo como são prestadas, as hesitações que as acompanham, as reacções perante as objecções postas, a excessiva firmeza ou o compreensível enfraquecimento da memória, sendo que a mera gravação dos depoimentos não permite o mesmo grau de percepção das referidas reacções que porventura influenciaram o juiz da 1ª instância. Na verdade existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas são percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção do julgador[1].
Ou seja, o registo audio da prova não permite captar na totalidade aquilo que a Psicologia designa de “comunicação não-verbal”. E para um juiz que tem perante si relatos divergentes sobre os mesmos factos essenciais, essa comunicação não-verbal assume uma importância determinante na conclusão final sobre a veracidade dos depoimentos.
Assim, a priori, numa situação destas, um recurso da decisão sobre matéria de facto assente apenas no entendimento do recorrente, necessariamente divergente do entendimento do Tribunal, estará na esmagadora maioria dos casos votado ao fracasso.
Só assim não será se da análise da decisão e sua fundamentação se verificar a existência de algum erro manifesto, contradição, ou alguma incoerência ou implausibilidade, que coloque sérias dúvidas sobre a justeza da decisão, ou se for manifesto que, das duas versões testemunhais apresentadas perante o Tribunal, aquela na qual este se apoiou para julgar a matéria de facto for notoriamente menos credível que a outra, que o Tribunal a quo desvalorizou.
Tendo presente estas regras básicas, vejamos se é possível discernir algum erro na decisão da matéria de facto.

