Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3122/18.8T8VCT.G1
Relator: JOSÉ ALBERTO MOREIRA DIAS
Descritores: COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
CONCESSÃO DE TRANSPORTE PÚBLICO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/19/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (do relator):

1- A competência, em razão da matéria, dos tribunais judiciais é residual, genérica ou não discriminada, pelo que essa competência estende-se a todas as relações jurídicas que não estejam atribuídas, por lei, a outras jurisdições.

2- O pressuposto processual da competência, em razão da matéria, do tribunal para conhecer de determinado litígio que lhe é submetido é aferido unicamente em função da relação material controvertida (causa de pedir, pedido e sujeitos), tal como ela é delineada pelo autor na petição inicial.

3- Para se aferir se a competência material para conhecer de determinado litígio submetido a tribunal pertence aos tribunais judiciais ou aos tribunais administrativos e fiscais, impõe-se verificar se a relação jurídica delineada pelo demandante se subsume a alguma das previsões legais das alíneas a) a n), do n.º 1 do art. 4º do ETAF, devendo, no caso positivo, concluir-se que a competência material para conhecer dessa relação pertence aos tribunais administrativos e fiscais, independentemente dessa relação jurídica consubstanciar ou não uma “relação jurídica administrativa”. No caso negativo, impõe-se verificar se essa relação jurídica controvertida delineada pelo demandante consubstancia ou não uma “relação jurídica administrativa”, devendo, no caso positivo, concluir-se que a competência material para dela conhecer cabe à jurisdição administrativa e fiscal. No caso negativo, pertencerá aos tribunais judiciais.

4- “Relação jurídica administrativa” é aquela que se estabelece entre, pelo menos, dois sujeitos, um dos quais é necessariamente a administração ou qualquer entidade pública, ou privada, dotados de poder e autoridade pública, regulada pelo direito administrativo e da qual resultem posições jurídicas subjetivas.

5- No contrato de concessão de serviço público, o Estado ou as entidades públicas a quem incumbe legalmente prestar o serviço público concessionado, transfere a gestão desse serviço para uma entidade privada (o concessionário) para que esta passe a gerir esse serviço segundo a lógica do mercado.

6- No contrato de concessão de serviço público impõe-se distinguir: a) a relação concedente/concessionário, que é uma relação jurídica administrativa, regulada pelo direito administrativo, em que o concedente atua sobre o concessionário revestido de “iuris imperium”, para cuja apreciação é materialmente competente a jurisdição administrativa; e b) a relação concessionário/utente do serviço público (ou terceiros), que é uma relação derivada do contrato de concessão, mas uma relação privada, sujeita ao direito privado, para cuja apreciação são materialmente competentes os tribunais judiciais.

7- A competência material para conhecer de ação de indemnização fundada no instituto da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, intentada pelo concessionário do serviço público de transporte urbano de passageiros, contra terceiros (os demandados, que são entidades privadas, não outorgantes no contrato de concessão) por alegada violação pelos últimos do direito subjetivo do demandante (derivado do contrato de concessão, que celebrou com o Município concedente) em, durante dez anos e em regime de exclusividade, efetuar o serviço público de transporte de passageiros dentro da área territorial que lhe foi concessionada, pertence aos tribunais judiciais.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães.

Relatório

Recorrente: (…) S.A.
Recorridas: (…) Lda. e (…).

(…) Lda., com sede na Avenida dos (…) X, instaurou a presente ação declarativa, com processo comum, contra (…) e (…) S.A., ambas com sede na (…) X, pedindo que:

a- se declare que a Autora (…), Lda. é titular do direito de concessão dos transportes urbanos da área de (..), que abrange as freguesias de (…) em regime de exclusividade;
b- se condene as Rés (..). e (…) S.A., a reconhecerem esse direito;
c- se condene solidariamente as Rés (..) Lda. e (..) S.A. a pagarem à Autora (..) Lda., o montante de 45.945,34 euros, acrescido de juros, à taxa legal, a contar da citação e até efetivo e integral pagamento;
d- se condene solidariamente as Rés (…) Lda. e (…)S.A., a pagarem à Autora(…) , Lda., os prejuízos que a sua descrita conduta lhes causar a partir do dia 1 de janeiro de 2018 e até ao trânsito em julgado da sentença que vier a ser proferida nos autos, a liquidar ulteriormente;
e- se condene solidariamente as Rés (..) Lda. e (…) S.A., no pagamento à Autora de uma indemnização de 500,00 euros, por cada passageiro que embarque e/ou desembarque dentro da área de concessão dos transportes urbanos de (…) , no período referido na alínea anterior do pedido.
Para tanto alega, em síntese, dedicar-se, com escopo lucrativo, à atividade de transportes públicos de passageiros;
No ano de 2015, o Município de (..) lançou concurso público tendo por objeto a concessão do serviço público de transportes coletivos de passageiros das áreas urbanas de X e freguesias limítrofes, ao qual concorreu a Autora, ficando graduada em primeiro lugar;
Por via disso, por escritura de concessão de serviço público de transportes coletivos de passageiros da área urbana e freguesias limítrofes, outorgada em 22/09/2015, o Município de X adjudicou-lhe a concessão dos transportes urbanos da área urbana de X e freguesias limítrofes, pelo prazo de dez anos, em regime de exclusividade;

Nos termos do art. 30º, n.º 5 da Postura Regulamentar do Trânsito na Área da Cidade de X, na redação que lhe foi conferida pela deliberação de 25/06/2010 da Câmara Municipal de X, o perímetro de ação dos transportes urbanos da área de X, abrange as freguesias de (...);

Acontece que não obstante, pelo menos, a 1ª Ré conhecer o caderno de encargos daquele concurso, a que concorreu, e de ambas conhecerem a Postura Regulamentar acima referida, as Rés, com especial incidência no início do ano de 2016, efetuaram transportes de passageiros dentro da área de concessão dos transportes urbanos de X, fazendo-o, estrategicamente, sempre uns minutos à frente dos autocarros da Autora, nos horários com mais procura, para lhe retirar os passageiros, e a preços anormalmente baixos, em alguns casos, a menos de metade do preço praticado pela última;

Acresce que sem prévia autorização da Autora e/ou do Município de X, as Rés alteraram a imagem dos veículos da sua frota, com o propósito de se assemelharem aos veículos da Autora e de confundirem os passageiros;

Com as descritas condutas, as Rés causaram prejuízos à Autora, cuja indemnização esta reclama, e não obstante as diligências que esta e o Município de X encetaram com vista a que as Rés pusessem termo a essas condutas, as mesmas prosseguem com estas, avolumando os prejuízos causados à Autora.

As Rés contestaram impugnando parte da factualidade alegada pela Autora, sustentando que dispõem de alvarás e títulos de concessão para prestação de serviços público nas freguesias de (...) e não terem prestado serviço nas freguesias de (...).
Concluem pela improcedência da ação, pedindo que sejam absolvidas do pedido.

Por despacho proferida em 09/01/2019, fixou-se o valor da ação em 65.945,34 euros, e declarou-se incompetente, em razão do valor, a Instância Local Cível de X para conhecer dos ulteriores termos da ação e competente para o efeito a Instância Central Cível de X, para onde, após trânsito deste despacho, ordenou-se a remessa dos autos.

Remetidos os autos ao Juízo Central Cível de X, por despacho proferido em 06/02/2019, ordenou-se a notificação das partes, nos termos dos arts. 3º, n.º 3 e 6º do CPC, para se pronunciarem sobre a exceção da incompetência absoluta material do Tribunal Cível para conhecer da pretensão formulada pela Autora.

Apenas a Autora se pronunciou, o que fez por requerimento entrado em juízo em 13/02/2019, em que propugna pela não verificação daquela exceção, sustentando, nuclearmente, que a causa de pedir é à responsabilidade civil extracontratual das Rés e os danos que daí advieram para a Autora; que na relação jurídica constituída não intervém, a título principal ou acessória, qualquer entidade pública ou privada dotada ou investida de poderes públicos; que a Autora e Rés são entidades privadas e foi na esfera do direito comum que a relação material controvertida foi configurada e estruturada; que os pedidos que formulou de reconhecimento do seu direito de concessão dos transportes urbanos da área de X e de condenação das Rés no reconhecimento desse direito são meramente instrumentais em relação aos pedidos por perdas e danos que formula nas alíneas c), d) e e) do petitório e que tais pedidos não emergem, sequer têm subjacente, uma relação jurídica administrativa.

Em 28/02/2019 proferiu-se despacho, conhecendo da exceção da incompetência absoluta, em razão da matéria, dos tribunais judiciais para conhecer dos autos, julgando essa exceção procedente e, em consequência, absolvendo as Rés da instância, constando essa decisão da seguinte parte dispositiva:

“Pelo exposto, e ao abrigo do disposto nas normas citadas e ainda nos art.ºs 278º, nº 1, al. a), 576º, nºs 1 e 2 e 577º, al. a), do NCPC, declaro este tribunal incompetente em razão da matéria e, em consequência, absolvo os réus da instância.
Custas pela autora (cfr. art.º 527º, do citado diploma legal)”.

