Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
182/20.5T8VLN.G1
Relator: LÍGIA VENADE
Descritores: IMPUGNAÇÃO JUDICIAL DE DECISÃO DO CONSERVADOR
HIPOTECA
REGIME DA PROPRIEDADE HORIZONTAL
CANCELAMENTO DO REGISTO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/18/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (da relatora):

Tendo sido inscrita hipoteca sobre um prédio, posteriormente submetido ao regime da propriedade horizontal, o documento apresentado para efeitos de cancelamento do registo da hipoteca sobre uma fração por efeito de renúncia (distrate) deve especificar a que fração se refere, de modo a sustentar o cancelamento pretendido.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I RELATÓRIO (seguindo o elaborado em 1ª instância)

N. G., solicitadora, portadora da cédula profissional nº. …., veio impugnar judicialmente o despacho proferido, em 04-05-2020, pela Senhora Conservadora do Registo Predial de ..., que recusou o pedido de cancelamento de registo de hipoteca lavrado com base na apresentação 2465, de 12-12-2019, cancelamento este requerido sob a apresentação número 4.488, de 06-03-2020, referente à fração autónoma identificada pela letra "B" do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial da … sob o número ... I ... (...).

Alega em síntese que:
1.Pela apresentação número 4.488, de 06-03-2020, efetuada através de registo on-line, foi requerido o cancelamento parcial do registo de hipoteca que se encontra inscrito a coberto da apresentação número 2465, de 12-12-2019, a favor do Banco ..., S.A., que incide sobre a fração "B" do prédio descrito sob o número ... / ... (...);
2.Foi oferecido a registo um título particular emanado pelo Banco ..., S.A. e exarado nos termos do preceituado na Lei de 16 de abril de 1874 e no Decreto de 7 de janeiro de 1876, no qual consta que o credor "[ ... ] autoriza o cancelamento da mencionada inscrição hipotecária, em relação ao prédio atrás descrito”;
3.A Exma. Senhora Conservadora, em, aliás douto, despacho de 04-05-2020 recusou a feitura do cancelamento do registo de hipoteca por ”[ ... ] se entender que o facto não está titulado nos documentos apresentados." e por "[ ... ] Analisado o título apresentado a registo verifica-se que a entidade credora autorizou o cancelamento da inscrição hipotecária lavrada pela inscrição Ap. 2465 de 2019/12/12 que incide sobre o prédio ... da freguesia de ... (...), sendo omisso no que diz respeito a fração a cancelar;
4. Fundamenta o despacho com o preceituado nos arts. 68º e 69º, nº1, al. a) do CRP.
5.Através da apresentação número 2465, de 12/12/2019 foi inscrita uma hipoteca a favor do Banco ..., S.A. que incidiu sobre todo o prédio que se encontra descrito sob o número .../ ... (...);
6.Em 16/01/2020, através da apresentação número 364 foi registada a submissão daquele prédio ao regime da propriedade horizontal.
7.A hipoteca que, até aqui, incidia sobre todo o prédio, passou a incidir sobre todas as frações autónoma, uma vez que estas herdam os ónus e encargos do prédio.
8.Mas a hipoteca continua a ser a mesma e, enquanto não for cancelada, continua a incidir sobre o referido prédio .../ ... (...).
9. Sendo natural e até normal que, quando o credor que deixe de estar interessado na subsistência da garantia, na sua globalidade, emita um documento, ao abrigo do disposto nos artigos 7310 do Código Civil e 560 do Código do Registo Predial, onde consigne que autoriza o cancelamento da hipoteca que incide sobre o prédio em causa, sem identificar as suas frações autónomas.
10. Com a emissão deste documento não podem restar dúvidas que o credor deixou de estar interessado naquela garantia na sua globalidade.
11. Autorizou, assim, o cancelamento da hipoteca sobre todas as frações do prédio.
12.Não faz qualquer sentido exigir-se que na autorização de cancelamento de uma hipoteca que incide sobre todo o prédio se obrigue o credor a enumerar todas as frações que o compõem.
13. Esta é uma exigência contranatura, que não tem qualquer fundamento jurídico e que nada acrescenta quanto à segurança jurídica da declaração.
14. A análise dos documentos e do conteúdo das declarações que estes consignam é sempre uma tarefa exigente.
15.Requerendo essa análise qualificações de ciências jurídicas e de capacidade de entendimento do senso comum.
(…)
18. Na qualificação do registo o Conservador, como jurista que deve ser, deve analisar os documentos e extrair deles os factos que são sujeitos a registo.
19.E o documento apresentado não padece de qualquer vício ou pode suscitar quaisquer dúvidas: o credor autoriza o cancelamento da hipoteca que incide sobre todo o prédio.
20.Tendo sido requerido o cancelamento somente quanto à parte da hipoteca que incide sobre a fração autónoma "B”.
(…)