A sentença recorrida fundamentou assim a decisão:
Que a A. no dia ../../2021, pelas 14H45, se encontrava na secção da peixaria do supermercado EMP04... situado na Rua ..., em ..., ..., propriedade da 1.ª R., e que ao virar-se do expositor do peixe caiu, embatendo com o queixo no solo, resultou desde logo do depoimento das testemunhas BB e CC, ambas funcionárias da 1.ª R., a primeira da secção da peixaria e a segunda da secção da charcutaria (que se situa ao lado da peixaria) e que presenciaram a queda.
Esta foi, aliás, a única medida em que o depoimento destas testemunhas foi valorado.
Tudo o mais por elas afirmado foi desvalorizado, não só por inverosímeis mas também porque contraditórias entre elas, sendo certo que relativamente à testemunha CC foi mesmo extraída certidão para instauração de procedimento criminal por se indiciar a comissão, por esta testemunha, de um crime de falsidade de testemunho p. e p. pelo art. 360.º/1 e 3 CP.
Vejamos:
Quanto a existência da poça de água formada pelo gelo colocado no expositor do peixe que derretera e que levara a que a A. nela escorregasse, foi negado por ambas que tal acontecesse, tendo quer a BB, quer a CC declarado que o chão, naquela zona, se encontrava seco.
Crê-se ser do conhecimento geral que o chão junto aos expositores de peixe das peixarias se encontra frequentemente molhado em virtude do derretimento do gelo colocado nos expositores para preservação do peixe. Não se afigura, por isso, minimamente consentâneo com a normalidade do acontecer que o chão se encontrasse seco, como afirmado pelas referidas testemunhas.
Aliás, contraditoriamente, a mesma CC afirmara ao perito averiguador que a entrevistou poucas semanas após o sinistro que o chão na peixaria junto ao expositor de peixe estava molhado devido ao gelo, o que a própria fez consignar em declaração que assinou, declaração essa junta aos autos em 18.05.2023 e que se encontra a fls. 159. Por outro lado, a BB afirmou encontrar-se colocado no chão junto à peixaria, do lado esquerdo, um sinal de “Piso Escorregadio.” Se o chão estava seco, não se percebe porque motivo haveria necessidade de colocar no local o referido sinal.
Para adensar ainda mais a contradição, a CC declarou não ter a certeza se estaria colocada a referida sinaléctica (ainda que quando prestou declarações ao perito averiguador tenha declarado que o sinal estava colocado do lado da charcutaria, tendo sido mudado para junto da banca do peixe após a queda) mas se existisse estaria do lado esquerdo da charcutaria (lado direito da peixaria – oposto ao lado indicado pela BB).
Ora, o filho da A., a testemunha DD, e que acompanhava a mãe no dia, foi peremptório ao afirmar que o chão estava molhado – o que, como acima mencionado, vai de encontro aquilo que é a normalidade do acontecer neste género de secção de um supermercado.
No que tange à inexistência, na peixaria, de qualquer sinal de “Piso Escorregadio” ou barreira ou qualquer outro dispositivo que impedisse a aproximação dos clientes dos expositores do peixe ou que alertasse para a existência de piso escorregadio, diga-se que, como acima mencionado, (e quanto à colocação de um sinal de “Piso Escorregadio”) apenas uma testemunha afirmou existir esse sinal ali colocado aquando da queda, colocação essa que teria sido efectuada do lado esquerdo da peixaria. Como já referido, a testemunha CC, quando prestou declarações ao perito averiguador, afirmou que o sinal estava do lado da charcutaria (lado direito da peixaria), tendo sido mudado para junto da banca do peixe após a queda. É manifesta a contradição existentes entre estas declarações.
O Tribunal ficou convicto que as funcionárias da 1.ª R. que depuseram fizeram-no afirmando algo que desconheciam ou faltando conscientemente à verdade, com o fito de beneficiarem a sua entidade patronal – e daí que os respectivos depoimentos não fossem valorados quando não corroborados por outros meios de prova.
Uma dessas situações foi a da afirmação, pelas testemunhas BB e EE, de que junto à peixaria existiria uma faixa colada no chão que proibiria a sua transposição, por forma a manter o distanciamento dos clientes dos expositores do peixe. Segundo a EE, depois da queda a faixa em causa foi retirada e foi colocada uma corrente em sua substituição.
As fotografias juntas ao relatório de averiguação junto pela 2.ª R. com a sua contestação não retratam qualquer faixa – e essas fotografias foram tiradas em dois dias diferentes, como relatado pelo perito averiguador, a testemunha FF, a saber nos dias 15.06.2021 e 23.06.2021 (ou seja, 15 dias após o sinistro, as primeiras; 3 semanas depois da queda, as segundas). Nas 1.ª, 2.ª, 3.ª  4.ª fotografias (fls. 49v, 50, 50v e 51) - tiradas no dia 15.06.2021 - não é visível nem essa alegada faixa nem a corrente (a corrente apenas é visível a 6.ª fotografia, a fls. 52, tirada no dia 23.06.2021).
Quando confrontada a testemunha EE sobre a inexistência quer da faixa, quer da corrente nas primeiras quatro fotografias (imagens que contrariam a sua afirmação), não conseguiu dar qualquer explicação para essas ausências.
A EE afirmara ainda que a sinaléctica do piso escorregadio era colocada do lado esquerdo da peixaria (lado de onde teria provindo a A). Porém, na fotografia de fls. 52 (a 6.ª fotografia anexa ao relatório de averiguação) o sinal em causa encontra-se colocado do lado direito, o que infirma a declaração da EE. A testemunha também foi confrontada com esta contradição e mais uma vez não logrou dar qualquer explicação.
Não deixará ainda de se acrescentar que segundo o perito averiguador se porventura à data da queda existisse no solo uma faixa autocolante delimitadora do acesso dos clientes às bancadas expositoras do peixe essa faixa autocolante, ainda que tivesse sido retirada, teria deixado marcas no chão, até porque foi pouco tempo depois do sinistro que ele, perito, se deslocou ao supermercado – e não existiam quaisquer marcas aquando da sua deslocação ao local.
Ficou, assim, o Tribunal convicto que ao contrário do que as testemunhas BB e EE afirmaram em juízo, inexistia qualquer faixa autocolante colocada no chão delimitadora de uma zona da peixaria não acessível a clientes.
Acresce que se lê no relatório de averiguação junto pela 2.ª R. com a sua contestação que “Na sequência da ocorrência do sinistro foram implementadas novas medidas de segurança, com vista a serem evitadas quedas junto à banca do peixe, constatando-se a colocação de um cadeado impedindo a aproximação da banca do peixe, local onde o piso, com alguma frequência, encontra-se húmido atendendo ao gelo existente na banca.” Se após a queda da A. foram implementadas novas medidas de segurança, com a colocação de um “cadeado” (pelas fotografias que integram o relatório de averiguação constata-se que o perito denomina “cadeado” uma corrente apoiada em dois suportes verticais) é porque as mesmas não existiam no dia ../../2021.
O Tribunal não atribuiu, assim, qualquer credibilidade aos testemunhos das funcionárias da 1.ª R. no que se refere à existência de qualquer sinaléctica, barreira ou outro dispositivo que que impedisse a aproximação dos clientes dos expositores do peixe ou alertasse para a existência de piso escorregadio.
Por outro lado, o filho da A. negou a existência desse sinaléctica, o que, dado o contexto, merece credibilidade.
Por estes motivos foi dada como assente a factualidade elencada em 1.1.a), b) e c) – e como não assente o facto elencado em 1.2.a).
Quanto ao facto consignado em 1.1.d), não só nenhuma das testemunhas afirmou que o pavimento do chão da peixaria era antiderrapante como facilmente se retira das fotografias anexas ao relatório de averiguação junto pela 2.ª R. com a sua contestação que assim não era”.
Ora, depois de ter procedido à audição de toda a prova testemunhal produzida na audiência, e consultado os documentos juntos aos autos, sobretudo as fotografias do local do sinistro, esta Relação está em condições de afirmar que a decisão recorrida não apresenta qualquer erro, lapso, ou vício de raciocínio.
A decisão em causa é, aliás, um bom exemplo do que é o exercício em concreto da livre apreciação da prova. Não é pelo facto de duas testemunhas terem relatado um determinado facto, de uma determinada forma, que esse facto tem de, acriticamente, ser dado como provado. Há várias circunstâncias que podem obstar a que assim seja: erro de percepção das testemunhas, falta de isenção das mesmas, proximidade das mesmas a uma das partes em litígio, contradição entre depoimentos ou entre esses depoimentos e outros meios de prova produzidos, implausibilidade dos factos narrados face às leis da natureza ou às regras do senso comum, etc.
E no caso concreto só podemos concordar integralmente com a sentença recorrida, ao ter dado como provadas as circunstâncias da queda da autora, por ter escorregado no chão molhado junto ao expositor do peixe, bem como quanto à inexistência de qualquer sinal de “Piso Escorregadio” ou barreira ou qualquer outro dispositivo que impedisse a aproximação dos clientes dos expositores do peixe. E como quando a decisão recorrida está correcta e bem fundamentada a Relação não precisa nem deve procurar outros raciocínios ou vias alternativas para chegar à mesma conclusão, damos aqui por reproduzida a fundamentação supratranscrita.
Quanto às razões pelas quais o depoimento das testemunhas BB e CC não mereceu credibilidade, quando desacompanhado de outros meios de prova adjuvantes, podemos ainda acrescentar que BB começou logo o seu depoimento a referir, sem lhe ser perguntado directamente, que havia um autocolante no chão, e um sinal amarelo a dizer pavimento escorregadio. Só depois de deixar essa referência é que avançou para descrever o que se passou com a autora, o que, quanto a nós é revelador, pois pensamos que o normal seria primeiro descrever a queda da autora, para só depois, quanto perguntada, elaborar sobre as causas. Depois avançou para dizer que lhe deu a sensação que a autora tropeçou no seu próprio pé e foi de cabeça ao chão. Também aqui não podemos deixar de estranhar o processo mental da testemunha, pois quando uma cliente cai num sítio onde habitualmente o piso está molhado e escorregadio, a testemunha, em vez de atribuir a queda a esse facto, vai antes buscar uma explicação, não impossível, mas implausível, como a de tropeçar no próprio pé.
Mais declarou que foi logo socorrer a autora, mas também aqui encaixou no seu discurso, de forma pouco natural e muito forçada, o segmento “olhei para o chão, estava seco, seco, seco”. E, segundo ela, de imediato disse para a autora: “mas a senhora escorregou sozinha, o chão está seco. E ela virou-se para mim e disse: eu sei menina que o chão está seco, e que caí sozinha”.
Outra notável declaração. Perante uma cliente que caiu e se magoou com alguma severidade, até com sangue a sair-lhe da boca e a ver-se na própria máscara, as palavras que a testemunha lhe dirigiu não foram de preocupação, ou de apoio, mas sim para lhe dizer que tinha escorregado sozinha num chão seco.
Depois, no resto do seu depoimento disse pelo menos mais 3 vezes que a autora tropeçou no seu próprio pé, disse várias vezes que o chão estava seco, e que a autora lhe disse que escorregou sozinha. Até que chegou o momento fatal, que foi quando lhe foi perguntado: “então se o chão estava seco, por que razão estava lá um sinal que dizia piso escorregadio ?” E daqui já não houve saída, pelo menos airosa.
            Quanto ao depoimento de CC, o Tribunal recorrido explicou integralmente as razões da falta de credibilidade, as quais levaram mesmo à extracção de certidão por indícios da prática de crime de falso depoimento. Não é necessário acrescentar mais.