Inconformada com esta decisão, a Autora interpôs o presente recurso de apelação, em que formula as seguintes conclusões:

I – O presente recurso tem por objeto a douta sentença proferida nos autos que, sem se pronunciar sobre o mérito da causa, declarou o Tribunal incompetente em razão da matéria, nos termos do disposto nos artigos 278º, nº 1, alínea a), 576º, nºs 1 e 2, e 577º, alínea a), do CPC.
II – A competência do tribunal é determinada em face dos termos da ação, ou seja, do pedido e da causa de pedir que o suporta.
III – Dos oitenta e seis artigos que compõem o articulado inicial, a recorrente referiu-se ao contrato de concessão em apenas quatro desses artigos (itens 9, 10, 11 e 12), ocupando vinte e três artigos com a descrição dos factos ilícitos que imputa às Rés (itens 19 a 42) e dezanove artigos com os prejuízos daí decorrentes (itens 43 a 62).
IV – Da conjugação da causa de pedir com os pedidos formulados, conclui-se que uma e outros radicam, essencial ou principalmente, na responsabilidade civil extracontratual das Rés (por ato ilícito) e os danos que daí sobrevieram para a Autora, responsabilidade civil essa que a recorrente fundamentou no disposto nos artigos 483º e 486º do CC (vd. item 78 do articulado inicial).
V – Autora e Rés são duas entidades privadas e foi na esfera do direito comum que a relação material controvertida foi configurada e estruturada.
VI – Na relação jurídica assim constituída não intervém, principal ou acessoriamente, uma entidade pública ou uma entidade privada dotada ou investida de poderes públicos.
VII – Os pedidos formulados sob as alíneas a) e b) do petitório são meramente acessórios ou instrumentais em relação aos pedidos de indemnização por perdas e danos formulados sob as alíneas c), d) e e) do petitório, só tendo sido formulados para que estes pedidos não ficassem mancos.
VIII – A apreciação, no caso dos autos, do contrato de concessão não importa qualquer labor interpretativo pelo tribunal recorrido, nem lhe impõe o conhecimento de normas de direito público ou administrativo.
IX – O litígio não emerge de qualquer relação jurídica administrativa, mas de uma relação jurídica de direito privado, regulada por normas e princípios do direito comum (direito civil), que não deixa de o ser pelo facto do direito que a Autora quer ver tutelado emergir de um contrato de direito administrativo.
X – A apreciação judicial da relação jurídica em causa está arredada, pela sua natureza, da jurisdição administrativa, não estando aqui preenchida a previsão das alíneas a), e) e o), do nº 1 do artigo 4º do ETAF, citadas pelo tribunal recorrido, não tendo aplicação, de igual modo, a jurisprudência emanada dos doutos arestos por ele também citados.
XI – A regra da competência dos tribunais judiciais segue o princípio da residualidade, isto é, são da sua competência as causas não legalmente atribuídas à competência dos tribunais de outra ordem jurisdicional – cfr. artigo 66º do CPC e 40º, nº 1, da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei 62/2013, de 26.08).
XII – É, assim, o tribunal comum – in casu, o Juízo Central Cível de X – o materialmente competente para conhecer e decidir a presente ação.
XIII – A douta sentença recorrida, ao decidir como decidiu, violou, por errada ou má interpretação, o disposto nos artigos 4º, nº 1, alíneas a), e) e o), do ETAF e nos artigos 66º do CPC e 40º, nº 1, da Lei 62/2013, de 26.08.

NESTES TERMOS e nos melhores de direito aplicáveis, deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado, revogando-se, na sequência, a douta sentença recorrida e substituindo-a por uma outra decisão que declare a competência em razão da matéria do Juízo Central Cível de X para conhecer e decidir a presente ação, com as legais consequências.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da apelante, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC.

No seguimento desta orientação, a única questão que é submetida à apreciação desta Relação consiste em saber se o despacho recorrido, ao concluir pela procedência da exceção dilatória da incompetência, em razão da matéria, dos tribunais judiciais para conhecer do presente litígio e ao absolver as Rés/apeladas da instância, padece de erro de direito por violar o regime jurídico dos artigos 4º, nº 1, alíneas a), e) e o), do ETAF, 66º do CPC e 40º, nº 1, da Lei 62/2013, de 26.08.
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A- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Os factos que relevam para a decisão a proferir na presente apelação são os que constam do relatório acima elaborado.
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B- FUNDAMENTOS DE DIREITO.

Conforme referido, a única questão que se encontra submetida à apreciação do tribunal ad quem consiste em saber se os tribunais judiciais são incompetentes, em razão da matéria, para conhecer da presente ação instaurada pela apelante “... – Transportes Rodoviários, Lda.”, contra as Rés, “Auto Viação …, Lda.” e “... – Transportes Coletivos de X, S.A.”, em que aquela pede que se declare que é titular do direito de concessão dos transportes urbanos da área de X, que abrange as freguesias de (...), em regime de exclusividade; se condene as Rés a reconhecerem esse direito, bem como, solidariamente a pagar-lhe a quantia de 45.945,34 euros, acrescida de juros de mora, desde a citação até integral e efetivo pagamento, a título de indemnização pelos danos patrimoniais que já lhe causaram em consequência da violação desse seu pretenso direito e, bem assim, a indemnizá-la pelos danos patrimoniais que lhes vier a causar, em consequência dessa conduta, a partir do dia 1 de janeiro de 2018 e até ao trânsito em julgado da sentença a proferir nos presentes autos, indemnização esta a liquidar em incidente de liquidação, bem como a quantia de 500,00 euros, a título de indemnização, por cada passageiro que embarque e/ou desembarque dentro da área de concessão, no aludido período temporal de 01 de janeiro de 2018 até ao trânsito em julgado da sentença a proferir.

Como é sabido, na ordem jurídica interna a competência dos tribunais reparte-se de acordo com a matéria, o valor, a hierarquia e o território.

No que respeita à competência em razão da matéria, dispõe o art. 211º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa (CRP) que “os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais”.

Por sua vez, o art. 212º, n.º 3 da CRP estabelece que “compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas”.

Em consonância com os enunciados comandos constitucionais e densificando-os, o art. 40º, n.º 1 da Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ), aprovado pela Lei n.º 62/2013, de 26/01, na sua 6ª versão, introduzida pela Lei n.º 23/2018, de 05/06, vigente à data da propositura da presente ação em 20/09/2018, e que, por isso, é a aplicável, reafirma que “os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.

Este comando encontra-se igualmente consignado no art. 64º do CPC, que o repete ipsis verbis.

Acresce que o art. 144º, n.º 1 da LOSJ, reafirmando o n.º 3 do art. 212º da CRP, estatui que “aos tribunais administrativos e fiscais compete o julgamento de litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais”.

Já o art. 1º, n.º 1 do ETAF, aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19/02, na sua 14ª versão, introduzida pelo DL n.º214-G/2015, de 02/10, vigente à data da propositura da presente ação e, consequentemente, a aqui aplicável, estabelece que os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no art. 4º deste Estatuto.

Finalmente, compulsado o enunciado art. 4º do ETAF, verifica-se que após nas respetivas alíneas a) a n), do seu n.º 1, se especificar quais as concretas matérias atribuídas à competência jurisdicional dos tribunais administrativos e fiscais, a respetiva al. o) estatui competir àqueles a apreciação de litígios que tenham por objeto relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores.

Resulta dos enunciados comandos constitucionais e infraconstitucionais, por um lado, que, para além do Tribunal Constitucional e do Tribunal de Contas, consagra-se na ordem jurídica portuguesa, uma dualidade de jurisdições: os tribunais judiciais, cujo órgão de cúpula é o Supremo Tribunal de Justiça; e os tribunais administrativos e fiscais, cujo órgão de cúpula é o Supremo Tribunal Administrativo (1), e por outro lado, que a competência dos tribunais judiciais em razão da matéria é residual, gozando estes de competência não discriminada ou genérica, a qual se se estende a todas as matérias que não estejam atribuídas por lei aos tribunais administrativos e fiscais (2).

Deste modo, perante determinada causa judicial, a fim de se indagar se os tribunais judiciais são materialmente competentes para conhecer da relação jurídico material controvertida nessa concreta ação, impõe-se verificar se a competência para dele conhecer se encontra atribuída por lei, designadamente, no art. 4º, n.º 1 do ETAF, aos tribunais administrativos e fiscais, concluindo-se, na negativa, que essa competência compete aos tribunais judiciais, por essa ser a consequência jurídica decorrente da competência material residual, não discriminada ou genérica dos tribunais judiciais.

Precise-se que como já entendia Manuel de Andrade (3), “a competência do tribunal afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum); é o que tradicionalmente se costuma exprimir dizendo que a competência se determina pelo pedido do Autor.

