Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
548/22.6T8VNF.G1
Relator: GONÇALO OLIVEIRA MAGALHÃES
Descritores: ESGOTAMENTO DO PODER JURISDICIONAL
ACLARAÇÃO
RETIFICAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/15/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I – Proferida a sentença, o juiz só pode voltar a pronunciar-se sobre a questão para retificar erros materiais, suprir nulidades ou reformar a sentença, devendo observar o disposto, a propósito de cada uma dessas situações, nos arts. 614.º a 617.º do CPC.
II – O erro na declaração que permite a retificação da sentença tem de ser manifesto, de modo que quem lê o texto percebe claramente qual o seu efetivo sentido.
III – A ininteligibilidade da sentença que seja recorrível deve ser arguida por essa via, como causa de nulidade, e apenas nessa sede pode o juiz voltar a pronunciar-se sobre a questão adrede decidida.
IV – A decisão proferida depois de esgotado o poder jurisdicional fora das situações previstas em I ou em desrespeito pelo formalismo previsto para cada uma delas é ineficaz.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I.
1) AA (Recorrente) propôs, contra BB (Recorrido), a presente ação especial de inventário, através da qual pretende a partilha do património comum do casal que entre ambos foi constituído, na sequência da respetiva dissolução por divórcio.
Alegou, em síntese, que: requerente e requerido foram casados entre si, vigorando entre eles o regime da comunhão geral de bens, conforme convenção antenupcial que celebraram; existe património comum.
Depois de nomeado para exercer o cargo de cabeça-de-casal, o requerido apresentou relação de bens, na qual incluiu: sob a verba n.º 2 do ativo, o veículo automóvel da marca ..., com a matrícula ..-VZ-.., no valor de € 10 000,00; sob a verba n.º 1 do passivo, uma dívida para com a EMP01... – Sociedade Financeira de Crédito, SA, emergente de um empréstimo para a aquisição do referido veículo, no “valor aproximado” (sic) de € 17 409,81.
Notificada da relação de bens, a requerente apresentou reclamação em que, quanto ao referido veículo, disse que o seu valor não é inferior a € 27 000,00, pedindo que a relação de bens seja “corrigida” (sic) em conformidade.
O cabeça-de-casal respondeu dizendo que o valor indicado na relação de bens é o real e correto.
No dia 15 de fevereiro de 2023, a requerente apresentou requerimento em que disse ter constatado, entretanto, que: o referido veículo havia-lhe sido cedido, na vigência do casamento, através de um contrato de aluguer de longa duração a consumidor, que previa a opção de compra, no termo do respetivo prazo, mediante o pagamento de um valor residual; entretanto, já depois da dissolução do casamento, procedeu ao pagamento desse valor e adquiriu para si a propriedade do veículo que, assim, é bem próprio seu. Concluiu pedindo a eliminação da verba n.º 2 do ativo.
O cabeça-de-casal respondeu dizendo que: a requerente teve sempre conhecimento da situação jurídica do veículo; não tendo reclamado oportunamente da sua inclusão na relação de bens, ocorreu “caso julgado formal” (sic); de qualquer modo, a aquisição do direito de propriedade deve retroagir ao momento em que foi celebrado o contrato de aluguer, com opção de compra; por essa razão, o veículo é bem comum do casal, assim  devendo permanecer relacionado.

No dia 14 de abril de 2023, foi proferido despacho com o seguinte teor:
“Pese embora resulte da documentação junta que o veículo ..., matrícula ..-VZ-.., nunca foi bem comum do casal, pois estava na posse do dissolvido casal por força da celebração de um contrato de aluguer de longa duração, o certo é que não merece contestação que na pendência do casamento as prestações foram pagas com bens próprios.
Assim, a relação de bens deverá ser corrigida por forma a que, em substituição do veículo ..-VZ-.., passe a constar como crédito de cada um dos interessados sobre o património comum o valor correspondente a 50% das prestações pagas, desde a celebração do contrato até à aquisição pela requerente.
1. Face ao decidido, notifique as partes sobre a manutenção do interesse na avaliação do veículo.”
Notificada, a requerente veio pedir, no dia 30 de maio de 2023, a aclaração do despacho acabado de transcrever, alegando, designadamente, que o mesmo “não é esclarecedor quanto aos pedidos formulados pela requerente no que concerne à consideração do veículo ... como bem comum, sua exclusão da relação de bens e efeitos daí decorrentes. Pois se, talqualmente referido, considerou – e bem – este Tribunal, que tal veículo, não é bem comum do casal, impondo-se a sua exclusão da relação de bens, por outro, substituiu tal veículo por um direito de crédito 50% a cada um dos interessados sobre o património comum, até à data da aquisição do veículo pela requerente, tendo por subjacente a consideração de que na constância do matrimónio, as prestações do mesmo foram pagas com bens próprios, o que s.m.o., não é possível e carece de melhor fundamentação ou correção. Solicita-se pois, a este Tribunal, a amabilidade de se proceder a uma aclaração do referido despacho, de forma a que melhor se possa ajuizar do mesmo quanto às considerações ali vertidas.”
Após contraditório do cabeça-de-casal, foi proferido, com data de 4 de julho de 2023, despacho do seguinte teor:
“Do pedido de aclaração de despacho 14.4.2023:
O segmento do despacho relativamente ao qual vem pedido esclarecimento é o seguinte: Pese embora resulte da documentação junta que o veículo ..., matrícula ..-VZ-.., nunca foi bem comum do casal, pois estava na posse do dissolvido casal por força da celebração de um contrato de aluguer de longa duração, o certo é que não merece contestação que na pendência do casamento as prestações foram pagas com bens próprios.