Quanto a ter sido dado como provado que o piso no local referido em b) não consubstancia pavimento antiderrapante, também não vemos onde esteja o erro. O Tribunal recorrido explica que “não só nenhuma das testemunhas afirmou que o pavimento do chão da peixaria era antiderrapante, como facilmente se retira das fotografias anexas ao relatório de averiguação junto pela 2.ª R. com a sua contestação que assim não era”. Ora, apesar de as fotografias (ou pelo menos a sua impressão no papel) estarem longe de poderem ser consideradas fotografias de alta resolução, pelo menos permitem ver que o chão naquela zona é exactamente o mesmo que nas zonas contíguas, sem se notar qualquer diferença no tipo de pavimento, na cor, no tipo de mosaicos, na aparência, etc. Por isso, das duas uma: ou todo o piso visível do estabelecimento era antiderrapante, o que não faz grande sentido, ou não o era de todo, inclusive na zona em frente à peixaria. E podemos ainda acrescentar que existe ainda uma outra razão, simplória mas convincente, para considerar que o piso no local referido em b) não consubstancia pavimento antiderrapante: é que a autora ali derrapou.
Em conclusão, estes factos estão bem julgados, e a decisão devidamente fundamentada. Improcede esta parte do recurso.

A.2. De seguida, a recorrente discorda do facto provado constante da alínea f), segundo o qual “na sequência da queda referida em b) as peças dentárias 13, 12, 11 e 24 do maxilar superior encontravam-se fracturadas e apresentavam espessamento do ligamento periodontal e consequente mobilidade, susceptível de reversão; na mandíbula, as peças dentárias 44, 43 e 34 apresentavam espessamento do ligamento periodontal, susceptível de reversão”.
E argumenta, em síntese, que a prova documental apresentada infirma esse facto.
Vejamos. O Tribunal recorrido explicou que para julgar provados os factos constantes de 1.1.f), teve em conta o documento n.º ... anexo à p.i. a fls. 7v).
Ora, esse documento diz, em resumo, aquilo que o Tribunal deu como provado: atesta que a autora sofreu danos graves na cavidade oral decorrente da queda. Que as peças dentárias 13, 12, 11 e 24 no maxilar superior encontram-se com espessamento do ligamento periodontal e consequente mobilidade, estão fracturadas, e recomenda a sua substituição por implantes dentários. Na mandíbula as peças dentárias 44 e 43 e 34 foram igualmente afectadas, com espessamento do ligamento periodontal, mas apenas carece de observação clínica pois pode ser reversível.
E assim, não se percebe a afirmação da recorrente segundo a qual a prova documental apresentada infirma o facto provado f).
Claro que existe outro documento, o junto com a contestação da ré EMP03..., que configura um plano de tratamento da autora, com data de 8.7.2021 (logo, cerca de 1 mês após o sinistro), mas esse documento apenas nos diz o valor dos tratamentos propostos para resolver esse problema decorrente do sinistro.
E esse facto, o valor dos tratamentos, consta da alínea k) dos factos provados, e essa não se mostra impugnada no recurso. De qualquer forma, podemos ainda registar que o Tribunal recorrido analisou minuciosamente a prova documental apresentada, e escreveu na fundamentação o seguinte: “quanto à prova do facto constante de 1.1.k) dir-se-á ainda o seguinte: Para demonstração do por si alegado na p.i. quanto a natureza dos tratamentos dentários a fazer para cura das lesões/sequelas provocadas pela queda a A. juntou com a p.i. como doc. n.º ..., a fls. 11v, um plano de tratamento em que é proposta a exodontia de todos os dentes do maxilar superior e colocação de prótese fixa; como docs. n.os ... e ... juntou recibos de consultas de medicina dentária. Acontece que o doc. n.º ... junto com a p.i. tem data anterior à queda, o que indicia que a A. já tinha problemas dentários antes do sinistro. Também no doc. n.º ... junto pela A. com o requerimento de 08.10.2022 e que se encontra a fls. 80v – e que não se encontra datado – se lê “No entanto ainda estamos em tratamento uma vez que existem ainda alguns tratamentos pendentes, nomeadamente a colocação do implante com coroa do 46 uma vez que fizemos a exodontia do 47 perdido por fratura.” Ora, os dentes 46 e 47 não foram mencionados no relatório médico doc. n.º ... anexo à p.i. a fls. 7v como tendo sido por qualquer forma afectados com a queda. Já o doc. junto pela 2.ª R.  com a sua contestação (que se encontra a fls. 42) e com base no qual o tribunal deu como assente a factualidade constante de 1.1.k) e l) consubstancia um plano de tratamento  datado de 08.07.2021 – portanto, posterior à queda – com um número de série posterior  ao do doc. n.º ... junto com a p.i., a fls. 11v e que pese embora não assinado se encontra redigido no mesmo papel timbrado que o do referido doc. n.º ... e onde estão expressamente mencionados os dentes que ficaram lesados com a queda. Esse documento refere tratamentos distintos daqueles que constam do doc. n.º ... junto com a pi e com valor bem diferente. Por outro lado, no relatório de averiguação junto pela 2.ª R. com a contestação e que se encontra a fls. 44ss ficou consignado que a A. em data anterior ao sinistro já havia feito uma restauração do dente 13 e que houve uma sensibilização para a reabilitação do 3.º quadrante (mandíbula esquerda) por forma a não perder as peças dentárias do 2.º quadrante (maxilar superior esquerdo) – sinal inequívoco de que a A. já padecia de sérios problemas dentários em data anterior ao sinistro. Dentes do 3.º quadrante são, nomeadamente, os dentes 35 e 36, referidos no doc. n.º ... a fls. 11v, o qual, como já referido, tem data bem anterior à da ocorrência do sinistro em discussão nos autos. Ante a conjugação destes elementos probatórios, o Tribunal deu como assente a factualidade elencada em 1.1.k) e l) e como não assente o facto elencado em 1.2.e)”.