Deste modo, para se aferir da competência em razão da matéria do tribunal impõe-se aferir da relação jurídica que se discute na ação, tal como a mesma é configurada pelo autor, seja quanto aos seus elementos objetivos (causa de pedir e pedido), seja quanto aos elementos subjetivos das partes (4).

Por outras palavras, o pressuposto processual da competência material, fixado com referência à data da propositura da ação, deve ser aferido em função da pretensão deduzida, tanto na vertente objetiva, conglobando o pedido e a causa de pedir, como na vertente subjetiva, respeitante às partes, tomando-se por base a relação material controvertida tal como vem configurada pelo Autor (5).

No caso, a apelante instaurou a presente ação contra as apeladas pedindo que se declare que aquela é titular do direito de concessão dos transportes urbanos de X, que abrange as freguesias de (...), em regime de exclusividade e se condene as apeladas a reconhecer esse direito e, bem assim, se condene solidariamente as últimas, a pagar-lhe a quantia de 45.945,34 euros, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento, a título de danos patrimoniais que já lhe causaram em consequência de terem violado aquele seu alegado direito de, com exclusividade, desenvolver o serviço público rodoviário naquela área territorial da concessão, bem como a quantia indemnizatória que vier a ser liquidada em incidente de liquidação pelos prejuízos que lhe vier a causar, a partir do dia 01 de janeiro de 2018 e até ao trânsito em julgado da sentença a proferir nos autos, além da quantia de 500,00 euros por cada passageiro que embarque e/ou desembarque dentro da área de concessão nesse período de 01 de janeiro de 2018 e até ao trânsito em julgado da sentença.

A apelante funda esta sua pretensão na circunstância de por contrato de concessão de serviço público de transporte de passageiros da área urbana de X e freguesias limítrofes, celebrada por escritura de 22/09/2015, o Município de X, lhe ter adjudicado a concessão dos transportes urbanos da área urbana de X e freguesias limítrofes, pelo prazo de dez anos, em regime de exclusividade; de nos termos do art. 30º, n.º 5 da Portaria Regulamentar do Trânsito da Área da cidade de X, na redação que lhe foi conferida pela deliberação de 25/06/2010, da Câmara Municipal de X, o perímetro de ação dos transportes urbanos na área de X e, por conseguinte, da concessão que lhe foi conferida, abranger as freguesias de (...); de, pelo menos, a 1ª Ré, apesar de ter conhecimento daquele contrato de concessão, e de ambas as Rés terem conhecimento da enunciada Postura Regulamentar, terem iniciado, com especial incidência, a partir do início do ano de 2016, o transporte de passageiros dentro da área de concessão de transportes urbanos de que aquela é beneficiária em regime de exclusividade, fazendo-o estrategicamente, sempre uns minutos à frente dos autocarros daquela, nos horários com mais procura, para lhe retirar os passageiros, e a preços anormalmente baixos que chegam, em alguns casos, a ser menos de metade do preço praticado pela apelante, além de que sem prévia autorização desta e/ou do Município de X, as apeladas terem alterado a imagem dos veículos da sua frota, com o propósito de se assemelharem aos veículos da apelante e para confundir os passageiros, com o que lhe causaram os danos que especifica e cuja indemnização reclama, situação esta que irá perdurar no tempo até ao trânsito em julgado da decisão a proferir nos presentes autos, até porque, não obstante as diligências encetadas pela apelante e pelo Município de X para que aquelas ponham termo a essas condutas, as apelantes persistem nas mesmas.

Deste modo, é indiscutível que tal como a apelante, que é uma pessoa coletiva privada, mais concretamente, uma sociedade por quotas, configura a relação jurídica controvertida, aquela pretende exercer a responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos em relação às apeladas/Rés, também elas pessoas coletivas privadas, mais concretamente sociedades comerciais, decorrente destas terem alegadamente, ilícita e culposamente, lesado o direito subjetivo daquela, conferido por contrato que celebrou com o Município de X, outorgado por escritura pública de 22/09/2015, de, dentro da área de concessão do serviço público de transporte coletivo de passageiros da área urbana de X e freguesias limítrofes, durante o prazo de dez anos e em regime de exclusividade, efetuar o serviço público de transporte de passageiros, ao pretensamente efetuarem o transporte de passageiros dentro da área de concessão atribuído àquela, causando-lhe, e continuando a causar-lhe, danos patrimoniais cuja indemnização reclama.

Segundo esta relação jurídica material controvertida estamos perante uma típica ação de responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, em que a apelante estriba a sua pretensão indemnizatória contra as apeladas nas disposições legais consignadas nos arts. 483º e segs. do CC.

Deste modo, tal como a apelante configura a relação jurídica controvertida, estamos perante uma ação destinada a efetivar a responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos que a apelante, pessoa coletiva privada, imputa às apeladas, também elas pessoas coletivas privadas, em que a causa de pedir que suporta o pedido indemnizatório que formula é complexa.

Essa causa de pedir é integrada, por um lado, pelo contrato de concessão de serviços públicos rodoviários alegadamente celebrado entre a apelante e o Município de X em 22/09/2015, mediante o qual este terá concedido à primeira o serviço público de transporte rodoviário de passageiros nas enunciadas freguesias de X, pelo prazo de dez anos e em regime de exclusividade e de onde, por conseguinte, deriva o direito subjetivo a que a apelante se arroga titular perante as apeladas de, com exclusividade, durante o prazo de dez anos, efetuar o transporte de passageiros dentro da área de concessão; por outro lado, pelas condutas alegadamente ilícitas e culposas que a apelante imputa às apelantes e violadoras daquele seu direito subjetivo; e, finalmente, pelos danos que alegadamente decorreram (e continuam a decorrer) para a mesma em consequência desses comportamentos que imputados às apeladas.
Os pedidos de reconhecimento do direito de concessão dos transportes urbanos da área de X e de condenação das apeladas a reconhecer esse direito, que a apelante formula nas alíneas a) e b) do petitório não têm clara autonomia, antes sendo acessórios ou instrumentais dos pedidos indemnizatórios que aquela formula sob as alíneas c) a e), posto que são mera condição – um dos pressupostos constitutivos da responsabilidade civil extracontratual que a apelante pretende exercer contra as apeladas, integrando o requisito da “ilicitude”, a qual derivará do facto da apelada ter celebrado aquele contrato de concessão e dele emergir o enunciado direito subjetivo da mesma efetuar, com exclusividade e durante o prazo de dez anos, o transporte de passageiros na área da concessão, traduzindo-se essa ilicitude comportamental das apeladas na circunstância destas alegadamente terem (e virem) a efetuar o transporte de passageiros dentro dessa área de concessão – de procedência dos pedidos indemnizatórios que a apelada formula nas alíneas c) a e), estando, aliás, já implícitos nestes pedidos, pelo que a apelante nem sequer os tinha de formular autonomamente.

Entendeu a 1ª Instância que os tribunais judiciais seriam materialmente incompetentes para conhecer do presente litígio, por essa competência estar deferida à jurisdição administrativa, lendo-se a este propósito, na decisão recorrida, que: “Tudo aponta, pois, relativamente à causa de pedir que estrutura e objetiva a causa, que, contra o que defendeu a Autora, ela não assente apenas na mera responsabilidade civil em que alegadamente as Rés se constituíram, antes radica também no contrato de concessão. Aquela responsabilidade civil não se apresenta, assim, autónoma em relação a este, não se trata da mera cobrança de crédito, podendo a relação jurídica subjacente vir a ser questionada e discutida, como aliás transparece de forma clara dos articulados apresentados. Assim, o litígio que opõe as partes radica na interpretação do indicado contrato de concessão que, enquanto contrato administrativo é constitutivo de uma relação jurídica administrativa. Com efeito, de acordo com o art. 178º, n.º 1 do CPA, diz-se contrato administrativo o acordo de vontade pelo qual é constituída, modificada ou extinta uma relação jurídica administrativa, e nos termos do n.º 2, al. b), são contratos administrativos os contratos de concessão de serviços públicos. Não parece pois, possível abstrair que o contrato de concessão invocado pela Autora – e isso não vem posto em causa – foi sujeito a procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público. Emergindo, assim, a exigência de pagamento de uma indemnização da violação de um contrato de direito público, o pedido indemnizatório configura uma questão relativa à execução daquele contrato” e concluindo-se que: “ Assim, a ação situa-se no plano de uma relação de direito administrativo e não no âmbito de um conflito de direito privado. Na verdade, só depois de tomar posição sobre o contrato de concessão invocado pela Autora (ato regulado pelo direito administrativo) é possível ao tribunal aferir se, no caso em apreço, ocorreu uma violação do direito da Autora. O litígio emerge, assim, de relação jurídico-administrativa na expressão do art. 212º, n.º 3 da CRP e materialmente inserto na cláusula geral antes constante do n.º 1 do art. 1º do ETAF, como definidora do âmbito material do exercício da função jurisdicional pelo Estado cometido à ordem jurisdicional. Logo, cabe na previsão das invocadas als. a), e) e o) do n.º 1 do art. 4º do ETAF”.

