Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
4427/22.9T8OAZ-A.G1
Relator: GONÇALO OLIVEIRA MAGALHÃES
Descritores: OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO
LIQUIDEZ
INVENTÁRIO
CASO JULGADO
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/04/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
O abuso do direito pode verificar-se quer no acesso ao direito propriamente dito, com a propositura de uma ação ou de um procedimento cautelar, quer na própria defesa, no âmbito da contestação, invocação de exceções, pedidos de reconvenção e no recurso.
I- As suas consequências devem ser apuradas casuisticamente, em especial no quadro dos institutos da litigância de má fé e da taxa sancionatória especial, podendo levar, em casos pontuais, à inadmissibilidade do concreto meio processual cujo exercício se revele abusivo.
II- A análise deve ser especialmente cuidadosa, sob pena de se colocar em causa o conteúdo do próprio direito de ação, e que é corolário o direito à prática de atos processuais, em especial o de recorrer.
III- No caso de uma obrigação liquidável em duas ou mais prestações em que ocorra a falta de realização de uma delas, só com a interpelação se verifica o vencimento antecipado de todas.
IV- A citação para a ação executiva em que o credor reclama o pagamento da totalidade do capital relativo às prestações antecipadamente vencidas configura uma interpelação do devedor.
V- Em tais situações, como o vencimento da obrigação ocorre com a citação do executado, os juros de mora só são devidos após a citação.
VI- Este entendimento é restrito às ações executivas que seguem a forma ordinária, em que a citação antecede a penhora. Não pode aplicar-se àquelas que seguem a forma sumária, pois de tal resultaria que as diligências tendentes à execução coerciva estariam a ser levadas a cabo quanto as prestações que ainda não esta estavam vencidas, por não ter havido interpelação, sendo, por isso, a dívida inexigível.
VII- A decisão proferida em incidente de reclamação de créditos sobre o património comum do casal, tramitado no processo de inventário destinado à respetiva partilha subsequente a divórcio, que considera tais créditos exigíveis e procede à sua liquidação, forma caso julgado material, obstando, assim à repetição da mesma questão noutro processo.
VIII- A tal não obsta a norma do art. 91/2 do CPC, uma vez que esta diz respeito apenas aos incidentes contingentes e não aqueles que são inerentes (ou essenciais) à própria tramitação deste processo, como sucede com o referido no ponto anterior.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I.
1) Banco 1..., SA, apresentou, no dia 16 de dezembro de 2022, requerimento executivo contra AA e BB alegando, em síntese, que: por escrituras públicas e documentos complementares a elas anexos, o Exequente concedeu aos Executados dois empréstimos, nos montantes de € 53 266,24 e de € 22 101,76; ficou acordado que pela utilização dos capitais mutuados os Executados pagariam juros sobre os capitais em dívida, de acordo com as taxas de juro fixadas nos documentos complementares, acrescidos, em caso de mora, de uma sobretaxa de 4%; para garantia do pagamento dos capitais mutuados, dos juros compensatórios e moratórios devidos no seu reembolso e das despesas judiciais e extrajudiciais, os Executados mutuários constituíram, a favor do Exequente, duas hipotecas sobre o prédio urbano, composto por casa de cave, rés-do-chão e chalé, sito na Travessa ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...00 e inscrito na matriz sob o art. ...67; sucede, porém, que esse prédio foi vendido a terceiro no âmbito do processo de inventário n.º 862/09.... que corre termos na Comarca Porto – Juízo Família e Menores - Juiz ..., pelo preço de € 100 000,00; este montante está depositado à ordem dos autos, perspetivando-se que o Exequente venha a receber € 70 000,00, cuja afetação será efetuada nos termos do art. 785 do Código Civil, valor insuficiente para liquidar a totalidade das responsabilidades; continuam assim em dívida os montantes de € 50 201,75 e € 20 830,66, acrescidos dos juros de mora, contados dia a dia, às taxas contratuais em vigor e de uma sobretaxa de 3%, a título de cláusula penal, desde ../../2012, data em que os Executados entraram em incumprimento, até efetivo e integral pagamento.
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2) Citados os Executados, veio a Executada BB apresentar oposição à execução, através de embargos, alegando, sob o título “Da liquidez, certeza e exigibilidade da dívida exequenda”, que: o casal constituído pelos Executados foi dissolvido, por divórcio, no dia ../../2009; na sequência, foi proposta ação de inventário destinada à partilha do património comum; o Exequente interveio nessa ação reclamando os seus créditos; por Acórdão proferido no dia 24 de novembro de 2021, transitado em julgado, o Tribunal da Relação do Porto quantificou o valor dos créditos sobre os Executados em € 79 281,62; não é assim aceitável que o Exequente venha agora aumentar a quantia do seu crédito; o demais alegado no requerimento executivo não corresponde à verdade; é falsa a afirmação de que o exequente interpelou a Executada para pagar; também não se extrai do citado Acórdão do Tribunal da Relação do Porto um momento certo ou um prazo determinado para o cumprimento da obrigação; assumindo o Exequente que apenas irá receber, como produto da venda do prédio, a quantia de € 70 000,0, a executada apenas poderia ser interpelada para pagar € 9 281,62; o Exequente deduziu, assim, de forma dolosa, pretensão infundada, fazendo do processo e dos meios processuais um uso manifestamente reprovável.
Concluiu pedindo que, na procedência da oposição à execução: seja “absolvida do pedido” (sic); seja “anulada a presente execução por falta de exigibilidade da dívida exequenda, uma vez que existe erro manifesto na quantia em dívida; e a condenação do Exequente, como litigante de má-fé, no pagamento de indemnização.
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3) Liminarmente admitidos os embargos, o Exequente contestou, impugnando o alegado na petição e acrescentando que: na data em que reclamou os seus créditos no processo de inventário (29 de junho de 2010), o montante destes ascendia a € 75 511,25; não havia então mora dos executados; essa mora apenas veio a verificar-se no dia 25 de março de 2012, em decorrência do não pagamento da prestação então vencida; venceram-se concomitantemente todas as demais prestações de capital, juros, demais despesas e impostos; o prédio sobre que foi constituída a hipoteca destinada a garantir o cumprimento dos seus créditos foi vendido no processo de inventário pelo valor de € 100 000,00, em 28 de fevereiro de 2019; o seu crédito, já acrescido de juros de mora, foi ali liquidado, pelo referido Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24 de novembro de 2021, que constitui caso julgado, em € 79 281,62, mas por referência ao dia 17 de julho de 2018; desde essa data, venceram-se juros de mora sobre o capital em dívida; não estava obrigado a fazer qualquer “interpelação admonitória”, uma vez que a constituição dos Executados em mora resultou do facto de não terem pago a referida prestação na data do seu vencimento, o que importou o vencimento de todas as prestações restantes, nos termos do disposto no art. 781 do Código Civil.
Concluiu pedindo, ademais da improcedência dos embargos de executado, a condenação da Executada / Embargante, como litigante de má-fé, no pagamento de “multa e indemnização condignas.”
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4) Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho, datado de 6 de setembro de 2023, a: afirmar, em termos tabulares, a verificação dos pressupostos processuais; fixar o valor processual (€ 102 279,85); delimitar o objeto do litígio (“Apreciar a verificação dos pressupostos formais e materiais da execução”); e enunciar os temas da prova (“i. Averiguar o valor do crédito exequendo; ii. apreciar a certeza, liquidez e exigibilidade da quantia exequenda; iii. Indagar se, na afirmativa em que termos foi operada a interpelação da Executada / Embargante; iv. analisar a eventual litigância e má-fé das partes”).
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5) Realizou-se a audiência final e, após o seu encerramento, foi proferida sentença com o seguinte segmento decisório: “(...) julgam-se os presentes embargos totalmente improcedentes, por não provados, e, em consequência, determina-se o prosseguimento da execução. Ademais, julgam-se improcedentes os incidentes de litigância de má-fé deduzidos.”
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6) Inconformada, a Executada / Embargante (daqui em diante, Recorrente) interpôs o presente recurso, composto por alegações e conclusões, estas do seguinte teor (transcrição):
“I. No caso em apreço o recorrente concluiu que os fundamentos invocados da decisão do Tribunal a quo, quer sobre a matéria de facto, quer sobre a matéria de direito, salvo o devido respeito por opinião diversa, que é muito, não se verificam, não podendo a apelante concordar com a douta sentença nestes autos proferida, pelo que a impugna.
II. Na verdade, sem prejuízo do princípio da livre apreciação da prova e analisada toda a prova produzida no presente processo, conclui-se, desde logo, que o Tribunal a quo se quedou e bastou apenas com a análise de parte da prova documental carreada para os Autos no requerimento executivo e na petição inicial de embargos e, principalmente, na contestação apresentada pelo banco exequente.
III. Da motivação da decisão da matéria de facto plasmada na douta sentença, ora recorrida, infere-se, portanto, que a prova documental produzida foi considerada suficiente.
IV. Contudo, o Tribunal a quo não atendeu a toda a prova documental produzida, mas apenas a parte dela, assim como não atendeu, também, pelo menos com a minúcia devida e desejável, à prova testemunhal (depoimento da embargante) arrolada.
V. E foi, com certeza, por causa deste erro na apreciação da prova que o Tribunal a quo confunde, desde logo, a data da venda judicial do referido bem imóvel, começando no ponto 3.5 dos factos provados por esclarecer que em 17/07/2018 o imóvel foi objeto de venda judicial a terceiros no âmbito do Processo de Inventário para, depois, no ponto 3.8 dos factos provados já considerar que a dita venda judicial terá ocorrido em 28/08/2019.
VI. A embargante, ora recorrente, na sua petição inicial de embargos de executado, assim como na prova testemunhal arrolada que não foi atendida, conforme adiante se provará, mostrou ao Tribunal a quo de forma bem clara que o pedido formulado é procedente por provado, impugnando, por esta via a solução jurídica alcançada.
VII. A verdade é que no dia 27/11/2018 o preço da aquisição do referido bem imóvel, na quantia de € 100.00,00 (cem mil euros) foi pelos compradores depositado à ordem do Processo de Inventário que corre seus termos no Tribunal de Família e Menores do Porto – Juiz ... – Processo: 862/09...., mediante a apresentação do Documento Único de Cobrança com a referência: ...83... e junto aos referidos Autos, a fls….
VIII. Ora, a partir desta data, 27/11/2018, o bem imóvel objeto dos contratos de mútuo em foco no presente Processo Executivo deixou de existir na esfera jurídica dos mutuários, aqui executados, tendo sido vendido a terceiros com o conhecimento e a anuência do banco, ora exequente e credor reclamante naquele Processo de Inventário, e o preço da sua venda (€ 100.000,00) foi depositado à ordem daquele Processo de Inventário.
IX. Os executados ficaram, portanto, desde o dia 27/11/2018 sem a posse e sem a propriedade do bem imóvel de que eram comproprietários, assim como se encontram, também, completamente impossibilitados de utilizar o preço recebido para procederam a qualquer pagamento ao credor reclamante, uma vez que ficaram na dependência do que vier a ser determinado no dito Processo de Inventário.
X. Esta situação configura, assim, uma impossibilidade do cumprimento e mora não imputáveis aos devedores, uma vez que, nos termos previstos no n.º 1, do Artigo 790.º do Código Civil, a obrigação extingue-se quando a prestação se torna impossível por causa não imputável ao devedor.
XI. Mas a douta decisão do Tribunal de primeira instância, ora sindicada, assim não atendeu, nem ponderou, quando deveria fazê-lo, porquanto, dispunha de todos os elementos probatórios para esse efeito.
XII. Não pode, portanto, desde logo por imperativos legais que jamais deviam ter escapado ao Tribunal a quo na decisão proferida, ser permitido ao banco exequente continuar a contabilizar e a acumular juros moratórios, cláusulas penais pelo incumprimento e demais encargos contratuais, depois de 27/11/2018, uma vez que desde aquela data o incumprimento dos mutuários ocorre por causas que lhes não são imputáveis.
XIII. Aliás, este prolongar do incumprimento dos devedores no tempo, pelo menos desde ../../2021, ficou a dever-se, inclusivamente, ao próprio banco exequente, aqui embargado, o qual, não satisfeito com o valor do passivo alcançado e aprovado por acordo em 10/10/2013 e sempre com o objetivo de conseguir alterar e aumentar o valor em dívida, foi interpondo recursos sucessivos para o Venerando Tribunal da Relação do Porto, sendo certo que a apresentação do presente Requerimento Executivo constituiu o verdadeiro “coruchéu da cegonha” em termos processuais e financeiros uma vez que o banco ora exequente pretendia que a quantia absoluta em dívida fosse inflacionada e passasse de € 79.281,62 para a quantia de € 102.279,85.
XIV. Facilmente se compreende, portanto, a posição do banco credor: quanto mais tempo passar até se determinar o pagamento correto do seu crédito maior é o valor em dívida e, consequentemente, maior será a quantia a receber dos executados.
XV. A apelante roga, pois, por esta via a V. Exas. seja decretado o fim desta insustentável situação que começou no dia 26/03/2009 e se arrasta já há quase 15 (quinze) anos consecutivos.
XVI. Por outro lado, uma vez que um dos temas da prova nestes Autos consistia em averiguar o valor do crédito exequendo, na decisão proferida pelo Tribunal de primeira instância deveria ser possível concluir e alcançar o modo e a forma como essa averiguação foi efetuada, os seus precisos cálculos e a fundamentação que o Tribunal utilizou para decidir da forma que decidiu.
XVII. Acontece que o Tribunal a quo pura e simplesmente não o fez, preferindo, outrossim, sufragar sem qualquer juízo crítico os cálculos mais leoninos do que aritméticos que o banco exequente havia apresentado no seu Requerimento Executivo.
XVIII. Porém, o Tribunal a quo poderia e deveria ter feito as contas, mas não fez.
XIX. Sem prescindir do que acima se alegou a propósito da impossibilidade objetiva do cumprimento e mora não imputáveis ao devedor, aqui apelante, a partir de 27/11/2018 e, apenas e também por mera cautela de patrocínio, que é sempre devida atenta a possibilidade da verificação de qualquer opinião em contrário, sempre convirá referir que a prolação do douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto que concluiu que o capital em dívida ascendia a € 71.477,67 e que sobre esta quantia acresceriam juros vincendos às taxas acordadas de 1,262% acrescida de sobretaxa de 4% e demais acréscimos legais, como é o imposto de selo, determinou que em 13/02/2020 o crédito do banco totalizava € 79.281,62.
XX. Ora, o presente Requerimento Executivo deu entrada no dia 16/12/2022.
XXI. Daí que entre o dia 13/02/2020 e o dia 16/12/2022 teria que ser calculada a título de juros vincendos às taxas acordadas de 1,262% acrescida de sobretaxa de 4% e demais acréscimos legais, como é o imposto de selo, sobre o capital em dívida (€ 71.477,67) a quantia de € 10.685,80 (dez mil seiscentos e oitenta e cinco euros e oitenta cêntimos).
XXII. Assim, no limite, em 16/12/2022 a quantia global em dívida seria de € 89.967,42 (oitenta e nove mil novecentos e sessenta e sete euros e quarenta e dois cêntimos) que resulta da soma entre a quantia de € 10.685,80 e a quantia de € 79.291,62.
XXIII. E nunca a quantia exequenda de € 102,279,85.
XXIV. Tal quantia exequenda não é, portanto, líquida, certa e muito menos exigível pelo que a presente execução jamais poderá prosseguir.
XXV. Note-se, ainda, que resultou também claro da prova testemunhal produzida que os executados jamais foram interpelados pelo banco exequente para o pagamento da quantia de € 102.279,85.
XXVI. E como prova do acima alegado estão, também, as declarações de parte da embargante que foram produzidas em sede de Audiência de Julgamento e o seu depoimento ficou gravado na aplicação informática Habilus Media Studio, conforme Ata de Audiência Final datada de 31/10/2023, com a referência CITIUS: 51206356, declarações essas cuja gravação teve o seu início pelas 9h56m47s e o seu termo pelas 10h02m12s.
XXVII. Salvo o devido respeito por diferente opinião, o que está em causa nos presentes Autos é que a ora recorrente conseguiu provar na sua petição inicial de embargos e em sede de Audiência de Julgamento, através do depoimento de parte acima transcrito, que a embargante jamais tomou conhecimento da existência desta quantia exequenda de € 102.279,85.
XXVIII. O dito valor a pagar para amortização dos contratos de mútuo celebrados não consta, também, do texto de nenhum dos contratos de mútuo, ou seja, não consta de nenhum dos documentos juntos pelo banco exequente, quer em sede de Requerimento Executivo, quer em sede de Contestação no presente Processo.
XXIX. E, saliente-se, que o Tribunal a quo considerou suficiente a prova documental produzida.
XXX. Então se o banco exequente não informa em nenhum documento e muito menos faz prova documental (ou outra) no presente processo de qual era o valor total em dívida pelos devedores principais; não os informa nem notifica por nenhum meio, como pode o Tribunal a quo dar como provado, em 3.10 dos Factos Provados que fundamentam a decisão recorrida, que aos executados foi reclamado o pagamento da quantia de € 102.279,85?
XXXI. Em primeiro lugar, provou-se no presente processo, conforme acima se demonstrou, precisamente o contrário, isto é, provou-se que nunca o banco, aqui exequente, informou a apelante (pelo menos até ../../2022) qual seria a exata quantia em dívida.
XXXII. Refira-se, finalmente, que o banco exequente já não dispõe de qualquer garantia hipotecária uma vez que o imóvel foi vendido a terceiros em 27/12/2018 no âmbito do Processo de Inventário acima melhor identificado pelo que não estamos perante uma dívida com garantia real.
XXXIII. Existe, de facto, um erro manifesto na apreciação da prova, na decisão ora posta em causa.
XXXIV. A embargante, ora recorrente, na sua petição inicial de embargos, assim como na prova testemunhal (depoimento de parte) arrolada que não foi atendida, conforme aqui se comprova, mostrou ao Tribunal a quo de forma bem clara que o pedido formulado é procedente por provado.
XXXV. O Tribunal a quo deveria, em consonância com toda a prova documental junta aos autos e de acordo com a prova produzida em sede de Audiência de Julgamento, conforme se concluiu acima, ter decidido de forma diversa da que decidiu.
XXXVI. A recorrente ao especificar nos termos do prescrito no Artigo 640.º, do Código de Processo Civil (CPC) este concreto segmento da douta decisão proferida, ora sindicada, esta a impugnar, expressamente, todo o conteúdo dos pontos 3.1, 3.2, 3.6, 3.8 e 3.10 dos Factos Provados: 3.1. A presente execução baseia-se no incumprimento de dois contratos de mútuo com hipoteca, celebrados em 15/06/2007, que se computaram num valor global de € 75.368,00 e que se destinaram à aquisição pelos executados de um bem imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...00, da freguesia ... e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo .... Os executados mutuários constituíram, a favor do Exequente, duas hipotecas sobre o mencionado prédio.--- 3.6. O ora Exequente reclamou, no referido Processo de Inventário, os seus créditos, os quais, à data de 29/06/2010, ascendiam a 75.511,25€.--- 3.8. O imóvel pertencente aos executados mutuários e id. em 3.1. foi vendido a terceiro, no âmbito do processo de inventário referido em 3.5., pelo preço de 100.000,00€ em 28/02/2019. 3.10. De acordo com o requerimento executivo apresentado nos autos principais, o Banco aqui exequente, em 16/12/2022, reclama aos executados o pagamento da quantia de € 102.279,85.---
XXXVII. Sendo certo que a decisão alternativa sustentada na prova documental junta aos Autos e no depoimento de parte da embargante, que acima já melhor se identificou e localizou, deveria ter sido a seguinte:
Factos Provados:
• .....
XXXVIII. O Tribunal a quo manifestou, portanto, nos pontos acima especificados, uma flagrante desconformidade entre os elementos probatórios disponíveis e a decisão ora recorrida sobre a matéria de facto.
XXXIX. Impugnada expressamente a decisão da matéria de facto com base em meios de prova sujeitos à livre apreciação, com cumprimento dos requisitos previstos no Artigo 640.º, do CPC, cumpre ao Venerando Tribunal da Relação de Guimarães proceder à reapreciação desses meios de prova e refletir na decisão da matéria de facto a convicção que formar, nos termos do Artigo 662.º, do CPC, o que se requer, novamente, a V. Exas. desde já e a final.
XL. Finalmente, o Tribunal a quo, na fundamentação de direito, violou o disposto no Artigo 790.º do Código Civil, por todas as asserções acima expendidas.”

Pediu que, revogando a sentença, a Relação julgue procedentes os embargos.
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7) O Exequente / Embargado (daqui em diante, Recorrido) respondeu, pugnando pela improcedência do recurso, .....”
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8) O recurso foi admitido como apelação, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo, o que não foi alterado por este Tribunal ad quem.
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II.
1) As conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo da ampliação deste a requerimento do recorrido (arts. 635/4, 636 e 639/1 e 2 do CPC). Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas, salvo se forem do conhecimento oficioso (art. 608/2, parte final, ex vi do art. 663/2, parte final, ambos do CPC).
Também não é possível conhecer de questões novas – isto é, de questões que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida –, salvo quando estas sejam do conhecimento oficioso e desde que o processo contenha todos os elementos necessários para esse efeito.