Improcede também esta parte do recurso.

A matéria de facto mantém-se pois, intocada.

B- Julgamento da matéria de direito

Aqui chegados, a questão a apreciar é a da ilegitimidade da ré EMP03....
Recordemos que o Tribunal recorrido julgou a excepção de ilegitimidade arguida pela ré EMP03... procedente, e absolveu esta da instância.
A recorrente não concorda com esta decisão.
Afirma, em síntese, que dos factos julgados provados resulta expressamente que a autora foi inquirida por perito averiguador contratado pela 2.ª ré, facto do qual se extrai que a 1.ª ré comunicou à autora a existência do contrato de seguro, bem como a circunstância de a 2.ª ré ter contactado a autora para efeitos de averiguação do sinistro. Daí que, afirma a recorrente, ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo violou o disposto no art. 140º,3 do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo Decreto Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril.

Vejamos.

O referido artigo 140º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (RJCS) dispõe, na parte que agora interessa, o seguinte:
(…)
2- O contrato de seguro pode prever o direito de o lesado demandar directamente o segurador, isoladamente ou em conjunto com o segurado. (…)
3- O direito de o lesado demandar directamente o segurador verifica-se ainda quando o segurado o tenha informado da existência de um contrato de seguro com o consequente início de negociações directas entre o lesado e o segurador.
Da leitura do nº 3 pode concluir-se que para a Seguradora ter legitimidade passiva para ser logo demandada numa acção de responsabilidade civil por factos ilícitos é necessário que se verifiquem dois requisitos: a) que o lesante tenha informado o lesado da existência do contrato de seguro; b) que na sequência dessa informação se tenham iniciado negociações directas entre o lesado e o segurador.
No âmbito do RJCS, o seguro de responsabilidade civil pode ser classificado como:
a) seguro facultativo, quando a sua celebração deriva exclusivamente da autonomia das partes e a que são aplicáveis as disposições relativas ao regime comum do seguro de responsabilidade civil (arts. 137º a 145º); deve também considerar-se seguro facultativo o que exceda, e na medida em que o faça, o seguro obrigatório;
b) seguro obrigatório – quando resulta de obrigatoriedade prevista em disposição legal ou regulamentar, a que se aplicam, para além dos regimes das espécies contratuais que dele disponham, os arts. 146º a 148º.
No seguro obrigatório mostra-se expressamente consagrada a possibilidade de acção directa do lesado contra a seguradora, estatuindo o art. 146º que o “lesado tem o direito de exigir o pagamento da indemnização directamente ao segurador”. Solução óbvia, pois a obrigatoriedade do seguro visa justamente proteger os lesados da possível insolvência do lesante.
Já quanto ao seguro de responsabilidade civil facultativo não espanta que a solução seja diversa.