Contra este entendimento insurge-se a apelante e, antecipe-se desde já, a nosso ver, com razão, sustentando que “da conjugação da causa de pedir com os pedidos formulados, conclui-se que uma e outra radicam, essencial ou principalmente, na responsabilidade civil das Rés por ato ilícito, responsabilidade essa que aquela fundamentou no disposto nos arts. 483º e 486º do CC”, que ela e as Rés são entidades privadas e que foi na esfera do direito comum que a relação material foi configurada e estruturada, não intervindo, nessa relação, principal ou acessoriamente, qualquer entidade pública ou entidade privada dotada ou investida de poderes públicos, sendo os pedidos que formula sob as alíneas a) e b) do petitório meramente acessórios ou instrumentos em relação aos pedidos de indemnização por perdas e danos formulados nas alíneas c), d) e e) do petitório, não importando o contrato de concessão qualquer labor interpretativo, sequer impõe a aplicação ou o conhecimento de direito público ou administrativo, não emergindo o litígio de qualquer relação administrativa, mas de uma relação jurídica de direito privado, regulada pelas normas e princípios do direito civil.

Vejamos.

Como referido, para se aferir do pressuposto processual da competência, em razão da matéria, do tribunal para conhecer de determinado litigio que lhe é submetido, apenas se impõe aferir da relação jurídica tal como ela é configurada pela apelante em sede de petição inicial, considerando-se quer os seus elementos objetivos, isto é, causa de pedir e pedido, quer os seus elementos subjectivos (as partes).

Ora, conforme também já enunciada, dúvidas não subsistem que a apelante é uma pessoa coletiva de direito privado, o mesmo acontecendo com as apeladas, sendo todas as partes na presente ação sociedades comerciais e, por isso, típicas pessoas coletivas privadas.

Por outro lado, mediante a presente ação, conforme igualmente já demonstrado, pretende a apelante ser indemnizada pelos prejuízos que sofreu, e que continuará a sofrer, em consequência da conduta ilícita e culposa que imputa às apeladas decorrente desta ter violado o seu pretenso direito subjetivo de, durante o prazo de dez anos e em regime de exclusividade, efetuar o serviço público de transporte de passageiros, na área de X, que abrange as freguesias de (…), direito subjetivo este que alegadamente emerge do contrato de concessão celebrado com o Município de X, por escritura pública de 22/09/2015, pretensão esta que aquela funda no instituto da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos que se encontra regulado nos arts. 483º e ss. do CC.

Também como já enunciado, para se aferir se atenta esta concreta relação jurídica material delineada pela apelante em sede de petição inicial é materialmente competente para dela conhecer os tribunais administrativos e fiscais, há que verificar se essa competência se encontra atribuída por lei, nomeadamente, no art. 4º, n.º 1 do ETAF, à jurisdição administrativa.

Assim procedendo, estabelece o art. 4º, n.º 1 do ETAF, na redação vigente à data da propositura da presente ação e que, por isso, relembra-se, é a aplicável aos presentes autos que:

Competir aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas:

a- Tutela de direitos fundamentais e outros direitos e interesses legalmente protegidos, no âmbito de relações jurídicas administrativas;
b- Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos emanados por órgãos da Administração Pública, ao abrigo de disposições de direito administrativo e fiscal;
c- Fiscalização da legalidade de atos administrativos praticados por quaisquer órgãos do Estado ou das Regiões Autónomas não integrados na Administração Pública;
d- Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos praticados por quaisquer entidades, independentemente da sua natureza, no exercício de poderes públicos;
e- Validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes;
f- Responsabilidade civil extracontratual de pessoas coletivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional, sem prejuízo do disposto na al. a) do n.º 4 do presente artigo;
g- Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes, trabalhadores e demais servidores públicos, agentes, trabalhadores e demais servidores públicos, incluindo ações de regresso;
h- Responsabilidade civil extracontratual dos demais sujeitos aos quais seja aplicável o regime específico do Estado e demais pessoas coletivas de direito público;
i- Condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime;
j- Relações jurídicas entre pessoas coletivas de direito público ou entre órgãos públicos, reguladas por disposições de direito administrativo ou fiscal;
k- Prevenção, cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos, em matéria de saúde pública, habitação, educação, ambiente, ordenamento do território, urbanismo, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado, quando cometidos por entidades públicas;
l- Impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo;
m) Contencioso eleitoral relativo a órgãos de pessoas coletivas de direito público para que não seja competente outro tribunal;
n) Execução da satisfação de obrigações ou respeito por limitações decorrentes de atos administrativos que não possam ser impostos coercivamente pela Administração; e
o) Relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores.

A propósito deste normativo tem-se entendido que se no âmbito da redação originária do ETAF, a pedra de toque para a atribuição de competência em razão da matéria aos tribunais administrativos e fiscais se encontra nos conceitos de gestão pública e gestão privada, atualmente, para se fugir a essa dicotomia e às zonas cinzentas que esses conceitos comportam, utiliza-se o conceito de relação jurídica administrativa, tido como conceito/quadro muito mais amplo (6).

No entanto, a competência dos tribunais administrativos não pode obter-se exclusivamente à luz, ainda que mais ampla, da noção de “relação jurídica administrativa”, posto que no elenco das situações enunciadas nas diversas alíneas do n.º 1 do art. 4º encontram-se situações que já se inserem no conceito de “relação jurídica administrativa” e outras em que não, obstante se inserirem dentro desse conceito, o enunciado art. 4º, nos seus nºs 2 e 3 exclui da competência material dos tribunais administrativos e fiscais para delas conhecer.

É assim que conforme põe em evidência Mário Aroso de Almeida, o art. 4º do ETAF enuncia como competentes os tribunais administrativos para situações que não cabem no critério da existência de um litígio sobre uma relação jurídico administrativa ou fiscal e exclui essa competência noutras situações em que a relação jurídica em discussão se insere nesse conceito, pelo que a não convergência total de conteúdo entre alguns dos preceitos do art. 4º e o princípios consignados no seu art. 1º, n.º 1, coloca a questão da respetiva articulação, a qual deve ser obtida deste modo: “Tal como sucede com as múltiplas disposições derrogatórias que, sobre a matéria, existem em legislação avulsa, também as normas do art. 4º, sempre que afastem o regime do art. 1º, n.º 1, devem ser vistas como normas especiais em relação àquele preceito, dirigidas a derrogá-lo, prevalecendo sobre ele, para o efeito de ampliar ou restringir o âmbito da jurisdição. Significa isto que, de um modo geral, pertence ao âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de todos os litígios que versem sobre matéria jurídica administrativa e fiscal e cuja apreciação não seja expressamente atribuída, por norma especial, à competência dos tribunais judiciais, assim como aqueles que, embora não versem sobre matéria jurídica administrativa ou fiscal, são expressamente atribuídos à competência desta jurisdição – sendo que encontramos no art. 4º do ETAF algumas disposições especiais com este alcance”, concluindo que “ao introduzir (…) no art. 4º preceitos com um alcance mais amplo ou mais restrito que aquele que resultaria do art. 1º, n.º1, o legislador não pode ter deixado de pretender ampliar ou restringir o âmbito da jurisdição” (7).

Decorre do que se vem dizendo que perante um determinado litígio, com vista a aferir se o mesmo cabe no âmbito de competência material dos tribunais administrativos e fiscais ou antes na da dos tribunais judiciais, impõe-se indagar se a específica matéria em causa, atenta a relação material controvertida delineada pelo autor em sede de petição inicial, se subsume a alguma das previsões elencadas nas diversas alíneas do n.º 1 do art. 4º do ETAF, devendo, no caso positivo, concluir-se que a competência material para conhecer dessa concreta relação cabe à jurisdição administrativa, independentemente da relação jurídica controvertida consubstanciar ou não uma “relação jurídica administrativa”.

Por outro lado, verificado que seja que a relação jurídica material não se subsume a nenhuma das situações previstas nas als. a) a n) do n.º 1 do enunciado art. 4º, impõe-se, nos termos do disposto da al. o) indagar se essa relação jurídica consubstancia uma “relação jurídica administrativa ou fiscal”, caso em que a competência material para conhecer dessa relação se encontra também reservada à jurisdição administrativa e fiscal.

Nos casos em que a relação material controvertida delineada pelo autor não se subsuma em nenhuma das previsões legais enunciadas nas als. a) a n) do n.º 1 do art. 4º do ETAF e, igualmente, não se consubstancie numa “relação jurídica administrativa”, concluir-se-á que a competência material para conhecer dessa concreta relação jurídica pertence aos tribunais judiciais, atento o critério da residualidade da competência material destes.