Compreende-se que assim seja, uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação. Na terminologia de João de Castro Mendes / Miguel Teixeira de Sousa (Manual de Processo Civil, II, Lisboa: AAFDL, pp. 129-130), o modelo recursivo vigente é de reponderação. Visa o controlo e a correção dos erros da decisão recorrida. Não é, portanto, um modelo de reexame, destinado a decidir de novo a questão que estava colocada ao tribunal recorrido. E assim sendo, os tribunais superiores apenas podem ser confrontados com questões que as partes colocaram e discutiram nos momentos próprios. No mesmo sentido, escreve Rui Pinto (O Recurso Civil. Uma teoria geral. Noção, objeto, natureza, fundamentos, pressupostos e sistema, Lisboa: AAFDL, 2017, p. 261), que “[o] sistema recursório vigente em Portugal caracteriza-se por (...) ser de reponderação pois não admite nem factos, nem questões novas”, muito embora tenha traços do modelo de reexame “na medida em que admite a renovação e ampliação da prova e factos novos ao abrigo dos art. 5.º, nº 2 e 662.º.” Ainda neste sentido, Armindo Ribeiro Mendes (Recursos em Processo Civil, Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 50) e António Abrantes Geraldes (Recursos em Processo Civil, 7.ª ed., Coimbra: Almedina, 2022, p140-141).
Está, de facto, em causa, conforme explica Luís Filipe Espírito Santo (Recursos Civis. O Sistema Recursório Português Fundamentos, Regime e Atividade Judiciária, Lisboa: CEDIS, 2020, pp. 8-9), a avaliação, em segundo grau, de uma decisão judicial pré-existente e não a possibilidade de iniciar uma nova e diversa discussão sobre temas não versados. O tribunal ad quem é chamado a sindicar a valoração do juízo de facto e de direito emitidos pelo tribunal a quo e não a conhecer novos factos ou novas questões de direito que as partes – podendo fazê-lo – entenderam não apresentar, nem configurar ou esgrimir, nas fases do processo que decorreu na instância inferior.
Parte-se aqui da ideia de que são as partes quem tem a responsabilidade de definir, no exercício da sua liberdade de atuação, predominante e decisiva no campo do direito privado, os termos enformadores da causa, por via da causa de pedir e do pedido que nessa sede expõem, não fazendo sentido que, uma vez apreciadas em 1.ª instância, com o consequente esgotamento do poder jurisdicional desta (art. 613/1 do CPC), venham suscitar, por via do recurso, questões que extravasam aquilo que constituiu o objeto da discussão. Isto realça a natureza do recurso enquanto continuação da instância e não como a configuração de uma nova instância.
Como escrevemos, este princípio apenas tem um desvio: o tribunal de recurso deve conhecer de questões não apreciadas na decisão recorrida quando elas sejam do conhecimento oficioso, como sucede com as relacionadas com juízos de constitucionalidade, com a declaração de nulidade de atos jurídicos, movida por razões de interesse público (art. 286 do Código Civil), com o conhecimento das cláusulas contratuais estabelecidas no interesse do consumidor (DL n.º 446/85,de 25.10) e com o instituto do abuso do direito (art. 334 do Código Civil). Este desvio é justificado, como bem refere Luís Filipe Espírito Santo (Recursos cit., p. 9), “pelo incontornável interesse público subjacente à avocação e aplicação destes institutos jurídicos.”
Sobre esta questão, escreve-se em STJ 8.06.2017 (2118/10.2TVLSB.L1.S1), relatado pela Juíza Conselheira Maria dos Prazeres Beleza), que “[a]pesar de a instância recursiva ter alguma autonomia – manifestada, por exemplo, nos pressupostos específicos de admissibilidade do recurso –, os recursos ordinários são uma continuação da instância, iniciada com a propositura da ação e que se extingue com o trânsito em julgado da decisão que lhe põe fim (artigos 259º e 628º, do Código de Processo Civil) e não uma nova instância.” E acrescenta-se que “[o] objecto do recurso não coincide necessariamente com o objecto da ação; mas não pode ser construído, seja qual for a parte recorrente, em desrespeito dos limites ou das balizas que o conjunto formado pelo pedido e pela causa de pedir significam para toda a ação. Os recursos destinam-se a apreciar a decisão recorrida (sistema de revisão ou de reponderação da decisão) e não a uma nova apreciação da causa (sistema de reexame da causa). Isto significa, por entre mais, que não têm por objetivo o conhecimento de questões novas, não colocadas ao tribunal recorrido, salvo se forem do conhecimento oficioso.” No mesmo sentido, escreve-se em RP 16.12.2016 (CJ, XL, t. 5, pp. 184-186), relatado pelo Juiz Desembargador Carlos Gil, que “[o]s recursos destinam-se à reponderação de questões que hajam sido colocadas e apreciadas pelo tribunal recorrido, não visando o conhecimento de questões novas, salvo os casos de verificação de nulidade da decisão recorrida por omissão de pronúncia, de existência de questão de conhecimento oficioso, da alteração do pedido, em segunda instância, por acordo das partes, ou da mera qualificação jurídica diversa da factualidade articulada.” E conclui-se: “[a] exceção de não cumprimento do contrato, assim como os factos integradores do enriquecimento sem causa, para serem apreciados em sede de recurso, carecem de ser prévia e atempadamente invocados, o que não sucede quando são apenas suscitados nas alegações recursivas.”
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2) As considerações que antecedem assumem pertinência quando atentamos nas conclusões VIII. a XII. e XL., e comparamos as mesmas com a petição inicial de embargos, peça processual em que a ora Recorrente teve a possibilidade de definir, com inteira liberdade, o objeto da ação declarativa de oposição à execução que assim intentou.
[Ao escrevermos isto, partimos do pressuposto de que os embargos de executado são, no dizer de J. P. Remédio Marques (Curso de Processo Civil Executivo Comum à Face do Código Revisto, Coimbra: Almedina, 2000, pp. 149-150), “ações declarativas, estruturalmente autónomas, porém instrumental e funcionalmente ligadas às ações executivas – nelas correndo por apenso –, pelas quais o executado pretende impedir a produção dos efeitos do título executivo.” Dito de outra forma, são o meio de defesa facultado ao executado para reagir contra uma execução ilegalmente instaurada contra si, oposição essa que poderá fundar-se quer em vícios processuais (oposição de forma), quer em vícios substanciais (oposição de mérito). Assumem-se, portanto, como uma verdadeira contra-ação do executado em relação à ação executiva que lhe foi movida pelo exequente, assim se (r)estabelecendo o princípio do contraditório.]
Como se constata, na petição de embargos, a Recorrente colocou duas únicas questões: a incorreta liquidação da obrigação exequenda feita no requerimento executiva face ao adrede decidido no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24 de novembro de 2021; a inexistência de interpelação para pagamento. Por contraposição, nas conclusões do recurso, insurge-se contra a decisão recorrida, entre o mais, por nela não ter sido considerado que, em resultado da venda entretanto realizada do prédio sobre que recaía a hipoteca constituída para garantir o pagamento do crédito exequendo, ficou constituída uma impossibilidade objetiva de cumprimento que não lhe é imputável. Nesta medida, pretende que se introduza esta afirmação, de natureza jurídica, na fundamentação de facto e que, com base nela, se conclua que a decisão recorrida violou, por erro na previsão, a norma jurídica do art. 790 do Código Civil.
Esta última surge, portanto, como uma questão inteiramente nova face ao que é o objeto processual definido na petição de embargos. Não sendo uma questão do conhecimento oficioso, não pode, pelas razões expostas, ser admitida a integrar o objeto do presente recurso, o que ora se declara.
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3) Em resultado do que antecede, sobram para apreciação as seguintes questões:
1.ª Erro de julgamento quanto às afirmações de facto dos pontos 3.1., 3.2., 3.5., 3.6., 3.8. e 3.10. do rol dos factos provados (conclusões I. a VII., XXV. a XXXI. e XXXIII. a XXXIX.);
2.ª Abuso do direito à ação executiva por parte do Recorrido (conclusões XIII. a XV. e XXXII.);
3.ª Liquidez, certeza e exigibilidade da prestação (conclusão XXIV.);
4.ª Incorreção do cálculo da quantia exequenda (conclusões XVI. a XXIII.).
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III.
1).1. Vejamos a 1.ª questão enunciada, começando por respigar a fundamentação de facto da sentença recorrida (transcrição):
Os factos provados – designadamente para efeitos da previsão dos art.ºs 542.º e segs. Do CPC –, com interesse para a decisão da causa, são os seguintes:
3.1. A presente execução baseia-se no incumprimento de dois contratos de mútuo com hipoteca, celebrados em 15/06/2007, que se computaram num valor global de € 75.368,00 e que se destinaram à aquisição pelos executados de um bem imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...00, da freguesia ... e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ...67.
3.2. Os executados mutuários constituíram, a favor do Exequente, duas hipotecas sobre o mencionado prédio.
3.3. Ambos os executados – marido e mulher àquela data - outorgaram os citados contratos enquanto devedores principais.
3.4. O referido casal dissolveu-se por divórcio em ../../2009.
3.5. Em 17/07/2018, o imóvel id. em 3.1. foi objeto de venda judicial a terceiros no âmbito do respetivo Processo Inventário para partilha dos bens comuns do mencionado casal, o qua corre os seus termos no Juízo de Família e Menores do Porto – J..., sob o processo 862/09.....
3.6. O ora Exequente reclamou, no referido Processo de Inventário, os seus créditos, os quais, à data de 29/06/2010, ascendiam a 75.511,25€.
3.7. Naquela data, as prestações referentes aos respetivos empréstimos estavam a ser pontualmente cumpridas, cumprimento que continuou até ../../2012, data a partir da qual os Executados mutuários deixaram de cumprir o contratualmente estabelecido.
3.8. O imóvel pertencente aos executados mutuários e id. em 3.1. foi vendido a terceiro, no âmbito do processo de inventário referido em 3.5., pelo preço de 100.000,00€ em 28/02/2019.
3.9. Em 24/11/2021, por Acórdão proferido, no âmbito do supra citado Processo de Inventário, pelo Tribunal da Relação do Porto, e já transitado em julgado, decidiu-se que “(…) o passivo a ter em conta nos presentes autos, aprovado pelos ex-cônjuges e cujo pagamento é devido ao credor/reclamante, ora apelante é de € 79.281,62”, calculado até à data de 17/07/2018.
3.10. De acordo com o requerimento executivo apresentado nos autos principais, o Banco aqui exequente, em 16/12/2022, reclama aos executados o pagamento da quantia de € 102.279,85.
***
Os factos não provados – designadamente para efeitos da previsão dos art.ºs 542.º e segs. Do CPC –, com interesse para a decisão da causa, são os seguintes:
a) O exequente faz da execução um uso contrário à boa fé, omitindo, alterando ou deturpando os factos que sustentam o respetivo pedido.
b) A executada/embargante deduziu oposição à execução com o único objetivo de se eximir ao pagamento da dívida que assumiu junto do exequente, alterando conscientemente a verdade de factos que alega.
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C) Da motivação e análise crítica da prova
O Tribunal fundou a sua convicção, para a determinação da matéria de facto dada como provada e não provada, na ponderação e análise crítica da prova reunida nos autos, designadamente desde logo da prova documental apresentada, conjugada com o teor das declarações de parte prestadas pela embargante.
Na verdade, atenta a prova produzida, resulta que, por força dos empréstimos celebrados com a Exequente, os executados mutuários AA e CC eram devedores, na data em que foi pela primeira formulada a reclamação de créditos nos autos de inventário n.º ...9... (29/06/2010), do valor de 75.511,25€, sendo que, nessa altura, as prestações estavam a ser pontualmente cumpridas, assim se mantendo até ../../2012, data a partir da qual os executados mutuários deixaram de cumprir o contratualmente estabelecido.
Entretanto, e tendo tal o imóvel pertencente aos executados mutuários, sobre o qual incidem as hipotecas a favor do banco exequente, sido vendido a terceiro no âmbito do já referido processo de inventário, pelo preço de 100.000,00€, em 28/02/2019, o certo é que, até ao momento, não foi ainda liquidado o crédito a favor do mutuante ora embargado.
Por sua vez, resulta ainda do Acórdão proferido, no âmbito do supra citado Processo de Inventário, pelo Tribunal da Relação do Porto e datado de 24/11/2021, que o valor ali fixado, quanto ao passivo cujo pagamento é devido ao credor/reclamante, e a “ter em conta” naqueles mesmos autos, no montante de € 79.281,62, foi calculado até à data de 17/07/2018, sendo que sobre este valor são devidos juros de mora sobre o capital em dívida, calculados nos termos constantes do requerimento executivo, assim se mostrando a exigibilidade da quantia exequenda, bem como a existência, exigibilidade e exequibilidade do título executivo.
Assim sendo, outra não podia ser a decisão sobre a matéria de facto.”
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1).2.1. Diz o art. 640/1 do CPC que “[q]uando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnada diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”
A isto acresce que, nos termos do n.º 2 do preceito, “[q]uando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.”
Resulta daqui que o recorrente que impugne a decisão da matéria de facto deve, sob cominação de rejeição do recurso, delimitar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar, indicar os concretos meios probatórios em que se estriba, precisando com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso; e deixar expressa a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, como corolário da motivação apresentada.
Como ensina António Abrantes Geraldes (Recursos em Processo Civil, 7.ª ed., Coimbra: Almedina, 2022, p. 201-202), estas exigências, verdadeiros ónus, vêm “na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar a interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente”, devendo ser apreciada à luz de um critério de rigor enquanto “decorrência do princípio da autorresponsabilidade das partes”, “impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo”.
Sobre os termos a observar no cumprimento de tais ónus, aderimos, data venia, ao expendido no Acórdão desta Relação de 12.10.2023 (605/21.6T8VCT-C.G1), relatado pela Desembargadora Maria João Matos e em que interveio, como 2.º Adjunto, o ora relator, que aqui respigamos:
Somando-se, porém, a este ónus de impugnação, encontra-se um outro, o ónus de conclusão, previsto no art.º 639.º, n.º 1, do CPC, onde se lê que o “recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão”.
Trata-se, aliás, de um entendimento sedimentado no nosso direito processual civil e, mesmo na ausência de lei expressa, defendido, durante a vigência do Código de Seabra, pelo Prof. Alberto dos Reis (in Código do Processo Civil Anotado, Vol. V, pág. 359) e, mais tarde, perante a redação do art. 690º, do CPC de 1961, pelo Cons. Rodrigues Bastos, in Notas ao Código de Processo Civil, Vol. III, 1972, pág. 299” (Ac. do STJ, de 08.02.2018, Maria do Rosário Morgado, Processo n.º 765/13.0TBESP.L1.S1, nota 1).
Entendeu-se que, exercendo os recursos a função de impugnação das decisões judiciais”, não só fazia sentido que o recorrente “expusesse ao tribunal superior as razões da sua impugnação, a fim de que o” mesmo “aprecie se tais razões procedem ou não”, como, podendo “dar-se o caso de a alegação ser extensa, prolixa ou confusa”, deveria no fim, “a título de conclusões”, indicar “resumidamente os fundamentos da impugnação”, fazendo-o pela “enunciação abreviada dos fundamentos do recurso” (Professor Aberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume V, Reimpressão, Coimbra Editora, Limitada, pág. 359…).
Contudo, acresce ainda a este objetivo (de síntese das razões que estão subjacentes à interposição do recurso) um outro, não menos importante, de definição do seu objeto. Lê-se, a propósito, no art.º 635.º, n.º 4, do CPC, que nas “conclusões da alegação, pode o recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objeto inicial do recurso”; e, por isso, se defende que as “conclusões exercem ainda a importante função de delimitação do objeto do recurso” (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pág.118).
Logo, pretende-se que o recorrente indique de forma resumida, através de proposições sintéticas, os fundamentos de facto e/ou de direito, por que pede a alteração ou anulação da decisão, para que seja possível delimitar o objeto do recurso de forma clara, inteligível, concludente e rigorosa (neste sentido, Ac. do STJ, de 18.06.2013, Garcia Calejo, Processo n.º 483/08.0TBLNH.L1.S1).
Compreende-se, por isso, que se afirme que, para “o bom julgamento do recurso não é suficiente que a alegação tenha conclusões. Estas deverão ser precisas, claras e concisas de modo a habilitar o tribunal ad quem a conhecer quais as questões postas e quais os fundamentos invocados” (Luís Correia de Mendonça e Henrique Antunes, Dos Recursos, Quid Juris, pág. 179).
Está-se aqui perante uma das concretizações do princípio da autorresponsabilidade das partes.”
No mesmo aresto, versando sobre as consequências do incumprimento dos referidos ónus, escreve-se que:
“Incumprindo o recorrente o ónus de impugnação previsto no art.º 640.º, n.º 1 do CPC (especificação dos concretos pontos de facto que se consideram incorretamente julgados, dos concretos meios probatórios que impõem que sobre eles seja proferida uma decisão diferente - incluindo as exatas passagens da gravação dos depoimentos em que se estriba - , e da decisão alternativa que deverá ser proferida sobre as questões de facto impugnadas), e tal como aí expressamente afirmando, terá o seu recurso que ser rejeitado (“sob pena de rejeição”).
Com efeito, e ao contrário do que sucede com o recurso relativo à decisão sobre a matéria de direito (previsto no art.º 639.º, n.º 2 e n.º 3, do CPC), no recurso relativo à matéria de facto (previsto no art.º 640.º, do CPC) não se admite despacho de aperfeiçoamento.
Esta solução é inteiramente compreensível e tem a sustentá-la a enorme pressão (geradora da correspondente responsabilidade) que durante décadas foi feita para que se modificasse o regime de impugnação da decisão da matéria de facto e se ampliassem os poderes da Relação a esse respeito, a pretexto dos erros de julgamento que o sistema anterior não permitiria corrigir. Além disso, pretendendo o recorrente a modificação da decisão da 1ª instância e dirigindo uma tal pretensão a um tribunal que nem sequer intermediou a produção de prova, é compreensível uma maior exigência no que concerne à impugnação da matéria de facto, impondo, sem possibilidade de paliativos, regras muito precisas. Enfim, a comparação com o disposto no art. 639º não deixa margem para dúvidas quanto à intenção do legislador de reservar o convite ao aperfeiçoamento para os recursos da matéria de direito” (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pág. 128).
Aliás, o entendimento da não admissibilidade de despacho de aperfeiçoamento face ao incumprimento, ou ao cumprimento deficiente, do ónus de impugnação da matéria de facto, já era generalizadamente aceite no âmbito do similar art.º 690.º-A do anterior CPC, de 1961 (conforme Carlos Lopes do Rego, Comentário ao Código de Processo Civil, Volume I, 2.ª edição, Almedina, pág. 203).
Do mesmo modo se deverá proceder quando, pese embora indicada a matéria de facto impugnada no corpo das alegações de recurso, essa indicação não seja depois reiterada nas respetivas conclusões, tendo o recorrente limitado desse modo o seu objeto.
Com efeito, importa distinguir a natureza, e as consequências, das diversas atuações possíveis do recorrente: uma primeira (relativa a um ónus primário), que contende com a delimitação do objeto do seu recurso, e que deixa absolutamente omissa, nas respetivas conclusões, a indicação da matéria de facto impugnada (limitando desse modo o recurso, e inexoravelmente, à sindicância da matéria de direito); e uma segunda (relativa aos ónus secundários), que contende com a análise jurídica do cumprimento do ónus de impugnação previsto no art.º 640.º, do CPC, e que deixa absolutamente omissa, nas mesmas conclusões de recurso - e ao contrário do que previamente fizera no corpo das respetivas alegações -, a indicação dos concretos meios probatórios que imporiam decisão diferente, da decisão alternativa pretendida, e das exatas passagens da gravação que o fundariam.
Compreende-se que assim seja, já que, nesta segunda situação, a impugnação da matéria de facto - bem ou mal feita - faz parte do objeto do recurso; e “o prazo de interposição do recurso é pela lei fixado em função do modo como o recorrente concebe o respetivo objeto” (Ac. da RG, de 07.04.2016, José Amaral, Processo n.º 4247/10.3TJVNF.G1).”