Começando por indagar da intenção do legislador, escreveu-se no preâmbulo do RJCS: “No seguro de responsabilidade civil voluntário, em determinadas situações, o lesado pode demandar directamente o segurador, sendo esse direito reconhecido ao lesado nos seguros obrigatórios de responsabilidade civil. Por isso, a possibilidade de o lesado demandar directamente o segurador depende de se tratar de seguro de responsabilidade civil obrigatório ou facultativo. No primeiro caso, a regra é a de se atribuir esse direito ao lesado, pois a obrigatoriedade do seguro é estabelecida nas leis com a finalidade de proteger o lesado. No seguro facultativo, preserva-se o princípio da relatividade dos contratos, dispondo que o terceiro lesado não pode, por via de regra, exigir a indemnização ao segurador.”
Em anotação ao art. 140º citado (Lei do Contrato de Seguro anotada, de Pedro Romano Martinez e outros), escreve José Vasques: “a admissibilidade da acção directa no âmbito do contrato de seguro é matéria longamente discutida; a formulação adoptada insere-se na tendência generalizada da sua consagração num contexto de maior protecção dos lesados; essa tendência foi materializada, primeiro na acção sub-rogatória ou oblíqua (CC, arts. 606º e ss) – na qual, porém, além de não exercer um direito próprio, o lesado se apresentava a concorrer com outros credores do responsável- na acção pauliana (CC, arts. 610º e ss), ou por enriquecimento sem causa (CC, arts. 473º e ss), e  no contrato a favor de terceiro, através do qual o lesado adquiriria o direito à prestação (CC, art. 444º, nº 1; Ac. do STJ de 3 de Março de 1989, BMJ, 385 (1989), pág. 563: o contrato de seguro de responsabilidade civil é um contrato a favor de terceiro, e assim o segurador ao celebrar este acto jurídico, obriga-se também para com o lesado a satisfazer a indemnização devida pelo segurado, ficando assim aquele com o direito de demandar directamente a seguradora, ou o segurado, ou ambos, em litisconsórcio voluntário), e no facto de o crédito da vítima de um facto que implique responsabilidade civil ter privilégio sobre a indemnização devida pelo segurador da responsabilidade em que o lesante haja incorrido (CC, art. 741º), não se liberando o segurador pelo pagamento  ao segurado (CC, art. 692º, nº 2, ex 753º).
Ainda quando inexista previsão contratual da acção directa, a lei admite que o lesado possa demandar directamente o segurador quando ocorram cumulativamente os seguintes requisitos: que o segurado tenha informado o lesado da existência de um contrato de seguro, e que o segurador com ele tenha iniciado negociações directas – admitir que a mera informação da existência do contrato de seguro conferiria ao lesado o direito de demandar directamente o segurador corresponderia a inutilizar o nº 2 do artigo, pelo que, além da referida informação, é necessário que se tenham iniciado negociações directas entre o lesado e o segurador, o que, em nenhum caso, poderá equivaler à mera apresentação de reclamação do lesado perante o segurador com a consequente resposta deste”.
A sentença recorrida começa por referir que a autora afirmou que lhe foi dado conhecimento, pela 1.ª Ré da existência do contrato de seguro e esteve desde o início em negociações directas com a 2.ª demandada, sem que a EMP02... tivesse tido qualquer tipo de intervenção nessas negociações. E os factos dados como assentes são apenas os que acabámos de elencar. Afirma-se na sentença recorrida que “não só não ficou provado que a 1.ª R. tenha comunicado à A. a existência do contrato de seguro (cfr. supra 1.2.g)) como a circunstância de a 2.ª R. ter contactado a A. para efeitos de averiguação do sinistro e a final remetido-lhe a carta que se encontra junta com a p.i., s.m.o., não consubstancia “negociações directas” entre A. e 2.ª R. com vista à solução do litígio, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 140.º/3 RJCS”. E cita o Acórdão do TRL de 17.02.2022, relatado pelo Des. Adeodato Brotas e acessível em www.dgsi.pt: “As negociações a que se refere o preceito, consistirão na intervenção do lesado, admitida pela seguradora, que o tem como interlocutor, no processo de regularização do sinistro, mediante troca de argumentos e eventual fornecimento de informações, com vista à regularização extrajudicial do sinistro. Assim, se após a participação (do sinistro) o segurador verificar que os factos participados não se enquadram nas condições do contrato e rejeita liminarmente o sinistro, não pode falar-se em início de negociações. Mas se o segurador inicia a fase de instrução do sinistro, realizando perícia nos bens lesados e contacta o lesado para o efeito; e se, posteriormente, lhe comunica a recusa de sinistro e, perante a “reclamação” do lesado “reanalisa” o processo com vista a decidir sobre a recusa do sinistro ou o pagamento de indemnização, temos de convir que houve negociações, isto é, houve participação do lesado no processo de regularização do sinistro”.
Para depois concluir: “no caso dos autos terá sido precisamente isto que sucedeu: após a participação do sinistro a 2.ª R. procedeu à aferição do enquadramento dos factos participados nas condições do contrato e rejeitou esse enquadramento, comunicando-o de imediato à A.. Não houve, pois “negociações”.

Quid iuris?