22.Pelo que em posse de documento que permite o cancelamento da hipoteca na sua globalidade também permite o seu cancelamento parcial
23.A qualificação, douta, da Sra. Conservadora a quo escuda-se numa questão de técnica registral pela qual, com a constituição da propriedade horizontal, o prédio deixa de existir, passando a existir somente as frações que a compõem.
24.Mas este preceito só é verdadeiro e real em termos puramente registrais, é que a partir do momento em que é constituída a propriedade horizontal deixa de ser possível inscrever, sobre o prédio no seu todo, novos registos.
25.Mas continua a ser possível promover o cancelamento de registos previamente inscritos, como é o caso dos presentes autos, desde que seja requerido, como foi, o cancelamento do registo diretamente nas suas frações.
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O despacho impugnado da Srª. Conservadora de 04.05.2020 encontra-se nos autos.
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Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 131º-A, nº1 do Código do Registo Predial, tendo o Banco ..., vindo aos autos, em 06.10.2020, dizer o seguinte:
“em 3/3/2020, o BANCO emitiu título particular de renúncia à hipoteca registada sob a AP 2465 de 2019/12/12, incidente sobre o prédio descrito sob o nº ... da freguesia de …, sendo o mesmo omisso quanto à fração B aqui em causa.
No entanto, porque era e é intenção deste BANCO autorizar o cancelamento da hipoteca sobre a referida fração B, vem, por este meio, confirmar tal renúncia, comprometendo-se a, sendo necessário, emitir novo título de cancelamento da hipoteca com expressa indicação da fração B”.
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A Srª. Conservadora respondeu ao recurso interposto da sua decisão, proferindo despacho de sustenção da decisão impugnada, referindo que foi o registo recusado por se concluir pela inexistência de título suficiente para prova do ato requerido e não por uma questão de técnica registral, mantendo o despacho de recusa recorrido, nos termos do nº 1 do artigo 142°-A do Código do Registo Predial.
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O Ministério Público, emitiu parecer, nos termos do artigo 146º n.º 1 do Código do Registo Predial, concordando com a decisão proferida pela Sra. Conservadora do Registo Civil e Predial de ..., uma vez que o título apresentado não é suficiente.
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Foi proferida decisão que julgou “totalmente improcedente a presente impugnação e decido manter o despacho proferido pela Sr.ª Conservadora da Conservatória do Registo Predial de ... que recusou o cancelamento da inscrição hipotecária lavrada pela Ap. 2465 de 2019/12/12, a favor do Banco ... quanto à fração “B” do prédio ... da freguesia de ..., ....”

Mais foram imputadas as custas à recorrente, fixadas no mínimo legal (cfr. artº. 527º do C.P.C., tendo em conta o disposto nos artºs. 12º nº. 1 alínea d), 13º, nº.1 e Tabela I-B, todos do RCP.
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Inconformada, veio a requerente N. G. interpor recurso apresentando alegações com as seguintes
-CONCLUSÕES-

“I - Vem o presente recurso interposto da, aliás, douta sentença, que julgou
improcedente a presente impugnação judicial;
II - Acontece, porém, que salvo o devido respeito por melhor opinião, a sentença
em crise padece de erros que não se verificando levariam à procedência do
procedimento;
III - Efetivamente, a decisão em crise carece de ser alterada e substituída por outra
que julgue a ação totalmente procedente;
IV - O Documento de cancelamento hipotecário apresentado a registo satisfaz
todos os seus requisitos necessários, indicando claramente qual a descrição
predial e a inscrição hipotecária;
V - O facto de o prédio após a constituição da hipoteca ser submetido ao regime da
propriedade horizontal não obriga o credor a individualizar no documento as
frações autónomas que pretende ver canceladas;
VI - A tal estará obrigado apenas nos casos em que pretenda exclusivamente um cancelamento parcial;
VII - Após a submissão àquele regime tem o credor hipotecário a possibilidade de
permitir o cancelamento integral num só acto ou a faculdade de ir libertando as
hipotecas fração por fração;
VIII - Devendo entender-se que o mesmo permite o cancelamento de todas as
frações, ainda que o devedor apenas apresente a registo apenas o de uma, quando o documento se mostra redigido de forma genérica, ou seja sem individualizar as frações;
IX - Casos em que entendemos que se mostra apenas necessário quando o credor
pretende limitar a certas e determinadas frações o documento.
X - Pelo que o documento apresentado é bastante para a Conservatória proceder
ao cancelamento integral ou a qualquer uma das frações.”