Acrescenta-se que:
“Ainda que com naturais oscilações - nomeadamente, entre a 2.ª Instância e o Supremo Tribunal de Justiça - (muito bem sumariadas no Ac. do STJ, de 09.06.2016, Abrantes Geraldes, Processo n.º 6617/07.5TBCSC.L1.S1, e no Ac. do STJ, de 11.02.2016, Mário Belo Morgado, Processo n.º 157/12-8TVGMR.G1.S1) -, vêm sendo firmados os seguintes entendimentos:
. os aspetos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, dando-se prevalência à dimensão substancial sobre a estritamente formal (neste sentido, Ac. do STJ, de 28.04.2014, Abrantes Geraldes, Processo n.º 1006/12.2TBPRD.P1.S1, Ac. do STJ, de 08.02.2018, Maria do Rosário Morgado, Processo n.º 765/13.0TBESP.L1.S1, Ac. do STJ, de 08.02.2018, Maria Graça Trigo, Processo n.º 8440/14.1T8PRT.P1.S1, Ac. do STJ, de 06.06.2018, Pinto Hespanhol, Processo n.º 552/13.5TTVIS.C1.S1, Ac. do STJ, 12.07.2018, Ferreira Pinto, Processo n.º 167/11.2TTTVD.L1.S1, Ac. do STJ, de 13.11.2018, Graça Amaral, Processo n.º 3396/14, ainda inédito, ou Ac. do STJ, de 03.10.2019, Maria Rosa Tching, Processo n.º 77/06.5TBGVA.C2.S2);
. dever-se-á usar de maior rigor na apreciação cumprimento do ónus previsto no n.º 1, do art.º 640.º, do CPC (primário ou fundamental, de delimitação do objeto do recuso e de fundamentação concludente do mesmo, mantido inalterado), face ao ónus  previsto no seu n.º 2 (secundário, destinado a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes, que tem oscilado em exigência ao longo do tempo, indo desde a transcrição obrigatória dos depoimentos até uma mera indicação e localização exata das passagens da gravação relevantes) (neste sentido, Ac. do STJ, de 29.10.2015, Lopes do Rego, Processo n.º 233/09.4TBVNG.G1.S1);
. a exigência de especificação dos concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto impugnados, só se satisfaz se essa concretização for feita relativamente a cada um daqueles factos e com indicação dos respetivos meios de prova (neste sentido, Ac. do STJ, de 19.02.2015, Maria dos Prazeres Beleza, Processo n.º 405/09.1TMCBR.C1.S1);
. a apresentação das transcrições globais dos depoimentos das testemunhas não satisfaz a exigência determinada pela al. a), do n.º 2, do art.º 640.º, do CPC  (neste sentido, Ac. do STJ, de 19.02.2015, Maria dos Prazeres Beleza, Processo n.º 405/09.1TMCBR.C1.S1); nem o faz o recorrente que procede a uma referência genérica aos depoimentos das testemunhas considerados relevantes pelo tribunal para a prova de quesitos, sem uma única alusão às passagens dos depoimentos de onde é depreendida a insuficiência dos mesmos para formar a convicção do juiz (neste sentido, Ac. do STJ, de 28.05.2015, Granja da Fonseca, Processo n.º 460/11.4TVLSB.L1.S1); e igualmente não cumpre a exigência legal a simples indicação do momento do início e do fim da gravação de um certo depoimento (neste sentido, Ac. do STJ, de 05.09.2018, Gonçalves Rocha, Processo n.º 15787/15.8T8PRT.P1.S2, Ac. do STJ, de 18.09.2018, José Rainho, Processo n.º 108/13.2TBPNH.C1.S1, ou Ac. do STJ, de 03.10.2019, Maria Rosa Tching, Processo n.º 77/06.5TBGVA.C2.S2);
. servindo as conclusões para delimitar o objeto do recurso, devem nelas ser identificados com precisão os pontos de facto que são objeto de impugnação, mas bastando quanto aos demais requisitos que constem de forma explícita na motivação do recurso (neste sentido, Ac. do STJ, de 19.02.2015, Tomé Gomes, Processo n.º 299/05.6TBMGD.P2.S1, Ac. do STJ, de 04.03.2015, Leones Dantas, Processo n.º  2180/09.0TTLSB.L1.S2, Ac. do STJ, de 01.10.2015, Ana Luísa Geraldes, Processo n.º 824/11.3TTLRS.L1.S1, Ac. do STJ, de 03.12.2015, Melo Lima, Processo n.º 3217/12.1TTLSB.L1-S1, Ac. do STJ, de 11.02.2016, Mário Belo Morgado, Processo n.º 157/12-8TVGMR.G1.S1, Ac. do STJ, de 03.03.2016, Ana Luísa Geraldes, Processo n.º 861/13.3TTVIS.C1.S1, Ac. do STJ, de 21.04.2016, Ana Luísa Geraldes, Processo n.º 449/10.0TTVFR.P2.S1, Ac. do STJ, de 28.04.2016, Abrantes Geraldes, Processo n.º 1006/12.2TBPRD.P1.S1, Ac. do STJ, de 31.05.2016, Garcia Calejo, Processo n.º 1572/12.2TBABT.E1.S1, Ac. do STJ, de 09.06.2016, Abrantes Geraldes, Processo n.º 6617/07.5TBCSC.L1.S1, Ac. do STJ, de 13.10.2016, Gonçalves Rocha, Processo n.º 98/12.9TTGMR.G1.S1, Ac. do STJ, de 16.05.2018, Ribeiro Cardoso, Processo n.º 2833/16.7T8VFX.L1.S1, Ac. do STJ, de 06.06.2018, Ferreira Pinto, Processo n.º 167/11.2TTTVD.L1.S1, Ac. do STJ, de 06.06.2018, Pinto Hespanhol, Processo n.º 552/13.5TTVIS.C1.S1, Ac. do STJ, 12.07.2018, Ferreira Pinto, Processo n.º 167/11.2TTTVD.L1.S1, Ac. do STJ, de 31.10.2018, Chambel Mourisco, Processo n.º 2820/15.2T8LRS.L1.S1, Ac. do STJ, de 13.11.2018, Graça Amaral, Processo nº 3396/14, ou Ac. do STJ, de 03.10.2019, Maria Rosa Tching, Processo n.º 77/06.5TBGVA.C2.S2);
. não cumprindo o recorrente os ónus impostos pelo art.º 640º, n.º 1, do CPC, dever-se-á rejeitar o seu recurso sobre a matéria de facto, uma vez que a lei não admite aqui despacho de aperfeiçoamento, ao contrário do que sucede quanto ao recurso em matéria de direito, face ao disposto no art.º 639.º, n.º 3, do CPC (nesse sentido, Ac. da RG, de 19.06.2014, Manuel Bargado, Processo n.º 1458/10.5TBEPS.G1,  Ac. do STJ, de 27.10.2016, Ribeiro Cardoso, Processo n.º 110/08.6TTGDM.P2.S1, Ac. da RG, de 18.12.2017, Pedro Damião e Cunha, Processo n.º 292/08.7TBVLP.G1, Ac. do STJ, 27.09.2018, Sousa Lameira, Processo n.º 2611/12.2TBSTS.L1.S1, ou Ac. do STJ, de 03.10.2019, Maria Rosa Tching, Processo n.º 77/06.5TBGVA.C2.S2);
. não deve ser rejeitado o recurso se o recorrente seguiu um determinado entendimento jurisprudencial acerca do preenchimento do ónus de alegação quanto à impugnação da decisão da matéria de facto, nos termos do art.º 640.º, do CPC (neste sentido, Ac. do STJ, de 09.06.2016, Abrantes Geraldes, Processo n.º 6617/07.5TBCSC.L1.S1);
. a insuficiência ou mediocridade da fundamentação probatória do recorrente não releva como requisito formal do ónus de impugnação, mas, quando muito, como parâmetro da reapreciação da decisão de facto, na valoração das provas, exigindo maior ou menor grau de fundamentação, por parte do tribunal de recurso, consoante a densidade ou consistência daquela fundamentação (neste sentido, Ac. do STJ, de 19.02.2015, Tomé Gomes, Processo n.º 299/05.6TBMGD.P2.S1).
Logo, a “rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve verificar-se em alguma das seguintes situações:
a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto;
b) Falta de especificação nas conclusões dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados;
c) Falta de especificação dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.);
d) Falta de indicação exata das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e) Falta de posição expressa sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação;
f) Apresentação de conclusões deficientes, obscuras ou complexas, a tal ponto que a sua análise não permita concluir que se encontram preenchidos os requisitos mínimos que traduzam algum dos elementos referidos” (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, págs. 128 e 129 (…).”
Precisando o ónus previsto na alínea c) do n.º 2 do art. 640, o STJ proferiu, recentemente, Acórdão de Uniformização de Jurisprudência (Acórdão de 17.10.2023, no processo n.º 8344/17.6T8STB.E1-A.S1), com a seguinte fórmula uniformizadora: “Nos termos da alínea c) do n.º 1 do art. 640.º do CPC, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações.”
***
1).2.2. Analisando o requerimento recursivo à luz das precedentes considerações, constatamos que a Recorrente apenas observou o ónus da alínea c) quanto a dois dos pontos da matéria de facto que considerou incorretamente julgados, a saber: a data em que, na ação de inventário para partilha do património comum do casal que corre termos pelo Juízo de Família e Menores do Porto sob o n.º 862/09...., foi feito o depósito do produto da venda do prédio sobre o qual recaía a hipoteca constituída para garantir o pagamento dos créditos exequendos (pontos 3.5. e 3.8.); e a inexistência de qualquer interpelação (sic) dos executados para procederem ao pagamento da quantia exequenda (ponto 3.10.).
Assim, quanto àquele primeiro ponto a Recorrente indicou, no corpo das alegações, como meio de prova que impõe decisão diversa da que foi tomada pelo Tribunal a quo o documento único de cobrança com a referência ...83.... Quanto ao segundo, satisfez o ónus indicando as suas próprias declarações em sede de audiência de discussão e julgamento.
Quanto a todos os demais pontos da fundamentação de facto, não teve o mesmo cuidado, omitindo qualquer referência aos meios de prova que, no seu entender, impunham decisão diversa daquela que impugnou.
Constatamos ainda que, tendo indicado, em bloco, a decisão de facto que, no seu entender, deve ser tomada, a Recorrente não a contrapôs, de forma especificada, a cada um dos pontos da matéria de facto que foi enumerada na sentença recorrida.
Fazendo essa tarefa, concluímos que a Recorrente apenas propôs redação diversa em relação àqueles dois factos (o constante dos pontos 3.5. e 3.8., por um lado; e o constante do ponto 3.10., pelo outro). Em relação aos demais, não concretizou onde reside o seu dissenso e, muito menos, indicou, sequer de forma implícita, a redação que, na sequência da impugnação, lhes deve ser dada.
Deste modo, é de rejeitar, desde logo, a impugnação da decisão da matéria de facto quanto aos pontos 3.1., 3.2., e 3.6. do rol dos factos provados.
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1).2.3. Por outro lado, fazendo uma análise das afirmações que a Recorrente pretende que fiquem a constar do rol dos factos provados, facilmente concluímos que uma parte significativa delas (referimo-nos às dos pontos 2., 3., 4., 7., 8., 9., 10. e 12. da Conclusão XXXVII), assume natureza estritamente jurídica ou contém meras conclusões que têm de ser retiradas dos factos provados e não factos propriamente ditos.
Sobre isto importa ter presente que do disposto no art.  607/4 do CPC resulta que o tribunal só deve responder aos factos que julga provados e não provados, o que exclui a pronúncia, nessa sede, sobre questões de direito, sendo que, tradicionalmente, se englobam neste conceito, por analogia, os juízos de valor ou conclusivos, os quais são, no dizer de Helena Cabrita, A Fundamentação de Facto e de Direito da Decisão Cível, Coimbra: Coimbra Editora, 2015, pp. 106-107, “aqueles que encerram um juízo ou conclusão, contendo desde logo em si mesmos a decisão da própria causa” ou, dito de outro modo, aqueles que se fossem considerados provados ou não provados levariam a que toda a ação ficasse resolvida, em termos de procedência ou improcedência, com base nessa única resposta.
A título de exemplo, citamos STJ de 28.09.2017 809/10.7TBLMG.C1.S1), no qual se entendeu que, “[m]uito embora o art. 646.º, n.º 4, do anterior CPC tenha deixado de figurar expressamente na lei processual vigente, na medida em que, por imperativo do disposto no art. 607.º, n.º 4, do CPC, devem constar da fundamentação da sentença os factos julgados provados e não provados, deve expurgar-se da matéria de facto a matéria suscetível de ser qualificada como questão de direito.”
Este entendimento estrito tem sido objeto da crítica da doutrina, em especial de Miguel Teixeira de Sousa, “Anotação ao Acórdão do STJ de 28.9.2017, processo n.º 809/10.7TBLMG.C1.S1”, Blog IPPC, Jurisprudência 784[1], https://blogippc.blogspot.com/ [17.10.2023], que, a propósito, escreve que, “[e]nquanto no CPC/1961 se selecionavam, no modo interrogativo (primeiro no questionário e depois da base instrutória), factos carecidos de prova, hoje enunciam-se, no modo afirmativo, temas da prova (cf. art. 596.º CPC). Tal como estes temas não têm de (e, aliás, nem podem, nem devem) ser enunciados fora de qualquer enquadramento jurídico, também a resposta do tribunal à prova realizada pela parte não tem de ser juridicamente asséptica ou neutra (…)
A chamada "proibição dos factos conclusivos" não tem hoje nenhuma justificação no plano da legislação processual civil (não importando agora discutir se alguma vez teve). Se o tribunal considerar provados os factos que preenchem uma determinada previsão legal, é absolutamente irrelevante que os apresente com a qualificação que lhes é atribuída por essa previsão. Por exemplo: se o tribunal disser que a parte atuou com dolo, porque, de acordo com o depoimento de várias testemunhas, ficou provado que essa parte gizou um plano para enganar a parte contrária, não se percebe por que motivo isso há-de afetar a prova deste plano ardiloso (nem também por que razão a qualificação do plano como ardiloso há-de afetar a sua prova). O exemplo acabado de referir também permite contrariar uma ideia comum, mas incorreta: a de que factos juridicamente qualificados não podem constituir objeto de prova. A ideia é, efetivamente, incorreta, porque cabe perguntar como é que sem a prova do dolo (através dos respetivos factos probatórios) se pode aplicar, por exemplo, o disposto no art. 483.º, n.º 1, CC quanto à responsabilidade por facto ilícito. É claro que o preceito só pode ser aplicado se, no caso de o dolo ser um facto controvertido, houver prova desse facto. Assim, também ao contrário do entendimento comum, há que concluir que o tema da prova não é mais do que o enunciado do objeto da prova. A referida "proibição dos factos conclusivos" também não corresponde às modernas correntes metodológicas na Ciência do Direito, que não se cansam de referir que a distinção entre a matéria de facto e a matéria de direito é totalmente artificial, dado que, para o direito, apenas são relevantes os factos que o direito qualificar como factos jurídicos. Para o direito, não há factos, mas apenas factos jurídicos, tal como, para a física ou a biologia, não há factos, mas somente factos físicos ou biológicos. Os factos são sempre um Konstrukt, pelo que os factos jurídicos são aqueles factos que são construídos pelo direito. Em conclusão: o objeto da prova não pode deixar de ser um facto jurídico, com todas as características descritivas, qualitativas, quantitativas ou valorativas desse facto.”
Da nossa parte, entendemos que é preferível um entendimento eclético. Com efeito, ainda na vigência do CPC de 1961, o mesmo STJ notou, em Acórdão de 13.11.2007, 07A3060, que “[t]orna-se patente que o julgamento da matéria de facto implica quase sempre que o julgador formule juízos conclusivos, obrigando-o a sintetizar ou a separar os materiais que lhe são apresentados através das provas. Insiste-se: o que a lei veda ao julgador da matéria de facto é a formulação de juízos sobre questões de direito, sancionando a infração desta proibição com o considerar tal tipo de juízos como não escritos.” E acrescentou que “não pode perder‑se de vista que é praticamente impossível formular questões rigorosamente simples, que não tragam em si implicados, o mais das vezes, juízos conclusivos sobre outros elementos de facto; e assim, desde que se trate de realidades apreensíveis e compreensíveis pelos sentidos e pelo intelecto dos homens, não deve aceitar‑se que uma pretensa ortodoxia na organização da base instrutória impeça a sua quesitação, sob pena de a resolução judicial dos litígios ir perdendo progressivamente o contacto com a realidade da vida e assentar cada vez mais em abstrações (e subtilezas jurídicas) distantes dos interesses legítimos que o direito e os tribunais têm o dever de proteger. E quem diz quesitação diz também, logicamente, estabelecimento da resposta, isto é, incorporação do correspondente facto no processo através da exteriorização da convicção do julgador, formada sobre a livre apreciação das provas produzidas.”
Já no âmbito do CPC de 2013, o STJ, em Ac. de 22.03.2018 (1568/09.1TBGDM.P1.S1), considerou que a inexistência no CPC de 2013 de um preceito como o do art. 646/4 do CPC de 1961 “não pode deixar de ter implicações no que concerne à atual metodologia no que concerne à descrição na sentença do que constitui matéria de facto e matéria de direito.” Escreveu-se ali que “[n]o que concerne à decisão sobre a matéria de facto provada e não provada, não será indiferente nem o modo como as partes exerceram o seu ónus de alegação, nem a forma como o juiz, na audiência prévia ou em despacho autónomo, enunciou os temas da prova, tarefas relativamente às quais foram introduzidas no CPC importantes alterações que visaram quebrar rotinas instaladas e afastar os efeitos negativos a que conduziu a metodologia usualmente aplicada no âmbito do CPC de 1961 (…) A matéria de facto provada deve ser descrita pelo juiz de forma mais fluente e harmoniosa do que aquela que resultava anteriormente da mera transcrição do resultado de respostas afirmativas, positivas, restritivas ou explicativas a factos sincopados que usualmente preenchiam os diversos pontos da base instrutória do CPC de 1961 (…)”
O relator deste Acórdão, Conselheiro António Abrantes Geraldes, renovou este entendimento na sua obra Recursos em Processo Civil (7.ª ed., Coimbra: Almedina, 2022, pp. 354-355), ao escrever que, em resultado da modificação formal da produção de prova em audiência, que passou a ter por objeto temas de prova, e da opção da integração da decisão da matéria de facto no âmbito da própria sentença, “deve existir uma maior liberdade no que concerne à descrição da realidade litigada, a qual não deve ser imoderadamente perturbada por juízos lógico-formais em torno do que seja matéria de direito ou matéria conclusiva que apenas sirva para provocar um desajustamento entre a decisão final e a justiça material do caso (...) A patologia da sentença neste segmento apenas se verificará, em linhas gerais, quando seja abertamente assumida como matéria de facto provada pura e inequívoca matéria de direito…”
Sem prejuízo, como salientado no Acórdão desta Relação de 11.11.2021, 671/20.1T8BGC.G1, “não obstante subscrevermos uma maior liberdade introduzida pelo legislador no novo (atual) Código de Processo Civil, entendemos que não constituem factos a considerar provados na sentença nos termos do disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 607º do Código de Processo Civil os que contenham apenas formulações absolutamente genéricas e conclusivas, não devendo também constituir “factos provados” para esse efeito as afirmações que “numa pura petição de princípio assimile a causa de pedir e o pedido”… De facto, se a opção legislativa tem subjacente a possibilidade de com maior maleabilidade se fazer o cruzamento entre a matéria de facto e a matéria de direito, tanto mais que agora ambos (decisão da matéria de facto e da matéria de direito) se agregam no mesmo momento, a elaboração da sentença, tal não pode significar que seja admissível a “assimilação entre o julgamento da matéria de facto e o da matéria de direito ou que seja possível, através de uma afirmação de pendor estritamente jurídico, superar os aspetos que dependem da decisão da matéria de facto…”
No mesmo sentido, o Acórdão desta Relação de 31.03.2022 (294/19.8T8MAC.G1) sintetiza a questão nos seguintes termos: “[a]figura-se-nos que os factos conclusivos não devem relevar (não podem integrar a matéria de facto) quando, porque estão diretamente relacionados com o thema decidendum, impedem ou dificultam de modo relevante a perceção da realidade concreta, seja ela externa ou interna, ditando simultaneamente a solução jurídica, normalmente através da formulação de um juízo de valor.” E, sufragando RP 07.12.2018 (338/17.8YRPRT), acrescenta que: “Acaso o objeto da ação esteja, total ou parcialmente, dependente do significado real das expressões técnico-jurídicas utilizadas, há que concluir que estamos perante matéria de direito e que tais expressões não devem ser submetidas a prova e não podem integrar a decisão sobre matéria de facto. Se, pelo contrário, o objeto da ação não girar em redor da resposta exata que se dê às afirmações feitas pela parte, as expressões utilizadas, sejam elas de significado jurídico, valorativas ou conclusivas, poderão ser integradas na matéria de facto, passível de apuramento através da produção dos meios de prova e de pronúncia final do tribunal que efetua o julgamento, embora com o significado vulgar e corrente e não com o sentido técnico-jurídico que possa colher-se nos textos legais.”
Deste modo, tendo presente que a linha divisória entre o facto e o direito não é linear, tudo dependendo, no dizer de Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, III, Coimbra: Almedina, 1982, p. 270, “em considerável[,] medida não só da estrutura da norma, como dos termos da causa: o que é facto ou juízo de facto num caso, poderá ser direito ou juízo de direito noutro. Os limites entre um e outro são, assim, flutuantes”, há sempre que verificar se o facto, mesmo com uma componente conclusiva, não tem ainda um substrato relevante para o acervo que importa para uma decisão justa.
Na verdade, como se salienta em STJ 14.07.2021 (19035/17.8T8PRT.P1.S1), citando um outro aresto do mesmo Tribunal, este de 13.11.2007, “torna-se patente que o julgamento da matéria de facto implica quase sempre que o julgador formule juízos conclusivos, obrigando-o a sintetizar ou a separar os materiais que lhe são apresentados através das provas. Insiste-se: o que a lei veda ao julgador da matéria de facto é a formulação de juízos sobre questões de direito, sancionando a infração desta proibição com o considerar tal tipo de juízos como não escritos.
Aliás, não pode perder-se de vista que é praticamente impossível formular questões rigorosamente simples, que não tragam em si implicados, o mais das vezes, juízos conclusivos sobre outros elementos de facto; e assim, desde que se trate de realidades apreensíveis e compreensíveis pelos sentidos e pelo intelecto dos homens, não deve aceitar-se que uma pretensa ortodoxia na organização da base instrutória impeça a sua quesitação, sob pena de a resolução judicial dos litígios ir perdendo progressivamente o contacto com a realidade da vida e assentar cada vez mais em abstrações (e subtilezas jurídicas) distantes dos interesses legítimos que o direito e os tribunais têm o dever de proteger. E quem diz quesitação diz também, logicamente, estabelecimento da resposta, isto é, incorporação do correspondente facto no processo através da exteriorização da convicção do julgador, formada sobre a livre apreciação das provas produzidas.”
Isto sem esquecer que, como refere a declaração de voto de vencido da Conselheira Luísa Geraldes a STJ 28.01.2016 (1715/12.6TTPRT.P1.S1), “ainda que relativamente a alguns deles se pudesse afirmar a sua natureza conclusiva, nem assim se justificava a eliminação pura e simples, de tais pontos de facto, devendo a Relação fazer uso dos poderes conferidos enquanto Tribunal de instância que conhece da matéria de facto, ao abrigo do preceituado no artigo 662.º do CPC.”
Não é, manifestamente, o que sucede com as afirmações dos referidos pontos 2., 3., 4., 7., 8., 9., 10. e 12. da Conclusão XXXVII, em que a Recorrente mais não faz que enunciar os efeitos jurídicos que pretende sejam retirados da situação de facto. Ademais, as dos pontos 3. e 4. estão relacionadas com a questão que a Recorrente denominou de impossibilidade objetiva de cumprimento, pelo que, sendo esta uma questão nova, conforme escrevemos, são irrelevantes para o conhecimento do recurso.