Vamos começar por atender ao que foi alegado nos articulados, sobre esta matéria:
Na petição inicial a autora alegou que “a primeira Ré transferiu a responsabilidade civil para a segunda mediante celebração de contrato de seguros com a apólice n.º ...38, tendo este sinistro sido participado e dado origem ao número de processo de sinistro 21RC001713, o qual foi recusado, conforme doc. n.º .... A Ré seguradora alega que se tratou de um acidente pessoal pois junto ao local da ocorrência encontrava-se uma sinalética indicando «Perigo de Piso Escorregadio», o que não corresponde à verdade conforme o supra alegado”.
Na contestação, a ré EMP03... alegou que “após a participação do acidente objecto dos presentes autos, providenciou pela averiguação do mesmo, para apuramento das causas e circunstâncias do sinistro e, também, dos danos decorrentes do mesmo,
ocorridos na A..
E na contestação da ré EMP02... alega-se que “a Ré à data do acidente tinha um contrato de seguro de responsabilidade civil de exploração, com a aqui 2.ª Ré EMP03..., tendo de imediato feito a participação, bem como diligenciado no sentido de fornecer todos os dados para averiguação das causas do acidente. Tendo aquela 2.º Ré, após inquérito concluído pela inexistência de qualquer responsabilidade da segurada, conforme documento número ..., junto com a Petição Inicial.
Provou-se que a autora foi inquirida por perito averiguador contratado pela seguradora para efectuar a averiguação do sinistro no âmbito destes autos, e que por carta datada de 29.06.2021 a Seguradora comunicou à autora que recusava o sinistro, por entender não se encontrar demonstrada a responsabilidade civil da 1.ª R.
A título de enquadramento da questão e dos seus antecedentes, vamos aqui começar por citar o que se decidiu no acórdão desta Relação de 27.2.2020 (Relatora: Margarida Almeida Fernandes) e que o presente Relator subscreveu como 2º Adjunto: “com efeito, antes deste diploma o contrato de seguro encontrava-se regulado nos artº 425° a 431º do Código Comercial e destas normas ou de outras relacionadas com aquele contrato (excepto no regime jurídico do seguro obrigatório automóvel e acidentes de trabalho) não resultava que fosse possível a demanda directa da seguradora pelo lesado e a correspondente responsabilização daquela perante este. Contudo, jurisprudência e doutrina estavam divididas. Uns referiam que a seguradora, sendo titular da relação de seguro, relação essa conexa com a relação material controvertida, apenas podia intervir na acção através do incidente de intervenção acessória. Entre a lesante e a seguradora não existe um litisconsórcio necessário ou voluntário. Outros defendiam que, em relação ao objecto da causa, havia que ponderar as vinculações decorrentes do contrato de seguro com vista a apurar se a seguradora tinha uma posição igual à do demando lesante. Assim, no caso de seguro obrigatório o lesado tem a expectativa de beneficiar do direito de crédito e da garantia nele contida, ainda que não faça parte daquele contrato. No caso de seguro facultativo o lesado pode receber da seguradora do lesante a prestação devida invocando-se nesta sede que o contrato de seguro é um contrato a favor de terceiro, ainda que impróprio uma vez que o lesado não adquire um crédito autónomo. Com esta argumentação defendem que entre lesante e seguradora existe um litisconsórcio voluntário pelo que o demando tinha o direito de fazer intervir, a título principal, a sua seguradora. Neste sentido, na doutrina, entre outros, vide José Vasques, in Contrato de Seguro, Coimbra Ed., p. 258-259. Na jurisprudência, entre outros, Ac. da R.L. de 07/11/2006 (Maria do Rosário Morgado) e R.P. de 06/07/2009 (Maria Adelaide Domingues), in www.dgsi.pt.
No RJCS pretendeu-se pôr fim a tais divergências.
Lê-se no seu preâmbulo: “No seguro de responsabilidade civil voluntário, em determinadas situações, o lesado pode demandar directamente o segurador, sendo esse direito reconhecido ao lesado nos seguros obrigatórios de responsabilidade civil. Por isso, a possibilidade de o lesado demandar directamente o segurador depende de se tratar de seguro de responsabilidade civil obrigatório ou facultativo. No primeiro caso, a regra é a de se atribuir esse direito ao lesado, pois a obrigatoriedade do seguro é estabelecida nas leis com a finalidade de proteger o lesado. No seguro facultativo, preserva-se o princípio da relatividade dos contratos, dispondo que o terceiro lesado não pode, por via de regra, exigir a indemnização ao segurador.”
Assim, nos termos do art. 146º nº 1 no seguro obrigatório é admissível a acção directa contra a seguradora.
E, no caso do seguro facultativo consagrou-se a impossibilidade de demandar directamente a seguradora, excepto nos casos previstos no art. 140º nº 2 e 3 deste diploma, a saber, quando o contrato prevê o “direito do lesado demandar directamente a segurador, isoladamente ou em conjunto com o segurado”, e “quando o segurado tenha informado o lesado da existência do contrato de seguro com o consequente início de negociações directas entre lesado e segurador”.
A questão agora passa por saber como interpretar a formulação legal, pois, como sempre, não é linear a forma de subsumir cada situação concreta ao conceito abstracto legal.
Recordando o que diz José Vasques: “admitir que a mera informação da existência do contrato de seguro conferiria ao lesado o direito de demandar directamente o segurador corresponderia a inutilizar o nº 2 do artigo, pelo que além da referida informação, é necessário que se tenham iniciado negociações entre o lesado e o segurador, o que, em nenhum caso, poderá equivaler à mera apresentação de reclamação do lesado perante o segurador com a consequente resposta deste”.
Parece-nos pertinente referir ainda as críticas que, com razão, são feitas a este regime legal por António Santos Abrantes Geraldes (O Novo Regime do Contrato de Seguro Antigas e Novas Questões, disponível em www.trl.mj.pt/PDF/REGIME.pdf):