Assim, a relação de bens deverá ser corrigida por forma a que, em substituição do veículo ..-VZ-.., passe a constar como crédito de cada um dos interessados sobre o património comum o valor correspondente a 50% das prestações pagas, desde a celebração do contrato até à aquisição pela requerente.
Com o aludido despacho o que se pretendeu dizer e talvez não tenha ficado suficientemente claro (pelo erro material que infra se esclarecerá) foi que, pese embora a circunstância de veículo ..., matrícula ..-VZ-.., nunca ter sido bem comum do casal, pois estava na posse do dissolvido casal por força da celebração de um contrato de aluguer de longa duração, o certo é que na pendência do casamento foram sendo pagas prestações/rendas com bens comuns, tendo a interessada beneficiado em exclusivo desses pagamentos pois adquiriu o veículo pelo valor residual.
Efectivamente, o valor residual foi calculado tendo por base as prestações/rendas pagas, beneficiando a interessada da contribuição do interessado/cabeça de casal que durante a vigência do casamento contribuiu com 50% da prestação/renda de um bem que, por força do clausulado contratual, veio a ser adquirido pela interessada.
Assim, em bom rigor, o despacho carece efectivamente de retificação, por forma a que do mesmo conste que apenas o cabeça de casal tem um crédito sobre o património comum do casal sobre as 50% das prestações, pois a contribuição da interessada já foi considerada na aquisição do veículo, que agora é sua propriedade exclusiva por força do pagamento do valor residual.”
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2) Inconformada com o assim decidido, a Requerente / Recorrente interpôs o presente recurso, através do qual pretende a revogação do despacho de 4 de julho de 2023 “no sentido de não ser reconhecido ao Requerido / Recorrido o crédito ali atribuído”, nos termos das seguintes conclusões:

“1- A decisão recorrida, carece de suporte e fundamentação legal, que o Tribunal “a quo” não indica, nem esclarece, resultando tal decisão, aparentemente de um mero raciocínio ou presunção por parte do Tribunal recorrido, que não sustenta o despacho recorrido em qualquer norma jurídica, decidindo apenas segundo a sua perspetiva.
2- A decisão recorrida viola pois os arts. 607º, nº 3, e 608º, nº 2 do CPC, o que gera a nulidade de tal decisão, ao abrigo do art.º 615º n.º 1 al. b) do C.P.C. o que se invoca para os devidos e legais efeitos.
3 - Padece a decisão recorrida de um erro de julgamento, consubstanciado na errada interpretação do direito, afetando e viciando a decisão, no sentido em que, atribui o Tribunal “a quo” ao recorrido, um direito de crédito de que não pode beneficiar, por não ter qualquer suporte legal.
4 - Considerou erradamente o Tribunal “a quo” que o cabeça de casal/recorrido, tem um crédito sobre o património comum do casal correspondente a 50% das prestações pagas na vigência de um contrato de aluguer de longa duração de um veículo, por tal veículo ter vindo a ser adquirido pela recorrente e com recurso a bens próprios já após dissolução do matrimónio.
5 - Tendo a recorrente, adquirido a propriedade do referido veículo ..., após o divórcio e com recurso a dinheiro próprio seu, o bem em causa, passou a ser um bem próprio desta, nos termos dos artigos 874º e 879º al. “a”, 1316º e 131º al. “a” todos do C.C., o que foi já confirmado pelo Tribunal recorrido.
6 - A inclusão do veículo ..., no acervo patrimonial comum a partilhar nos presentes autos, padeceu desde o início de manifesto erro, comum á recorrente e recorrido, pois caso tivessem efetivo conhecimento e/ou consciência dos direitos inerentes ao contrato de aluguer que celebraram, teriam assumido “ab initio” que tal veículo nunca foi propriedade deles, tal verba, nunca teria constado da relação de bens dos presentes autos e consequentemente, também nenhum crédito a favor do recorrido teria sido relacionado.
7 - A quantia de € 17.643,72 a pagar pela recorrente, no final do contrato, caso optasse por adquirir o veículo, ficou previamente estabelecida e seria sempre a mesma, independentemente da recorrente exercer – ou não – aquela opção de compra e caso não tivesse optado por adquirir o veículo, a recorrente apenas teria de proceder à sua devolução, de forma imediata à ..., considerando-se o contrato de aluguer dessa forma cessado, o que também não geraria qualquer crédito ao recorrido sobre o património comum nos termos em que o Tribunal “a quo” agora justifica a sua existência.
8 – O contrato de aluguer, não gera a favor de nenhum dos contraentes, qualquer direito de crédito, na medida em que, a contrapartida pelo pagamento da renda, foi precisamente a utilização daquele bem e nunca esteve em causa um contrato de compra e venda do veículo.
9 – O Tribunal “a quo” não indica em que normas jurídicas se baseou para concluir que no contrato em apreço, o valor final de compra e venda, tem sempre de ter por base obrigatoriamente os valores pagos na vigência do contrato, nem tal resulta de qualquer prova apresentada pelo recorrido nos autos.
10 - Talqualmente sucede num contrato de arrendamento habitacional, o preço a pagar pela opção de aquisição do imóvel não tem obrigatoriamente de ter subjacente as rendas anteriormente pagas, como contrapartida do próprio aluguer de que se beneficiou!
11 - Também não está demonstrado nos autos que o montante pago, durante a vigência do contrato de aluguer de longa duração do veículo ..., constituiu todo ele património comum do ex-casal, sendo certo que em momento algum o cabeça de casal referiu e/ou fez prova de tal facto.