Pede por isso que seja dado provimento ao presente recurso alterando-se a sentença que deve ser substituída por outra que julgue integralmente procedente a impugnação judicial.
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O M.P. pugnou pela improcedência da apelação.
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Após os vistos legais, cumpre decidir.
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Questão prévia: com as suas alegações de recurso (apesar de em requerimento autónomo) veio a recorrente pedir a junção de três documentos –três declarações emitidas por três Entidades Bancárias distintas (e distinta da que emitiu a declaração que está em análise no caso), pretendendo demonstrar que quando se reportam a uma só fração têm como procedimento fazer a respetiva referência).
Diz o artº. 651º nº. 1 do C.P.C. que “As partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o artigo 425º ou no caso da junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância.”
O artº. 425º do C.P.C., diz que “Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento.”, norma esta excecional, semelhante à prevista no nº. 3 do artº. 423º do C.P.C., no que se reporta à fase de junção de documentos em sede de aferição da prova em julgamento.

Assim sendo, a junção de documentos em sede de recurso, depende de alegação por parte do apresentante de uma de duas situações:

- a impossibilidade de apresentação deste documento em momento anterior ao recurso; a superveniência em causa, pode ser objetiva ou subjetiva: é objetiva quando o documento foi produzido posteriormente ao momento do encerramento da discussão; é subjetiva quando a parte só tiver conhecimento da existência desse documento depois daquele momento;
- o julgamento efetuado na primeira instância ter introduzido na ação um elemento adicional, não expectável, que tornou necessária esta junção; pressupõe esta situação a novidade da questão decisória justificativa da junção pretendida, como questão operante (apta a modificar o julgamento) só revelada pela decisão, sendo que isso exclui que a decisão se tenha limitado a considerar o que o processo já desde o início revelava ser o thema decidendum. Com efeito, como refere António Abrantes Geraldes, “podem (…) ser apresentados documentos quando a sua junção apenas se tenha revelado necessária por virtude do julgamento proferido, maxime quando este se revele de todo surpreendente relativamente ao que seria expectável em face dos elementos já constantes do processo.” (…)“a jurisprudência anterior sobre esta matéria não hesita em recusar a junção de documentos para provar factos que já antes da sentença a parte sabia estarem sujeitos a prova, não podendo servir de pretexto a mera surpresa quanto ao resultado” (“Recursos no Novo Código de Processo Civil”, pags. 229 e 230 da 4ª edição)
Como referia Antunes Varela (RLJ, Ano 115º, pags. 95 e segs.), a propósito do regime anterior à Lei 41/2013 “A junção de documentos com as alegações da apelação, afora os casos da impossibilidade de junção anterior ou de prova de factos posteriores ao encerramento da discussão de 1ª instância, é possível quando o documento só se tenha tornado necessário em virtude do julgamento proferido em 1ª instância. E o documento torna-se necessário só por virtude desse julgamento (e não desde a formulação do pedido ou da dedução da defesa) quando a decisão se tenha baseado em meio probatório inesperadamente junto por iniciativa do tribunal ou em preceito jurídico com cuja aplicação as partes justificadamente não tivessem contado.”

Neste caso concreto, o recorrente omite de todo a justificação para a apresentação do documento apenas em fase de alegações, o que desde logo impõe a sua rejeição. Acrescentaremos porém que, caso se entendesse tal justificação desnecessária em virtude de decorrer do contexto do processo que apenas face à decisão proferida em 1ª instância a sua junção se justifica (embora a decisão seja no mesmo sentido da que foi a da Srª Conservadora e por isso tal argumento não colhesse), cremos que a sua admissão não prescinde do juízo sobre a sua relevância. Ora, os documentos em causa são inócuos relativamente à decisão a proferir, não só porque se trata instituições diversas que podem ter práticas diversas, como se desconhece o fim e o alcance visado e atingido com a sua elaboração, e portanto são insuscetíveis de permitir que se retire qualquer ilação.
Assim rejeitam-se os mesmos.
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II QUESTÕES A DECIDIR.