A acção directa contra a seguradora encontra-se expressamente prevista para o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel ou para o seguro de acidentes de trabalho. O novo regime veio adoptar essa mesma solução para todos os seguros obrigatórios (art. 146º, nº 1). Porém, no que concerne aos demais contratos de seguro, entre duas soluções que, em abstracto, seriam possíveis, o legislador consagrou aquela que suscita maiores dificuldades aos interessados, sem que se percebam as verdadeiras vantagens que derivam do regime consagrado. (…) Em face do regime anterior, não estava prevista, em geral, a acção directa contra as seguradoras. Apesar disso, eram frequentes as situações de demanda directa das seguradoras (ou em regime de litisconsórcio voluntário com o segurado), solução que a jurisprudência e parte da doutrina sustentava na figura do contrato a favor de terceiro (art. 444º, nº 2, do CC). (…) Posto que a solução não fosse inteiramente pacífica, eram pouco frequentes as questões que, na prática, se suscitavam a respeito da legitimidade passiva das seguradoras, pelo que seria de esperar que o novo regime acabasse por consagrar a solução que a prática já revelava ser a mais ajustada à realidade. Com tal solução seriam acolhidos em simultâneo diversos interesses:
-Dos lesados que confrontariam logo seguradoras cuja solvabilidade lhes permite responder pelos danos causados;
-Dos segurados ou dos tomadores dos seguros que seriam substituídos (em casos de demanda exclusiva da seguradora) ou acompanhados (em caso de demanda litisconsorcial) pela respectiva seguradora, ficando, assim, imediata e substancialmente aliviados da carga de responsabilidade decorrente do sinistro e do ónus que implica a defesa judicial;
-Também das próprias seguradoras que, desta forma, poderiam assumir logo a direcção do litígio, na medida em que muito frequentemente estão em melhor posição no que concerne ao exercício de uma efectiva defesa quanto a pretensões fraudulentas, injustificadas ou excessivas.
É claro que em qualquer dos casos ficaria sempre acautelada a possibilidade de, através dos instrumentos processuais adequados, como a intervenção principal (também prevista no seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel), chamar ao processo o segurado ou o tomador do seguro, tendo em vista superar eventuais dificuldades no exercício do direito de defesa, designadamente em situações de falta de participação ou de dúvidas quanto ao sinistro.
(…) A solução legal ficou a meio caminho e, além disso, é excessivamente complexa.
Embora se admita a intervenção da seguradora em qualquer processo judicial em que se discuta a obrigação de indemnizar cujo risco assumiu (art. 140º, nº 1), a sua demanda directa fica, em princípio, dependente da existência de previsão contratual ou do início de negociações estabelecidas com o lesado, factor que é necessariamente posterior à ocorrência do sinistro que deveria servir para fixar o pressuposto processual da legitimidade passiva. Não creio que, em termos substantivos ou em termos processuais, tenha sido adoptada a melhor opção, ficando por clarificar qual é efectivamente a posição jurídica da seguradora em face da relação material controvertida. Admite-se expressamente a responsabilidade directa da seguradora, quer individualmente, quer em regime de litisconsórcio com o segurado, nos casos em que o contrato o preveja ou em que se tenham iniciado negociações com o lesado, o que nos reconduz à figura da legitimidade a título de parte principal.
Além disso, pode intervir em qualquer processo judicial em que se discuta a obrigação de indemnização, o que nos reconduz à figura do assistente em relação ao segurado ou ao tomador, tendo tal intervenção como objectivo auxiliá-lo na sua defesa, nos termos do art. 335º do CPC, acautelando, por esta via, os interesses decorrentes da transferência do risco.
Mas, considerando que o segurado poderá exercer o direito de regresso se vier a ser reconhecida a sua responsabilidade pelo sinistro, a intervenção da seguradora pode ser alcançada através do incidente de intervenção acessória provocada, nos termos dos arts. 330º e segs. do CPC, permitindo estender-lhe, desde logo, os efeitos do caso julgado que se formar com a eventual sentença condenatória.
Neste caso, se a seguradora não tiver sido inicialmente demandada, v.g. por se ignorar a existência de contrato de seguro, o lesado ou mesmo o segurado pode requerer a sua intervenção principal provocada, nos termos dos arts. 325º e segs. do CPC.
Assim, para além das desvantagens da solução no que respeita ao direito substantivo, a opção pela excepcionalidade da acção directa conduz a um regime jurídico-processual escusadamente complexo, o que poderia ter sido facilmente ultrapassado se tivesse sido adoptada outra opção em que, como regra geral, se admitisse aquela acção directa contra a seguradora, com ou sem demanda do segurado, sem embargo da intervenção deste quando se revelasse necessário”.
Por outro lado, no Acórdão desta Relação de 29/10/2020 (António Figueiredo de Almeida), citando Margarida Lima Rego (Contrato de Seguro e Terceiros, Estudos de Direito Civil, Dissertação para doutoramento em direito privado na Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Agosto de 2008, //run.unl.pt/bitstream/10362/8402/3/MLR TD 2008.pdf, p. 533), “as partes num contrato de seguro de responsabilidade civil podem atribuir ao terceiro lesado uma pretensão contra o segurador, um direito de exigir-lhe o pagamento de uma indemnização pelos danos imputáveis ao segurado que se encontrem cobertos pelo seguro. Tratar-se-á, pois, de um contrato a favor de terceiro. Esta pretensão, fundada no contrato, só existe quando as partes assim estipularem”. Deste modo, “se todos os seguros de responsabilidade civil podem ser gizados como contratos a favor de terceiro, no sentido, desta feita, de que em todos podem as partes estipular a atribuição, ao terceiro lesado, de um direito de exigir ao segurador o cumprimento da sua obrigação de prestar, também poderão não o ser, pelo que essa qualificação terá de resultar da interpretação que se faça de cada contrato”.
Donde se conclui ali que nem todos os contratos de seguro de responsabilidade civil facultativo são contratos a favor de terceiro (Margarida Lima Rego, estudo citado, p. 534 e Ac. desta Relação de 17/12/2019 (relator Fernando Fernandes Freitas), in www.dgsi.pt).”
É importante referir igualmente que, sem surpresa, existe forte controvérsia jurisprudencial sobre esta questão (cfr. Acs do TRP de 31-01-2013, proc. 2499/10.8TBVCD-A.P1, de 14-03-2013, proc. 977/09.0TBMCN.P1, e de 14-11-2013, pº 1394/13.3TBMAI-A.P1; e do TRG de 09/07/2015, pº 4077/14, 01-10-2015, pº 345/13.0TBAMR-A.G1, de 19-11-2015, proc. 814/13.1TJVNF-A.G1, e de 19-10-2017, proc. 6101/15.3T8BRG.G1).
Mas uma primeira ideia que pensamos pode já ficar assente, respeitando o quadro legal positivo, é a de que a regra nos casos de contrato de seguro facultativo de responsabilidade civil é a da legitimidade passiva exclusiva do segurado, sendo excepcional a acção directa contra a Seguradora neste tipo de casos.

