Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
848/23.8T8VRL.G1
Relator: ANIZABEL SOUSA PEREIRA
Descritores: MAIOR ACOMPANHADO
PRINCÍPIO DA NECESSIDADE
PRINCIPIO DA SUBSIDARIEDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/18/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- No novo regime jurídico do maior acompanhado, a regra hoje é a plena capacidade de exercício, embora com modificações absolutamente necessárias para assegurar os interesses do maior fragilizado e sempre dependente de decisão judicial.
II- Em paralelo com o princípio da necessidade, e complementando a ideia de “ última ratio”, o nº2 do art. 140º do Código Civil vem consagrar a supletividade do acompanhamento, não tendo este cabimento quando as dificuldades do maior possam ser supridas pelos deveres gerais de cooperação e assistência que impendem, designadamente, sobre os familiares.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:
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I- Relatório:

1. O Ministério Público iniciou uma ação especial de acompanhamento de maiores, nos termos do disposto nos arts. 138º e 141º, n.º 1 Cód Civil e 891º e ss do Cód de Proc Civil, contra  AA, nascido a ../../1974, natural da Freguesia ..., Concelho ..., filho de BB e de CC, titular do Cartão de cidadão nº ...54, residente na Estrada ...., ... ..., e atualmente no Centro Social e Paroquial ..., sito em ..., ... ..., peticionando a aplicação das medidas de acompanhamento de (1) representação geral, nos termos do art 145.º, n.º 2, al. b), do Cód Civil, bem como (2) outras que o Tribunal venha a entender como mais adequadas, indicando para o cargo de acompanhante DD e CC, respetivamente, irmã e mãe, do Beneficiário, residentes, na Estrada ...., ... ... sem prejuízo de escolha que venha a ser manifestada pelo próprio requerido, de modo consciente e esclarecido, nos termos do art. 143.º, n.º 1 do Cód Civil.
Para tanto alega, em suma, o seguinte: “o requerido padece de demência precoce, em deterioração progressiva; manifesta desorientação no espaço e no tempo, está medicado, com a ajuda de terceiros e não tem capacidade para movimentar contas bancárias; dependendo da ajuda e supervisão de terceiros para a realização de quase todas as tarefas diárias; o Requerido/Beneficiário está assim, por razões de saúde, impossibilitado de exercer plena e conscientemente os seus direitos, ou de nos mesmos termos cumprir os seus deveres”.
2. Não se logrou proceder à citação do requerido e foi nomeado defensor oficioso ao requerido  e não foi apresentada resposta/oposição.
3. Procedeu-se à audição do requerido a que se referem os arts 897º, n.º 2 e 898º do Cód de Proc Civil e foi realizada perícia e junto o respetivo relatório.
4. Foi proferida sentença que julgou a ação improcedente, não aplicando a AA qualquer medida de acompanhamento nem lhe nomeando um acompanhante.
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5. O Ministério Público interpôs recurso, finalizando as alegações com as seguintes conclusões ( que se transcrevem):
“1) Recorre o Ministério Público da sentença proferida a 09 de janeiro de 2024 que julgou a presente ação não determinando o acompanhamento de maior do beneficiário AA e, consequentemente, não lhe determinando a aplicação de qualquer medida de acompanhamento nem lhe nomeando um acompanhante.

2) Através do presente recurso impugna-se a matéria de facto dada como provada e a apreciação da matéria de direito, neste último caso por incorreta interpretação e aplicação do disposto nos artigos 138.º, 140.º e art.º 986.º, n.º 2 1.ª parte do Código Civil na redação introduzida pela Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto as quais, caso tivessem sido corretamente interpretadas impunham que o Tribunal a quo tivesse decretado o acompanhamento de maior do beneficiário AA.