Precise-se que segundo Freitas do Amaral, “relação jurídica administrativa é aquela que confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares ou que atribui direitos ou impõe deveres aos particulares perante a Administração. Este tipo de relação jurídica pressupõe, assim, a intervenção da Administração Pública investida do seu poder de autoridade “jus imperium”, impondo aos particulares restrições que não têm na atividade privada. É para dirimir os conflitos de interesses surgidos no âmbito destas relações e com vista à garantia do interesse público que se atribuiu competência específica aos tribunais administrativos” (8).

Já Fernandes Cadilha (9) defende que “por relação jurídica administrativa deve entender-se a relação social estabelecida entre dois ou mais sujeitos (um dos quais a Administração) que seja regulada por normas de direito administrativo e da qual resultem posições jurídicas subjetivas. Pode tratar-se de uma relação jurídica intersubjetiva, como a que ocorre entre a Administração e os particulares, intra administrativa, quando se estabelecem entre diferentes entes administrativos, no quadro de prossecução de interesses públicos que lhes cabe defender, ou inter orgânica, quando se interpõem entre órgãos administrativos da mesma pessoa coletiva pública, por efeito do exercício dos poderes funcionais que lhes correspondem. Por outro lado, as relações jurídicas podem ser simples ou bipolares, quando decorrem entre dois sujeitos, ou poligonais ou multipolares, quando surgem entre três ou mais sujeitos que apresentam interesses conflituantes relativamente à resolução da mesma situação jurídica”.

A relação jurídica administrativa pode, assim, conceber-se como sendo “uma relação jurídica regulada pelo Direito Administrativo, que se decompõe num conjunto de direitos e deveres entre as partes, sendo estas, por um lado, a Administração Pública, qualquer pessoa coletiva de direito público ou mesmo particular, investido de poder público, e por outro, qualquer pessoa colectiva de direito público ou particular. Trata-se assim, de uma relação social estabelecida entre, pelo menos, dois sujeitos, um dos quais é sempre a Administração (ou qualquer entidade, ainda que privada, dotada de poder e autoridade) regulada pelo direito administrativo e da qual resultam posições jurídicas subjetivas. A relação jurídica administrativa é, pois, em regra, uma relação entre entidades administrativas e sujeitos de direito privado, sendo certo que a parte que ocupa um dos polos de tal relação se encontra numa posição de supremacia relativamente à outra, exercendo poderes públicos ou de autoridade que criam do outro lado da relação, deveres e sujeições, enquanto que a esta parte se reconhecem direitos subjetivos, interesses legítimos e garantias administrativas que visam protegê-la (normalmente os sujeitos privados) de atos abusivos da outra parte (normalmente a Administração Pública, ente público menor ou mesmo particular investido de poderes públicos), a qual se acha onerada quer com o dever de prosseguir contínua e regularmente o interesse público, quer com um dever geral de respeito pelas posições jurídicas (ativas) legalmente adquiridas pelos particulares” (10).

Deste modo, com vista a determinar se a relação jurídica sobre que versem os autos, tal como a mesma é delineada pela apelante na petição inicial, é da competência material dos tribunais administrativos e fiscais, cumpre verificar se aquela se subsume à previsão legal das als. a) a n) do n.º 1 do art. 4º do ETAF e, no caso negativo, se, ainda assim, a mesma se consubstancia numa “relação jurídica administrativa”, esta entendida nos termos acabados de enunciar, situações estas em que a competência material para dela conhecer se encontrará legalmente deferida à jurisdição administrativa e fiscal.

Entendeu a 1ª Instância, e neste aspecto, bem, que a relação jurídica controvertida delineada pela apelante não se subsume à previsão das diversas alíneas do n.º 1 do art. 4º do ETAF, mas excecionou deste seu juízo as respetivas alíneas a), e) e o).

A este propósito apenas diremos que mesmo a considerar-se a apelante, como entidade privada, como indiscutivelmente o é, que atua no exercício do direito indemnizatório que exerce nos autos contra as apeladas investida de “iuris imperium”, decorrente do contrato de concessão de transportes públicos que celebrou com o Município de X (posição esta que se nos prefigura ser de rejeitar, conforme infra se demonstrará), é apodíctico que não se está perante uma relação jurídica material subsumível às als. f), g) ou h) do n.º 1 do art. 4º do ETAF, já que nestas previsões cabem situações em que terceiros lesados exercem a responsabilidade civil extracontratual por danos provocados por pessoas coletivas de direito público, titulares dos respetivos órgãos, funcionários, agentes, trabalhadores, demais servidores públicos a que aquelas entidades (públicas ou privadas, investidas de iuris imperium) se socorram, quando a situação sobre que versam os presente autos é precisamente a contrária, posto que nela do que se trata é da apelante, apesar de ser um sujeito particular, de acordo com a posição perfilhada pela 1ª Instância (e que não se subscreve), como parte de uma relação jurídico-administrativo, pretender exercer o direito indemnizatório a que se arroga titular contra terceiros particulares (as apeladas).

De acordo com a 1ª Instância, a competência da jurisdição administrativa para conhecer da presente relação jurídica material tal como vem delineada pela apelante subsume-se à al. e), do n.º 1 do art. 4º do ETAF.

A enunciada al. e) atribui à jurisdição administrativa a competência para dirimir os litígios emergentes de todos os contratos que a lei submeta, ou admita que possam ser submetidos, a um procedimento de formação regulado por normas de direito público.

Como realça Aroso de Almeida, “a previsão do preceito compreende claramente litígios respeitantes a quaisquer contratos, que não apenas a contratos administrativos, e tanto contratos celebrados por pessoas coletivas de direito público, como contratos celebrados por entidades privadas, quando sujeitas a regras de direito público em matéria de procedimentos pré-contratuais (…). A previsão em referência abrange a espécie de contratos administrativos a que se refere o art. 1º, n.º 6, al. d), do CCP (…), mas possui um alcance mais amplo, pois, como dito, atribui à jurisdição administrativa a competência para dirimir os litígios emergentes de todos os contratos que a lei submeta, ou admita que possam ser submetidos, a um procedimento de formação regulado por normas de direito público, independentemente da questão de se saber se a prestação do co-contratante pode condicionar ou substituir, de forma relevante, a realização das atribuições do contraente público. O critério não é, aqui, na verdade, o do contrato administrativo, mas o do contrato público, na aceção hoje utilizada pelo CCP, ou seja, o critério do contrato submetido a regras de contratação pública: desde que um contrato seja submetido a regras procedimentais de formação de Direito Administrativo, todas as questões que dele possam vir a emergir devem ser objeto de uma ação a propor perante os tribunais administrativos, e não perante os tribunais judiciais – e isto, porque se trata de um contrato público, independentemente da sua qualificação ou não como contrato administrativo, nos termos do CCP. Com efeito, o legislador do ETAF assumiu o entendimento de que as razões que, por impulso do direito comunitário, levaram o nosso ordenamento jurídico a fazer depender a celebração de certos tipos de contratos, por certas entidades (públicas ou equiparadas), da prévia realização de um procedimento especificamente regulado por normas de direito público justificam a atribuição à jurisdição administrativa da competência para dirimir litígios que possam surgir no âmbito das correspondentes relações contratuais, ainda que essas relações não revistam, em si mesmas, natureza administrativa” (11) (destacado nosso).

Acontece que no caso, se é certo que entre a apelante e o Município de X, existe uma relação contratual, mais concretamente, uma relação contratual decorrente do invocado contrato de concessão de serviços público dos transportes urbanos da área de X, mediante o qual esse Município, que é indubitavelmente uma entidade pública coletiva de direito público e que celebrou esse contrato no exercício dessa sua atividade pública e revestido de “iuris imperium”, mediante o qual transferiu a gestão desse serviço público de transporte de passageiros para a apelante e, bem assim, se é certo que esse concreto contrato público, tal como destaca a 1ª Instância, ser indiscutivelmente um contrato administrativo (art. 178º, n.ºs 1 e 2, al. b) do CPA), cuja formação está, por isso, sujeita a um procedimento de formação regulado por normas de direito público, estabelecendo-se, aliás, por via desse contrato de concessão, uma relação jurídica administrativa entre a apelante (concessionária) e o Município (concedente), relação essa que é inegavelmente regulada pelo direito administrativo, também inegável é que, nos presentes autos não está em discussão qualquer questão de validade, interpretação ou de execução que tenha sido suscitada entre a apelante e o Município de X, únicas partes outorgantes nesse contrato. Aliás, o Município de X nem sequer é parte nos presentes autos.

Acresce que de acordo com a relação jurídica material controvertida delineada pela apelante esta não pretende exercer qualquer direito indemnizatório contra as apeladas com fundamento no instituto da responsabilidade civil contratual, designadamente, decorrente do incumprimento desse contrato de concessão por parte das últimas, sequer o podia fazer, atento o princípio da eficácia relativa dos efeitos dos contratos, uma vez que as apeladas não são partes outorgantes desse contrato de concessão.