12 - Na falta de acordo dos interessados, inexistindo elementos de prova nos presentes autos que permitam resolver tal questão com segurança e havendo que se produzir prova sobre a mesma, sempre deveria o Tribunal recorrido ter remetido tal questão para os meios comuns, o que não fez!
13 – Também o Tribunal “a quo” não esclarece qual o período durante o qual entende ser devido tal crédito a favor do recorrido, se na vigência do matrimónio, se mesmo após o divórcio, período este, durante o qual, o recorrido se manteve na posse abusiva e exclusiva do veículo e deste usufruiu precisamente como contrapartida pelo pagamento das rendas devidas.
14 – A atribuição de tal crédito ao recorrido, consubstanciará um manifesto Enriquecimento Sem Causa do recorrido.
15 – A decisão recorrida permitirá ao recorrido obter uma vantagem económica à custa da recorrente, porquanto não só o recorrido sempre beneficiou do direito de uso e fruição do veículo, como posteriormente á dissolução do matrimónio, foi a recorrente, quem liquidou junto da ..., o valor por aquela exigido para a compra do veículo, com recurso a capitais próprios, inexistindo qualquer elemento de prova nos autos - nem o Tribunal recorrido sustentou legalmente - que tal valor esteja sempre obrigatória e diretamente relacionado com as rendas/prestações pagas na vigência do contrato, ou que as mesmas tenham sido no caso concreto, pagas com recurso a bens comuns e/ou próprios do recorrido.”
O Recorrido não respondeu.
O recurso foi admitido como apelação, com subida nos autos e efeito suspensivo, o que não foi alterado neste Tribunal ad quem.
Na sequência de despacho do Relator, Recorrente e Recorrido foram convidados a pronunciarem-se sobre a possibilidade de o recurso ser julgado procedente com fundamento na ineficácia do despacho recorrido (despacho de 4 de julho de 2013) em resultado do poder jurisdicional do Tribunal a quo ter ficado esgotado com a prolação do despacho de 24 de abril de 2023.
Foram colhidos os vistos dos Exmas. Srs. Juízes Desembargadores Adjuntos.
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II.
As conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo da ampliação deste a requerimento do recorrido (arts. 635/4, 636 e 639/1 e 2 do CPC). Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas, salvo se forem do conhecimento oficioso (art. 608/2, parte final, ex vi do art. 663/2, parte final, ambos do CPC).
Também não é possível conhecer de questões novas – isto é, de questões que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida –, uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação.
Deste modo, as questões que se colocam podem ser sintetizadas nos seguintes termos:
1.ª Saber se o despacho recorrido é ineficaz, por o poder jurisdicional quanto à questão que nele foi conhecida ter ficado esgotado com a prolação do despacho de 14 de abril de 2023;
2.ª Em caso de resposta negativa, saber se o despacho recorrido, ao reconhecer um crédito do Recorrido sobre o património comum do dissolvido casal, enferma de erro no enquadramento jurídico dos factos.
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III.       
1) Na resposta às questões enunciadas, há que considerar os factos revelados pelo iter processual que ficaram descritos no relatório que constitui a parte I. deste Acórdão.
Há que considerar ainda os seguintes factos:
a) Por escrito denominado “Contrato de Aluguer de longa duração a consumidor”, com o n.º ...89, datado de 23 de janeiro de 2019, EMP01... – Sociedade Financeira de Crédito, SA, através de um seu representante, na qualidade de Locadora, e a Recorrente, na qualidade de Locatária, declararam que:
“Bem/veículo: Marca: ... – Modelo: A ...00 ... (…)
Matrícula: ..-VZ-..
Valor de aquisição: € 29 902,44 – IVA: € 6 877,56 – Valor Total (IVA incluído): € 36 780,00
Quilometragem contratada: 15 000 km/ano – Excesso de quilómetros: € 0,05 €/km
Tipo de crédito: Crédito automóvel – ALD – Novos
Condições de utilização: Transferência para o fornecedor do bem.
O presente contrato de aluguer de longa duração, considerando os critérios constantes da Norma ..., é qualificado como Locação Financeira, comprometendo-se Locador e Locatário a adotar essa mesma classificação tão-somente para efeitos contabilísticos.