3) Na realidade, a sentença recorrida devia também ter dado como provados os seguintes factos constantes do relatório pericial elaborado: que «Nos últimos4 anos (a partir de 2019) [o beneficiário] começou a apresentar maiores alterações do comportamento, com ansiedade, pensamentos obsessivos, défices mnésicos, com declínio cognitivo e alterações na sua funcionalidade», que «O conteúdo do discurso [do beneficiário] por vezes é vago, evasivo»; que o beneficiário «Sabe dizer a data de nascimento mas não a idade.»; que o beneficiário «Identifica o valor facial do dinheiro, tem noção do seu real valor e sabe operar com ele para operações que está habituado a fazer. Não sabe o valor da pensão que recebe (diz que recebe 300 euros e são cerca de 500)»; que o beneficiário «Em termos de memória apresenta alguns défices na memória recente e retrógrada, não conseguindo pormenorizar factos do seu passado e situa-los no espaço temporal»; que o beneficiário «A nível das funções executivas superiores apresenta marcadas dificuldades na capacidade de abstração e formulação de conceitos (não conseguindo por exemplo fazer a interpretação de qualquer provérbio)»; que «A sua [do beneficiário] capacidade de organização e planeamento está focada nas respostas do dia a dia e com pouca iniciativa ou desenvolvimento de outras atividades, dificuldade na identificação de erros ou dificuldades com alguns processos de simplicismo e desvalorização das suas dificuldades. Não apresenta qualquer projeto de vida em que possa ser autónomo ou independente»; que «A sua [do beneficiário] capacidade de critica está diminuída, não tendo uma real noção das suas incapacidades e dificuldades. Embora reconhecendo a necessidade de ajuda por outro lado acha que poderia viver sozinho e de forma autónoma.»; que «O examinando apresenta de base uma estrutura de personalidade com alguns traços disfuncionais e ligados a um processo de toxicodependência»; que «Atualmente e estando o examinando em regime protegido no qual existem rotinas funcionais o funcionamento do examinando está melhor do anteriormente descrito nos relatórios médicos ou pela familiar»; que «No estado atual detetam-se alterações nas funções executivas que são moderadas e que interferem nessas capacidades, sendo necessário ajuda e proteção de terceiros para permitir que possa viver de uma forma digna e não negligenciada.»

4) Apesar de tal prova pericial estar sujeita à livre apreciação do julgador este teria de ter explicado – atentos os necessários conhecimentos técnicos e científicos exigidos para a realização de tal perícia que o julgador não tem – o que não fez, porque decidiu excluir tais factos da matéria dada como provada sendo certo que, em nosso entender, os mesmos eram absolutamente essenciais para a mais correta determinação do estado de saúde e (in) capacidades do beneficiário e, consequentemente, pela decisão de decretar ou não o seu acompanhamento.

5) Sem prejuízo, entendemos salvo melhor entendimento em sentido contrário, que a factualidade dada como assente na sentença recorrida sempre seria bastante para que o Tribunal a quo concluísse que o beneficiário AA, por causa da demência precoce de que padece, necessita do apoio de terceira pessoa na realização das atividades da vida diária e na realização das atividades quotidianas instrumentais simples que possam influi na sua situação pessoal e patrimonial, conforme , aliás, se concluiu na perícia realizada, conclusão que o julgador afastou de forma não justificada.

6) Não é suficiente para proteção do beneficiário AA o simples cumprimento por parte de terceiros dos deveres gerais de cooperação e assistência a que se encontram adstritos para garantir que o mesmo exerça de forma plena os seus direitos.

7) Tal auxilio não será nunca o bastante para ultrapassar as inabilidades de que o mesmo padece e que o impedem de compreender e tratar de assuntos relativos à sua pessoa e ao seu património (designadamente, celebrar negócios da vida corrente, administrar e gerir o seu património, decidir a fixação do seu domicilio, outorgar de testamento ou procurações) pois que implicará que a pessoa que o apoia tenha de tomar decisões em substituição do beneficiário que não é capaz de compreender o seu alcance, conteúdo e repercussões pessoais e patrimoniais.

8) Nos termos do artigo 138º do Código Civil a doença de que o requerido padece e as inabilidades que se lhe encontram associadas e que o impedem de exercer sozinho, pessoalmente e de forma plena, os seus direitos, e de cumprir suas obrigações, em condições de igualdade tornam necessário e adequado que seja decretado o acompanhamento.

9) Estão, assim, cabalmente preenchidas as condições positiva e negativa para o decretamento do acompanhamento de maior do beneficiário AA: a sua necessidade e a insuficiência dos deveres gerais de cooperação e assistência para lhe garantirem o pleno exercício dos seus direitos e cumprimento dos seus deveres.