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1).2.4. Centrando agora a atenção na impugnação do ponto 3.5. e 3.8., o dissenso da Recorrente prende-se apenas com a data em que foi realizada a venda judicial do prédio no âmbito da já identificada ação de inventário destinada à partilha do património comum do casal que foi constituído pelos executados.
Na sentença recorrida escreveu-se, no ponto 3.5, que “[e]m 17/07/2018, o imóvel identificado em 3.1. foi objeto de venda judicial a terceiros no âmbito do respetivo processo de inventário” e acrescentou-se, no ponto 3.8., que “[o] imóvel pertencente aos executados mutuários (…) foi vendido a terceiro, no âmbito do processo de inventário referido em, 3.5., pelo preço de € 100 000,00, em 18.02.2019.”
A contradição quanto à data da venda é ostensiva. A nosso ver ela decorre, desde logo, de se ter tratado a venda judicial como um único ato quando, na verdade, ela se decompõe em vários atos, consoante a modalidade de venda escolhida. Assim, tomando como referência a venda mediante propostas em carta fechada, modalidade regra a observar quando a penhora tenha recaído sobre bens imóveis (art. 816/1 do CPC atualmente em vigor, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26.06, como anteriormente, no domínio do CPC de 1961, o art. 889/1), estão em causa, na sequência, ademais dos atos relacionados com a publicidade (publicação de anúncios e afixação de editais), a abertura e aceitação de propostas, o depósito do preço e a adjudicação. Neste encadeado, o efeito essencial da venda executiva – que é a transmissão do direito sobre a coisa penhorada do executado para o comprador – fica sujeito à verificação da condição suspensiva da realização dos depósitos a que se refere o art. 815 do CPC. Apenas ocorre, ipso facto, quando estes se mostrem realizados, retroagindo, porém, os seus efeitos à data da aceitação da proposta, o que deve ser atestado pelo título de transmissão. A propósito, vide RG 26.10.2023 (1346/21.0T8BRG.G1).
Pois bem, aqui deparamo-nos com uma dificuldade: o único documento constante dos autos que retrata um ato daquele processo de venda consiste na cópia, apresentada com o requerimento executivo, do despacho exarado no referido inventário no dia 18 de setembro de 2018, do seguinte teor: “Atenta a proposta apresentada pelo Sr. Encarregado de Venda, em 17 de Julho – 100.000,00 € - e por ser a melhor proposta, notifique a proponente para cumprir o disposto no artigo 905º, n.º 4 do CPC, na versão do DL 226/08, de 20 de Novembro sendo que, após, será proferido o competente despacho de adjudicação.” O teor deste despacho permite-nos concluir que a data indicada no ponto 3.5. do rol dos factos provados não coincide com a venda do prédio, conceito que vamos entender como pretendendo significar o efeito translativo da propriedade; o que sucedeu naquela data (17 de julho de 2018), foi a apresentação de uma proposta de compra. Resultando ainda do referido despacho a informação de que a venda estava a ser feita por negociação particular, seguindo os termos do CPC de 1961, na redação do DL n.º 226/08, de 20.11, à aceitação daquela proposta ter-se-á seguido o depósito do preço e o instrumento de venda (art. 805/4 do CPC de 1961).
Daqui podemos retirar uma 1.ª conclusão: a afirmação do ponto 3.5. está errada no que tange à data em que foi realizada a venda do prédio, devendo, assim, ser eliminada.
Resta saber apurar se foi depositado o preço e lavrado o instrumento de venda, etapas necessárias do processo de venda, e as datas respetivas.
Como escrevemos, dos autos não consta o instrumento de venda. Também não consta a guia de depósito do preço em que se baseia a impugnação da Recorrente.
Estando em causa factos que apenas documentalmente podem ser provados, impor-se-ia a anulação da sentença, ut art. 662/2, c), para que a 1.ª instância obtivesse o instrumento de venda e a guia de depósito do preço e, com base em tais documentos, fixasse aqueles factos.
Afigura-se, porém, que tal não é necessário, uma vez que dos autos consta a certidão do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto no dia 23 de março de 2023 naqueles autos de inventário, em cuja fundamentação a informação está vertida em termos que as partes não colocaram em causa. Ali se lê que a venda “foi levada a cabo a terceiro em janeiro de 2019 [cf. instrumento de venda junto a 13 de fevereiro de 2019, ref. ...00].”
Esta afirmação, ainda que pouco exata (não indica o dia), permite-nos concluir que o preço foi depositado e que, na sequência, foi lavrado, em janeiro de 2019, o instrumento da venda.
Não nos permite, no entanto, saber as datas respetivas, seguramente anteriores à indicada no ponto 3.8. que, assim, se apresenta como errado.
Como quer que seja, o que releva para a economia destes embargos é, a um tempo, a realização da venda no processo de inventário, com a consequente extinção da hipoteca, e, a outro, o montante que assim foi obtido (€ 100 000,00), sobre o qual passou a recair a preferência de pagamento de que beneficiava o Recorrido. A data apresenta-se como inócua para fundamentar a resposta às questões jurídicas que se colocam.
Assim, há apenas que corrigir a redação do ponto 3.8., fazendo-se dele constar que a venda foi feita por negociação particular, pelo preço de € 100 000,00 e que, depositado este, foi lavrado o competente instrumento. A redação passa, desta forma, a ser a seguinte: “O prédio identificado em 3.1. foi objeto de venda por negociação particular no âmbito do processo de inventário que corre termos pelo Juízo de Família e Menores do Porto sob o n.º 862/09...., pelo preço de € 100 000,00; em janeiro de 2019, após o depósito desse preço, foi lavrado o instrumento de venda.”
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1).2.5.. Passamos para a impugnação do ponto 3.10., do seguinte teor: “De acordo com o requerimento executivo apresentado nos autos principais, o Banco aqui exequente, em 16/12/2022, reclama aos executados o pagamento da quantia de € 102 279,85.”
Diz a Recorrente que esta afirmação deve considerar-se como não provada e que, em contrapartida, deve considerar-se como provado que os executados jamais foram interpelados para pagar a quantia de € 102 279,85. Indica as suas próprias declarações como o meio de prova que impõe esta modificação.
Quid inde?
É patente o equívoco de que parte a Recorrente: o que está afirmado no ponto 3.10. não é mais do que aquilo que resulta do requerimento executivo. De facto, em tal requerimento, o Recorrido reclama dos executados o pagamento da referida quantia, requerendo o desenvolvimento das diligências necessárias à sua realização por via da execução do património dos devedores.
Deste modo, a impugnação só tem razão de ser na sua segunda parte – aquela em que a Recorrente pretende que se considere que nem ela nem o executado jamais foram interpelados para pagarem, afirmação que deve ser interpretada de uma forma restritiva: o advérbio de negação utilizado pela Recorrente deve circunscrever-se ao período de tempo que antecede a citação dos Executados para a execução – que, como vamos ver, é constitui uma forma de interpelação.
Pois bem, sobre isto há a dizer que a interpelação do devedor é elemento constitutivo do direito do credor que pretende obter uma indemnização pelo atraso no cumprimento (art. 805/1 do Código Civil). Não resultando provados factos que a substanciem, o resultado do funcionamento das regras do ónus da prova terá de ser favorável ao devedor. Neste sentido, RE 17.01.2019 (1560/16.0T8BJA-A.E1). Temos aqui presente que as regras sobre o ónus da prova são regras de decisão e não regras de distribuição propriamente ditas. Tanto assim é que o princípio da aquisição processual (art. 413 do CPC), associado ao princípio do inquisitório em matéria de prova (art. 411/3 do CPC), podem levar a que os factos essenciais constitutivos da causa de pedir ou de uma exceção resultem provados ainda que a parte onerada não consiga produzir prova apta para esse efeito. A propósito, Luís Filipe Pires de Sousa, Direito Probatório Material Comentado, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2021, p. 15. Dito de outra forma, ter o ónus da prova significa, sobretudo, determinar qual é a parte que suporta a falta de prova de determinado facto e não tanto saber qual é a parte que está onerada com a prova desse mesmo facto. Sem prejuízo, sempre notamos que, conforme ensinam João de Castro Mendes / Miguel Teixeira de Sousa (Manual de Processo Civil, I, Lisboa: AAFDL, 2022, pp. 487-488), tendencialmente há coincidência entre a parte que suporta o ónus da prova e aquela que tem a iniciativa da prova que, assim, tentará, naturalmente, afastar o risco da falta de prova. Na perspetiva inversa, a contraparte sentir-se-á legitimada a uma inação probatória até à prova do facto pela parte onerada. Assim, escrevem estes autores, “o ónus subjetivo implica o ónus objetivo, e vice-versa.” Neste sentido, o art. 346 do Código Civil e o art. 414 do CPC estabelecem que, na dúvida, o juiz decida contra a parte onerada com a prova.
Decorre daqui que a segunda parte da impugnação relativa ao ponto 3.10. da fundamentação de facto, tal como foi apresentada pela Recorrente, é inócua, pelo que a audição da prova gravada – que, na verdade, se resume às declarações prestadas pela Recorrente na audiência final – é um ato inútil, como tal proibido pelo art. 130 do CPC.
Ainda que assim não fosse, sempre se teria de contrapor que existem elementos dos quais decorre que a propositura da ação executiva não foi o 1.º ato através do qual o Recorrido reclamou o pagamento dos créditos exequendos, inclusive dos que resultam dos juros de mora alegadamente devidos em consequência do não pagamento da prestação que se venceu no dia 25 de março de 2012. Com efeito, como contraditoriamente alegou a própria Recorrente, o Recorrido reclamou os seus créditos no identificado processo de inventário, tendo ali sido proferido, pelo Tribunal da Relação do Porto, Acórdão que os reconheceu. E o teor desse Acórdão, proferido no âmbito de um recurso de apelação a que a Recorrente respondeu, é muito claro: ali se pode ler, por um lado, que o Embargado apresentou, naqueles autos, no dia 10 de março de 2013, requerimento a informar que os referidos contratos de mútuo se encontravam em situação de incumprimento desde ../../2012, encontrando-se vencidas as prestações de capital, nos montantes de € 21 443,79, e € 51 360,47, respetivamente, e sendo devidos, sobre tal capital, os juros moratórios acordados até efetivo e integral pagamento; e, por outro, que o valor total em dívida ascendia, no dia 17 de julho de 2018, a € 79 281,62, assim decomposto: € 71 477,67, correspondentes ao capital; € 3 145,78, correspondentes aos juros remuneratórios; € 2 326,41, correspondentes aos juros de mora; € 271,70, correspondentes a penalizações; € 1 905,37, correspondentes a despesas; e € 154,69, correspondentes a imposto de selo.
Perante isto – e sem curar, por agora, da questão de saber se o referido Acórdão produz efeitos nestes embargos por via do instituto do caso julgado –, sempre temos de chegar à conclusão de que a afirmação de que o Recorrente jamais interpelou os executados para pagarem os créditos reclamados no requerimento executivo é, no mínimo, duvidosa.
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1).3. Com o que antecede fica respondida a 1.ª questão. Não ficam, no entanto, resolvidas todas as questões que a decisão da matéria de facto suscita.
Na verdade, analisada a decisão da matéria de facto, constatamos que o Tribunal a quo não tomou nela em consideração factos que estão provados documentalmente e que são relevantes para a decisão, assim incumprindo o mandamento da 2.ª parte do n.º 4 do art. 607 do CPC, onde se diz que, ademais dos factos essenciais e complementares (e, se necessário, concretizadores) que julgue provados em resultado da análise crítica da prova, o juiz deve também tomar em consideração, na sentença, os factos que estão provados “por acordo das partes, confissão judicial ou extrajudicial reduzida a escrito e documento com força probatória plena, quer se trate de documento autêntico ou autenticado, quer mesmo de documento particular.”
Assim sucedeu com as declarações das partes que ficaram plasmadas nas escrituras de mútuo e respetivos documentos complementares que constituem os títulos executivos, com a pendência da ação de inventário destinada à partilha do património comum do casal que foi constituído pelos Executados, bem como com o teor da liquidação feita no requerimento executivo.
Impondo-se o referido comando normativo da 2.ª parte do n.º 4 do art. 607 do CPC também à Relação, ex vi do art. 663/2 do CPC, há que considerar também como assentes os seguintes factos:
1. Por escritura pública lavrada no dia 15 de junho de 2007, no Cartório Notarial ..., denominada Mútuo com hipoteca, os Executados, como primeiros outorgantes, e DD, na qualidade de procurador do Exequente, declararam que: “(…) o Banco concede aos primeiros outorgantes um empréstimo no montante de € 21 101,76 (…). / Nesta data, a quantia referida é entregue pelo Banco por crédito na conta dos primeiros outorgantes com o n.º (…), aberta junto do Banco 1.... / Os primeiros outorgantes aceitam o empréstimo e confessam-se, desde já, devedores de todas as quantias que do Banco receberam a título deste empréstimo e até ao montante do mesmo (…). / (…) Para garantia do pagamento e liquidação da quantia mutuada e, bem assim, dos respetivos juros à taxa anual efetiva de 4,82%, acrescida de uma sobretaxa até 4% ao ano, em caso de mora, a título de cláusula penal, e despesas judiciais e extrajudiciais fixadas para efeitos de registo em € 997,60, a primeira outorgante, com o necessário consentimento do seu marido, constitui a favor daquele Banco, hipoteca sobre o seguinte prédio: Urbano – Composto de casa de cave, r/c e chalé, destinado a habitação (…) descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...00.º (…) / (…) o empréstimo e a hipoteca se regulam pelo DL n.º 349/98, de 11.11, e ainda pelas condições constantes do documento complementar elaborado nos termos do n.º 2 do art. 64 do Código do Notariado, que faz parte integrante destra escritura e com ela fica arquivado”, tudo conforme documento ... apresentado com o requerimento executivo, cujo conteúdo aqui damos por integralmente reproduzido.
2. Através de escrito datado de 15 de junho de 2007, denominado Documento complementar, que faz parte da escritura referida no ponto anterior, os Executados e o Exequente, este através daquele seu identificado procurador, declararam que: “1.ª: A quantia mutuada é nesta data entregue pelo Banco por crédito da conta de depósito à ordem n.º (…) aberta em nome dos Mutuários junto do Banco 1.... / 2.ª: 1. O empréstimo é concedido pelo prazo de 326 meses a contar do próximo dia 25, salvo se esse dia coincidir com a data da escritura, e sendo assim, o prazo iniciar-se-á a partir dessa data, e será amortizado em 326 prestações mensais, de capital e juros, a primeira com vencimento no mesmo dia do mês seguinte e as restantes em igual dias dos meses subsequentes. (…) 3.ª: 1. Durante um período de 90 dias a contar desta data, o empréstimo vence juros sobre o capital em dívida, calculados dia a dia e cobrados postecipadamente ao mês, à taxa resultante da média aritmética simples das cotações diárias da Euribor a 90 dias no mês anterior a cada período de contagem de juros, com arredondamento à milésima, sendo tal arredondamento feito por excesso quando a quarta casa décimal for igual ou superior a cinco e por defeito quando a quarta casa decimal for inferior a cinco. / 2. A taxa nominal resultante do n.º anterior será acrescida de 0,5 pontos percentuais a título de Spread. 3. Findo o período referido no n.º 1, a taxa aplicável ao empréstimo será acrescida de 0,6% a título de Spread (…) / 7. Os períodos de contagem de juros serão trimestrais. / 8. Em cada período de contagem de juros a taxa de juro manter-se-á inalterável. (…) / 4.ª: 1. Em caso de mora, os juros serão contados dia a dia e calculados à taxa que estiver em vigor, acrescida de uma sobretaxa de 4%, a título de cláusula penal. 2. O Banco reserva-se o direito de, a todo o tempo e independentemente de qualquer regime especial aplicável, capitalizar juros remuneratórios correspondentes a um período não inferior a três meses e juros moratórios correspondentes a um período não inferior a um ano, adicionando tais juros ao capital em dívida, passando aqueles a seguir todo o regime deste. / (…) 6.ª Os pagamentos a efetuar pelo Mutuários para liquidação do capital mutuado, respetivos juros e outros encargos devidos por força do estipulado no presente contrato, serão efetuados por débito na conta de depósitos à ordem mencionada anteriormente ou em qualquer conta de que os Mutuários sejam ou venham a ser titulares junto do Banco 1..., autorizando, desde já, os Mutuários os débitos. / (…) 9.ª A presente hipoteca poderá ser executada: a) se não forem pagas as prestações nas datas previstas, caso em que a falta de pagamento de uma delas importa o vencimento imediato de todas; b) se o imóvel ora hipotecado vier a ser alienado, onerado, arrendado, total ou parcialmente, objeto de arresto, execução ou qualquer procedimento cautelar ou ação judicial, casos em que se consideraram, igualmente vencidas e exigíveis as obrigações que assegura (…)”, tudo cf. documento ... apresentado com o requerimento executivo, cujo conteúdo aqui damos por integralmente reproduzido.
3. Por escritura pública lavrada no dia 15 de junho de 2007, no Cartório Notarial ..., denominada Mútuo com hipoteca, os Executados, como primeiros outorgantes, e DD, na qualidade de procurador do Exequente, declararam que: “(…) o Banco concede aos primeiros outorgantes um empréstimo no montante de € 53 266,20 (…). / Nesta data, a quantia referida é entregue pelo Banco por crédito na conta dos primeiros outorgantes com o n.º (…), aberta junto do Banco 1.... / Os primeiros outorgantes aceitam o empréstimo e confessam-se, desde já, devedores de todas as quantias que do Banco receberam a título deste empréstimo e até ao montante do mesmo (…). / (…) Para garantia do pagamento e liquidação da quantia mutuada e, bem assim, dos respetivos juros à taxa anual efetiva de 4,76%, acrescida de uma sobretaxa até 4% ao ano, em caso de mora, a título de cláusula penal, e despesas judiciais e extrajudiciais fixadas para efeitos de registo em € 2 136,65, a primeira outorgante, com o necessário consentimento do seu marido, constitui a favor daquele Banco, hipoteca sobre o seguinte prédio: Urbano – Composto de casa de cave, r/c e chalé, destinado a habitação (…) descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...00.º (…) / (…) o empréstimo e a hipoteca se regulam pelo DL n.º 349/98, de 11.11, e ainda pelas condições constantes do documento complementar elaborado nos termos do n.º 2 do art. 64 do Código do Notariado, que faz parte integrante destra escritura e com ela fica arquivado”, tudo conforme documento ... apresentado com o requerimento executivo, cujo conteúdo aqui damos por integralmente reproduzido.
4. Através de escrito datado de 15 de junho de 2007, denominado Documento complementar, que faz parte da escritura referida no ponto anterior, os Executados e o Exequente, este através daquele seu identificado procurador, declararam que: “1.ª: A quantia mutuada é nesta data entregue pelo Banco por crédito da conta de depósito à ordem n.º (…) aberta em nome dos Mutuários junto do Banco 1.... / 2.ª: 1. O empréstimo é concedido pelo prazo de 326 meses a contar do próximo dia 25, salvo se esse dia coincidir com a data da escritura, e sendo assim, o prazo iniciar-se-á a partir dessa data, e será amortizado em 326 prestações mensais, de capital e juros, a primeira com vencimento no mesmo dia do mês seguinte e as restantes em igual dias dos meses subsequentes. (…) 3.ª: 1. Durante um período de 90 dias a contar desta data, o empréstimo vence juros sobre o capital em dívida, calculados dia a dia e cobrados postecipadamente ao mês, à taxa resultante da média aritmética simples das cotações diárias da Euribor a 90 dias no mês anterior a cada período de contagem de juros, com arredondamento à milésima, sendo tal arredondamento feito por excesso quando a quarta casa décimal for igual ou superior a cinco e por defeito quando a quarta casa decimal for inferior a cinco. / 2. A taxa nominal resultante do n.º anterior será acrescida de 0,5 pontos percentuais a título de Spread. / 3. Findo o período referido no n.º 1, a taxa aplicável ao empréstimo será acrescida de 0,6% a título de Spread (…) / 7. Os períodos de contagem de juros serão trimestrais. / 8. Em cada período de contagem de juros a taxa de juro manter-se-á inalterável. (…) / 4.ª: 1. Em caso de mora, os juros serão contados dia a dia e calculados à taxa que estiver em vigor, acrescida de uma sobretaxa de 4%, a título de cláusula penal. 2. O Banco reserva-se o direito de, a todo o tempo e independentemente de qualquer regime especial aplicável, capitalizar juros remuneratórios correspondentes a um período não inferior a três meses e juros moratórios correspondentes a um período não inferior a um ano, adicionando tais juros ao capital em dívida, passando aqueles a seguir todo o regime deste. / (…) 6.ª Os pagamentos a efetuar pelo Mutuários para liquidação do capital mutuado, respetivos juros e outros encargos devidos por força do estipulado no presente contrato, serão efetuados por débito na conta de depósitos à ordem mencionada anteriormente ou em qualquer conta de que os Mutuários sejam ou venham a ser titulares junto do Banco 1..., autorizando, desde já, os Mutuários os débitos. / (…) 9.ª A presente hipoteca poderá ser executada: a) se não forem pagas as prestações nas datas previstas, caso em que a falta de pagamento de uma delas importa o vencimento imediato de todas; b) se o imóvel ora hipotecado vier a ser alienado, onerado, arrendado, total ou parcialmente, objeto de arresto, execução ou qualquer procedimento cautelar ou ação judicial, casos em que se consideraram, igualmente vencidas e exigíveis as obrigações que assegura (…)”, tudo cf. documento ... apresentado com o requerimento executivo, cujo conteúdo aqui damos por integralmente reproduzido.
5. Corre termos, pelo Juízo de Família e Menores do Porto, sob o n.º 862/09...., ação de inventário destinada à partilha do património comum do casal que foi constituídos pelos Executados, cf. documento ... apresentado com a petição de embargos, cujo conteúdo aqui damos por integralmente reproduzido.