O que a apelante pretende exercer é o seu pretenso direito indemnizatório contra as apeladas, com fundamento no instituto da responsabilidade civil aquiliana ou extracontratual por factos ilícitos, decorrente destas, com a sua conduta, transportando passageiros na área de concessão, terem pretensamente lesado o seu direito subjetivo de efetuar esse transporte, durante o prazo de dez anos e em regime de exclusividade, direito subjetivo esse que emerge daquele contrato de concessão que celebrou com o Município de X.
Neste contexto, o contrato de concessão celebrado entre a apelante e o Município de X constitui o substrato, a relação jurídica de que emerge o direito subjetivo que a apelante se arroga titular perante as apeladas de transportar passageiros, em regime de exclusividade na área de concessão, direito subjetivo esse que aquela pretende ter sido violado pelas apeladas, causando-lhe, como consequência direta e necessária, os danos que por ela vêm alegados e cuja indemnização reclama destas, mas não é essa relação contratual estabelecida entre a apelante e o Município que está em discussão nos autos, não se tratando, por isso, da apelante pretender efetivar quaisquer direitos indemnizatórios perante as apeladas emergente dessa relação jurídica contratual que a primeira estabeleceu com o Município, relação contratual essa à qual, reafirma-se, as apeladas são estranhas uma vez que não figuram como partes contratantes nesse contrato.

Note-se que é certo que conforme realça a 1ª Instância, para aferir da existência do direito subjetivo a que a apelante se arroga titular de, durante dez anos, exercer, em regime de exclusividade, o transporte público de passageiros, na área da concessão, tal passa necessariamente pela interpretação do clausulado no contrato de concessão, o qual é inegavelmente um contrato administrativo.

No entanto, para além da questão interpretativa desse contrato de concessão se encontrar sujeita às regras interpretativas dos arts. 236º e segs. do CC e dessa interpretação nem sequer vincular o Município, que nem sequer é parte nos presentes autos, salvo o devido respeito por entendimento contrário, essa questão não é a nuclear nos presentes autos, mas é mero pressuposto ou condição (uma das vertentes do requisito da ilicitude) do direito indemnizatório, fundado no instituto da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, ancorado nos arts. 483º e ss. do CC, que a apelante vem exercer nos presentes autos.

Aliás, tal como sucede com o arrendatário que instaure ação contra terceiro ação judicial com vista à defesa do seu direito de gozo sobre o arrendado e para ser indemnizado pelos eventuais danos sofridos em consequência da conduta lesiva desse terceiro (não senhorio), em que o arrendatário terá de alegar e provar os factos integrativos do contrato de arrendamento que lhe confere o direito subjetivo ao gozo sobre o arrendado, sem que isso transmute essa ação, numa ação fundada em responsabilidade civil contratual ou numa ação de despejo (já que o terceiro, não sendo senhorio, não é parte do contrato de arrendamento, não dispondo, por conseguinte, de legitimidade para sequer discutir a validade jurídica do contrato de arrendamento celebrado entre o demandante e o senhorio ou se o primeiro pagou ou não a renda ao senhorio ou se este último dispõe ou não de outro fundamento para pedir a resolução do contrato de arrendamento – matéria essa ao qual é totalmente estranho), também pelo facto do direito subjetivo a que a apelante se arroga titular perante as apeladas de transportar, com exclusividade e durante o prazo de dez anos, passageiros dentro da área de concessão, emergir do contrato de concessão celebrado entre apelante e o Município, não transmuta a presente ação de responsabilidade civil extracontratual em ação de responsabilidade civil contratual, sequer confere legitimidade às apeladas para vir nela discutir a validade desse contrato de concessão ou questionar o seu cumprimento/incumprimento entre apelante e o Município.

De resto, também não é certo que “a relação jurídica subjacente possa vir a ser questionada e discutida, conforme transparece de forma clara dos articulados apresentados pela apelante”, posto que as apelantes não podem discutir a validade jurídica da relação contratual administrativa estabelecida entre apelante e Município ou a execução dessa relação contratual entre apelante e Município, sequer essa matéria está em discussão nos autos, posto que querendo-a discutir terão as apeladas inelutavelmente de a ir discutir na jurisdição própria, que é, efetivamente, a jurisdição administrativa, caso evidentemente disponham de legitimidade para tanto e ainda estejam em tempo.

De resto, ao sustentar-se, na decisão recorrida, que nestes autos poderá “a relação jurídica subjacente vir a ser questionada e discutida, conforme aliás, transparece de forma clara dos articulados apresentados nos autos”, a 1ª Instância apelou indiscutivelmente à relação jurídica material que as apeladas (Rés) pretendem atribuir à presente causa, quando, como referido, para efeitos de apreciação do pressuposto processual da competência material do tribunal para conhecer da concreta relação jurídica material que lhe é submetida pela apelante, para além dessa competência ter de ser aferida por referência à data da propositura da ação, deve ser apreciada exclusivamente em função da relação jurídica material que é delineada pelo autor (a apelante) na petição inicial.

Resulta do que se vem dizendo, que não estando nos autos em discussão o contrato administrativo de concessão celebrado entre a apelante e o Município de X, sequer qualquer litígio que tenha emergido dessa relação contratual, sequer pretendendo a apelante assacar qualquer responsabilidade contratual emergente dessa relação contratual jurídico-administrativa às apeladas, sequer o podendo fazer, já que estas últimas são alheias a essa relação contratual, em que não outorgaram, mas antes efetivar a responsabilidade civil extracontratual em que estas pretensamente se encontram constituídas ao violar o seu direito subjetivo que emerge daquele contrato de concessão, é inegável que a situação dos autos, contrariamente ao pretendido pela 1ª Instância, não se subsume à previsão legal da al. e), do n.º 1 do art. 4º do ETAF.

No entanto, sufraga a 1ª Instância que a situação dos autos se subsume à al. a) do n.º 1 do art. 4º do ETAF, mas sem evidente razão.

Na verdade, o enunciado art. 4º, n.º 1, al. f) estabelece que pertence ao âmbito da jurisdição administrativa a apreciação dos litígios em que esteja em causa a proteção de direitos fundamentais ou de outros direitos ou interesses legalmente protegidos, no âmbito de relações jurídico-administrativas.

Acontece que conforme realça Mário de Aroso Almeida, “esta alínea estabelece uma clara articulação entre a referência inicial à “tutela de direitos fundamentais” e a subsequente referência a outras situações jurídicas subjetivas fundadas “em normas de direito administrativo”, para o efeito de se dever entender que também a “tutela de direitos fundamentais” aqui em vista há-de dizer respeito a situações em que esses direitos se vejam envolvidos no âmbito de relações jurídico-administrativas” (12).

Acontece que além de “direitos fundamentais” serem os direitos, liberdades e garantias e os direitos económicos, sociais e culturais que se encontram elencados nos arts. 12º a 79º da CRP (13), em cuja lesão pelas apeladas indiscutivelmente a apelante não estriba o direito indemnizatório que vem exercer contra aquelas no âmbito da presente ação, conforme de seguida se demonstrará, a relação jurídica estabelecida entre apelante e apeladas e em que aquela ancora a sua pretensão indemnizatória contra as últimas não configura uma relação jurídico-administrativa, mas antes uma relação jurídica extracontratual, exclusivamente privada e como tal sujeita às regras do CC.

Destarte, a pretensa competência da jurisdição administrativa para conhecer dos presentes autos também não se subsume à previsão legal da al. a), do n.º 1 do art. 4º do ETAF.

No entanto, entendeu a 1ª Instância que a relação jurídica delineada nos autos pela apelante e em que esta funda a sua pretensão indemnizatória seria uma relação jurídico-administrativa, pelo que a apreciação dessa relação estaria subtraída aos tribunais judiciais por força da al. o) do n.º 1 do art. 4º do ETAF, a qual defere essa competência material à jurisdição administrativa, posição esta que não sufragamos.

Conforme já enunciado, uma “relação jurídica administrativa” é um relação social estabelecida entre pelo menos, dois sujeitos, um dos quais é sempre a Administração ou qualquer entidade, ainda que particular, dotada de poder e autoridade – iuris imperium -, regulada pelo direito administrativo, e da qual resultem posições jurídicas subjetivas.

Por sua vez, o direito subjetivo que a apelante alega ter sido lesado pelas apelantes e em cuja violação a mesma sustenta a pretensão indemnizatória que vem exercer nos autos contra as últimas com fundamento no instituto da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos deriva de um contrato de concessão de serviços públicos, contrato esse que se encontra expressamente qualificado pelo art. 178º, n.ºs 1 e 2, al. b) do CPA como contrato administrativo e, consequentemente, como acordo de vontades pelo qual é constituída, modificada ou extinta uma relação jurídica administrativa.
Logo, é inegável que o direito subjetivo que a apelante se arroga titular perante as apeladas deriva de uma relação jurídica administrativa, sujeita ao direito administrativo, para cuja apreciação é inegavelmente competente a jurisdição administrativa e fiscal.