10) O Tribunal recorrido não podia sem mais, em face da factualidade que deu como assente, afirmar que a medida de acompanhamento de representação geral é inadequada e desproporcional sem cuidar de verificar fundamentadamente se o beneficiário carecia de alguma outra das restantes medidas previstas na lei, ainda que diversas daquelas que haviam sido inicialmente requeridas, porque nada impedia o julgador de decidir por outra (s) medida(s) menos restritiva(s) dos direitos do beneficiário, como no caso se impunha.
Pelo exposto deverá o presente recurso ser julgado procedente e em consequência ser revogada a sentença recorrida e substituída por outra que determine o acompanhamento de maior do beneficiário AA pela irmã DD –fixando-se a sua necessidade desde o ano de 2019 - com a aplicação das seguintes medidas a rever no prazo de 3 anos:

a) Representação especial, com dispensa da constituição do conselho de família (art.º 145.º, n.º2, al.b),e n.º4,doC. Civil)atribuindo-se à acompanhante a nomear os poderes para:
-celebrar negócios jurídicos da vida corrente do beneficiário que não careçam de prévia autorização judicial para a sua concretização;
-decidir pela fixação de domicilio do beneficiário; -decidir pelas suas deslocações ao estrangeiro;
-decidir pela adesão do beneficiário a terapêuticas (tratamento e medicação) que venham a ser clinicamente recomendadas;
-decidir pela escolha de uma ocupação/profissão;

b) Administração total de bens do beneficiário (alínea c) daquele n.º 2 do CC).

c) Limitação dos direitos de pessoais de casar, constituir uma união de facto, procriar, perfilhar, adotar, cuidar e educar de filhos e adotados, estabelecer relações com quem entender, outorgar testamento ou procuração.”
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O recorrido não contra-alegou.
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O recurso foi recebido nesta Relação, considerando-se devidamente admitido, no efeito legalmente previsto.
Assim, cumpre apreciar o recurso deduzido, após os vistos.

II- FUNDAMENTAÇÃO


O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso.


Assim sendo, são questões a decidir:
- reapreciação de facto: - da alteração da matéria de facto;
- reapreciação de direito: - se deve ser decretado o acompanhamento do requerido.
*
III
Na decisão recorrida encontram-se descritos os seguintes factos:

a) factos provados
1. O requerido AA, é filho de BB e de CC.
2. O requerido apresenta de base uma estrutura de personalidade com alguns traços disfuncionais e ligados a um processo de toxicodependência.
a. Desde há cerca de 4-5 anos que o requerido começou a apresentar maior quadro de disfuncionalidade sendo acompanhado em consultas de neurologia e psiquiatria e identificado um processo de demência precoce, que se encontra em estudo e cuja etiologia ainda não foi identificada e como tal não é possível determinar se esta patologia é definitiva, progressiva ou se pelo contrário poderá haver melhoras clinicas.
b. Este quadro provoca-lhe algumas dificuldades em termos mentais sobretudo nas funções executivas que tem a ver com as capacidades de avaliação, organização, planeamento e decisão, de perceção das necessidades da sua vida e como ultrapassá-las..Do ponto de vista físico não há alterações;
3. Resulta do relatório pericial que o requerido evidencia limitações nas seguintes capacidades embora não tenha sido possível apurar o grau:
a. capacidade de compreensão e livre autodeterminação do ato de casar, constituir uma união de facto, procriar, perfilhar, adoptar, cuidar e educar os filhos e adoptados, escolher uma profissão, deslocar-se no pais e estrangeiro, fixar domicílio e residência, estabelecer relações com quem entender, administrar e gerir o seu património, outorgar testamento ou procuração, celebrar negócios da vida corrente, indicar quem é que pretende que seja seu acompanhante, bem como dos direitos e deveres daí inerentes;
4. Resulta do auto de audição do requerido o seguinte:
a. soube dizer o nome completo, sabe a data de nascimento;
b. soube dizer onde está;
c. soube dizer o nome dos pais;
d. mostrou-se orientado no tempo e no espaço, sabendo identificar o ano, o mês e o dia da semana;
e. soube fazer contas elementares;
f. mostrou-se ciente da actividade nacional e política.
b) factos não-provados
5. nenhuns com relevância para a causa.”
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IV- Da alteração da matéria de facto:

O Recorrente impugna a decisão da matéria de facto pretendendo o aditamento de partes do teor do relatório pericial com o seguinte teor:

1)«Nos últimos 4 anos (a partir de 2019) [o beneficiário] começou a apresentar maiores alterações do comportamento, com ansiedade, pensamentos obsessivos, défices mnésicos, com declínio cognitivo e alterações na sua funcionalidade»;
2) «O conteúdo do discurso [do beneficiário] por vezes é vago, evasivo»;
3) que o beneficiário «Sabe dizer a data de nascimento mas não a idade.»;
4)que o beneficiário «Identifica o valor facial do dinheiro, tem noção do seu real valor e sabe operar com ele para operações que está habituado a fazer. Não sabe o valor da pensão que recebe (diz que recebe 300 euros e são cerca de 500)»;
5) que o beneficiário «Em termos de memória apresenta alguns défices na memória recente e retrógrada, não conseguindo pormenorizar factos do seu passado e situa-los no espaçotemporal»;
6) que o beneficiário «A nível das funções executivas superiores apresenta marcadas dificuldades na capacidade de abstração e formulação de conceitos (não conseguindo por exemplo fazer a interpretação de qualquer provérbio)»;
7) que «A sua [do beneficiário] capacidade de organização e planeamento está focada nas respostas do dia a dia e com pouca iniciativa ou desenvolvimento de outras atividades, dificuldade na identificação de erros ou dificuldades com alguns processos de simplicismo e desvalorização das suas dificuldades. Não apresenta qualquer projeto de vida em que possa ser autónomo ou independente»;
8) que «A sua [do beneficiário] capacidade de critica está diminuída, não tendo uma real noção das suas incapacidades e dificuldades. Embora reconhecendo a necessidade de ajuda por outro lado acha que poderia viver sozinho e de forma autónoma.»;
9) que «O examinando apresenta de base uma estrutura de personalidade com alguns traços disfuncionais e ligados a um processo de toxicodependência»;
10) que «Atualmente e estando o examinando em regime protegido no qual existem rotinas funcionais o funcionamento do examinando está melhor do anteriormente descrito nos relatórios médicos ou pela familiar»;
11) que «No estado atual detetam-se alterações nas funções executivas que são moderadas e que interferem nessas capacidades, sendo necessário ajuda e proteção de terceiros para permitir que possa viver de uma forma digna e não negligenciada.»
Vejamos.
Não se olvida que a fundamentação da matéria de facto não se destina a reproduzir o conteúdo dos meios de prova, mas sim, em conformidade com o disposto no artigo 607º, nºs 3 e 4, do CPC, a declarar quais os factos que o juiz julga provados e quais os que julga não provados, ainda que não alegados pelas partes (nos termos do nº 2 do artigo 986º do CPC, aplicável ex vi do nº 1 do artigo 891º do mesmo Código), com relevo para a decisão a proferir.
Como é óbvio, o “facto” relevante para a decisão da causa não é a reprodução de uma passagem do relatório pericial, mas sim aquele que, sendo pertinente para o objeto do processo, resulta demonstrado depois de o juiz analisar criticamente essas provas e de se convencer sobre a respetiva realidade.
Além disso, o juízo pericial (técnico-científico) não se confunde com o juízo que compete ao tribunal fazer relativamente à prova produzida e ao apuramento dos factos, pelo que não pode a decisão sobre a matéria de facto constituir uma forma enviesada de dar como demonstrados puros juízos valorativos e não verdadeiros factos ( vide neste sentido AC deste TRG de 28-04-2022, proc. 271/21.9T8PRG.G1, relator: Joaquim Boavida).
No caso vertente, desde já, se diga que o pretendido aditamento já contém factos dados como provados e que são a reprodução de alguns dos pontos pretendidos aditar, como por exemplo o facto nº2 ( cfr supra ponto 9), o facto 2º, b) ( cfr. supra ponto 11),  e todos os demais pontos pretendidos aditar, cremos, salvo o devido respeito, já se encontram de forma essencial no elenco dos factos provados, os quais por sua vez se basearam no teor do relatório pericial e audição do requerido, não se vislumbrando que possam acrescentar algo de mais relevante, pelo que, seguindo a recente doutrina dos tribunais superiores, não se devendo praticar atos inúteis ( cfr. art. 130º do CPC), não se aditaria mais qualquer facto além dos elencados, pois em nada alteraria o desfecho da presente ação, como veremos.
Ainda assim e para outros entendimentos, e porque se trata de concretização de factos já elencados nos provados e ainda são considerados factos baseados no relatório pericial, aditar-se-ão os seguintes factos:
- 1)«Nos últimos 4 anos (a partir de 2019) [o beneficiário] começou a apresentar maiores alterações do comportamento, com ansiedade, pensamentos obsessivos, défices mnésicos, com declínio cognitivo e alterações na sua funcionalidade»;
2) «O conteúdo do discurso [do beneficiário] por vezes é vago, evasivo»;
3) que o beneficiário «Sabe dizer a data de nascimento, mas não a idade.»;
4)que o beneficiário «Identifica o valor facial do dinheiro, tem noção do seu real valor e sabe operar com ele para operações que está habituado a fazer. Não sabe o valor da pensão que recebe (diz que recebe 300 euros e são cerca de 500)»;
5) que o beneficiário «Em termos de memória apresenta alguns défices na memória recente e retrógrada, não conseguindo pormenorizar factos do seu passado e situa-los no espaço temporal»;
6) que o beneficiário «A nível das funções executivas superiores apresenta marcadas dificuldades na capacidade de abstração e formulação de conceitos (não conseguindo por exemplo fazer a interpretação de qualquer provérbio)»;
7) que «A sua [do beneficiário] capacidade de organização e planeamento está focada nas respostas do dia a dia e com pouca iniciativa ou desenvolvimento de outras atividades, dificuldade na identificação de erros ou dificuldades com alguns processos de simplicismo e desvalorização das suas dificuldades. Não apresenta qualquer projeto de vida em que possa ser autónomo ou independente»;
8) que «A sua [do beneficiário] capacidade de critica está diminuída, não tendo uma real noção das suas incapacidades e dificuldades. Embora reconhecendo a necessidade de ajuda por outro lado acha que poderia viver sozinho e de forma autónoma.».
O ponto 10 pretendido aditar é matéria conclusiva, pelo que não se adita, nem o 9 e 11 por se tratar de redundâncias.
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Assim sendo, os factos a ter em consideração são além dos elencados em III, ainda os supra aditados.
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V- Da reapreciação do direito