6. No requerimento executivo, o Exequente liquidou a quantia exequenda nos seguintes termos:
“Valor Líquido: (…) Total: 1.º: Sobre o montante de capital em dívida de 50.201,75€, acrescem juros de mora, contados dia a dia, à taxa de 1,095% acrescida de uma sobretaxa de 3%, calculados desde ../../2012 até efetivo e integral pagamento. / 2.º: Tais juros, nesta data, importam na quantia de 22.083,95€. / 3.º: Sobre o montante de capital em dívida de 20.830,66€, acrescem juros de mora, contados dia a dia, à taxa de 1,095% acrescida de uma sobretaxa de 3%, calculados desde ../../2012 até efetivo e integral pagamento. / 4.º: Tais juros, nesta data, importam na quantia de 9.163,49€. / 5.º: Consequentemente, o débito total dos Executados perante o Exequente, proveniente da falta de pagamento pontual da quantia mutuada e respetivos juros importa, atualmente, na quantia de 102.279,85€.”
Há ainda que considerar os seguintes factos relativos ao iter processual do processo de inventário n.º 862/09...., devidamente descritos no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, ali proferido no dia 24 de novembro de 2021:
7. O Embargado apresentou, naqueles autos, no dia 10 de março de 2013, requerimento a informar que os referidos contratos de mútuo se encontravam em situação de incumprimento desde ../../2012, encontrando-se vencidas as prestações de capital, nos montantes de € 21 443,79, e € 51 360,47, respetivamente, e sendo devidos, sobre tal capital, os juros moratórios acordados até efetivo e integral pagamento.
8. O Embargado apresentou também, naqueles autos, no dia 13 de fevereiro de 2020, requerimento do seguinte teor: “No que respeita aos valores de capital e juros em dívida à data da reclamação de créditos, tais valores constam da reclamação apresentada. / No que respeita aos valores em dívida à data da venda do imóvel – 17/07/2018 – esclarece-se que o montante global em dívida ascendia, naquela data, a 79 281,62 €, sendo certo que o montante de 71 477,67 € corresponde ao capital em dívida e o montante de 7 803,95 € corresponde ao somatório dos seguintes montantes; 3 145,78 €, respeitante aos juros remuneratórios vencidos;  2 326,41 €, respeitante aos juros de mora; 271,70 €, respeitante a penalizações; 1 05,37 €, respeitante a despesas; 154,69 €, respeitante a imposto de selo. / Por outro lado, importa frisar que, nos termos do disposto no art. 785 do Código Civil, assiste ao credor reclamante o direito de imputar as quantias recebidas, em primeiro lugar, ao pagamento dos juros de mora vencidos, os quais são contabilizados até ao efetivo e integral pagamento da dívida.”
9. Sobre esse requerimento recaiu despacho da 1.ª instância, datado de 2 de julho de 2020, do seguinte teor: “No que concerne ao valor do passivo, expresse-se que o mesmo foi aprovado em sede de conferência de interessados, datada de 10.10.2013. / Assim, é apenas este o valor a considerar, sendo certo que os demais valores terão de ser discutidos nos meios comuns, para onde se remetem, desde já, as partes.”
10. O Embargado interpôs recurso de apelação, pedindo a revogação do referido despacho e a sua substituição por outro que fixasse concretamente o valor do passivo em € 79 281,62.
11. Esse recurso foi julgado procedente, através do referido Acórdão da Relação do Porto de 23 de novembro de 2021, transitado em julgado, que, revogando-o, estabeleceu que o valor do passivo a ter em conta é de € 79 281,62.
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1).4. Respondida que está a 1.ª questão, cumpre agora proceder à reordenação dos factos provados de acordo com a sequência lógica e cronológica que é conforme à realidade histórica que é suposto retratarem[2]:
1. Por escritura pública lavrada no dia 15 de junho de 2007, no Cartório Notarial ..., denominada Mútuo com hipoteca, os Executados, como primeiros outorgantes, e DD, na qualidade de procurador do Exequente, declararam que: “(…) o Banco concede aos primeiros outorgantes um empréstimo no montante de € 21 101,76 (…). / Nesta data, a quantia referida é entregue pelo Banco por crédito na conta dos primeiros outorgantes com o n.º (…), aberta junto do Banco 1.... / Os primeiros outorgantes aceitam o empréstimo e confessam-se, desde já, devedores de todas as quantias que do Banco receberam a título deste empréstimo e até ao montante do mesmo (…). / (…) Para garantia do pagamento e liquidação da quantia mutuada e, bem assim, dos respetivos juros à taxa anual efetiva de 4,82%, acrescida de uma sobretaxa até 4% ao ano, em caso de mora, a título de cláusula penal, e despesas judiciais e extrajudiciais fixadas para efeitos de registo em € 997,60, a primeira outorgante, com o necessário consentimento do seu marido, constitui a favor daquele Banco, hipoteca sobre o seguinte prédio: Urbano – Composto de casa de cave, r/c e chalé, destinado a habitação (…) descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...00.º (…) / (…) o empréstimo e a hipoteca se regulam pelo DL n.º 349/98, de 11.11, e ainda pelas condições constantes do documento complementar elaborado nos termos do n.º 2 do art. 64 do Código do Notariado, que faz parte integrante destra escritura e com ela fica arquivado”, tudo conforme documento ... apresentado com o requerimento executivo, cujo conteúdo aqui damos por integralmente reproduzido (facto 1 ora aditado);
2. Através de escrito datado de 15 de junho de 2007, denominado Documento complementar, que faz parte da escritura referida no ponto anterior, os Executados e o Exequente, este através daquele seu identificado procurador, declararam que: “1.ª: A quantia mutuada é nesta data entregue pelo Banco por crédito da conta de depósito à ordem n.º (…) aberta em nome dos Mutuários junto do Banco 1.... / 2.ª: 1. O empréstimo é concedido pelo prazo de 326 meses a contar do próximo dia 25, salvo se esse dia coincidir com a data da escritura, e sendo assim, o prazo iniciar-se-á a partir dessa data, e será amortizado em 326 prestações mensais, de capital e juros, a primeira com vencimento no mesmo dia do mês seguinte e as restantes em igual dias dos meses subsequentes. (…) 3.ª: 1. Durante um período de 90 dias a contar desta data, o empréstimo vence juros sobre o capital em dívida, calculados dia a dia e cobrados postecipadamente ao mês, à taxa resultante da média aritmética simples das cotações diárias da Euribor a 90 dias no mês anterior a cada período de contagem de juros, com arredondamento à milésima, sendo tal arredondamento feito por excesso quando a quarta casa décimal for igual ou superior a cinco e por defeito quando a quarta casa decimal for inferior a cinco. / 2. A taxa nominal resultante do n.º anterior será acrescida de 0,5 pontos percentuais a título de Spread. 3. Findo o período referido no n.º 1, a taxa aplicável ao empréstimo será acrescida de 0,6% a título de Spread (…) / 7. Os períodos de contagem de juros serão trimestrais. / 8. Em cada período de contagem de juros a taxa de juro manter-se-á inalterável. (…) / 4.ª: 1. Em caso de mora, os juros serão contados dia a dia e calculados à taxa que estiver em vigor, acrescida de uma sobretaxa de 4%, a título de cláusula penal. 2. O Banco reserva-se o direito de, a todo o tempo e independentemente de qualquer regime especial aplicável, capitalizar juros remuneratórios correspondentes a um período não inferior a três meses e juros moratórios correspondentes a um período não inferior a um ano, adicionando tais juros ao capital em dívida, passando aqueles a seguir todo o regime deste. / (…) 6.ª Os pagamentos a efetuar pelo Mutuários para liquidação do capital mutuado, respetivos juros e outros encargos devidos por força do estipulado no presente contrato, serão efetuados por débito na conta de depósitos à ordem mencionada anteriormente ou em qualquer conta de que os Mutuários sejam ou venham a ser titulares junto do Banco 1..., autorizando, desde já, os Mutuários os débitos. / (…) 9.ª A presente hipoteca poderá ser executada: a) se não forem pagas as prestações nas datas previstas, caso em que a falta de pagamento de uma delas importa o vencimento imediato de todas; b) se o imóvel ora hipotecado vier a ser alienado, onerado, arrendado, total ou parcialmente, objeto de arresto, execução ou qualquer procedimento cautelar ou ação judicial, casos em que se consideraram, igualmente vencidas e exigíveis as obrigações que assegura (…)”, tudo cf. documento ... apresentado com o requerimento executivo, cujo conteúdo aqui damos por integralmente reproduzido (facto 2. ora aditado).
3. Por escritura pública lavrada no dia 15 de junho de 2007, no Cartório Notarial ..., denominada Mútuo com hipoteca, os Executados, como primeiros outorgantes, e DD, na qualidade de procurador do Exequente, declararam que: “(…) o Banco concede aos primeiros outorgantes um empréstimo no montante de € 53 266,20 (…). / Nesta data, a quantia referida é entregue pelo Banco por crédito na conta dos primeiros outorgantes com o n.º (…), aberta junto do Banco 1.... / Os primeiros outorgantes aceitam o empréstimo e confessam-se, desde já, devedores de todas as quantias que do Banco receberam a título deste empréstimo e até ao montante do mesmo (…). / (…) Para garantia do pagamento e liquidação da quantia mutuada e, bem assim, dos respetivos juros à taxa anual efetiva de 4,76%, acrescida de uma sobretaxa até 4% ao ano, em caso de mora, a título de cláusula penal, e despesas judiciais e extrajudiciais fixadas para efeitos de registo em € 2 136,65, a primeira outorgante, com o necessário consentimento do seu marido, constitui a favor daquele Banco, hipoteca sobre o seguinte prédio: Urbano – Composto de casa de cave, r/c e chalé, destinado a habitação (…) descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...00.º (…) / (…) o empréstimo e a hipoteca se regulam pelo DL n.º 349/98, de 11.11, e ainda pelas condições constantes do documento complementar elaborado nos termos do n.º 2 do art. 64 do Código do Notariado, que faz parte integrante destra escritura e com ela fica arquivado”, tudo conforme documento ... apresentado com o requerimento executivo, cujo conteúdo aqui damos por integralmente reproduzido (facto 3 ora aditado).
4. Através de escrito datado de 15 de junho de 2007, denominado Documento complementar, que faz parte da escritura referida no ponto anterior, os Executados e o Exequente, este através daquele seu identificado procurador, declararam que: “1.ª: A quantia mutuada é nesta data entregue pelo Banco por crédito da conta de depósito à ordem n.º (…) aberta em nome dos Mutuários junto do Banco 1.... / 2.ª: 1. O empréstimo é concedido pelo prazo de 326 meses a contar do próximo dia 25, salvo se esse dia coincidir com a data da escritura, e sendo assim, o prazo iniciar-se-á a partir dessa data, e será amortizado em 326 prestações mensais, de capital e juros, a primeira com vencimento no mesmo dia do mês seguinte e as restantes em igual dias dos meses subsequentes. (…) 3.ª: 1. Durante um período de 90 dias a contar desta data, o empréstimo vence juros sobre o capital em dívida, calculados dia a dia e cobrados postecipadamente ao mês, à taxa resultante da média aritmética simples das cotações diárias da Euribor a 90 dias no mês anterior a cada período de contagem de juros, com arredondamento à milésima, sendo tal arredondamento feito por excesso quando a quarta casa décimal for igual ou superior a cinco e por defeito quando a quarta casa decimal for inferior a cinco. / 2. A taxa nominal resultante do n.º anterior será acrescida de 0,5 pontos percentuais a título de Spread. / 3. Findo o período referido no n.º 1, a taxa aplicável ao empréstimo será acrescida de 0,6% a título de Spread (…) / 7. Os períodos de contagem de juros serão trimestrais. / 8. Em cada período de contagem de juros a taxa de juro manter-se-á inalterável. (…) / 4.ª: 1. Em caso de mora, os juros serão contados dia a dia e calculados à taxa que estiver em vigor, acrescida de uma sobretaxa de 4%, a título de cláusula penal. 2. O Banco reserva-se o direito de, a todo o tempo e independentemente de qualquer regime especial aplicável, capitalizar juros remuneratórios correspondentes a um período não inferior a três meses e juros moratórios correspondentes a um período não inferior a um ano, adicionando tais juros ao capital em dívida, passando aqueles a seguir todo o regime deste. / (…) 6.ª Os pagamentos a efetuar pelo Mutuários para liquidação do capital mutuado, respetivos juros e outros encargos devidos por força do estipulado no presente contrato, serão efetuados por débito na conta de depósitos à ordem mencionada anteriormente ou em qualquer conta de que os Mutuários sejam ou venham a ser titulares junto do Banco 1..., autorizando, desde já, os Mutuários os débitos. / (…) 9.ª A presente hipoteca poderá ser executada: a) se não forem pagas as prestações nas datas previstas, caso em que a falta de pagamento de uma delas importa o vencimento imediato de todas; b) se o imóvel ora hipotecado vier a ser alienado, onerado, arrendado, total ou parcialmente, objeto de arresto, execução ou qualquer procedimento cautelar ou ação judicial, casos em que se consideraram, igualmente vencidas e exigíveis as obrigações que assegura (…)”, tudo cf. documento ... apresentado com o requerimento executivo, cujo conteúdo aqui damos por integralmente reproduzido (facto 4 ora aditado).
5. Os executados mutuários constituíram, a favor do Exequente, duas hipotecas sobre o mencionado prédio (facto do ponto 3.2. da fundamentação de facto da sentença recorrida).
6. Ambos os executados – marido e mulher àquela data - outorgaram os citados contratos enquanto devedores principais (facto do ponto 3.3. da fundamentação de facto da sentença recorrida).
7. O referido casal dissolveu-se por divórcio em ../../2009 (facto do ponto 3.2. da fundamentação de facto da sentença recorrida).
8. Corre termos, pelo Juízo de Família e Menores do Porto, sob o n.º 862/09...., ação de inventário destinada à partilha do património comum do casal que foi constituídos pelos Executados, cf. documento ... apresentado com a petição de embargos, cujo conteúdo aqui damos por integralmente reproduzido (facto ora aditado).
9. O ora Exequente reclamou, no referido Processo de Inventário, os seus créditos, os quais, à data de 29/06/2010, ascendiam a 75 511,25€ (facto do ponto 3.6. da fundamentação de facto da sentença recorrida).
10. Naquela data, as prestações referentes aos respetivos empréstimos estavam a ser pontualmente cumpridas, cumprimento que continuou até ../../2012, data a partir da qual os Executados mutuários deixaram de cumprir o contratualmente estabelecido (facto do ponto 3.7. da fundamentação de facto da sentença recorrida).
12. O Embargado apresentou, naqueles autos, no dia 10 de março de 2013, requerimento a informar que os referidos contratos de mútuo se encontravam em situação de incumprimento desde ../../2012, encontrando-se vencidas as prestações de capital, nos montantes de € 21 443,79, e 51 360,47, respetivamente, e sendo devidos, sobre tal capital, os juros moratórios acordados até efetivo e integral pagamento (facto ora aditado).
13. O Embargado apresentou também, naqueles autos, no dia 13 de fevereiro de 2020, requerimento do seguinte teor: “No que respeita aos valores de capital e juros em dívida à data da reclamação de créditos, tais valores constam da reclamação apresentada. / No que respeita aos valores em dívida à data da venda do imóvel – 17/07/2018 – esclarece-se que o montante global em dívida ascendia, naquela data, a 79 281,62 €, sendo certo que o montante de 71 477,67 € corresponde ao capital em dívida e o montante de 7 803,95 € corresponde ao somatório dos seguintes montantes; 3 145,78 €, respeitante aos juros remuneratórios vencidos;  2 326,41 €, respeitante aos juros de mora; 271,70 €, respeitante a penalizações; 1 05,37 €, respeitante a despesas; 154,69 €, respeitante a imposto de selo. / Por outro lado, importa frisar que, nos termos do disposto no art. 785 do Código Civil, assiste ao credor reclamante o direito de imputar as quantias recebidas, em primeiro lugar, ao pagamento dos juros de mora vencidos, os quais são contabilizados até ao efetivo e integral pagamento da dívida” (facto ora aditado)
14. Sobre esse requerimento recaiu despacho da 1.ª instância, datado de 2 de julho de 2020, do seguinte teor: “No que concerne ao valor do passivo, expresse-se que o mesmo foi aprovado em sede de conferência de interessados, datada de 10.10.2013. / Assim, é apenas este o valor a considerar, sendo certo que os demais valores terão de ser discutidos nos meios comuns, para onde se remetem, desde já, as partes” (facto ora aditado)
15. O Embargado interpôs recurso de apelação, pedindo a revogação do referido despacho e a sua substituição por outro que fixasse concretamente o valor do passivo em € 79 281,62 (facto ora aditado)
16. Esse recurso foi julgado procedente, através do referido Acórdão da Relação do Porto de 23 de novembro de 2021, transitado em julgado, que, revogando-o, estabeleceu que o valor do passivo a ter em conta é de € 79 281,62, lendo-se na fundamentação que: “Nos autos o banco credor reclamou um passivo sobre o património comum do ex-casal decorrente da existência de dois contratos de mútuos bancários, garantidos por hipoteca, que, ao que parece resultar dos autos, à data, estavam a ser cumpridos pelos devedores. Conforme o teor dos documentos então juntos aos autos, à data da reclamação estava em dívida a título de capital por tais empréstimos - €22.119,56 e €53.311,93, com juros pagos até ../../2010 – no total de capital vincendo de €75.511,25. Mais resulta do teor de tais documentos que sobre os capitais em dívida são devidos juros vincendos as taxas acordadas de 1,262%, acrescidas da sobretaxa de 4% em caso de incumprimento e até efetivo pagamento. / Todavia, por requerimento de 10.03.2013, o banco credor veio informar nos autos que aqueles contratos de mútuo encontravam-se em situação de incumprimento – e ao que resulta do teor dos extratos bancários juntos aos autos, esse incumprimento verificou-se em Fevereiro de 2012, encontrando-se ambos vencidos e relativamente aos mesmos estava em dívida o capital de €21.443,79 e de €51.360,47, no total de €72.804,26 e que são devidos, sobre tal capital, os juros moratórios acordados e até efetivo e integral pagamento. / Ora, conforme resulta do teor do extrato bancário junto aos autos, datado de 30.09.2019, dele resulta que: “À data de emissão deste extrato o empréstimo n.º ...53 encontra-se como e do seu conhecimento, em incumprimento, sendo o capital em dívida de 20.830,66 eur. a data de emissão deste extrato o empréstimo n.º ...93 encontra-se como e do seu conhecimento, em incumprimento, sendo o capital em dívida de 50.201,75 eur”, (no total à data do incumprimento de €71.032,41). / E por requerimento de 13.02.2020, o banco credor veio apresentar a sua liquidação do passivo reclamado nos autos, dizendo que: “No que respeita aos valores em dívida à data da venda do imóvel – 17/07/2018 – esclarece-se que o montante global em dívida ascendia, naquela data, a 79.281,62€, sendo certo que o montante de 71.477,67€ corresponde ao capital em dívida e o montante de 7.803,95€ corresponde ao somatório dos seguintes montantes: - 3.145,78€, respeitante aos juros remuneratórios vencidos; - 2.326,41€, respeitante aos juros de mora; - 271,70€, respeitante a penalizações; - 1905,37€, respeitante a despesas; e - 154,69€, respeitante a imposto de selo”. Aí invocando que, nos termos do disposto no art.º 785.º do C.Civil, assiste ao credor reclamante o direito de imputar as quantias recebidas, em primeiro lugar, ao pagamento dos juros de mora vencidos, os quais são contabilizados até ao efetivo e integral pagamento da dívida. / Ora, atento o teor do despacho ora em crise (de 2.07.2020) verificamos que a 1.ª instância tendo de decidir sobre o montante de passivo reclamado e devido ao credor reclamante, desconsiderou toda a prova careada para os autos de onde resultam os factos necessários para a respetiva decisão, tal como seja, o acordado nos referidos contratos de mútuo quanto à taxa de juro devida, e respetivo acréscimo em caso de mora; a data do incumprimento do ex-casal, e consequente vencimento da totalidade da dívida e respetivas consequências; e finalmente, a data de venda do imóvel. / Destarte, não podemos concordar com a remessa dos interessados para os meios processuais comuns para apuramento no exato montante do passivo em relevância nos autos, para além do montante inicialmente reclamado (datado/contabilizado em 26.06.2010), e tido em conta na ata de conferência de interessados realizada em 10.10.2013, uma vez que existe nos autos prova documental bastante para a fixação do seu valor, e assim sendo, à luz do princípio da suficiência processual, urge, desde já, revogar a decisão ora recorrida nessa parte.
Quanto à fixação exata do passivo a ter em conta nos presentes autos dir-se-á que como é sabido é a conferência de interessados, como resulta do disposto no art.º 1353.º n.º 3 do C.P.Civil, o lugar e momento próprios para se aprovar, ou não, o passivo que haja sido relacionado pelo cabeça-de-casal, ou que tenha sido reclamado por um qualquer credor e o seu pagamento. E se no âmbito da mesma suceder que essas dívidas sejam aprovadas por todos os interessados, consequentemente consideram-se judicialmente reconhecidas, caso em que o juiz se limita a, à exceção da situação prevista no n.º 2 do art.º 1354.º do C.P.Civil, na sentença que julgue a partilha, condenar no respetivo pagamento.