Será que o caso que nos ocupa é um desses casos excepcionais ?
Já vimos que na petição inicial a autora alegou a existência do contrato de seguro, tendo inclusivamente identificado a apólice pelo seu número. Porém, ao contrário do que à primeira vista pode parecer, daí não decorre que a 1ª ré tenha comunicado à autora a existência de um contrato de seguro celebrado com a 2ª ré; tal facto, aliás resultou não provado.
Resta presumir que a autora soube do contrato de seguro por outra fonte (por exemplo, a autora pode ter sabido do contrato de seguro ao ser contactada pelo averiguador contratado pela Seguradora).
O segundo requisito exigido por lei envolve o conceito de “início de negociações”. Tudo se resume, pois, a saber se no caso destes autos se chegaram a iniciar negociações directas entre a autora e a ré EMP03....
Os únicos factos provados são estes: a autora foi inquirida por perito averiguador contratado pela 2.ª ré para efectuar a averiguação do sinistro no âmbito destes autos, e por carta datada de 29.06.2021 a 2.ª Ré comunicou à Autora que recusava o sinistro, por entender não se encontrar demonstrada a responsabilidade civil da 1.ª Ré.
Sobre a forma como densificar este conceito de “início das negociações”, vamos aqui reproduzir, com total concordância, o que se escreve no voto de vencido do Desembargador José Amaral, proferido no Acórdão desta Relação de 14.6.2018:
“In casu, só aquela hipótese (início de negociações directas) é aqui discutível em face do objecto do recurso.
Ora, não foi alegado, pelas autoras, que tenham reclamado à ré seguradora a indemnização em pecúnia, muito menos por restauração natural, nem que esta tenha tomado qualquer posição de onde resulte ou se possa ao menos inferir que aceitou com elas discutir (negociar) o pagamento devido em função do contrato de seguro.
A alusão às mesmas, no cabeçalho do relatório pericial, como “reclamantes” não me parece significativa, antes meramente tabelar.
Como, ademais, diz José Vasques (cit., no Ac. RP, de 14-11-2013, proc.1394/13.3TBMAI-A.P1), a noção ou o conceito de “início de negociações directas entre o lesado e o segurador”, na expressão legalmente plasmada, “em nenhum caso, poderá equivaler à mera apresentação de reclamação do lesado perante o segurador com a consequente resposta deste”. Na verdade, o “início de negociações” tem de reflectir uma vontade e atitude das partes, mormente da seguradora, no sentido de que, embora nem a lei nem o contrato prevejam a demanda directa, mas uma vez postas em contacto e em face dos factos já averiguados e dos termos da apólice existente, elas, livre e voluntariamente, aceitam, no caso concreto e em termos análogos, tratar, de boa-fé, entre si e directamente, da questão e admitem resolvê-la e compô-la por consenso.
As autoras, porém, limitaram-se, na petição, a alegar (item 132) que têm conhecimento do contrato de seguro. Não invocaram, sequer abstractamente, a norma legitimadora da demanda directa da seguradora nem os factos capazes de permitir a aplicação desta, que, de resto, os elementos do processo também não viabilizam.
Com efeito, a participação, pela segurada 1ª ré, do evento lesivo verificado à seguradora 3ª ré, e as diligências de averiguação subsequentes por esta encetadas, nomeadamente a peritagem, inserem-se nos comuns e normais deveres decorrentes do artº 100º, da LCS, e previstos nas cláusulas 15ª e 16ª do contrato. Aliás, não se concebe que a seguradora pudesse responder mesmo perante o seu segurado sem se inteirar das circunstâncias em que o sinistro eclodiu de modo a apurar se dele para si resulta responsabilidade nos termos contratados e sem, para tal, contar com a cooperação das lesadas. A reunião, no local, com os representantes da segurada e destas, e o pedido de informações e de elementos a uma e outras, circunscrevem-se à missão, cometida à empresa averiguadora, de investigar os factos, nada mostrando que também da tarefa de assumir, definir e tratar dos termos do cumprimento da obrigação de indemnizar, quiçá perante os terceiros lesados, tivesse sido incumbida e com atribuição dos necessários poderes para tal, sequer preliminarmente. Não se tratou, pois, de negociações, ao menos em fase de início. Para como tal poderem ser consideradas à luz da norma em questão, haveria de mostrar-se que, nos contactos havidos, entre lesadas e seguradora, em face do contrato de seguro e pressupondo o enquadramento nele da ocorrência averiguada, mais do que averiguar e informar-se de todas as circunstâncias atinentes ao evento e consequências, a seguradora admitiu, de forma ao menos tácita ou implícita, a eventualidade de àquelas directamente vir a satisfazer a prestação contratada com a segurada (pagamento e não a restauração natural) e de, nessa perspectiva, acertar com elas o respectivo montante e definir os termos do cumprimento. Isto apesar de, pelo contrato, em rigor não lhe ter sido transferida a responsabilidade civil pelo facto lesivo, já que isso aquele não comporta nem a lei configura”.
Aqui chegados podemos então concluir que não se pode afirmar no caso destes autos que tenha havido um início de negociações entre a autora e a ré EMP03....
A única coisa que se provou, repete-se, foi que a autora foi inquirida por um perito averiguador contratado pela EMP03..., para efectuar a averiguação do sinistro no âmbito destes autos, e depois esta comunicou à autora, por carta, que recusava assumir a obrigação de indemnização. O conceito de negociações envolve geneticamente a existência de duas partes, e a tomada de posições por ambas as partes. Aqui apenas temos actos da seguradora. A autora, ao responder às perguntas do averiguador, não estava a “negociar”. Estava, apenas, a emitir declarações de ciência. Limitou-se a tomar parte passiva nos actos praticados pela Seguradora. Ora, como se escreve no voto de vencido acabado de citar, o “início de negociações” tem de reflectir uma vontade e atitude das partes, mormente da seguradora, no sentido de que, embora nem a lei nem o contrato prevejam a demanda directa, mas uma vez postas em contacto e em face dos factos já averiguados e dos termos da apólice existente, elas, livre e voluntariamente, aceitam, no caso concreto e em termos análogos, tratar, de boa-fé, entre si e directamente, da questão e admitem resolvê-la e compô-la por consenso”. Não foi isso que sucedeu nestes autos. Aquilo que a ré EMP03... fez foi apenas, como bem refere José Amaral, executar as normais diligências de averiguação subsequentes à comunicação do sinistro, as quais se inserem nos comuns e normais deveres decorrentes do artº 100º da LCS. O encetar de negociações com o lesado seria a fase que se seguiria ao encerramento das averiguações, mas que no caso concreto não chegou a ocorrer.
Acresce que se nos afigura irrespondível o argumento invocado pela apelada, quando refere nas suas contra-alegações que “o averiguador contratado pela Apelada para efectuar a averiguação não possui, como é evidente, qualquer mandato daquela para negociar o que quer que seja, nem tão pouco para apresentar eventuais valores indemnizatórios à A”. E ainda: “uma negociação, não só consiste numa apresentação de propostas e contrapropostas, como também terá que haver capacidade negocial para quem apresenta o recebe propostas ou contrapropostas, respectivamente. De referir ainda que, quem tinha capacidade negocial para apresentar um qualquer tipo de proposta à A. com vista à solução do litígio, não o fez. Não ocorreram conversações, diálogo, ou troca de correspondência concordando ou não com a tomada de posição da Apelada”.
Donde, também aqui a sentença recorrida não merece censura.
Finalmente, como não foi questionada a aplicação do direito aos factos provados, mas apenas na sequência da pretendida alteração destes, que não sucedeu, o recurso improcede integralmente.

V- DECISÃO

Por todo o exposto, este Tribunal da Relação de Guimarães decide julgar o recurso totalmente improcedente e confirma na íntegra a sentença recorrida.

Custas pela recorrente (art. 527º,1,2 CPC).

Data: 11.4.2024 

Relator (Afonso Cabral de Andrade)
1º Adjunto (Alcides Rodrigues)
2º Adjunto (Paulo Reis)


[1] Conselheiro Abrantes Geraldes, ob cit, fls. 286.