No caso sub judicio vem questionada a necessidade ou não de decretar o acompanhamento do requerido.

A sentença considerou não haver essa necessidade, não se verificando as condições positivas e negativas daquele instituto, porquanto “ o requerido manifesta autonomia para a sua vida, sendo que as dificuldades de que padece devem ser atendidas através dos deveres gerais de cooperação e de assistência (art 140º, n.º 2 do Cód Civil).”.

O MP, ora recorrente, entende o contrário: que, no caso vertente, existe necessidade de decretar o acompanhamento, verificando-se as condições positivas e negativas daquele instituto, porquanto “ Tal auxilio não será nunca o bastante para ultrapassar as inabilidades de que o mesmo padece e que o impedem de compreender e tratar de assuntos relativos à sua pessoa e ao seu património (designadamente, celebrar negócios da vida corrente, administrar e gerir o seu património, decidir a fixação do seu domicilio, outorgar de testamento ou procurações) pois que implicará que a pessoa que o apoia tenha de tomar decisões em substituição do beneficiário que não é capaz de compreender o seu alcance, conteúdo e repercussões pessoais e patrimoniais.”.

Vejamos então de que lado está a razão.

A Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto, pretendeu efetuar uma reforma de fundo no regime jurídico da interdição e inabilitação, substituindo estes institutos pelo regime jurídico do maior acompanhado.

Como bem refere António Pinto Monteiro “importa realçar o alcance e importância desta reforma, provavelmente a maior reforma operada no Código Civil após a revisão pelo DL 496/77 que adaptou o Código Civil à Constituição de 1976 e certamente a maior reforma na parte Geral do CC após a sua publicação em 25.11.1966” ( cfr. artigo publicado pelo autor em E-book Cej, 2019, p. 33)

Não contendo aquela lei preâmbulo, podemos encontrar na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 110/XIII, que deu origem à Lei n.º 49/2018, as principais preocupações do legislador e as linhas de força do novo regime. São elas, em traços gerais:
1) Opção por um modelo monista, material, estrito e de acompanhamento caracterizado por uma ampla flexibilidade, permitindo ao juiz uma resposta específica e individualizada, adequada à situação concreta da pessoa protegida;
2) Possibilidade de o maior acompanhado, salvo decisão expressa do juiz em contrário, manter liberdade para a prática de diversos atos pessoais, designadamente: liberdade de casar, de se unir de facto, de procriar, de perfilhar, de adotar, de exercer as responsabilidades parentais, de se divorciar e de testar;
3) Qualificação do processo como de jurisdição voluntária e urgente;
4) Obrigatoriedade de o juiz contactar pessoalmente com o beneficiário; e
5) Expressa possibilidade de se proceder à revisão, à luz do novo regime, das interdições e inabilitações decretadas no pretérito, a pedido do próprio, do acompanhante ou do Ministério Público.