É certo que em sede de conferência de interessados realizada em 10.10.2013, entre ex-cônjuges ficou definitivamente decidido por acordo que ambos reconheciam e aprovavam o passivo reclamado nos autos pelo credor, ora apelante, mais acordando que ambos se responsabilizavam pelo seu pagamento. Para essa conferência foi notificado o credor reclamante, que por não poder ter estado presente, na data da referida conferência, enviou ao processo requerimento onde informava que os contratos de mútuo se encontravam em situação de incumprimento, encontrando-se ambos vencidos e relativamente aos mesmos estava em dívida o capital de €21.443,79 e de €51.360,47, no total de €72.804,26, e ainda que eram devidos, sobre tal capital, os juros moratórios acordados e até efetivo e integral pagamento. / Ora, como se pode verificar da referida ata de conferência de interessados, o teor do referido requerimento do credor reclamante foi absolutamente desconsiderado, tendo ficado a constar da mesma que: “Pela requerente e requerido foi aprovado o passivo das verbas n.º 1 e 2, pelo valor indicado pelo credor, de 51.360,47 euros, e 21.443,79 euros respetivamente” no total de €72.804,26. / Todavia, não se pode ignorar que tais montantes se reportam ao capital vincendo e que, já à data da reclamação do referido passivo, constava que, conforme resulta dos próprios documentos que titulam os referidos contratos de mútuo bancário que sobre os capitais em dívida são devidos juros vincendos as taxas acordadas de 1,262%, acrescidas da sobretaxa de 4% em caso de incumprimento e até efetivo pagamento. / Donde, dúvidas não restam de que os montantes de passivo aprovado pelos ex-cônjuges se reportam tão só à divida de capital vencido, existente à data, sendo que sobre essa dívida se venciam juros às taxas acordadas de 1,262%, acrescidas da sobretaxa de 4% em caso de incumprimento, que nessa ocasião, já se verificava.
Existindo nos autos todos os necessários elementos fácticos para a fixação do real montante do passivo à data da prolação do despacho de 2.07.2020, ora em crise, verifica-se que a 1.ª instância mal andou, desconsiderando que existia incumprimento dos contratos, que por isso sobre o capital vencido à data do incumprimento e até à data dessa decisão haviam sido vencidos juros às taxas acordadas de 1,262%, acrescidas da sobretaxa de 4%, e demais acréscimos legais, como é o imposto de selo, o que totalizava nessa data um débito de €79.281,62, conforme liquidação efetuada pelo credor, ora apelante, em 13.02.2020, não concretamente impugnada pelos ex-cônjuges, devidamente comprovada pela documentação que o mesmo juntou posteriormente ao autos, e além do mais, resulta de puro apuramento aritmético. Destarte e sem necessidade de outros considerandos, o passivo a ter em conta nos presentes autos, aprovado pelos ex-cônjuges e cujo pagamento é devido ao credor/reclamante, ora apelante é de €79.281,62. / Vai assim revogado o que consta da primeira parte do despacho de 2.07.2020, ora em crise, ou seja, na parte em que se fixou o montante do passivo aprovado, e como resulta do que acima se deixou consignado, igualmente na parte em quer se remeteu os interessados para os meios processuais comuns” (facto ora aditado).
11. O prédio identificado em 1. e 3. foi objeto de venda por negociação particular no âmbito do processo de inventário que corre termos pelo Juízo de Família e Menores do Porto sob o n.º 862/09...., pelo preço de € 100 000,00 estabelecido (facto do ponto 3.8. da fundamentação de facto da sentença recorrida, com a redação ora introduzida).
12. Em janeiro de 2019, após o depósito desse preço, foi lavrado o instrumento de venda” (idem).
13. A presente execução baseia-se no incumprimento dos dois contratos de mútuo transcritos em 1., 2., 3. e 4. (facto do ponto 3.1. da fundamentação de facto da sentença recorrida).
14. De acordo com o requerimento executivo apresentado nos autos principais, o Banco aqui exequente, em 16/12/2022, reclama aos executados o pagamento da quantia de € 102.279,85 estabelecido (facto do ponto 3.8. da fundamentação de facto da sentença recorrida).
15. No requerimento executivo, o Exequente liquidou a quantia exequenda nos seguintes termos: “Valor Líquido: (…) Total: 1.º: Sobre o montante de capital em dívida de 50.201,75€, acrescem juros de mora, contados dia a dia, à taxa de 1,095% acrescida de uma sobretaxa de 3%, calculados desde ../../2012 até efetivo e integral pagamento. / 2.º: Tais juros, nesta data, importam na quantia de 22.083,95€. / 3.º: Sobre o montante de capital em dívida de 20.830,66€, acrescem juros de mora, contados dia a dia, à taxa de 1,095% acrescida de uma sobretaxa de 3%, calculados desde ../../2012 até efetivo e integral pagamento. / 4.º: Tais juros, nesta data, importam na quantia de 9.163,49€. / 5.º: Consequentemente, o débito total dos Executados perante o Exequente, proveniente da falta de pagamento pontual da quantia mutuada e respetivos juros importa, atualmente, na quantia de 102.279,85€” (facto ora aditado).
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2).1.1. Isto posto, passamos para a 2.ª questão.
Em termos gerais, podemos dizer que a Recorrente colocou esta questão em duas vertentes: disse, a um tempo, que o Recorrido formulou, no requerimento executivo, uma pretensão que sabia ser infundada; a outro, que o Recorrido vem protelando o pagamento do seu crédito através da interposição de sucessivos recursos das decisões proferidas no processo de inventário, com o objetivo de aumentar a dívida através da contabilização dos juros de mora que, entretanto, se vão vencendo.
Sobre aquela 1.ª vertente, importa dizer que a Recorrente não questiona que o Recorrido é titular de direitos de crédito sobre ela e sobre o outro executado, o que, prima facie, lhe confere o direito de obter, em prazo razoável, uma decisão judicial que os aprecie, bem como a possibilidade de os realizar coercivamente, conforme resulta do disposto no art. 2.º/1 e 2 do CPC, onde se consagra o direito à ação, contrapartida necessária da proibição da autotutela e da imposição da heterotutela (art. 1.º do CPC), que constitui uma consequência do princípio do Estado de direito democrático (art. 2.º CRP) e em cujo âmbito de inclui quer o direito de acesso aos tribunais, quer o direito a uma tutela jurisdicional efetiva. Sendo um direito a uma prestação jurisdicional do Estado, faz sentido que se encontre consagrado, de forma implícita, no art. 6.º/1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, no art. 10.º Declaração Universal dos Direitos Humanos, no art. 47.º da Carta dos Direitos fundamentais da União Europeia e no art. 14/1 do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos. Constitui, como é comumente aceite, um direito subjetivo autónomo e distinto do direito material que se pretende fazer atuar em juízo, pelo que o seu exercício não está dependente de qualquer requisito prévio de demonstração da existência deste (João de Castro Mendes / Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, I, Lisboa: AAFDL, 2022, pp. 46-47).
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2.1.2. De acordo com a lição de Castanheira Neves (Questão De Facto-Questão De Direito, I, Coimbra: Almedina, 1967, p. 523), o direito subjetivo é uma intenção normativa cuja validade jurídica apenas subsiste enquanto cumpre concretamente o fundamento axiológico-normativo que o constitui e justifica. Assim, numa sociedade organizada, os direitos subjetivos só se justificam enquanto direitos-função, pelo que o ato abusivo será o ato contrário ao espírito e finalidade de cada um dos direitos em exercício. Podemos, assim, dizer que, enquanto direito subjetivo a uma prestação do Estado, o direito à ação apenas é merecedor de tutela enquanto o seu titular perseguir, no respetivo exercício, o interesse ou fim socialmente relevante que o justifica. Quando assim não suceda, haverá um exercício enquadrável na cláusula geral do abuso do direito do art. 334 do Código Civil, a qual concretiza a ideia de que cada direito subjetivo deve ser exercido com correção, equilíbrio, e de acordo com as exigências do Direito, bem como de harmonia com a finalidade que justifica a sua atribuição ou reconhecimento, constituindo, em suma, uma síntese dos valores da justiça e da segurança.
Na tentativa de densificação destes conceitos, a doutrina e a jurisprudência têm encontrado manifestações típicas de comportamentos abusivos. Numas estão em causa hipóteses de não preenchimento dos requisitos materiais do direito – o tu quoque –; noutras o desrespeito pela confiança alheia – o venire contra factum proprium, a surrectio e a suppressio; noutras ainda a violação da boa-fé – exceptio doli –; noutras, finalmente, a ofensa ao princípio da proporcionalidade, como sucede no exercício em desequilíbrio.
Também o direito à ação pode ser exercido de uma forma que configure, em concreto, um desvio excessivo, da sua finalidade. Assim sucederá quando a intenção oculta do autor ao propor a ação não é fazer valer o direito subjetivo a cuja titularidade se arroga na petição inicial, mas apenas provocar dano à parte contrária, levando-a a ter despesas e encargos e mesmo desequilíbrios psicológicos com a preparação da sua defesa.
O art. 334 do Código Civil qualifica como ilegítimo o exercício de um direito que exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito. A expressão literal não é clara quanto às consequências do abuso do direito. De uma maneira geral, estando em causa uma forma de antijuridicidade ou ilicitude, as consequências serão as mesmas de qualquer ato ilícito, designadamente a responsabilidade civil e a respetiva obrigação de indemnizar, desde que verificados os restantes pressupostos do art. 483 do Código Civil. As consequências podem, no entanto, ser outras. Assim, dependendo dos termos em que se manifesta o exercício abusivo, podem estar em causa limitações ao exercício do direito, a sua extinção, a preclusão do exercício stricto sensu de uma faculdade ou poder integrante do direito, a constituição de um direito diverso na esfera jurídica de outrem ou a nulidade de um ato (a propósito, Carneiro da Frada, Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil, Coimbra: Almedina, 2004, p. 840).
No caso concreto do direito à ação, a consequência mais evidente do exercício abusivo é a litigância de má-fé que decorre dos comportamentos tipificados no art. 542/2 do CPC e pressupõe que a parte tenha agido conscientemente, com dolo ou negligência grave. A consequência é a condenação da parte em multa ou em indemnização (art. 542/1 do CPC), esta com o conteúdo definido no art. 543 do CPC, o que evidencia bem a sua finalidade meramente sancionatória e compensatória e não ressarcitória, como sucede com a responsabilidade civil, o que se compreende: em causa está – e está apenas – uma ilicitude que tem na sua base a violação de deveres processuais, genericamente previstos no art. 8.º do CPC.
Neste âmbito, distingue-se entre litigância de má-fé material (ou substancial) e litigância de má-fé instrumental. Enquanto a primeira está diretamente relacionada com o mérito da causa, a segunda abstrai-se da razão que a parte possa ter quanto ao mérito da causa, qualificando o comportamento processualmente assumido em si mesmo. Se a parte formular uma pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar ou alterar a verdade dos factos ou omitir factos que se tenham como relevantes para a descoberta da verdade, a má-fé será material. Já se a parte omitir, com gravidade, o dever de cooperação, ou tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão, a má-fé será instrumental (Paula Costa e Silva, A Litigância de Má-Fé, Coimbra: Coimbra Editora, 2008, pp. 387 e ss.).
Como se constata, este instituto não dá resposta suficiente a todas as situações de exercício abusivo do direito à ação. Como realça Menezes Cordeiro (Litigância de Má-Fé, Abuso do Direito de Ação e Culpa in Agendo, Coimbra: Almedina, 2006, 146), a coincidência que existe entre as situações abrangidas pelo escopo da litigância de má-fé e do abuso do direito não é total. Existem condutas que, não obstante o seu carácter abusivo, não encontram no instituto da litigância de má-fé, resposta adequada e satisfatória, quer pela ausência do elemento subjetivo, quer por não se encontrarem descritas no elenco taxativo do art. 542/2 do CPC. O instituto também não dá resposta suficiente a todas as consequências possíveis do exercício abusivo. De fora fica a componente ressarcitória dos danos causados pela parte. O enquadramento para aquelas condutas deve ser encontrado noutros institutos, como seja o da taxa sancionatória excecional (art. 531 do CPC). O ressarcimento dos danos deve ser obtido no quadro geral da responsabilidade civil. Consequência que não parece fazer sentido é a da paralisação do direito à ação, seja a título cautelar, seja a título definitivo. Na primeira situação, haverá um patente conflito entre o direito subjetivo do requerente da providência e o direito à ação do requerido, devendo prevalecer este atenta a sua natureza de direito fundamental. Na segunda, o conhecimento do mérito da causa em termos favoráveis ao lesado assegura (rectius, concretiza) o mesmo efeito a que conduziria a paralisação do direito.
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2).1.3. A propósito da segunda vertente da alegação da Recorrente importa dizer que, como escreve Menezes Cordeiro (Litigância de Má-Fé cit., p.  92), “também no plano puramente técnico a matéria do abuso pode surgir. Tal sucederá sempre que as atuações puramente processuais defrontem (…) o princípio da boa-fé.”
Vale isto por dizer que o litigante, no exercício do seu direito à ação, tem um dever de agir com respeito pelos ditames da boa-fé, o que se desdobra, designadamente na obrigação de não sustentar teses absolutamente inconsistentes, na obrigação de não afirmar, conscientemente, factos contrários à verdade, e na obrigação de comportar-se, em relação ao juiz e ao adversário, com lealdade e correção.
Daqui podemos retirar que o abuso do direito à ação ocorre quando um meio processual é usado de forma abusiva ou para fins diversos dos previstos, o que significa que pode verificar-se quer no acesso ao tribunal propriamente dito, com a interposição de uma ação ou de uma providência cautelar, quer na própria defesa, no âmbito da contestação, invocação de exceções, pedidos de reconvenção e, claro, no recurso.
Impõe-se, porém, bastante prudência neste domínio, por duas razões: falar sobre o abuso de situações jurídico-processuais implica, necessariamente, uma limitação dos direitos processuais – que, como vimos, têm expressão constitucional; os direitos processuais são revestidos de abstração e autonomia, o que significa que a sua aferição não deve ser determinada pela subsistência, no plano material, dos direitos e das posições substantivas das partes.
A consideração destas duas razões leva Michelle Taruffo, “Elementi per una definizione di abuso del processo: AAVV, Diritto Privato, III,, Abuso del Diritto, Padova: Cedam, 1998, pp. 440-441, a escrever que "[n]ão parece completamente infundado o temor de limitar indevidamente o pleno desenvolvimento das garantias, que ainda não expressaram todo o seu potencial, na tentação de determinar em que casos a sua atuação excessiva produz efeitos inaceitáveis” e a acrescentar que “[c]oloca-se, em outros termos, o problema de estabelecer se, ou até que ponto, a atividade processual que envolve a atuação das garantias constitucionais pode ser considerada abusiva, ou seja, se a atuação dessas garantias encontra algum limite externo marcado pelo uso abusivo dos instrumentos processuais que são a manifestação específica dessas garantias.”
Mais concretamente, o abuso do direito de recorrer tem sido tratado sobretudo em quatro situações: recursos meramente dilatórios, com o objetivo de evitar o trânsito em julgado de uma decisão; multiplicidade de recursos, de forma sucessiva e desnecessária, com a finalidade de protelar o andamento da causa; recursos temerários, em que a parte sabe que não tem chance razoável de sucesso, mas pratica o ato unicamente para criar transtornos à parte contrária; e interposição de recursos irrelevantes, por versarem sobre questões laterias, que não contendem com as posições das partes face ao objeto do processo nem com a regular tramitação deste.
Como referem João de Castro Mendes / Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, II, Lisboa: AAFDL, 2022, pp. 119-120, estas situações encontram tratamento no âmbito de dois institutos: o da litigância de má fé (art. 670 do CPC) e o da taxa sancionatória especial (art. 542-1).
A estas podemos acrescentar aquela em que a parte, através do recurso, pretende reverter uma decisão para cuja prolação e conteúdo contribuiu através de comportamentos processuais anteriores. Foi o que sucedeu no caso apreciado em STJ 3.06.2004 (04B882), em que foi paralisado o direito ao recurso à parte que, depois de ter confirmado a qualidade de sucessor de determinada pessoa, recorreu da decisão que a considerou habilitada.
Em todas essas situações estão em causa atos lícitos, porque correspondentes ao exercício do direito de recorrer, mas abusivos, porque contrários à boa-fé.
Em geral, nas quatro situações típicas de abuso do direito ao recurso elencadas, a consequência é encontrada num dos dois referidos institutos, ambos de natureza sancionatória. Na última situação referida, a solução do STJ foi a de considerar o recurso inadmissível, o que equivale à supressão do correspondente direito, solução que encontra apoio no art. 334 do Código Civil.
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2).1.4. Assentes estas premissas, fica claro que as conclusões da Recorrente são improcedentes.
Na sua 1.ª vertente – a formulação de uma pretensão executiva infundada – elas apenas poderiam relevar, em termos práticos, no âmbito do instituto da litigância de má-fé. Esta questão foi, no entanto, expressamente decidida na sentença recorrida num segmento cuja revogação não foi pedida pela Recorrente, estando, assim, afastada do objeto do recurso.
Ainda nesta vertente, assente que o Recorrido apenas pretende obter a satisfação dos seus direitos de crédito na parte que excede o montante obtido com a venda do prédio sobre que recaía a hipoteca constituída como garantia do cumprimento daqueles, também não se vislumbra qualquer resquício de abuso do direito de ação.
Na 2.ª vertente, ainda mais notória é a improcedência. Em primeiro lugar, a verificar-se um uso abusivo do direito ao recurso, ele deveria ter sido suscitado no processo em que ocorreu, aí se requerendo as respetivas consequências processuais, e não num outro processo entre as mesmas partes; em segundo lugar, a alegação encerra em si mesma uma evidente contradição: o interesse de qualquer credor de uma obrigação pecuniária é satisfeito com o ato de pagamento; não faz sentido que o credor recorra a expedientes para protelar a sua realização, assim sofrendo um dano, unicamente com o objetivo de obter o direito aos juros de mora. É que estes mais não visam que ressarci-lo daquele dano.
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3).1.1. Avançamos para a 3.ª questão.
Entende a Recorrente que, ao contrário do decidido na sentença recorrida, as obrigações exequendas não são certas, líquidas nem exigíveis.
Como se sabe, o título executivo deve demonstrar uma obrigação que seja certa, líquida e exigível: arts. 713, 724/1, h), 725/1, c, e 728, e), todos do CPC, o que corresponde àquilo que Miguel Teixeira de Sousa, A Ação Executiva Singular, Lisboa: Lex, 1998, p. 95 (= João de Castro Mendes - Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, II, Lisboa: AAFDL, 2022, pp. 536-537), denomina de exequibilidade intrínseca.
Como explica Rui Pinto, A Ação Executiva, Lisboa: AAFDL, 2018, p. 229, “[e]stamos na configuração que o próprio direito a uma prestação deve apresentar para poder ser objeto de uma execução: deve corresponder a uma obrigação que o executado deva cumprir ao tempo da citação e que seja qualitativa e quantitativamente determinada (…)
Essa preexistência material determina se o tribunal pode ou não satisfazer o pedido do credor de realização coativa da prestação (…).”
Quando, em face do título, a obrigação não seja exigível e determinada, o credor exequente deve promover diligências destinadas a torná-la exigível e determinada (art. 714 e 716 do CPC). Não o fazendo, o devedor executado poderá deduzir oposição, nos termos previstos no art. 728, e), já referido.
A obrigação diz-se certa quando o objeto da respetiva prestação se encontra perfeitamente delimitado ou individualizado em relação à sua qualidade ou conteúdo – isto é, quando se sabe precisamente o que se deve (an debeatur). A obrigação não é certa nos casos em que a escolha da prestação ainda está por realizar, como sucede na obrigação genérica de espécie indeterminada (art. 539 do Código Civil) e na obrigação alternativa (art. 543 do Código Civil). A propósito, inter alia, João de Castro Mendes / Miguel Teixeira de Sousa, Manual cit., pp. 543-545; Rui Pinto, A Ação Executiva cit., pp. 238-240; Lebre de Freitas, A Executiva à luz do Código de Processo Civil de 2013, 7.ª ed., Coimbra: Geslegal, pp. 104-1009; Marco Carvalho Gonçalves, Lições de Processo Civil Executivo, 5.ª ed., Coimbra: Almedina, 2022, pp. 181-183.
No caso, não há dúvida de que o conteúdo pecuniário das obrigações exequendas está perfeitamente definido nos títulos executivos, não havendo por isso necessidade de outras considerações para se concluir que a afirmação da Recorrente quanto à falta de certeza das obrigações é errada.
Prosseguindo, a obrigação diz-se líquida quando a prestação se encontra determinada em relação à sua quantidade ou montante, isto é, quando se sabe exatamente quanto se deve (quantum debeatur) ou quando essa quantidade é facilmente determinável através de um cálculo aritmético, mais ou menos complexo, a realizar de acordo com elementos constantes do próprio título executivo. Deste modo, a obrigação é ilíquida quando, apesar da sua existência ser certa, o montante ainda não está fixado nem determinado e não basta um cálculo aritmético para ultrapassar esse estado. Nos termos do art. 716/1, estando em causa uma obrigação cuja liquidação dependa apenas de um cálculo aritmético, o exequente deve especificar, no requerimento executivo, os valores que considera compreendidos na prestação devida e formular um pedido líquido. É o que sucede com o cálculo dos juros de mora já vencidos (art. 806 do Código Civil), dos juros moratórios convencionais, dos juros remuneratórios, dos juros compulsórios quando seja estipulado ou judicialmente determinado qualquer pagamento em dinheiro corrente (art. 829-A/4 do Código Civil), da cláusula penal (arts. 810 a 812 do Código Civil). Se a obrigação exequenda compreender juros que continuem a vencer-se na pendência da execução, a quantificação do respetivo montante deve fazer-se no final do processo executivo, pelo agente da execução, tendo em conta o título executivo e os documentos que o exequente ofereça em conformidade com ele ou, sendo o caso, em função das taxas legais de juros de mora aplicáveis ao caso em concreto (art. 716/2 do CPC).
Tendo isto presente, também não suscita qualquer dúvida que as obrigações exequendas – que dizem respeito, grosso modo, à restituição do tantundem nos dois contratos de mútuo celebrados entre os Executados e o Exequente, acrescido dos juros remuneratórios vencidos e dos juros moratórios vencidos e vincendos – são líquidas no sentido indicado: os montantes de capital estão quantificados nos títulos; os montantes dos juros podem ser calculados com base nos elementos constantes do título que definem as taxas aplicáveis.