(Serviços não cobertos pelo financiamento):
Seguros obrigatórios: Danos próprios e responsabilidade civil nos termos das Condições Gerais
Pagamentos:
Montante total do crédito: € 26 780,00
Montante imputado ao consumidor: € 39 626,57
TAEG: 2,9045%
Taxa nominal: 2,5000%
Spread: 2,870%
Taxa de referência: Euribor 1 mês
Forma de pagamento: SDD
Regime da taxa de juro: Variável
Taxa de juro de mora: 5,5000%
Prazo: 48 meses
Periodicidade: Mensal
Natureza dos alugueres: Antecipada
Regime de alugueres: Constantes

(…)DescriçãoN.º Pag.Valor s/IVAIVAValor IVATotal
Caução10,000%€ 0,00€ 0,00
1.º aluguer1€ 3 886,18 23%€ 893,82€ 4 780,00
Restantes alugueres47€ 291,4423%€ 67,03€ 358,47
Valor de compra1€ 14 344,4923%€ 3 299,23€ 17 643,72
Comissão de ativação1€ 170,7323%€ 39,27€ 210,00
Comissão de gestão47€ 2,5023%€ 0,58€ 3,08

(…)
Condições gerais:
Cláusula 1.ª – Objeto: 1. O locador dá de aluguer ao locatário, o qual toma de aluguer ao primeiro, o veículo nos termos e condições constantes do presente contrato. (…)
Cláusula 2.ª – Início da vigência e prazo do aluguer: (...) 4. O presente contrato durará pelo prazo previsto nas Condições Particulares e até ao fim do período a que respeita o último aluguer. (…)
(…)
Cláusula 4.ª – Alugueres e contraprestações por outros serviços: 1. O locatário pagará ao locador os alugueres cujo valor, periodicidade e número estão indicados nas Condições Particulares, acrescidas dos impostos devidos à taxa legal em vigor na data dos respetivos vencimentos. (…)
(…)
Cláusula 7.ª – Obrigações do locatário: Para além das obrigações previstas no presente contrato, o locatário obriga-se ainda a: a) utilizar o veículo e respetiva documentação de modo normal, diligente e prudente, cumprindo todas as normas, legais e regulamentares, aplicáveis à sua utilização, bem como as indicações do fornecedor e do fabricante e/ou importador; b) não utilizar o veículo em provas desportivas, de qualquer natureza, provas de rendimento ou acontecimentos similares, bem como no ensino da condução e, de um modo geral, não o utilizar para fins diversos daquele a que se destina; c) respeitar e a fazer respeitar as normas de utilização descritas nas instruções de serviço do veículo e, em caso de avarias, a tomar todas as medidas para minorar essas avarias; d) submeter o veículo a inspeções segundo os intervalos e instruções de manutenção preconizados pela marca, utilizando peças originais ..., líquidos, lubrificantes e óleos autorizados e homologados pela marca (…); e) assegurar a manutenção, conservação e reparação, normal ou extraordinária, do veículo (…); (…) g) avisar imediatamente o locador de qualquer vício, defeito ou deterioração anormal do veículo bem como de qualquer perigo que o ameace (…)
(…)
Cláusula 9.ª – Responsabilidade pelo veículo: 1. Os riscos de perda, deterioração, defeito de funcionamento e imobilização do veículo correm por conta do locatário, o qual será responsável por tais factos junto do locador (…) / 2. A imobilização do veículo ou privação do respetivo uso não imputável ao locador não exime o locatário da obrigação de pagamento dos alugueres nos termos do presente contrato, não ficando o locador obrigado a proceder à substituição do veículo imobilizado ou de cujo uso o locatário tenha sido privado.           
(…)
Cláusula 11.ª – Aquisição / devolução do veículo: 1. No final do prazo do presente contrato e desde que nessa data não estejam por liquidar ao locador dívidas vencidas, o locatário poderá proceder à aquisição do veículo mediante o pagamento do valor de compra e venda, ficando a transferência da propriedade sobre o veículo condicionada ao efetivo pagamento daqueles valores. Caso o locatário não pretenda exercer a opção de compra deverá comunicar tal facto ao locador através de carta registada enviada com a antecedência mínima de 60 dias relativamente à data de vencimento do valor de compra e venda. / 2. Não sendo exercida a opção de compra prevista no n.º 1 da presente Cláusula, o locatário deverá proceder à imediata devolução do veículo, ao locador, bem como de toda a documentação que lhe foi entregue (…), nos termos previstos nas alíneas seguintes: a) o veículo deverá ser restituído sem quaisquer danos e em perfeito estado de conservação e funcionamento, ressalvadas as deteriorações inerentes a um uso prudente (…)”, tudo conforme documento n.º ... apresentado sob a ref. Citius ...87, cujo conteúdo aqui damos por integralmente reproduzido;
b) Os 48 alugueres previstos no contrato foram pagos;
c) No dia 19 de janeiro de 2023, a Recorrente procedeu à transferência, para a conta da ..., da quantia de € 17 643,72, destinada ao pagamento do valor de compra do identificado veículo.
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1).2. O facto da alínea a) resulta do documento supra identificado, apresentado pela Recorrente com o articulado da reclamação e não impugnado pelo Recorrido; os factos das alíneas b) e c) foram alegados pela Recorrente no articulado da reclamação e admitidos pelo Recorrido na resposta que a ele apresentou.
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2).1.1.1. Vejamos a resposta a dar à primeira das questões enunciadas.
Com a sentença, o juiz deixa de poder pronunciar-se sobre o objeto da causa. É o que se designa por “esgotamento do poder jurisdicional” (art. 613/1 do CPC).
A sentença atinge, assim, o primeiro nível de estabilidade. Trata-se de uma estabilidade interna, restrita ao órgão que a proferiu (Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, II, Coimbra: Almedina, 2021, p. 174). O segundo nível, já alargado, vinculando o tribunal e as partes, dentro do processo (art. 620), ou mesmo, fora dele, outros tribunais (art. 619), apenas será atingido quando a sentença transitar em julgado, nos termos do art. 628/1.
Aquele primeiro nível de estabilidade significa que, prolatada a sentença, o tribunal não a pode revogar, por perda de poder jurisdicional. Trata-se de uma regra de proibição do livre arbítrio e discricionariedade na estabilidade das decisões judiciais, fundada nos princípios da segurança jurídica e da imparcialidade do juiz. Como explica Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, V, reimpressão, Coimbra: Coimbra Editora, 1984, p. 127, “[q]ue o tribunal superior possa, por via do recurso, alterar ou revogar a sentença ou despacho, é perfeitamente compreensível; que seja lícito ao próprio juiz reconsiderar e dar o dito por não dito, é de todo intolerável, sob pena de se criar a desordem, a incerteza, a confusão.”