Nunca é demais relembrar que este diploma legal deve ser interpretado conforme a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que constitui a pedra angular do novo modelo a implementar e no qual o novo regime se funda.[1]
Assim, de forma resumida[2], elencam-se os seguintes princípios fundamentais da Convenção, no que à capacidade jurídica diz respeito:
• Todas as pessoas com deficiência, sem exceção, têm capacidade jurídica, em condições de igualdade com as outras, em todos os aspetos da vida;
• A pessoa com deficiência deve ser apoiada nas suas decisões relativas ao exercício da capacidade jurídica;
• A pessoa com deficiência tem o direito a escolher a pessoa que a acompanhará na tomada de decisões da sua vida;
• A pessoa com deficiência tem o direito a participar ativamente em todas as decisões que lhe digam respeito a nível pessoal, familiar e económico;
• A pessoa com deficiência tem o direito a ser ouvida sobre todas as questões que sejam decididas, por qualquer autoridade, sobre a sua capacidade jurídica;
• As medidas de apoio devem ser flexíveis e de acordo com as necessidades individuais de cada pessoa com deficiência;
• As medidas de apoio apenas devem ser tomadas se forem absolutamente necessárias e proporcionais;
• Todas as medidas de apoio devem respeitar os direitos, a vontade e as preferências da pessoa com deficiência;
• As medidas de apoio devem ser revistas periodicamente por uma autoridade judicial.

No nosso Código Civil, o ponto de partida para a compreensão do novo regime é o art. 138º do CC, segundo o qual o maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, beneficia das medidas de acompanhamento previstas neste Código.
Estas medidas que surgem exemplificativamente elencadas no art. 145º do CC visam suprir, independentemente da respetiva causa, a maior fragilidade do beneficiário, salvaguardando, tanto quanto possível a sua autonomia.
Com efeito, uma das pedras angulares desta reforma é uma ideia de intervenção mínima, traduzida no esforço do princípio da necessidade, devendo o âmbito de proteção a decretar ser limitado ao estritamente necessário para assegurar a proteção dos interesses do beneficiário, não atingindo situações em que este tem capacidade de atuação autónoma, com destaque para a específica salvaguarda, nos termos do art. 147º do CC, do exercício de direitos pessoais e dos negócios da vida corrente.
O Prof. Teixeira Sousa[3] resume o novo regime da seguinte forma: “ A medida de acompanhamento de maior só é decretada se estiverem preenchidas duas condições:
Uma condição positiva (orientada por um princípio de necessidade): tem de haver justificação para decretar o acompanhamento do maior e, designadamente, uma das medidas enumeradas no art.º 145.º, n.º 2, CC4; isto significa que, na dúvida, não é decretada nenhuma medida de acompanhamento;
─ Uma condição negativa (norteada por um princípio de subsidiariedade): dado que a medida de acompanhamento é subsidiária perante os deveres gerais de cooperação e assistência (nomeadamente, de âmbito familiar) (art.º 140.º, n.º 2, CC), o tribunal não deve decretar aquela medida se estes deveres forem suficientes para acautelar as necessidades do maior.”
Portanto, a regra hoje é a plena capacidade de exercício, embora com modificações absolutamente necessárias para assegurar os interesses do maior fragilizado e sempre dependente de decisão judicial.
Em paralelo com o princípio da necessidade, e complementando a ideia de “ última ratio”, o nº2 do art. 140º do CC vem consagrar a supletividade do acompanhamento , não tendo este cabimento quando as dificuldades do maior possam ser supridas pelos deveres gerais de cooperação e assistência que impendem, designadamente, sobre os familiares.
Por outro lado, também se abandonou a lógica rígida das medidas destinadas a suprir a “incapacidade”.
Já no novo regime do maior acompanhado - para além de se flexibilizar o sistema no sentido de se adaptar o conteúdo do acompanhamento em função das necessidades concretas do sujeito, o qual já não decorre de forma automática da lei, ainda que possa ser determinado em concreto com uma amplitude que pode ir desde um mínimo a um máximo, fazendo mesmo intervir diversos regimes jurídicos -, observa-se que o legislador parece ter optado por uma formulação algo ampla quanto aos requisitos da medida de acompanhamento.”[4]

Tendo presentes os requisitos de que depende a justificação da aplicação de uma medida de acompanhamento a maior, acima assinalados, e no confronto com os factos apurados, afigura-se-nos não merecer censura o decidido.