Finalmente, obrigação exigível é, no dizer de Miguel Teixeira de Sousa (A Ação cit., p. 96), “aquela que está vencida ou que se vence com a citação do executado e em relação à qual o credor não se encontra em mora na aceitação da prestação ou quanto à realização de uma contraprestação. Assim, o vencimento da obrigação é sempre indispensável à sua exigibilidade, mas esta pode precisar de algo mais do que esse vencimento.” É o que sucede quando a obrigação exequenda está num nexo de reciprocidade com uma outra de que é credor o executado e devedor o exequente. Pretende-se então prevenir a invocação por aquele da exceção de não cumprimento do contrato (art. 428/1 do Código Civil).
No caso das obrigações puras (art. 777 do Código Civil), se o credor pretender exigir o cumprimento da obrigação, deve interpelar o devedor, podendo fazê-lo por via judicial ou extrajudicial (art. 805/1 do Código Civil). Segundo Brandão Proença (Lições de Cumprimento e Não Cumprimento das Obrigações, 3.ª ed., Porto: UCE, 2019, p. 12), a interpelação visa, de um ponto de vista funcional, “comunicar ao devedor que deve cumprir, devendo ser feita em termos concordantes com a boa-fé, ou seja, evitando o credor uma interpelação-surpresa e fixando um prazo razoável para o devedor cumprir após a interpelação”. No mesmo sentido, na jurisprudência, RG 23.10.2014, 700/13.5TBBRG.G1.
É isto que justifica que, em tais casos, a ação executiva para pagamento de quantia certa siga sempre a forma de processo comum ordinário (art. 715), devendo o executado ser citado previamente à penhora uma vez que o vencimento da obrigação depende, necessariamente, da sua citação judicial (art. 610/2, b), do CPC). No caso das obrigações com prazo certo, o mero decurso do prazo implica o vencimento, sem necessidade de interpelação do devedor. Assim, sem prejuízo das situações em que a lei substantiva prevê a perda do benefício do prazo (arts. 780 e 782 do Código Civil) ou o vencimento imediato de todas as prestações (art. 781 do Código Civil), o devedor fica constituído em mora com o simples decurso ou verificação do prazo (art. 805/2, a), do Código Civil), podendo o credor exigir-lhe o cumprimento da obrigação. A contrario, a obrigação é inexigível na pendência do prazo, uma vez que ainda não está vencida.
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3).1.1.1. No caso vertente, estamos perante obrigações decorrentes de dois contratos de mútuo bancário.
Precisando esta afirmação, diremos que o contrato de mútuo é tipificado, no art. 1142 do Código Civil, como “o contrato pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género ou qualidade.”
Caracteriza-se, pois, por ser um contrato real quoad constitutionem, em que a entrega da coisa não assenta sobre nenhuma obrigação imposta ao mutuante, antes é um elemento integrante do contrato, pressuposto da sua conclusão. Neste sentido, Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, II, reimpressão, Coimbra: Almedina, 1992, p. 51, Inocêncio Galvão Telles, Manual dos Contratos em Geral¸ 3.ª Ed., Lisboa, 1965, p. 380, e Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 9.ª Ed., Coimbra: Almedina, 1996, p. 406. Apenas Castro Mendes, Teoria Geral do Direito Civil, II, Lisboa: AAFLD, 1979, pp. 321-322, manifesta “muitas dúvidas em acompanhar a doutrina dominante”, com fundamento na substituição no conceito legal de mútuo da expressão “entrega” constante do projeto do Código Civil, pelo vocábulo “empresta”, ao passo que aquela expressão ficou a constar dos arts. 1129 e 1185, relativos, respetivamente, ao comodato e ao depósito.
A prova da entrega da coisa, elemento constitutivo do mútuo, pode ser feita por recurso às regras gerais sobre matéria probatória, nomeadamente através de prova testemunhal. Neste sentido Mota Pinto,Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª ed., 6.ª reimpressão, Coimbra: Coimbra Editora, 1992, p. 436. Para o mutuário resulta a obrigação de restituir outro tanto mesmo género e qualidade (tantundem), acrescido dos correspondentes juros, se o mútuo for oneroso.
O contrato de mútuo bancário constitui uma modalidade especial do contrato de mútuo. A especialidade resulta da natureza de entidade bancária do mutuante (José Engrácia Antunes, Direito dos Contratos Comerciais, Coimbra: Almedina, 2009, p. 498). Como é referido no Acórdão desta Secção de 29.02.2024 (3557/22.1T8BRG.G1), relatado pela Juíza Desembargadora Maria João Matos, aqui 1.ª Adjunta, está sujeito à disciplina do DL n.º 58/2013, de 8.05, e dos arts. 394 a 396 do Código Comercial (enquanto operação bancária, prevista no art. 362 do mesmo diploma). Não deixa, ainda assim, de se “subsumir às pertinentes regras do Código Civil, quando aquelas outras sejam insuficientes para a sua caracterização. Trata-se de um mútuo de escopo, isto é, o mutuário fica contratualmente obrigado a dar um determinado destino à importância recebida.”
Por outro lado, sendo o comércio dirigido ao lucro, a natureza comercial do mútuo implica, essencialmente, que o contrato seja sempre retribuído (art. 395 do Código Comercial), pelo que o mútuo bancário é, tipicamente, um negócio oneroso, vencendo juros.
Sobre esta obrigação em particular, pode ler-se no citado Ac. de 29.02.2024 (3557/22.1T8BRG.G1), que:
“A obrigação de juros remuneratórios (que está, em geral, no escopo do contrato de mútuo e, de forma transversal, de todo o comércio bancário) pressupõe a prévia obrigação de capital, já que é determinada em função do seu montante e da sua duração; e visa, precisamente, a respetiva remuneração, isto é, a contrapartida do benefício que se proporciona a outrem pela cedência temporária de um capital de que o mesmo inicialmente não dispunha.
As taxas de juros bancários encontram-se atualmente liberalizadas, sendo fixadas por acordo entre a instituição de crédito e o mutuário (conforme Aviso do Banco de Portugal n.º 3/93, de 20 de maio); e podem ser fixas ou variáveis (estas maxime por referência a índice, v.g. Euribor).
Precisa-se, porém, que, para além desta chamada taxa nominal (ou seja, a taxa de juros aplicável a determinada operação de crédito, sem impostos ou outros encargos), existe ainda a taxa anual efetiva (que, além daquela taxa nominal, engloba a totalidade dos encargos do crédito); e os bancos estão obrigados a prestar informações sobre esta última (conforme Decreto-Lei n.º 220/94, de 23 de agosto).
Os juros remuneratórios e os demais encargos do crédito que sejam devidos podem ser pagos numa única vez (v.g. no termo do contrato) ou em várias prestações; e sendo estas periódicas e fixas, incluem em regra uma parte destinada à amortização do capital e outra ao seu próprio pagamento, sendo aquela primeira crescente e esta segunda decrescente, na mesma proporção, à medida que o contrato se vai prolongando no tempo.
Precisa-se, ainda, que, nos mútuos bancários liquidáveis em prestações, o vencimento imediato destas ao abrigo do art.º 781.º, do CC não implica a obrigação de pagamento dos juros remuneratórios nelas incorporados (AUJ n.º 7/2009, do Supremo Tribunal de Justiça, de 25 de março de 2009, António José Cortez Cardoso de Albuquerque, publicado no DR, I Série, de 05 de maio de 2009).”
Conforme convencionado, as obrigações de restituição do capital foram fracionadas em prestações sucessivas, cada uma das quais com um prazo certo, acrescidas dos respetivos juros remuneratórios, o que convoca a aplicação do referido art. 781 do Código Civil, do seguinte teor: “Se a obrigação puder ser liquidada em duas ou mais prestações, a falta de realização de uma delas importa o vencimento de todas.” De facto, estão aqui em causa aquelas obrigações que, como sucede com as referidas obrigações de capital, o cumprimento se protela no tempo, em sucessivas prestações instantâneas, mas em que o objeto global está previamente fixado e não depende da duração da relação obrigacional (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, II, 7.ª ed., Coimbra: Almedina, 1997, pp. 52-53). O decurso do tempo correlaciona-se com a execução da prestação, mas não influencia a determinação do seu conteúdo.
Este tipo de obrigações tem suscitado duas questões.
A primeira questão, colocada a propósito do contrato de mútuo oneroso liquidável em prestações, consiste em saber se o credor pode receber, além do pagamento antecipado das prestações do capital, também os juros remuneratórios respeitantes a prazo ainda não decorrido. Sobre esta questão, a diversidade de resposta judiciais, motivou o AUJ n.º 7/2009, de 25 de março de 2009, através do qual o STJ fixou a seguinte fórmula jurisprudencial: “No contrato de mútuo oneroso liquidável em prestações, o vencimento imediato destas ao abrigo da cláusula de redação conforme ao art. 781.º do Código Civil não implica a obrigação de pagamento dos juros remuneratórios nelas incorporados.” Parte-se, para o efeito, da consideração de que, diversamente da obrigação de capital que constitui dívida liquidável em prestações, a dívida de juros correlaciona-se com o decurso do tempo e apenas se vence à medida que o tempo a faz nascer para remunerar a disponibilidade do capital. A exigibilidade antecipada das frações do capital retira ao credor a possibilidade de exigir os juros que não podem vencer-se porquanto não chegam a ser constituídos. O STJ explicou que a solução não é incoerente com o disposto no art. 1147 do Código Civil: num caso, está em causa a reação do credor ao atraso no cumprimento; no outro, de um cumprimento antecipado. A solução tem sido reafirmada na jurisprudência subsequente, do que são exemplo RG 14.04.2016 (20/14.8T8FAF.G1), RE 10.05.2018 (3216/12.3TBPTM-A.E1) e RL 6.06.2019 (5092/10.1TBALM.L1-6).
Esta jurisprudência dá como adquirido que a norma do art. 781 é também aplicável às obrigações que visam simultaneamente amortizar e remunerar o capital - obrigações híbridas ou mistas –, que não são nem obrigações de reembolso de capital e nem obrigações de pagamento de juros. São obrigações unitárias – e não autónomas –, ainda que se destinem a cumprir uma dupla função: restituição e remuneração do capital mutuado (Miguel Brito Bastos, O mútuo bancário, Coimbra: Coimbra Editora, 2015, pp. 186-188). Entende-se, em conformidade, que quando as partes acordam o reembolso fracionado do capital, esta obrigação é cumprida através de várias prestações, sem que se dissolva a unidade da obrigação do mutuário, que não é incompatível com o fracionamento ou repartição da obrigação em diversas prestações. O tempo não apresenta aqui qualquer dimensão constitutiva, respeitando apenas à execução da prestação e, por isso, limitando-se a fixar o momento em que a prestação deve ser realizada. Assim, o incumprimento de uma das prestações em que a obrigação de reembolso é dividida ou repartida preenche a previsão do art. 781 do Código Civil, ainda que o incumprimento se reporte a uma prestação com função simultaneamente amortizadora e remuneratória do capital, ou seja, a obrigações com um componente de restituição do capital e outro de pagamento de juros. Diversamente, Miguel Brito Bastos (O mútuo bancário cit., pp. 210-211) sustenta que a construção dominante é incompatível – tal como a exigibilidade antecipada da obrigação de reembolso como consequência do incumprimento de uma prestação puramente amortizadora – com o sinalagma existente entre a obrigação de pagamento de juros e a disponibilização do capital. Com efeito, diz, o art. 781 consagra um mecanismo que apenas respeita à obrigação objeto de incumprimento, deixando incólume o direito do mutuante aos juros. A extinção da obrigação de pagamento de juros remuneratórios da futura disponibilização do capital não pode ser considerada como um dado adquirido, pois tem de encontrar fundamento em qualquer critério normativo, que não se descortina facilmente e que não é, normalmente, indicado. Em conformidade, o respeito pelo sinalagma justifica a inaplicabilidade do regime de exigibilidade antecipada ao mútuo oneroso, impondo-se a redução teleológica do art. 781, de modo a não compreender o incumprimento de obrigações fracionadas cujo vencimento antecipado – provocado como que potestativamente pelo credor – quebre a relação de sinalagmaticidade estipulada pelas partes, permitindo ao mutuante beneficiar do pagamento dos juros sem que seja privado do capital pelo correspondente período de tempo. Neste entendimento, a tutela do credor, permitindo a recuperação do capital mutuado em virtude do incumprimento de uma prestação do reembolso, reside antes num outro mecanismo, suscetível de fazer cessar tanto a disponibilização do capital, como a respetiva remuneração: a resolução (art. 1150 do Código Civil).
A segunda questão, consiste em saber se o credor tem de manifestar a sua vontade, interpelando o devedor para cumprir imediatamente todas as prestações vencidas. Sobre esta, a doutrina e a jurisprudência vêm entendendo, de forma quase unânime, que a consequência do art. 781 não é a automática constituição do devedor em mora pela totalidade das prestações em falta. Do que a norma trata é apenas de uma hipótese de perda do benefício do prazo em que se concede ao credor a possibilidade de exigir antecipadamente o cumprimento de todas as prestações e, deste modo, constituir o devedor em mora quanto às prestações vincendas. Se o credor quiser fazer uso dessa faculdade terá de manifestar a sua vontade, interpelando o devedor para cumprir imediatamente todas as prestações vincendas. Na falta de interpelação, não obstante ter ocorrido o incumprimento de uma prestação, as prestações seguintes vencem-se na data prevista. Nas palavras de STJ 15.03.2005 (282/05), relatado pelo Juiz Conselheiro Moitinho de Almeida, a disposição visa “proteger o credor que, em consequência da falta de pagamento de uma das prestações, deixou de confiar na pessoa do devedor. Concede-lhe o benefício de não se sujeitar aos prazos previstos no contrato, podendo exigir a totalidade das prestações, mas não o dispensa da interpelação do devedor para que a mora se verifique. O vencimento automático teria como consequência o direito a juros sobre a totalidade das prestações desde a data em que uma delas deixou de ser paga, o que se afigura manifestamente excessivo.” Neste sentido, na doutrina, Vaz Serra, “Tempo da prestação. Denúncia”, BMJ, n.º 50, p. 208; Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, cit., p. 52; Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, IX, Direito das Obrigações. Cumprimento e Não Cumprimento. Transmissão, Modificação e Extinção, 3.ª ed., Coimbra: Almedina, 2017, pp. 97-99; Pedro Romano Martinez, “Art. 781.º”, AAVV, Menezes Cordeiro (coord.), Código Civil Comentado, II, Das Obrigações em Geral, Coimbra: Almedina, 2021, p. 986; Ana Afonso, “Art. 871.º, AAVV, Brandão Proença (coord.), Comentário ao Código Civil. Direito das Obrigações. Das Obrigações em Geral, Lisboa: UCE, 2021, p. 1071. Na jurisprudência, para além do aresto citado, STJ 25.05.2017 (1244/15.6T8AGH-A.L1.S2), 11.07.2019 (6496/16.1T8GMR-A.G1.S1, 16.06.2020 (23762/15.6T8PRT-A.P1.S1), 26.01.2021 (20767/16.3T8PRT-A.S2), 19.01.2023 (288/21.5T8VNF-A.G1.S1) e 5.09.2023 (3541/19.2T8ALM-A.L1.S1); RG 20.02.2020 (526/05.0TBPRG-D.G1), RG 30.04.2020 (6952/18.7T8GMR-A.G1), RG 17.12.2019 (1101/18.4T8VNF.G1) e RG 12.03.2020 (1278/17.6T8GMR-B.G1). Em sentido contrário, considerando que a norma prevê o vencimento automático Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, Coimbra: Coimbra Editora, 1997, pp. 260 e 271, que, todavia, crítica a solução.
Para alguma jurisprudência, ao abrigo do disposto no art. 781, cabe ao credor interpelar o devedor para que este proceda ao pagamento antecipado das prestações vincendas, “sendo tal documento necessário para integrar o título executivo, no sentido de demonstrar que a dívida era exigível na sua totalidade.” Caso o credor não demonstre documentalmente que procedeu à interpelação do devedor, resolvendo o contrato de mútuo e exigindo-lhe o pagamento da quantia vencida, optando, ao invés, por intentar imediatamente uma ação executiva, ocorre uma insuficiência do título executivo, já que a obrigação não se encontra vencida, sendo inexigível. Neste sentido, RG 15.12.2016 (2507/13.0TBGMR-B.G1). Sustentando, porém, que o credor não carece de proceder à resolução do contrato, sendo antes suficiente a mera interpelação ao devedor para que este “cumpra integralmente a obrigação a que se vinculou”, RG 02.06.2016, 5331/09.1TBGMR-A.G1. A nosso ver, uma vez assente a aplicação do disposto no art. 781 não faz sentido falar-se em resolução: do que a norma trata é da realização antecipada da prestação debitória – rerstituição do tantundem –, assim atuando o contrato, e não da extinção deste com efeitos tendencialmente ex tunc, como é próprio da resolução (art. 434/1 do Código Civil).         
A citação para a ação executiva em que o credor reclama o pagamento da totalidade do capital relativo às prestações antecipadamente vencidas configura uma interpelação do devedor. Tem sido assim entendido que, em tais situações, não existe obstáculo à propositura da ação executiva; o que sucede é que, como o vencimento da obrigação ocorre com a citação do executado, os juros de mora só são devidos após a citação. Assim, RC 05.11.2013 (1189/13.4TJCBR.C1), RL 29.11.2016 (1108/13.8TBMTJ-A.L1-1), RG 17.12.2019 (1101/18.4T8VNF.G1), RL 08.07.2021 (2106/12.4TBVFX-A.L1-6). Este entendimento, com o qual concordamos, é assim restrito às ações executivas que, como a intentada pelo Recorrido, seguem a forma ordinária, em que a citação antecede a penhora. Não pode aplicar-se àquelas que seguem a forma sumária, pois de tal resultaria que as diligências tendentes à execução coerciva estariam a ser levadas a cabo quanto as prestações que ainda não esta estavam vencidas, por não ter havido interpelação, sendo, por isso, a dívida inexigível. A propósito, RG 30.04.2020 (6952/18.7T8GMR-A.G1), relatado pela Juíza Desembargadora Margarida Almeida Fernandes, do qual respigamos a seguinte passagem:
“(…) sendo o título uma decisão judicial, encontramo-nos perante uma execução sob a forma sumária (art. 550º, nº 1, 2 a) do C.P.C.), a qual se inicia com a penhora e só depois ocorre a citação (art. 855º, nº 3 do C.P.C.) e a consequente possibilidade de embargar (art. 856º, nº 1 do C.P.C.).
Na redação do C.P.C. dada pelo Dec.-Lei nº 329-A/95, de 12 de dezembro o então art. 804º nº 3 do C.C. previa expressamente a possibilidade de que a interpelação ser substituída pela citação no processo executivo operando-se com esta o vencimento da obrigação. Mas, esta norma desapareceu na redação do mesmo preceito dada pelo Dec.-Lei nº 38/2003 de 08/03. A propósito desta eliminação refere Lopes do Rego, in “Requisitos da Obrigação Exequenda”, Revista Themis, Ano IV, nº 7, 2003, p. 70-71: “É evidente que, no essencial, tal regime se mantém, por força do estipulado no artigo 805º nº 1 do Código Civil, que confere plena relevância à interpelação judicial – a qual, como é óbvio, se poderá naturalmente consubstanciar na citação para o processo executivo. Importa, porém, realçar um aspeto relevante, decorrente da nova estrutura do processo executivo, no que respeita ao diferimento possível do contraditório do executado, nos casos previstos, nomeadamente, nos artigos 812º-A, nº 1, alíneas c) e d) e 812º-B: não sendo obviamente legítimo lançar mão de diligências tipicamente executivas (realização da penhora) sem que o crédito exequendo esteja vencido, é evidente que – nos casos em que ocorre diferimento do contraditório do executado para momento posterior à efetivação da penhora – terá o credor de proceder à interpelação extrajudicial do devedor, antes de iniciada a instância executiva”. A mesma eliminação manteve-se na redação dada pelo Dec.-Lei nº 226/2008 de 20/11.
O N.C.P.C. não dá expressamente solução a esta questão, pois, enquanto que as al. c) e d) do nº 2 do art. 550º aludem a obrigação pecuniária vencida, a al. a) – na qual o título executivo é a decisão judicial - não o faz por naturalmente as obrigações decorrentes de sentença se vencerem nos termos nela referidos. Contudo, atendendo ao diferente regime das formas de processo ordinário e sumário afigura-se-nos ser de exigir no caso em apreço a interpelação prévia à instauração da ação executiva.
No processo ordinário com a citação pode o executado pronunciar-se relativamente à interpelação do vencimento da dívida.
Mas no processo sumário (…), não resultando do título executivo (sentença de homologação da transação completada pelo plano de recuperação) que a dívida se mostra integralmente vencida, não se mostrariam asseguradas as garantias de defesa da executada se se permitisse que só após a realizada da penhora (e da citação) pudesse exercer o contraditório relativamente à interpelação do vencimento da dívida.”
Acrescentamos ainda que tem sido assinalada a natureza supletiva da norma do art. 781 do Código Civil. As partes podem, no exercício da sua autonomia negocial, convencionar o vencimento automático, independentemente de ter havido interpelação. A propósito, vide os autores. Na jurisprudência, os citados STJ 25.05.2017 e 5.09.2023, e ainda STJ 21.11.2006 (3420/06), publicado na CJ-STJ, XIV, t. 3., pp. 129-132, RC 5.12.2012 (399/12) e RC 13.07.2020 (1757/18.8T8CVL.C1).
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3).1.2. Isto dito, como se percebe, é axiomático que a dívida de capital relativo às prestações vencidas até à data em que foi apresentado o requerimento executivo (16 de dezembro de 2022) é exigível, ipso facto, por força do disposto no art. 805/2, a), do Código Civil. Deste modo, a dúvida quanto ao preenchimento da condição de inexigibilidade do capital apenas se coloca no que tange às prestações ainda não vencidas naquela data. Mais concretamente, importa saber se o Recorrido tinha a faculdade, quase direito potestativo, de provocar o vencimento antecipado destas prestações e, na afirmativa, se exerceu essa faculdade e quando.