No entanto, se essa relação jurídica entre apelante e Município de X é uma relação jurídica administrativa, cujo conhecimento se encontra subtraído aos tribunais judiciais, já a relação jurídica estabelecida entre apelante, enquanto concessionária, e apeladas (terceiras em relação ao contrato de concessão) é puramente de índole particular e, consequentemente, submetida ao âmbito de cognição dos tribunais judiciais.

Concretizemos:

A concessão administrativa é um dos modos de gestão de um serviço público, podendo ser definido como “ato constitutivo de uma relação jurídico administrativa pelo qual a pessoa titular de um serviço público atribui a outra pessoa o direito de esta, no seu próprio nome, organizar, explorar e gerir o serviço público” (14).

No contrato de concessão o Estado ou as entidades públicas a quem incumbe legalmente prestar os serviços públicos concessionados não renunciam à responsabilidade relativamente à prestação desses serviços, sequer o podem fazer, dado que é uma atribuição que lhes é cometida por lei, mas limitam-se a atribuir a gestão desse serviço a terceiros particulares (o concessionário) para que estes exerçam essa gestão segundo a lógica de mercado.

No contrato de concessão de serviço público cumpre sempre à entidade pública concedente disciplinar a atuação do concessionário e, bem assim, supervisionar e fiscalizar o cumprimento das regras que lhe fixou na execução do contrato de concessão, dado que os serviços concessionados não saem da titularidade do concedente, sequer deixam de ser sua responsabilidade prestá-los em ordem à prossecução do interesse público.

Deste modo, a relação concedente/concessionário é inegavelmente uma relação jurídica administrativa, em que o concedente atua perante o concessionário revestido de iuris imperium na prossecução do interesse público, sendo essa relação regulada pelo direito administrativo, estando esta relação subtraída ao conhecimento dos tribunais judiciais, dado que se encontra atribuída por lei à jurisdição administrativa.

Note-se que através do contrato de concessão o concessionário adquire o direito de gerir em seu próprio nome (e não em nome da administração) um determinado serviço público por um determinado prazo.

A posição do concessionário é, assim, uma posição jurídica derivada, na medida em que o titular do serviço público, lhe cede uma parcela dos direitos e poderes inerentes à titularidade do serviço público que lhe concessiona, mas essa cedência não passa, necessariamente, pela atribuição pelo concedente ao concessionário de poderes de autoridade, mas antes pelo contrário, essa transferência não ocorre em consequência (por via) da celebração do contrato de concessão.

Para que a transferência desses poderes de autoridade do concedente para o concessionário opere, é necessário que o concedente ou no contrato de concessão ou por ato posterior transfira, concreta e especificamente, os poderes de autoridade para o concessionário.

Deste modo, no contrato de concessão ocorrem sempre duas relações jurídicas, a saber: por um lado, a relação jurídica estabelecida entre entidade pública concedente e o particular concessionário e, por outro lado, a relação jurídica estabelecida entre o concessionário e os utentes do serviço público concessionado ou os terceiros.

No que respeita à natureza jurídica da relação estabelecida entre concedente e concessionário, esta assenta num ato jurídico de direito público, em princípio de natureza contratual, mediante o qual o concessionário fica não só obrigado perante a administração concedente a prestar o serviço público que esta lhe concessionado, como assume deveres regulamentares perante os terceiros utentes de lhe prestar esses serviços públicos.

Esses deveres assumidos pelo concessionário conferem, inclusivamente, não só à concedente o poder de reagir contra qualquer atuação do concessionário contra o incumprimento do contrato, como aos utentes, que podem reagir contra esse incumprimento, mormente quando o concedente adote práticas que ponham em causa os princípios da universalidade, do tratamento equitativo e da continuidade do serviço público concessionado.

Esta relação estabelecida entre concedente e concessionário é uma relação jurídico-administrativa, regulada pelo direito administrativo, subtraída à competência material dos tribunais judiciais.

Já a relação que se estabelece entre concessionário e os utentes do serviço público é uma relação mista, na medida em que nela se impõe distinguir, por um lado, a vertente regulamentar dessa relação, em que o utente do serviço concessionado e o concessionário estão submetidos à regulamentação pública do serviço, pelo que, nesta vertente, a relação que estabelece com o concessionário e utente do serviço público é uma relação jurídica administrativa e, por outro lado, as relações contratuais derivadas que se estabelecem entre esses utentes particulares e a concessionária, que são exclusivamente relações privadas e que se regem pelo direito privado, pelo que qualquer litígio que surja entre concessionário e utentes do serviço público no âmbito dessas relações contratuais (e, por maioria de razão, terceiros, particulares), carecem de ser submetidas e apreciadas pelos tribunais judiciais.

Neste sentido se pronuncia Fernandes Cadilha, advertindo que embora “o art. 4º, n.º 1, al. d), do ETAF comece por admitir que os concessionários, enquanto sujeitos privados, poderão praticar atos administrativos ou emitir normas regulamentares, por efeito da qualidade que lhes confere o contrato de concessão, e remeta a apreciação da legalidade desses atos para o contencioso administrativo. Isso não significa, no entanto, que os concessionários (ou quaisquer outros contraentes privados) disponham automaticamente, apenas por efeito da sua qualidade, de prerrogativas de autoridade. Enquanto sujeitos privados, os concessionários atuam, em regra, segundo as normas de direito privado no exercício da sua capacidade de direito civil, e só por expressa atribuição legal é que lhes poderá ser reconhecida, caso a caso, a competência para o exercício de poderes públicos, que poderão traduzir-se na emissão de normas regulamentares ou na prática de atos administrativos, em poderes de imposição e execução coerciva, em poderes de direção, de modificação e rescisão unilateral dos contratos celebrados com terceiros, de poderes de cobrança de taxas. A referida norma do ETAF salvaguarda, portanto, a competência dos tribunais administrativos relativamente aos atos das entidades concessionárias praticados no exercício de poderes de autoridade, quando esses poderes lhe sejam atribuídos por lei, o que se mostra, de resto, em consonância com o estabelecido no art. 2º, n.º 3 do CPA que, em tais circunstâncias, submete a atuação dos concessionários ao regime geral do procedimento administrativo. É esse possível exercício de poderes de autoridade que justifica que o art. 20º, n.º 1, do CPTA preveja especificamente uma regra de competência territorial para os processos respeitantes à prática ou omissão de normas ou atos administrativos dos concessionários, o que pressupõe que o processo possa ser dirigido exclusivamente contra o próprio concessionário. No entanto, os concessionários (e quaisquer outros contraentes particulares) podem ser chamados a intervir num processo de contencioso administrativo por efeito da sua própria posição contratual, independentemente de terem agido no exercício de poderes públicos. Em primeiro lugar, a intervenção do concessionário no lado passivo da relação processual pode justificar-se por efeito de qualquer atuação material que represente um desvio ao clausulado contratual. É esse o caso corporizado na regra de legitimidade ativa que se encontra definida no art. 40º, n.º 2, al. b) do CPTA, que permite que qualquer interessado ou utilizador reaja contra o deficiente cumprimento do contrato, mormente quando o contraente privado adote práticas que ponham em causa os princípios da universalidade, do tratamento equitativo e da continuidade do serviço (…). Não estão aqui em causa as relações contratuais derivadas que se estabelecem entre o contraente particular e os utentes (que se regem pelo direito privado), nem tão pouco a própria validade da relação contratual (que interessa a ambos os contraentes), mas unicamente a responsabilidade contratual do concessionário, que é forçado, por via da ação, a atuar e conformidade com as suas obrigações contratuais” (15) (destacado nosso).

Revertendo ao caso em análise, é indiscutível que ao exercer o direito indemnizatório que reclama das apeladas, com base no instituto da responsabilidade civil extracontratual, decorrente da circunstância destas terem alegadamente lesado o seu direito subjetivo de, enquanto concessionária do serviço público de transportes urbanos da área de X, lhe estar conferido o direito de, durante dez anos e em regime de exclusividade, exercer esse serviço público, é inegável que a apelante não está a exercer esse direito indemnizatório com fundamento no poder regulamentar que eventualmente a concedente, Município de X, lhe transferiu, sequer a prosseguir o interesse público.

Na verdade, não só a apelante não demanda as apeladas sequer como utentes do serviço público que lhe está concessionado, sequer com base na relação contratual que com aquelas estabeleceu como utentes desse serviço público, sequer ainda, com base na relação contratual jurídico administrativa que estabeleceu com o Município de X, relação jurídica esta de que apenas deriva o seu direito subjetivo pretensamente violado pelas últimas, mas no instituto da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos decorrentes destas terem alegadamente violado esse seu direito subjetivo.

A relação jurídica que se encontra em discussão nos autos entre apelante e apeladas não tem indiscutivelmente natureza administrativa, porquanto nenhum dos respetivos sujeitos tem natureza de entidade pública, uma vez que quer apelante quer apeladas são sociedades comerciais e, por isso, pessoas coletivas de direito privado.