Está provado que:
“- 2. O requerido apresenta de base uma estrutura de personalidade com alguns traços disfuncionais e ligados a um processo de toxicodependência.
a. Desde há cerca de 4-5 anos que o requerido começou a apresentar maior quadro de disfuncionalidade sendo acompanhado em consultas de neurologia e psiquiatria e identificado um processo de demência precoce, que se encontra em estudo e cuja etiologia ainda não foi identificada e como tal não é possível determinar se esta patologia é definitiva, progressiva ou se pelo contrário poderá haver melhoras clinicas.
b. Este quadro provoca-lhe algumas dificuldades em termos mentais sobretudo nas funções executivas que tem a ver com as capacidades de avaliação, organização, planeamento e decisão, de perceção das necessidades da sua vida e como ultrapassá-las..Do ponto de vista físico não há alterações;
3. Resulta do relatório pericial que o requerido evidencia limitações nas seguintes capacidades embora não tenha sido possível apurar o grau:
a. capacidade de compreensão e livre autodeterminação do ato de casar, constituir uma união de facto, procriar, perfilhar, adoptar, cuidar e educar os filhos e adoptados, escolher uma profissão, deslocar-se no pais e estrangeiro, fixar domicílio e residência, estabelecer relações com quem entender, administrar e gerir o seu património, outorgar testamento ou procuração, celebrar negócios da vida corrente, indicar quem é que pretende que seja seu acompanhante, bem como dos direitos e deveres daí inerentes;
4. Resulta do auto de audição do requerido o seguinte:
a. soube dizer o nome completo, sabe a data de nascimento;
b. soube dizer onde está;
c. soube dizer o nome dos pais;
d. mostrou-se orientado no tempo e no espaço, sabendo identificar o ano, o mês e o dia da semana;
e. soube fazer contas elementares;
f. mostrou-se ciente da actividade nacional e política.

E ainda resultou provado que:
-«Nos últimos 4 anos (a partir de 2019) [o beneficiário] começou a apresentar maiores alterações do comportamento, com ansiedade, pensamentos obsessivos, défices mnésicos, com declínio cognitivo e alterações na sua funcionalidade»;
- «O conteúdo do discurso [do beneficiário] por vezes é vago, evasivo»;
- que o beneficiário «Sabe dizer a data de nascimento, mas não a idade.»;
-que o beneficiário «Identifica o valor facial do dinheiro, tem noção do seu real valor e sabe operar com ele para operações que está habituado a fazer. Não sabe o valor da pensão que recebe (diz que recebe 300 euros e são cerca de 500)»;
- que o beneficiário «Em termos de memória apresenta alguns défices na memória recente e retrógrada, não conseguindo pormenorizar factos do seu passado e situa-los no espaço temporal»;
- que o beneficiário «A nível das funções executivas superiores apresenta marcadas dificuldades na capacidade de abstração e formulação de conceitos (não conseguindo por exemplo fazer a interpretação de qualquer provérbio)»;
- que «A sua [do beneficiário] capacidade de organização e planeamento está focada nas respostas do dia a dia e com pouca iniciativa ou desenvolvimento de outras atividades, dificuldade na identificação de erros ou dificuldades com alguns processos de simplicismo e desvalorização das suas dificuldades. Não apresenta qualquer projeto de vida em que possa ser autónomo ou independente»;
- que «A sua [do beneficiário] capacidade de critica está diminuída, não tendo uma real noção das suas incapacidades e dificuldades. Embora reconhecendo a necessidade de ajuda por outro lado acha que poderia viver sozinho e de forma autónoma.».