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2).1.2. A regra comporta, todavia, ressalvas, conforme resulta, claramente, do n.º 2 do art. 613, onde se diz que “[é] lícito, porém, ao juiz retificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença, nos termos dos artigos seguintes.”
Estão em causa, portanto, as situações em que o juiz pode retificar erros materiais (art. 614), suprir nulidades (art. 615) e reformar a sentença (art. 616). Este regime, previsto para as sentenças, é aplicável aos despachos (art. 613/3 do CPC).
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2).1.2.1. Sobre as primeiras (retificação de erros materiais) diz o art. 614/1 que “[s]e a sentença omitir o nome das partes, for omissa quanto a custas ou a algum dos elementos previstos no n.º 6 do art. 607.º, ou contiver erros de escrita ou de cálculo ou quaisquer inexatidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto, pode ser corrigida por simples despacho, a requerimento de qualquer das partes ou por iniciativa do juiz.”
Deixando de lado a omissão de custas ou da indicação da proporção a que se refere o n.º 6 do art. 607 do CPC, constatamos que a lei inclui no perímetro possível de rectificações: o suprimento da omissão de indicação do nome das partes; a correcção de erros de escrita ou de cálculo ou de quaisquer inexactidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto.
O erro material é habitualmente caracterizado como uma divergência entre a vontade real e a vontade declarada do juiz, o que o aproxima, em termos conceptuais, da figura do erro-obstáculo própria do direito civil (STJ 12.02.2009, 08A2680; RP 2.06.2014, 3953/12.2TBVNG-B-P1). Ocorre assim quando “o juiz escreveu uma coisa diversa daquela que queria escrever” (RC 10.03.2015, 490/11.6TBOHP-D.C2). Distingue-se do erro de julgamento que ocorre quando há uma divergência entre a verdade fáctica ou jurídica e a afirmada na decisão. Nestes, o erro reside na própria vontade do juiz, sendo o remédio o recurso destinado a uma modificação ou alteração substancial da decisão (art. 627/1) ou, quando este não seja admissível, a reforma (cf. art. 616/2).
Reconhecendo a dificuldade em apurar a vontade real do juiz, a lei impõe um requisito para que o erro material releve qua tale: a sua natureza manifesta. Erro manifesto é aquele que facilmente se deteta e evidencia por si próprio e no contexto em que a declaração é exarada, à semelhança do que sucede com os erros de cálculo ou de escrita dos atos das partes (art. 146/1). Neste sentido, STJ 26.11.2015 (706/05.6TBOER.L1.S1), onde se conclui que “[n]ão pode ser qualificada como retificação uma alteração da parte decisória do acórdão cuja incorreção material se não detetava da leitura do respetivo texto.” E evidencia-se não apenas para o juiz que proferiu na decisão, mas também para quem a lê (RC 10.03.2015, 490/11.6TBOHP-D.C2).
Isto transmite claramente a ideia de que, não obstante o erro, quem lê a decisão percebe claramente qual o seu sentido, de modo que as alterações introduzidas não podem por definição, assumir natureza inovatória (RG 30.11.2022, 2273/07.9TBBCL-N.G1). Só assim se compreende, de resto, que a retificação possa ter lugar a qualquer momento, oficiosamente ou a requerimento das partes, mesmo depois do trânsito em julgado da decisão (RG 22.11.2018, 56/18.0T8BRG.G1).
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2).1.2.2. Na segunda ressalva à regra do esgotamento do poder jurisdicional (supressão de nulidades) estão em causa os vícios formais da sentença, extrínsecos ao ato de julgamento propriamente dito, antes relacionados com a sua exteriorização ou com os seus limites. Neste sentido, inter alia, RG 4.10.2018 (1716/17.8T8VNF.G1), RG 30.11.2022 (1360/22.8T8VCT.G1), RG 15.06.2022 (111742/20.8YIPRT.G1), RG 12.10.2023 (1890/22.1T8VCT.G1).
A este propósito, diz o art. 615/1 que “[é] nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.”
No caso, importa que se atente na causa de nulidade prevista na 2.ª parte da alínea c) (“ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”), pois foi a alegada verificação desta que esteve na génese do requerimento da ora Recorrente de 30 de maio de 2023, em resposta ao qual foi proferido o despacho recorrido.
Estão aí em causa as situações em que o sentido da decisão não é percetível (obscuridade) ou em que se presta a interpretações diferentes (ambiguidade). No dizer de Alberto dos Reis (Código de Processo Civil Anotado, V, reimpressão, Coimbra: Coimbra Editora, 1984, p. 152), “[n]um caso não se sabe o que o juiz quis dizer; no outro hesita-se entre dois sentidos diferentes e porventura opostos. É evidente que, em última análise, a ambiguidade é uma forma especial de obscuridade. Se determinado passo da sentença é suscetível de duas interpretações diversas, não se sabe, ao certo, qual o pensamento do juiz.” No mesmo sentido, na jurisprudência, STJ 11.10.2022 (77/18.2T8CLD-C.C1.S2), STJ 31.01.2023 (2759/17.7T8VNG.P2.S1), STJ 1.06.2023 (1203/19.0T8MTS.P1.S2) RE 3.11.2016 (1774/13.4TBLLE.E1) e RG 4.04.2019 (2030/17.4T8VRL.G). A ambiguidade ou obscuridade relevante não é apenas aquela que afeta o dispositivo; é também a que se verifica quanto aos fundamentos. Não é, porém, qualquer ambiguidade ou obscuridade que provoca a nulidade da sentença, mas apenas aquela que torna a decisão ininteligível. Ou seja, quando a decisão e o raciocínio que lhe está subjacente (o silogismo judiciário) não se logra entender, por surgir como enigmático, impenetrável, inacessível.