Decorre da conjugação do disposto nos artºs. 608º, nº. 2, 609º, nº. 1, 635º, nº. 4, e 639º, do Código de Processo Civil (C.P.C.) que são as conclusões das alegações de recurso que estabelecem o thema decidendum do mesmo. Impõe-se ainda ao Tribunal ad quem apreciar as questões de conhecimento oficioso que se resultem dos autos.
Impõe-se por isso no caso concreto e face às elencadas conclusões decidir se deve ser revogado o despacho de recusa de cancelamento da inscrição hipotecaria proferido pela Srª. Conservadora –questão que também foi deste modo elencada pelo Tribunal de 1ª instância.
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III MATÉRIA A CONSIDERAR.

Os factos a ter em consideração foram enumerados pelo Tribunal de 1ª instância de modo que não suscitou e não suscita reparos, pelo que se passam a reproduzir.

Da Factualidade Provada

1.Encontra-se registado a favor de A. P. e H. S., a fração autónoma “B”, do prédio ... da freguesia de ..., ..., descrita sob o nº.../20200130-B, pela Ap. de 4472, de 06.03.2020 – conforme certidão predial que consta nos autos e que aqui damos por integralmente reproduzida.
2.Através da apresentação número 2465, de 12/12/2019 foi inscrita hipoteca a favor do Banco ..., S.A. que incidiu sobre todo o prédio que se encontra descrito sob o número .../ ..., ...;
3. A hipoteca que incidia sobre todo o prédio, passou a incidir sobre todas as frações autónomas com a constituição da propriedade horizontal.
4.Pela Ap. 4488, de 06.03.2020 foi requerido pela impugnante o registo de cancelamento da inscrição hipotecária lavrada pela Ap. 2465 de 2019/12/12, a favor do Banco ... quanto à fração “B” do prédio ... da freguesia de ..., ..., o qual foi recusado – doc. 1 que aqui damos por integralmente reproduzido.
5. No dia 03.03.2020, o Banco ..., SA, emitiu titulo particular do qual consta designadamente o seguinte:
“(…)
Que para segurança do crédito desta Instituição Bancaria formalizado por titulo particular, foi constituída hipoteca, Inscrição AP. 2465, de 2019.12.12 que incide sobre o prédio descrito sob o nº..., na freguesia de …, ..., da Conservatória do Registo Predial de … – cfr. doc. 2 que aqui damos por integralmente reproduzido.
6. Por despacho de 04-05-2020 da Srª. Conservadora do Registo Predial de ... foi recusada a feitura do cancelamento do registo de hipoteca, designadamente por ''(...) se entender que o facto não está titulado nos documentos apresentados." e por "(...) Analisado o título apresentado a registo verifica-se que a entidade credora autorizou o cancelamento da inscrição hipotecária lavrada pela inscrição Ap. 2465 de 2019/12/12 que incide sobre o prédio ... da freguesia de ... (...), sendo omisso no que diz respeito a fração a cancelar – cfr. despacho junto aos autos que aqui damos por integralmente reproduzido.
7. Foi a apresentante que determinou no pedido qual a fração objeto de registo.
8. O edifício foi constituído em Propriedade Horizontal que se encontra registada pela Ap. 364 de 2020/01/16 – cfr. certidão predial junta aos autos que aqui damos por integralmente reproduzida.
9. A Srª. Conservadora do Registo Predial proferiu despacho de sustentação da sua decisão recorrida, em 03.06.2020, que antecede e que aqui damos por integralmente reproduzido.
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IV- O MÉRITO DO RECURSO.