Da factualidade acima elencada extrai-se que ao requerido foi identificado poder estar num processo de demência precoce, mas ainda em estudo, cuja etiologia ainda não está identificada, não se sabendo se estamos perante uma situação definitiva, progressiva ou com melhoras.
Por outro lado, este quadro provoca-lhe algumas dificuldades em termos mentais nas funções executivas de avaliação, organização, planeamento, decisão e perceção das necessidades da sua vida.
Sem embargo, não foi possível apurar o grau das limitações das capacidades.
Também se apurou que no estado atual tais alterações nas funções executivas são moderadas e que interferem nessas capacidades, sendo necessário ajuda e proteção de terceiros para permitir que possa viver de uma forma digna e não negligenciada.
Ou seja, com efeito, estas limitações demandam a ajuda de terceiros apenas naquele nível.
Ajuda que está garantida, seja através de cuidadores que o auxiliam no dia a dia ( no lar onde se encontra a viver), seja através de familiares muito presentes, como a sua irmã e mãe ( esta já com Parkinson) nada se alegando e provando quanto a uma apertada necessidade de gestão financeira porventura tratada pelos familiares, com a confiança do beneficiário.
Não há dúvidas, perante a factualidade apurada, de que o beneficiário continua capaz de formar a sua vontade, ainda que com algumas dificuldades e limitações, cujo grau não foi possível apurar.
Mas, no caso, a já mencionada capacidade de exercer a sua vontade permite ao beneficiário delegar em terceiros, no caso a sua irmã que o apoia totalmente, bem como a mãe na gestão dos seus assuntos, aliás sintomático disso foi ter conseguido a estada do irmão no lar.
É bem certo que no caso vertente o requerido não contestou a ação, mas, por outro lado, reconheceu a necessidade de ajuda.
Como acima aludido, para além da anuência do beneficiário, é também necessário que o beneficiário careça de tais medidas, nomeadamente por as finalidades que se visariam obter com as mesmas não estarem garantidas através dos deveres gerais de cooperação e assistência.
Em causa estão as limitações derivadas de algumas dificuldades em termos mentais sobretudo nas funções executivas, limitações essas cujo grau não foi possível apurar, não sendo sequer evidente, conforme se lê nas conclusões do relatório pericial “ que o seu estado corresponda a um processo demencial em estado inicial a evoluir para definitivo e em que medida ele no futuro irá interferir na sua capacidade de avaliação, autodeterminação, autonomia e capacidade de decidir a sua vida.”, tudo a ser avaliado, conforme sugestão do perito, num prazo de 2 anos, para aferir a evolução do quadro ou a sua melhor definição.
Ora, estas limitações estão supridas pelo apoio que tem no lar onde vive e apoio total familiar de que o beneficiário goza, nada o impedindo de conferir nomeadamente poderes de representação, gerais ou especiais, a esses mesmos familiares, pelo menos à data de hoje ( ou reportado à data de quando os factos foram coligidos-data da perícia e data da audição do requerido).
Nesta medida entende-se verificado o requisito negativo que em respeito pelo princípio da subsidiariedade afasta, no caso concreto, e por ora, a nomeação de um acompanhante e a adoção de medidas de acompanhamento, tal como decidido pelo tribunal a quo.

VI. Decisão.

Pelo exposto, acordam as Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar a presente apelação totalmente improcedente, consequentemente se mantendo a decisão recorrida.
Sem custas ( art. 4º do RCJ)
Guimarães, 18 de abril de 2024

Anizabel Sousa Pereira ( relatora)
Maria Amália Santos e
Paula Ribas


[1] A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Convenção) foi adotada na Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova Iorque, em 30 de março de 2007, foi aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 56/2009, de 30 de julho, e foi ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 71/2009, de 30 de julho. Por sua vez, o respetivo Protocolo Adicional foi adotado na Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova Iorque, em 30 de março de 2007, foi aprovado pela Resolução da Assembleia da República n.º 57/2009, de 30 de julho, e foi ratificado pelo Decreto do Presidente da República n.º 72/2009, de 30 de julho.
[2] Para maior desenvolvimento, ver PAZ, Margarida. “A capacidade jurídica na Convenção sobre os Direitos das
Pessoas com Deficiência”. PAZ, Margarida (org.). Direitos das Pessoas com Deficiência 2017. [Em linha].Lisboa:
Centro de Estudos Judiciários, 2017, pp. 33-49. Disponível na internet: <URL:
http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil/eb_DireitoPessoasD2017.pdf>; ALBUQUERQUE, José P. Ribeiro de;
PAZ, Margarida, Adultos-Idosos Dependentes ou Especialmente Vulneráveis, tomo II, Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2018, pp. 104-120; e mesma autora, artigo publicado in e-book cej, 2019, p.113 e ssgs
[3] O NOVO REGIME JURÍDICO DO MAIOR ACOMPANHADO- O regime do acompanhamento de maiores: alguns aspectos processuais, e-book, CEJ, p. 51
[4] In AC TRG de 16-01-2020 ( relator: Paulo Reis) e no mesmo sentido AC RL de 21.01.2020 ( Higina Castelo).