Na vigência do CPC de 1961, o art. 669/1, a), permitia que qualquer das partes requeresse no tribunal que proferiu a sentença o esclarecimento de alguma obscuridade ou ambiguidade.
Discutia-se então se o pedido de aclaração apenas podia recair sobre o segmento decisório ou se também podia ter como objeto a fundamentação. Na doutrina e na jurisprudência prevalecia o segundo entendimento. A propósito, Lebre de Freitas / A. Montalvão Machado / Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, II, Coimbra: Coimbra Editora, 2011, pp. 672-673.
A decisão que deferisse o pedido de aclaração considerava-se complemento e parte integrante da sentença (art. 670/2, parte final).
Sendo requerida a aclaração da sentença, o prazo para a interposição de recurso só começava a correr depois de notificada a decisão proferida sobre o requerimento (art. 686/1).
No CPC de 2013, aprovado pela Lei n.º 41/2003, de 26.06, o regime é substancialmente diferente.
Assim, o Código atual eliminou os pedidos de aclaração da sentença, conforme resulta do respetivo art. 616 (que corresponde ao art. 669 do CPC de 1961). Concomitantemente, passou a considerar causa de nulidade da sentença a ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível (art. 615/1, c)). O legislador parte do pressuposto de que uma decisão ambígua ou obscura padece de um vício estrutural que a torna imprestável e justifica que seja considerada nula.
Esta nulidade tem, porém, um regime próprio de arguição, previsto no n.º 4 do art. 615. De acordo com este, (a)) se a sentença admitir recurso ordinário, a nulidade deve ser arguida como fundamento autónomo deste, perante o tribunal ad quem; (b)) se a sentença não admitir recurso ordinário, a nulidade deve ser arguida perante o tribunal que proferiu a sentença, através de reclamação.
a) Na primeira hipótese, interposto o recurso em que é arguida a nulidade, compete ao juiz apreciá-la no próprio despacho em que se pronuncia sobre a admissibilidade do recurso (art. 617/1, 1.ª parte).
Nesta sequência,
(i) Se o juiz indeferir a arguição não cabe recurso dessa decisão, prosseguindo o recurso para apreciação da questão (art. 617/1, 2.ª parte). Assim, como explicam Lebre de Freitas / Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado, II, 4.ª ed., Coimbra: Almedina, 2019, p. 745), “sendo ininteligível a parte decisória, o prosseguimento do recurso visa conferir-lhe um conteúdo inteligível, evitando a nulidade (em sentido próprio), de outro modo irremediavelmente existente.”
(ii) Se o juiz suprir a nulidade, considera-se o despacho proferido como complemento ou parte integrante da sentença, ficando o recurso interposto a ter como objeto a nova decisão (art. 617/2). Neste caso, o recorrente pode, em dez dias, desistir do recurso, alargar ou restringir o respetivo âmbito, em conformidade com a alteração introduzida, permitindo-se que o recorrido responda a tal alteração, em igual prazo (art. 617/3). Se o recorrente, por ter obtido o suprimento pretendido, desistir do recurso, pode  o recorrido, no mesmo prazo, requerer a subida dos autos para decidir da admissibilidade pretendida (art. 617/4). Como referem Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado cit., p. 746), o termo admissibilidade é incorreto: “o tribunal superior pronunciar-se-á, sim, sobre o conteúdo da alteração, isto é, sobre o novo conteúdo da sentença (que a alteração integra) e não sobre se era admissível alterar a sentença.”
b) Na segunda hipótese, arguida a nulidade perante o juiz que proferiu a sentença, por dela não caber recurso ordinário, o juiz profere decisão definitiva sobre a questão suscitada; no entanto, se a alterar, a parte prejudicada com a alteração pode recorrer, mesmo que a causa esteja compreendida na alçada do tribunal, não suspendendo o recurso a exequibilidade da sentença (art. 617/6, 1.ª parte).
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2).1.2.3. Na segunda ressalva à regra do esgotamento do poder jurisdicional (reforma) estão em causa situações em que o juiz incorreu em lapso manifesto: na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos [(al. a)]; na não consideração de documentos ou outros meios de prova plena que, só por si, implicassem decisão diversa da proferida [al. b)].
Como ensinam António Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Luís Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, I, Coimbra, 2018, p. 729, o lapso manifesto a que se reporta esta norma tem de ser “evidente e incontroverso, revelado por elementos que são exteriores ao despacho, não se reconduzindo à mera discordância quanto ao decidido.”
No mesmo sentido tem decidido a jurisprudência do STJ, como se pode ver no Acórdão de 18.03.2021 (1012/15.5T8VRL-AU.G1-A.S1), relatado pelo Juiz conselheiro Ilídio Sacarrão Martins, do qual respigamos a seguinte passagem:
“É pressuposto desta reforma a existência de “lapso manifesto”, ou na determinação da norma aplicável, ou na qualificação jurídica dos factos (alíneas a) e b)), ou, finalmente, (alínea b)) na desconsideração de elementos de prova (documental ou outra) constantes dos autos e que, se atendidos, implicariam necessariamente decisão diversa da proferida.
(…)
A reforma da decisão não é um recurso – nem na modalidade de reapreciação ou reponderação, nem da de reexame (aqueles, ao contrário destes, sem possibilidade de “jus novarum”) –, pelo que não pode servir para mera manifestação de discordância do julgado, mas apenas, e sempre perante o juízo decisor – tentar suprir uma deficiência notória.”