Em primeiro lugar cabe referir que nos presentes autos houve uma impugnação judicial da recusa de registo por parte da Srª Conservadora (cfr. objeto a decidir, tal como anunciado pelo Tribunal de 1ª instância), sem que tenha havido recurso hierárquico intermédio, pelo que os autos seguem o disposto nos artºs. 140º a 142º-A, 146º e 147º-A, do Código de Registo Predial (C.R.P.) –Capítulo VII (-pelo que não “se passa” pelo artº. 145º). Daqui se retira desde logo a seguinte constatação: não havia lugar, salvo melhor opinião, ao cumprimento do artº. 131º-A que respeita à impugnação de um ato de retificação de um registo (cfr. o Capítulo II). Ou seja, não havia lugar à pronúncia por parte da Instituição Bancária, como faz notar a recorrente, embora e face ao facto de se ter realizado esta pretenda dai extrair consequências (-sobre o que mais à frente nos debruçaremos).
Em causa está tão só apurar se o documento apresentado pela recorrente para pedir o cancelamento da hipoteca sobre a fração B é o bastante para o efeito, ou seja, se comprova a extinção da hipoteca sobre a fração.
A hipoteca é um direito real de garantia das obrigações prevista no artº. 686º do C.C. que deve ser registada sob pena de não produzir efeitos -artºs. 687º do C.C. e 2º h) do C.R.P..
Em geral, só podem ser registados os factos constantes de documentos que legalmente os comprovem – artº 43º, nº 1, do C.R.P..
As causas de extinção de uma hipoteca constam do artº. 730º, do C.C. Na alínea d) prevê-se a renúncia do credor. O artº. 731º do C.C. prevê a forma da renúncia –deve ser expressa e escrita em documento que contenha a assinatura do renunciante reconhecida presencialmente, salvo se esta for feita na presença de funcionário da conservatória competente para o registo, não carecendo de aceitação do devedor ou do autor da hipoteca para produzir os seus efeitos. Em conformidade, dispõe o artº. 56º do C.R.P. que “1- O cancelamento do registo de hipoteca é feito com base em documento de que conste o consentimento do credor. 2 - O documento referido no número anterior deve conter a assinatura reconhecida presencialmente, salvo se esta for feita na presença de funcionário de serviço de registo no momento do pedido. 3 - O consentimento do credor para o cancelamento do registo de hipoteca pode ser prestado por via eletrónica, nos termos definidos por portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça.”
Os efeitos do registo extinguem-se por caducidade ou cancelamento (…) –artº. 10º do C.R.P..
O artº. 13º, do C.R.P., diz que os registos são cancelados com base na extinção dos direitos, ónus ou encargos neles definidos, em execução de decisão administrativa, nos casos previstos na lei, ou de decisão judicial transitada em julgado.
Assim sendo o cancelamento do registo de uma hipoteca pode ser realizado a pedido de interessado, com fundamento na existência de uma causa de extinção da garantia, no caso a renúncia do credor à hipoteca, o qual é feito por averbamento.
O distrate da hipoteca traduz portanto uma renúncia à hipoteca.
Apresentado um pedido de registo, o artº. 68º do C.R.P. consagra o princípio da legalidade, dispondo que “A viabilidade do pedido de registo deve ser apreciada em face das disposições legais aplicáveis, dos documentos apresentados e dos registos anteriores, verificando-se especialmente a identidade do prédio, a legitimidade dos interessados, a regularidade formal dos títulos e a validade dos atos neles contidos.”
No caso concreto a Srª Conservadora entendeu que o documento particular apresentado e emitido pela Entidade Bancária não demonstrava o facto que se pretendia registar, invocando por isso o disposto no artº. 69º, nº. 1, b), do C.R.P. para efeitos de recusa do registo, o qual diz que o registo deve ser recusado quando for manifesto que o facto não está titulado nos documentos apresentados.
O que está em causa é saber se tendo sido constituída hipoteca sobre um prédio, e posteriormente constituída a propriedade horizontal, o documento de renúncia à hipoteca referente ao prédio é idóneo ao pedido de cancelamento do registo da hipoteca sobre uma fração do prédio –a B-, e se é documento bastante no caso concreto.
Excluída está por isso toda a discussão em torno da indivisibilidade da hipoteca –artº. 696º do C.C.- já que tal questão não foi levantada pela Srª Conservadora e não se coloca de facto nos autos. Não se discute que (ou se) o credor hipotecário pode emitir distrates para cancelamento da hipoteca em relação a algumas das fracções.