Acresce que nenhuma delas está a atuar perante a outra revestida de iuris imperium.

Acresce ainda, que ao demandar as apelantes, a apelante não visa a satisfação do interesse público, mas antes prosseguir o seu estrito interesse particular, que é o de pôr termo à lesão do direito subjetivo que alegadamente lhe assiste de exercer a sua atividade de transportadora, em regime de exclusividade, na área da concessão que lhe foi conferida pelo contrato de concessão celebrado com o Município de X, com vista a fomentar o seu lucro, que é o fim da sua atividade enquanto sociedade comercial, e de ser indemnizada pelos prejuízos sofridos em consequência direta da lesão desse seu direito.

Aqui chegados, salvo o devido respeito por entendimento contrário, a relação jurídica delineada nos autos pela apelante é uma pura relação jurídica privada, à qual se mostram aplicáveis as normas o direito privado, designadamente, as enunciadas nos arts. 483º e ss. do CC., para cuja apreciação são materialmente competentes os tribunais judiciais.

Uma última achega.

Analisados os arestos aduzidos pela 1ª Instância que alegadamente suportariam a posição jurídica por ela sufragada (e que aqui não se subscreve), a saber acórdão do Tribunal de Conflitos de 19/12/2012, Proc. 020/12; de 18/06/2014, Proc. 03/14; de 26/06/2014, Proc. 021/14, RL. de 06/03/2014, Proc. 899/13.0TVLB.L1-8 e de 13/03/2014, Proc. 71/13.0TVLSB.L1-8, todos in base de dados da DGSI, não podemos deixar de referir que todos esses eles, com exceção do de 26/06/2014, versam sobre ações instauradas por empresa de factoring contra as aí Rés, que são entidade públicas (nuns casos, trata-se de Câmaras Municipais, noutro caso, uma empresa municipal, e num outro caso, o Centro Hospitalar de …, EPE, ou seja, todas elas entidades públicas) exigindo destas o pagamento de créditos cedidos por via do contrato de factoring celebrado com determinado cedente (privado), em que esse cedente adquiriu esses direitos de créditos sobre as Rés por via ou de contratos públicos de fornecimento de bens e serviços ou por via de contratos de empreitada de obras públicas celebrados com estas entidades públicas demandadas, ou seja, por via de contratos públicos em que, por conseguinte, se está perante relações contratuais jurídico-administrativas reguladas pelo direito administrativo.

Nesses arestos concluiu-se que estando-se no âmbito de créditos emergentes de um relação contratual-administrativa seriam os tribunais administrativos os materialmente competentes para a apreciação dessa relação jurídica controvertida delineada pelo demandante à luz do disposto na al. e), do n.º 1 do art. 4º do ETAF, posição esta que subscrevemos integralmente.

Com efeito, segundo a relação jurídica controvertida tal como vem delineada pelos autores nessas ações, o créditos por eles reclamados, não são apenas créditos que reclamam de entidades públicas, como se trata de créditos que emergem de contratos públicos celebrado entre a cedente e as demandadas, entidades públicas, sujeitos, por isso, a regras de direito público em matéria de procedimentos pré-contratuais.

Trata-se, pois, de situações que nenhuma similitude apresentam em relação ao caso sobre que versam os presentes autos.

Nos autos sobre que se debruça o acórdão do Tribunal de Conflitos de 26/06/2014, Proc. 021/14, trata-se de uma ação intentada pela Empresa de Águas de Y, reclamando de um utente desse serviço público (um particular) o pagamento da taxa da água que consumiu.
Nesse aresto considerou-se que sendo a demandante, concessionária do serviço público de fornecimento de água do concelho de Y e, nessa medida atua em substituição do Município e munida de poderes que lhe são atribuídas nessa área, dúvidas não existem, pois que esta prossegue fim público, estando para tanto munida dos necessários poderes de autoridade, o que permite concluir que, subjacente à controvérsia, está uma relação juridicamente administrativa, sendo competente para apreciar dessa relação os tribunais da jurisdição administrativa, assumindo a natureza de uma questão fiscal.

Mais uma vez, subscreve-se integralmente este aresto.

Na verdade, apesar da demandante ser uma sociedade particular, se ela se apresenta a cobrar a taxa de água consumida pelo utente particular do serviço público que lhe foi concessionado, tal significa que a entidade concedente (o Município de Y), não se limitou a transferir para aquela a gestão do serviço público de abastecimento de água, para que o gerisse no seu próprio nome, mas, concomitantemente, atribui-lhe competência regulamentar, isto é, poderes públicos para cobrar dos utentes as taxas devidas pela água que consumissem.

Logo, no exercício desse poder de cobrança da taxa da água consumida é inegável que a concessionária atua revestida de iuris imperium e, consequentemente, sujeita ao direito administrativo.

Acresce que a contrapartida reclamada é uma “taxa” e, por conseguinte, um tributo de natureza fiscal, o que só per se faria com essa relação estabelecida entre concessionária e utente fosse jurídico-administrativa, mais concretamente, uma relação fiscal.

Sintetizando, mais uma vez, a situação sobre que versa este acórdão nenhuma similitude apresenta em relação à relação jurídica sobre que versam os presentes autos.

Aqui chegados, em face dos fundamentos que se vem explanando, impõe-se concluir pela procedência integral da presente apelação, impondo-se revogar a decisão recorrida e substitui-la por outra, em que julgue a exceção dilatória da incompetência material dos tribunais judiciais para conhecer do presente litigio, improcedente, ordenando-se o consequente prosseguimento dos autos.
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Decisão:

Nestes termos, os Juízes desta Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães acordam em julgar a presente apelação integralmente procedente e, em consequência:

- revogam a decisão recorrida e procedem à respetiva substituição pela seguinte decisão, em que julgam a exceção dilatória da incompetência, em razão da matéria, dos tribunais judiciais para conhecer do presente litígio improcedente e, em consequência, ordenam o prosseguimento dos autos.
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Custas da apelação pela parte vencida a final (art. 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
Notifique.
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Guimarães, 19 de junho de 2019
Assinado eletronicamente pelos Juízes Desembargadores:

Dr. José Alberto Moreira Dias (relator)
Dr. António José Saúde Barroca Penha (1º Adjunto)
Dra. Eugénia Maria Marinho da Cunha (2ª Adjunta)


1. Mário Aroso de Almeida, “Manual de Processo Administrativo”, 2010, Almedina, pág. 53.
2. Ac. RC. de 12/09/2017, Proc.1021/16.7T8GRD.C1, in base de dados da DGSI, onde se lê: “Os tribunais judiciais, constituindo os tribunais regra dentro da organização judiciária, gozam de competência não discriminada, por isso, sendo chamados de competência genérica, gozando os demais, tribunais especiais, de competência limitada às matérias que lhe são especialmente cometidas. Que o mesmo é dizer que a competência dos tribunais judiciais se determina por um critério residual, ou de exclusão de partes – tudo o que não estiver atribuído aos tribunais especiais”.
3. Manuel de Andrade, in “Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra Editora, 1979, págs. 90 e 91.
4. Acs. STJ. de 12/01/1994, CJ, t. 1º, pág. 38; 09/05/95, CJ., t. 2º, pág. 68; 03/05/2000, CJ. T. 2º, pág. 39; 10/04/2008, Proc. 08B396; 25/06/2009, Proc. 1186/07.9TBVNO.C1.S1; 12/01/2010, Proc. 1337/07.3TBABT.E1.S1; TCAN de 26/11/2009, Proc. 01009/07.9BEPRT; RC. de 07/11/2017, Proc. 1021/16.7T8GRD.C1, estes in base de dados da DGSI.
5. Ac. RG. de 16/11/2017, Proc. 253/12.1TBTMC.G1, in base de dados da DGSI.
6. Ac. STJ. 08/05/2007, Proc. 07A1004, in base de dados da DGSI.
7. Mário Aroso de Almeida, in “Manual de Direito Administrativo”, 2010, págs. 156 e 157.
8. Freitas do Amaral, “Direito Administrativo”, vol. III, págs. 423 e segs.
9. Fernandes Cadilha, in “Relações Jurídicas Poligonais, Ponderação Ecológica de Bens e Controlo Judicial Preventivo”, Revista Jurídica do Urbanismo e do Ambiente”, n.º 1, junho de 1995, págs. 55 e ss..
10. Ac. Tribunal de Conflitos de 19/10/2017, Proc. 039/16, in base de dados da DGSI.
11. Mário Aroso de Almeida, ob. cit., pág. 166.
12. Mário Aroso de Almeida, ob. cit., pág. 159.
13. Cristina Queiroz, in “Direitos Fundamentais Sociais”, Coimbra Editora, 2006, pág. 7.
14. Ac. STA de 21/05/2008, Proc. 0862/07, in base de dados da DGSI.
15. Fernandes Cadilha, “Dicionário de Contencioso Administrativo”, Almedina, dezembro de 2006, págs. 657 e 658.