Com efeito, importa não esquecer aqui que a possibilidade de reforma de decisão judicial, ao abrigo do preceituado nos arts. 613/2 e 616/2 do CPC constitui um limite ao princípio estruturante consagrado no art. 613/1 do mesmo Código, que impõe a extinção do poder jurisdicional do juiz depois de proferida a decisão.
Como exemplo de erros revelados por recurso a elementos exteriores à decisão, para efeitos de possibilidade da sua reforma à luz do art. 616/2, Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, II, 4.ª ed., Coimbra: Almedina, 2019, p. 742, apresentam os casos em que o juiz aplica uma norma revogada, omite a aplicação de um norma existente, qualifica os factos com ofensa de conceitos ou princípios elementares de direito ou não repara que está feita a prova documental, por confissão ou por admissão de certo facto, incorrendo assim em erro grosseiro.
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2).1.3. Isto dito, no caso vertente, verifica-se que o Tribunal a quo decidiu, no despacho de 14 de abril de 2023, eliminar o veículo VZ da relação de bens, considerando que o mesmo “nunca foi bem comum do casal, pois estava na posse do dissolvido casal por força da celebração de um contrato de aluguer de longa duração.” Concomitantemente, determinou que da relação de bens passasse a constar, “em substituição do veículo ..-VZ-.., (…) como crédito de cada um dos interessados sobre o património comum[,] o valor correspondente a 50% das prestações pagas, desde a celebração do contrato até à aquisição pela requerente.”
Notificada deste despacho, a Recorrente requereu, por via incidental, que o Tribunal a quo que o aclarasse, com fundamento em obscuridade.
Não era esse, mas a interposição do recurso, o meio processual adequado à finalidade pretendida. Com efeito, o despacho de 14 de abril de 2023 admitia recurso, atento o valor processual da causa, superior à alçada da 1.ª instância (arts. 627/1, 629/1, 630,  a contrario, e 1123/1) – e recurso autónomo (art. 1123/2, b)) –, sendo esse o meio processual adequado à sua impugnação, quer com fundamento em vícios estruturais, quer com fundamento em erro no julgamento dos factos e do direito – o denominado error in judicando.
Deste modo, quando confrontado com o requerimento da
Recorrente, o Tribunal
a quo não podia conhecer do que nele era pedido (a aclaração do despacho de 14 de abril de 2023), sem mais, no âmbito da reclamação incidentalmente espoletada, por então estar esgotado o seu poder jurisdicional acerca da questão do relacionamento do veículo.
Não ignoramos que, conforme resulta do disposto no art. 193/3, seguida via processual errada, o tribunal procede oficiosamente à convolação[1] para a via adequada, desde que seja possível a utilização do requerimento apresentado. Também não ignoramos que, numa situação como a dos autos, feita essa convolação, o juiz readquire o seu poder jurisdicional no quadro do disposto nos arts. 615/4 e 617/1. O que entendemos é que a ordem dos fatores não pode ser invertida, sob pena de resvalarmos para o campo do arbítrio e da insegurança jurídica. Primeira há que fazer a convolação – o que pressupõe a prévia audição das partes – e só depois é possível a reapreciação da questão, como etapa do recurso.
Por outro lado, constatamos que, no despacho recorrido, ao conhecer do requerimento, o Tribunal a quo determinou a retificação daquilo que entendeu ser um lapso de escrita e, com base nisso, alterou o sentido da decisão que estava plasmada no despacho de 14 de abril de 2023, eliminando um dos créditos sobre o património comum que por este mandara aditar. Este singelo aspeto evidencia que o aquele lapso de escrita não era manifesto, pelo que estava vedada a sua retificação. Este juízo resulta fortalecido pelo que foi escrito no despacho recorrido: estando em causa o pagamento de prestações realizado com “bens comuns” – e não com “bens próprios” de cada um dos cônjuges, conforme havia sido escrito –, a consequência lógica seria o relacionamento de um crédito compensatório do património comum sobre a Recorrente, assim beneficiada, e não um crédito do Recorrido sobre o património comum, conforme foi determinado.
A conclusão que se impõe é, assim, a de que o despacho recorrido foi proferido quando já estava esgotado o poder jurisdicional do Tribunal a quo.
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2).1.4. De acordo com Lebre de Freitas (A Ação Declarativa Comum, À Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3.ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 2013, pp.329-330, nota 38), a prolação de nova decisão fora dos casos dos casos contemplados no n.º 2 do art. 613 (retificação de erros materiais, supressão de nulidades e reforma da sentença) constitui uma nulidade processual, sanável pela falta de tempestiva arguição.
Este entendimento não é, porém, consensual na doutrina e na jurisprudência.
Assim, de acordo com Paulo Cunha, Da Marcha do Processo: Processo Comum de Declaração, II, 2.ª ed., Braga, 1944, pp. 358-359, estamos perante uma verdadeira inexistência jurídica. Já para João de Castro Mendes, Direito Processual Civil, III, Lisboa: AAFDL, 1978/79, p. 300), trata-se antes de um caso de ineficácia, por aplicação analógica da norma do art. 675/2 do CPC de 1961, semelhante à do CPC de 2013, atualmente em vigor.