A resposta à primeira questão é indiscutivelmente afirmativa para quem, como nós, aceita, na sequência da jurisprudência enunciada, que a norma do art. 781 é aplicável à parte do capital das obrigações híbridas ou mistas próprias dos mútuos onerosos amortizáveis em prestações. Mesmo quem assim não entenda tem de chegar à mesma conclusão, uma vez que as partes assim o estabeleceram quando previram, na cláusula 9.ª, a), dos dois contratos de mútuo, que a falta de pagamento de uma das prestações importava o “vencimento imediato de todas.” Mais: as partes previram também, na cláusula 9.º, b), que a alienação, oneração, arrendamento, total ou parcial, arresto, execução ou qualquer procedimento cautelar ou ação judicial do prédio hipotecado teria como consequência o vencimento de todas as obrigações asseguradas pela hipoteca, assim adotando uma solução semelhante à que resultaria da aplicação do disposto no art. 780 do Código Civil.
A resposta à segunda questão é mais complexa.
No requerimento executivo, o Recorrente não afirmou, de uma forma explícita, o vencimento das prestações subsequentes a 25 de março de 2012 e, muito menos, qualquer interpelação dos mutuários para procederem ao pagamento de todo o capital ainda em dívida. Deu como adquirido que esse vencimento tinha ocorrido, provavelmente confiando que a referida cláusula 9.ª, a), dispensava a interpelação, conforme defendeu na sua contestação e nas contra-alegações. Trata-se de uma leitura que a cláusula em questão não permite. Com efeito, o seu teor é mera reprodução do art. 781 do Código Civil, nada acrescentando a este no sentido da exigibilidade independentemente de interpelação.
Dir-se-ia, assim, que a interpelação apenas ocorreu com a citação dos executados, a qual teve lugar antes de iniciadas as diligências destinadas à penhora uma vez que a ação executiva segue os termos do processo de execução ordinário para pagamento de quantia certa. Em decorrência, a mora quanto à restituição das prestações ainda não vencidas apenas teria ocorrido naquele momento. Quanto às prestações já vencidas, a mora teria ocorrido no momento dos respetivos vencimentos (e não no momento do vencimento da primeira prestação não paga).
Simplesmente, há três pormenores que afastam esta leitura.
Em 1.º lugar, o teor da já referida cláusula 9.ª, b), em que as partes, ademais de consagrarem, como lex privata, que a venda do prédio importaria o vencimento imediato de todas as obrigações (capital e juros) assegurados pela hipoteca, previram a exigibilidade de tais prestações – “A presente hipoteca poderá ser executada (…) se o imóvel ora hipotecado vier a ser alienado (…), caso em que se consideram igualmente vencidas e exigíveis as obrigações que assegura” (sic). O segmento destacado não pode ter outro significado que não seja o de dispensar a interpelação dos mutuários uma vez verificado o facto que espoleta o vencimento, tornando as prestações ainda não vencidas exigíveis ipso facto.[3]
Assim, dir-se-ia, que a totalidade do capital em dívida sempre seria exigível desde o momento em que o prédio foi vendido. A ser assim, seria necessário apurar com rigor, em termos de matéria de facto, as datas em que ocorreu cada um dos atos em que se desdobrou a venda do prédio no processo de execução para depois aferir o exato momento da transmissão do direito de propriedade.
O 2.º pormenor situa-se a montante do anterior. Prende-se ele com os termos em que o Recorrido interveio no processo de inventário, reclamando os seus créditos, e com o conhecimento que os Executados tiveram dessa reclamação.
Da leitura do Acórdão de 24 de novembro de 2021 conseguimos perceber que o Recorrido reclamou os seus créditos em dois momentos: num primeiro, quando ainda não havia incumprimento; num segundo, já depois desse incumprimento. Este seria o relevante. Ter-se-ia então de apurar a data em que os devedores foram notificados desta segunda reclamação, o que equivaleria à interpelação que é condição da exigibilidade.
Estas considerações tornariam necessária a anulação da sentença recorrida com vista à ampliação da matéria de facto, nos termos previstos no art. 662/2, c), do CPC.
É aqui que o 3.º pormenor entra em jogo, tornando inútil essa anulação. Está em causa o efeito de caso julgado do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24 de novembro de 2021.
Expliquemos.
Conforme vimos, o Recorrido reclamou os seus créditos no processo de inventário destinado à partilha do património comum do casal que foi constituído pelos Executados alegando o incumprimento da prestação que se venceu no dia 25 de março de 2012 e o concomitante vencimento das prestações seguintes a essa, calculando o montante total em dívida em € 79 281,62, discriminando-o da seguinte forma: capital: € 71 477,67; juros remuneratórios vencidos: € 3 145,78; juros de mora: € 2 326,41; penalizações: € 271,70; despesas: € 1 905,37; imposto de selo: € 154,69.
Na sequência do indeferimento da sua pretensão pela 1.ª instância, o Recorrido interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto que, através do referido Acórdão, reconheceu o crédito tal como este havia sido reclamado.
Daqui decorre que houve já uma decisão, transitada em julgado, que reconheceu, no confronto entre Recorrente e Recorrido, que a 1.ª instância enfermava de erro por ter desconsiderado que “existia incumprimento dos contratos, que por isso sobre o capital vencido à data do incumprimento e até a data dessa decisão haviam sido vencidos juros às taxas acordadas de 1,262%, acrescidas da sobretaxa de 4%, e demais acréscimos legais, como é o imposto de selo, o que totalizava nessa data um débito de € 79 281,62.”
Esta questão da inexigilidade, tal como aqui se coloca, já foi, portanto, objeto de apreciação judicial.
Como se sabe, o trânsito da sentença em julgado produz o caso julgado. É o que resulta do disposto no n.º 1 do art. 619 do CPC, onde está plasmada a noção de caso julgado material. Aí se diz que, “transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580 e 582...”
Através deste instituto pretende-se evitar que uma mesma ação seja instaurada várias vezes, obstando a que sobre uma mesma situação recaiam decisões contraditórias. Trata-se, no fundo, de um meio de garantir a boa administração da justiça, funcionalidade dos tribunais e salvaguarda da paz social, o que só é possível alcançar se sobre os litígios recaírem decisões definitivas. Sem esta proteção, a função jurisdicional seria meramente consultiva; as opiniões – resoluções, na verdade – dos juízes e dos tribunais, não seriam obrigatórias, já que podiam ser provocadas e repetidas de acordo com a vontade dos interessados. Em especial as sentenças, produto mais relevante do poder judicial, deixariam de sujeitar as partes; a sua execução seria sempre provisória; enfim, a segurança do tráfico entre os homens ficaria terrivelmente ameaçada. Não está, portanto, em causa a ideia de que a decisão transitada em julgado é expressão da verdade dos factos, mas a segurança jurídica.
A referida força obrigatória da sentença desdobra-se num duplo sentido: a um tempo, no da proibição de repetição da mesma pretensão ou questão, por via da exceção dilatória do caso julgado, prevista e regulada em especial nos arts. 577, i), 580 e 581 do CPC, que pode ser sintetizada através do brocardo non bis in idem; a outro, no da vinculação das partes e do tribunal a uma decisão anterior, a que corresponde o brocardo judicata pro veritate habetur. Dito de outra forma, o caso julgado não tem apenas relevância negativa: como a doutrina[4] e a jurisprudência[5] reconhecem de forma unânime, o caso julgado material pode  funcionar como exceção, com a referida relevância negativa, ou como autoridade, caso em que a sua relevância é positiva.
De acordo com Miguel Teixeira de Sousa, O Objeto da Sentença e o Caso Julgado Material, BMJ, n.º 325, p. 168, os efeitos do caso julgado material projetam-se em processos ulteriores necessariamente como autoridade do caso julgado material, em que o conteúdo da decisão anterior constitui uma vinculação à decisão de distinto objeto posterior, ou como exceção de caso julgado, em que a existência da decisão anterior constitui um impedimento à decisão de idêntico objeto posterior.
O mesmo autor acrescenta (O Objeto cit., pp. 171 – 172) que a diversidade entre os objetos de uma e outra ação torna prevalecente um efeito vinculativo, a autoridade de caso julgado material, e a identidade entre os objetos processuais torna preponderante um efeito impeditivo, a exceção de caso julgado. Aquela diversidade e esta identidade são os critérios para o estabelecimento da distinção entre o efeito vinculativo, a vinculação dos sujeitos à repetição e à não contradição da decisão transitada: a vinculação das partes à decisão transitada em processo subsequente com distinto objeto é assegurada pela vinculação à repetição e à não contradição do ato decisório e o impedimento à reapreciação do ato decisório transitado em processo subsequente com idêntico objeto é garantido pelo impedimento dos sujeitos à contradição e à repetição da decisão. Deste modo, pode dizer-se que a questão da autoridade do caso julgado material respeita, sobretudo, à extensão da auctoritas rei iudicatae à solução das questões prejudiciais, assim denominadas as relativas a relações jurídicas distintas da deduzida em juízo pelo autor, mas de cuja existência ou inexistência dependa logicamente o teor da decisão do pedido, sobre as quais não ocorre decisão, mas simples cognitio.
É assim aquele 1.º efeito que aqui está em causa, atenta a identidade do objeto processual apreciado no referido Acórdão do Tribunal da Relação do Porto e o da presente ação declarativa de embargos de executado. Somando que há identidade de sujeitos, é indiscutível que estão verificados todos os pressupostos da exceção dilatória do caso julgado material.
É certo que o referido Acórdão foi proferido no âmbito de uma ação de inventário e, mais concretamente, do incidente que nela foi originado pela reclamação apresentada pelo aqui Recorrido nos termos e para os efeitos previstos no art. 1331/2 do CPC de 1961. Afigura-se, porém, que é de afastar a ideia de que o processo de inventário tem um objeto diverso de uma ação de reconhecimento de crédito, assim ficando prejudicada a identidade objetiva que é pressuposto da exceção do caso julgado. Na verdade, não prejudica a identidade objetiva o facto de serem de diversa natureza os processos concernentes às duas ações. Neste sentido, confrontando o processo declarativo com os processos executivo e de falência, José Alberto dos Reis Código Civil Anotado, III, 4.ª ed., reimpressão, Coimbra: Coimbra Editora, 1985, pp. 102 e 108. Na jurisprudência, RG 10.11.2004 (1841/04-1), relatada pelo atual Juiz conselheiro José Manuel Vieira e Cunha, a propósito da identidade entre uma ação declarativa de reivindicação e uma ação de inventário destinado à partilha do património comum do casal em cuja fase da reclamação contra a relação de bens havia sido decidida a questão colocada na primeira.
Mais concretamente quanto ao processo de inventário, importa destacar que, como se escreve no aresto, “o processo de inventário assume uma natureza mista, tanto graciosa como contenciosa. Se no respetivo decurso surgirem questões entre os interessados, designadamente as que são tipificadas na lei processual, a controvérsia terá de ser dirimida por uma decisão judicial. A natureza contenciosa do processo de inventário surge, as mais das vezes, do facto de os interessados não se encontrarem de acordo a respeito dos bens a partilhar, acusando tal falta logo com a relação de bens apresentada.”
Como também se escreve no aresto, tal natureza encontra-se há muito estabelecida na doutrina, designadamente em José Alberto dos Reis e João António Lopes-Cardoso. No primeiro quando escreve que “há evidentemente questões que podem e devem decidir-se no processo de inventário; quanto a elas, o processo funciona precisamente como uma ação, assume o aspeto de processo contencioso.” No segundo, quando alude à complexidade do processo de inventário, dizendo que os respetivos termos “são tanto ou mais complicados que outros quaisquer; os prazos, até pela sua versatilidade, não acusam diminuição sensível, e dentro dele podem suscitar-se ou resolver-se todas as questões que interessem para a organização da partilha; o atual diploma consente a produção de qualquer espécie de prova, obriga o juiz a proferir decisão sobre as questões suscitadas e só remete os interessados para os meios ordinários quando elas exijam uma larga instrução; a índole sumária ou sumaríssima não se compadece com os novos princípios orientadores do processo de inventário, diversos dos que inspiraram outros diplomas.” No mesmo sentido, STJ 12.07.2007 (07A1218), RG 21.01.2010 (858/09.8TBVCT.G1) e 17.09.2013 (594/05).
Afigura-se, por outro lado, que o disposto no n.º 2 do art. 91 do CPC não constitui obstáculo à conclusão a que chegámos. Na verdade, as questões incidentais a que alude a norma são aquelas têm de ser apreciadas num processo como questões prejudiciais da apreciação de uma outra questão, conforme ensinam Miguel Teixeira de Sousa (Código de Processo Civil Online, CPC: art. 1.º a 129.º, Versão de 2023/10, p. 97) e Lebre de Freitas / Paula Costa e Silva (Código de Processo Civil Anotado, I, 4.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2019, p. 203). Não é o que sucede com os incidentes que, como o da reclamação de créditos sobre o património comum do casal objeto da partilha (art. 1313, ex vi do art. 1404/3, ambos do CPC de 1961, a que corresponde, no CPC de 2013, na redação da Lei n.º 117/2019, de 13.09, o art. 1088), estão previstos na normal tramitação do processo de inventário, o que demonstra que, como escrevem Miguel Teixeira de Sousa / Carlos Lopes do Rego / António Abrantes Geraldes / Pedro Pinheiro Torres (O Novo Regime do Processo de Inventário e outras Alterações na Legislação Processual Civil, Coimbra: Almedina, 2020, p. 11)  “não devem ser tratados como os incidentes que, de modo contingente, podem ter de ser decididos noutros processos. Quer dizer: enquanto, na generalidade dos processos, os incidentes são, realmente, incidentais, no processo de inventário os incidentes são inerentes (ou essenciais) à própria tramitação deste processo.”   
De acrescentar apenas que o caso julgado que aqui referimos é constituído pela decisão que julgou a reclamação de créditos apresentada pelo aqui Recorrido para efeitos de pagamento pelo produto da venda que no processo de inventário foi realizada do prédio sobre o qual recaía a hipoteca. Os efeitos de tal decisão não estão dependentes da prolação e trânsito em julgado da sentença homologatória da partilha, como sucede com as decisões de outras questões incidentais do processo de inventário, como sejam as que conhecem da reclamação contra a relação de bens (vide, a propósito, a situação objeto do citado RG 10.11.2004). É que, tendo sido já realizada a venda do prédio, com a consequente extinção da hipoteca que sobre ele incidia e a passagem da preferência de pagamento que ela conferia ao credor para o produto obtido com a venda (art. 824/2 do Código Civil), os efeitos práticos da decisão ficaram consolidados, subsistindo independentemente da partilha que venha a ser homologada. Dito de outra forma, os efeitos desta partilha, que através de uma ficto iuris serão reportados à data da cessação das relações patrimoniais entre os cônjuges, assim se evitando hiatos no domínio dos bens, em nada interferirão com a venda, já consumada, do prédio.
Perante o exposto, tem de concluir-se que as dívidas exequendas são exigíveis, nos termos já reconhecidos, improcedendo in totum a conclusão XIV.
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4).1. O que antecede a propósito do caso julgado constituído pelo Acórdão da Relação do Porto de 24 de novembro de 2021 dá o mote para a resposta à 4.ª questão.
Na petição de embargos, a Recorrente questionou também a liquidação da quantia exequenda. Fê-lo, no entanto, numa única dimensão: dando como assente que o valor total dos créditos do Recorrido é de € 79 281,62, pelo que entendeu que não é aceitável que o exequente venha agora aumentar a quantia do seu crédito.
A resposta a esta questão foi também dada pelo Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, o qual quantificou os créditos do exequente no referido montante. Fê-lo, porém, com referência ao dia 17 de julho de 2018. Para que assim se conclua, basta uma leitura atenta do Acórdão que, como qualquer decisão judicial, constitui um ato jurídico não negocial, ao qual são aplicáveis, nos termos e para os efeitos do art. 295 do Código Civil, as regras gerais da interpretação jurídica e, desde logo, a doutrina da impressão do destinatário, sendo o labor interpretativo alcançável do contexto da decisão e respetiva fundamentação, cf. se explica em RP 25.01.2024 (2524/17.1T8LOU-E.P1), relatado pela Juíza Desembargadora Isabel Peixoto Pereira.
Com efeito, temos, por um lado, que foi essa a pretensão formulada pelo aqui Recorrido no recurso em que foi proferido o Acórdão – que, sublinha-se, a atendeu in totum. Temos, por outro lado, que resulta da fundamentação do Acórdão que a obrigação de juros moratórios que integra o passivo reconhecido foi calculada até ao dia ../../2018, o que resulta, designadamente, do segmento em que se remeteu para a liquidação feita pelo credor (aqui Recorrido).
Não tendo, entretanto, sido feito o pagamento dos créditos do Recorrido, continuaram a vencer-se, depois daquela data, juros de mora, nos termos contratualizados, como continuará a acontecer até que o interesse do credor seja satisfeito.
Compreende-se, por isso, que o montante total em dívida seja atualmente consideravelmente superior àqueles € 79 281,62 e mesmo aos € 89 967,42 que a Recorrente calculou tendo como ponto de partida para a contagem dos juros que, no entretanto, se venceram o dia 12 de fevereiro de 2020 e não o dia 17 de julho de 2020.
Não tendo sido alegado, por outro lado, a incorreção do cálculo dos juros vencidos feito pelo Recorrido face ao que consta do título, mas apenas o seu termo inicial, essa questão está afastada do objeto dos embargos e, por isso, sempre constituiria, neste recurso, uma questão nova.
De dizer, finalmente, que os créditos do Recorrido continuam a ser no montante que resulta dos títulos. Não houve ainda um ato de pagamento, sequer parcial, no âmbito do identificado inventário. Isto não exclui a aplicação, em sede executiva, do disposto no art. 752/1 do CPC, tomando-se em conta, para esse efeito, a parte do produto da venda do prédio adrede hipotecado que foi obtido no processo de inventário, para o qual se transmitiu a preferência que era dada pela garantia real. Simplesmente, essa é uma questão que se situa a jusante da oposição à execução. Contende apenas com a extensão da penhora e a sua proporcionalidade face ao montante sobrante dos créditos exequendos (art. 874/1, a), do CPC).
As conclusões XVI. a XXIII. são também improcedentes.
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4) Concluímos, pelo exposto, pela improcedência do recurso.
Vencida, a Recorrente deve suportar as custas (art. 527/1 e 2 do CPC), sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.
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IV.
Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores que compõem o presente coletivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar o presente recurso de apelação improcedente e confirmar a sentença recorrida.
Custas pela Recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo.
Notifique.
*
Guimarães, 4 de abril de 2024

Os Juízes Desembargadores,
Gonçalo Oliveira Magalhães (Relator)
Maria João Marques Pinto de Matos (1.ª Adjunta)
Maria Gorete Morais (2.ª Adjunta)



[1] O autor retomou o tema no escrito “Factos conclusivos": já não há motivos para confusões!”, disponível em https://blogippc.blogspot.com/2023/06/factos-conclusivos-ja-nao-ha-motivos.html
[2] Inter alia, RG 10.07.2023 (4607/21.4T8VNF-A.G1), relatado pela Desembargadora Maria João Matos. No dizer de António Abrantes Geraldes, “A sentença cível”, disponível em Publicações - Supremo Tribunal de Justiça (stj.pt), pp. 10-11, “na enunciação dos factos apurados o juiz deve observar uma metodologia que permita perceber facilmente a realidade que considerou demonstrada, de forma linear, lógica e cronológica, a qual, uma vez submetida às normas jurídicas aplicáveis, determinará o resultado da ação. Por isso, é inadmissível (…) que se opte pela enunciação desordenada de factos, uns extraídos da petição, outros da contestação ou da réplica, sem qualquer coerência interna.”
[3] Destaca-se que, segundo Anselmo de Castro (A Ação Executiva Singular, Comum e Especial, 3.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1977, pp. 225-226) e Rui Pinto (A Ação Executiva cit., p. 898), na venda executiva, a extinção dos direitos reais de garantia que resulta do n.º 2 do art. 824 do Código Civil, implica, ao nível substantivo, uma forma de resolução ope legis do contrato respetivo.
[4] Sobre a questão, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, reimpressão, Coimbra: Coimbra Editora, 1993, p. 305; Castro Mendes, Limites Objetivos do Caso Julgado em Processo Civil, Lisboa: Ática, 1968, p. 162; Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2.ª ed., Lisboa: Lex, 1997, p. 576, e O Objeto da Sentença e o Caso Julgado Material, BMJ 325, p. 167, Antunes Varela / Miguel Bezerra / Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, p. 703, nota 1; Mariana França Gouveia, A Causa de Pedir na Ação Declarativa, Coimbra: Almedina, 2004, p. 394; Lebre de Freitas / Montalvão Machado / Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, II, Coimbra: Coimbra Editora, 2001, p. 325 – 326; Rui Pinto, “Exceção e autoridade de caso julgado – algumas notas provisórias”, Julgar Online, disponível em https://julgar.pt/excecao-e-autoridade-de-caso-julgado-algumas-notas-provisorias/ [13.09.2023]; Lebre de Freitas, “Um polvo chamado autoridade do caso julgado”, ROA, ano 79, n.os 3-4 (jul.-dez. 2019), pp. 691-722.
[5] Inter alia, os seguintes arestos do STJ: 30.04.2019 (4435/18.4T8MAI.S1), 14.09.2022 (24558/19.1T8LSB.L1.S1), 2.03.2023 (6055/18.4T8ALM.L1.S1), 12.04.2023 (979/21.9T8VFR.P1.S1), 30.05.2023 (3358/20.1T8BRG.G1.S1) e 4.07.2023 (142/15.8T8CBC-C.G1.S1).