Na jurisprudência, considerou-se que a sentença proferida quando o poder jurisdicional estava esgotado é ineficaz em RC 24.04.2018 (3639/09.5TJCBR-A.C1), RG 16.05.2019 (838/12.6TBGMR-F.G1) e RG 14.09.2023 (120/16.0T8MGD.G2), este último relatado pelo Juiz Desembargador José Carlos Pereira Duarte, tendo como 2.ª adjunta as Juízas Desembargadoras Maria Gorete Morais e Maia João Marques Pinto de Matos. Em RG 2.03.2023 (120724/15.0YIPRT.1.G1-A) e em RL 23.03.2023 (10693/14.6T8LSB.L1-8) entendeu-se que a sentença é inexistente.
A nosso ver, conforme escrevemos, a necessidade de evitar a insegurança e a incerteza que está na base do primeiro grau de estabilidade das decisões judiciais justifica a exclusão da tese que reconduz o vício a uma simples nulidade processual, dependente de arguição. Esta não se coaduna nem com a gravidade do vício e o seu potencial de lesão para o sistema de administração da justiça nem com a letra do art. 613/1 que, através do advérbio de tempo imediatamente, vinca bem a relevância do princípio.
Por outro lado, sem entrar na discussão sobre se a inexistência constitui uma figura autónoma (inter alia, no domínio do negócio jurídico, Carlos Ferreira de Almeida, “Invalidade, inexistência e ineficácia”, Católica Law Review, I, n.º 2, maio de 2017, pp. 9-33), sempre notamos que subjacente a tal vício está a ideia de que sem sequer na aparência se verifica o corpus de um determinado ato ou, existindo embora a aparência, a realidade contradiz essa noção. Será o caso da sentença proferida por quem, pura e simplesmente, não é titular do poder jurisdicional ou a sentença que crie um estado de coisas impossível.
Não é o que sucede quando a sentença é proferida por um juiz, investido do poder jurisdicional de administrar a justiça em nome do povo, conforme diz o art. 202 da Constituição da República, mas que, por ter cumprido já essa sua obrigação (Alberto dos Reis, Código cit., p. 127), viu exaurido, na concreta situação, aquele seu poder.
Daí que nos pareça mais adequada a solução proposta no citado RC 24.04.2018 no sentido de considerar que a sentença proferida em tais circunstâncias é ineficaz nos mesmos termos em que o é a sentença proferida em afronta a uma outra, já transitada, que decidiu a mesma questão, por aplicação do disposto no art. 625/1 do CPC.
Como se escreve no aresto, “se a lei determina a ineficácia entre duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, no referido art. 625º do NCPC, paralisando a que transitou em segundo lugar, afigura-se-nos que semelhante raciocínio e consequência jurídica, pode ser feito e há-de ser tirada em relação à situação processual imediatamente antecedente, isto é, quando embora ainda não haja trânsito em julgado de nenhuma das decisões, tivessem sido proferidas duas, de seguida, de sinal contrário. Ou seja, perante a intangibilidade da primeira decisão a defesa da sua eficácia faz-se a montante, num momento anterior, em vez de se esperar que tal ineficácia se produza a jusante, num momento posterior.”
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2).1.5. Perante o que antecede, concluímos pela procedência do recurso, ainda que com fundamento diverso do invocado pela Recorrente, com a consequente revogação do despacho recorrido.
O conhecimento da segunda questão enunciada fica, assim, prejudicado.
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3) Vencido, o Recorrido deve suportar as custas: art. 527/1 e 2 do CPC.
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IV.
Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores que compõem o presente coletivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em:
Julgar procedente o presente recurso de apelação;
Declarar a ineficácia do despacho recorrido (despacho de 4 de julho de 2023), revogando o mesmo;
Condenar o Recorrido no pagamento das custas devidas pelo presente recurso.
Notifique.
*
Guimarães, 15 de fevereiro de 2024

Os Juízes Desembargadores,
Gonçalo Oliveira Magalhães (Relator)
Maria João Marques Pinto de Matos (1.ª Adjunta)
Pedro Manuel Quintas Ribeiro Maurício (2.º Adjunto)



[1] Este poder do tribunal refere-se ainda ao plano processual e insere-se, portanto, no âmbito dos poderes de condução do processo, sem afetar a relação substantiva subjacente, como frisa Maria dos Prazeres Beleza, “A harmonização dos poderes do juiz e das partes nos recursos cíveis”, Jurismat, 2022, n.º 15, pp. 219-232. Trata-se de um poder oficioso que também pertence ao tribunal de recurso (Miguel Teixeira de Sousa, Código de Processo Civil, CPC: arts. 130.º a 361.º, versão de 2023/10, p. 76, disponível no Blog do IPPC). A possibilidade de convolação não é ilimitada. O seu exercício pressupõe, a um tempo, que o ato processual praticado pela parte tenha respeitado os requisitos de ordem formal previstos para o meio processual adequado à finalidade pretendida (STJ 14.05.2019, 12/12.1TBGMR-F.G1.S2) e, a outro, que tenha sido praticado dentro do prazo perentório fixado para este. Não é admissível que, através da convolação oficiosa, a parte consiga praticar um ato processual cujo prazo para o seu exercício (atuando sem erros) já se encontraria expirado e, nessa medida, precludido. Neste sentido, expressamente, STJ 8.02.2018 (4140/16.6T8GMR.G1.S2), RP 5.03.2015 (3788/13.5YYPRT-A.P1) e RG 7.03.2019 (2305/17.2T8VNF-A.G1). Na doutrina, Maria dos Prazeres Beleza, “A harmonização dos poderes do juiz e das partes nos recursos cíveis” cit., p. 224, nota 16, Miguel Teixeira de Sousa, Código de Processo Civil Online cit., p. 76, nota 8, e Luís Filipe Espírito Santo, Recursos Civis, Lisboa: Cedis, 2020, p. 239.