É verdade que, processualmente bem ou mal (-já nos pronunciamos que entendemos que tal disposição não se aplicava) a Entidade bancária veio manifestar aos autos a sua posição no sentido de que pretendia liberar da hipoteca a fração B, e disponibilizando-se a emitir novo distrate se necessário se entender para o efeito.
A Srª Conservadora não estava na posse desta informação, e não tinha de a procurar, e por isso baseou-se apenas no documento que acompanhou o pedido de cancelamento. Analisada a questão com esses contornos cremos que o cumprimento das normas e a prudência aconselhavam a recusa do registo, como fez a Srª Conservadora.
Efetivamente o sustento do seu despacho tem pertinência, não se podendo argumentar que quem permite o mais permite o menos, como faz a recorrente, uma vez que não se trata de “mais” ou “menos” mas de uma realidade jurídica distinta: o prédio e o prédio constituído em propriedade horizontal com as frações que o compõem (prédio dividido em frações –artºs. 1414º e 1415º do C.C.) - que ganham autonomia jurídica passando a hipoteca a recair sobre cada uma e todas as frações.
Tendo o imóvel sobre o qual foi constituída a hipoteca sido constituído posteriormente em propriedade horizontal, a hipoteca converte-se “ex lege” em hipoteca sobre cada uma das frações em que o imóvel se dividiu. Cada uma dessas frações passa a constituir um bem autónomo passível de alienação e oneração independente. Assim, as vicissitudes da hipoteca passam a poder refletir-se sobre cada uma das frações também de forma autónoma. A divisão do prédio confere ao credor a possibilidade de atuar em relação a cada uma das frações individualmente, e emitir distrates específicos, o que não sucedia quando o prédio era ainda um só.
Do exposto já resulta a nossa posição face ao teor do documento apresentado para efeitos de registo do cancelamento da hipoteca sobre a fração B: o documento teria de especificar a fração, uma vez que a realidade jurídica a que se refere já não existe como tal –o prédio; nessa medida a declaração poderia configurar um ato jurídico nulo (artº. 280º, nº. 1, “ex vi” artº. 295º, ambos do C.C.), ao invés de autorizar o cancelamento da hipoteca sobre todas as frações.
Por outro lado, não se mostra possível uma outra interpretação da declaração já que se apresenta inequívoca, e não existe qualquer elemento coadjuvante para o efeito que permita designadamente a ilação que ao referir o prédio “atrás descrito”, ou seja, o prédio descrito sob o nº. ... (…) sobre o qual recaiu o registo da hipoteca, queria referir todas as frações do prédio, incluindo a B.
Dos artºs. 236º e 238º do C.C. resulta consagrada a doutrina da impressão do destinatário: releva o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do declaratário real e conhecendo as circunstâncias que este concretamente conhecia, atribuiria à declaração, agindo com capacidade e diligência médias.
O sentido assim apurado sofre, nos negócios formais, de uma limitação de índole objetiva: esse sentido não pode valer se não tiver um mínimo de correspondência no texto do documento.
Nos negócios formais, a letra do negócio constitui o primeiro elemento com que o interprete se confronta. Esse elemento literal, porém, não é mais do que a base ou ponto de partida da interpretação. Por mais claros ou unívocos que pareçam, os termos utilizados não dispensam essa tarefa de interpretação, por forma a confirmar ou contrariar essa aparência, considerando outros elementos ou circunstâncias atendíveis, como o comportamento das partes, anterior ou posterior ao negócio, as precedentes relações negociais entre as mesmas partes, o próprio tipo negocial e a finalidade prática prosseguida pelas partes -cfr. Menezes Cordeiro, “Tratado de Direito Civil Português”, I, Tomo I, 482 e segs; e Acórdãos do STJ de 25.10.2011, de 12.06.2012, de 05.07.2012, e de 22/09/2015, todos em www.dgsi.pt.
Na falta de outros elementos e a nada mais se podendo recorrer, e sendo certo que o distrate depende de circunstâncias várias e concretas nomeadamente contemporâneas da celebração da hipoteca, no caso concreto não se pode ir além do que resulta da literalidade e clareza do texto do documento.
É aqui que surge a nuance do caso particular: a posição veicula nos autos pela Entidade Bancária que emitiu a declaração. Porém cremos que não podemos para o efeito ter a mesma em consideração, embora possa parecer contraditório ouvir o interessado, este dar conta da sua intenção e por isso facultar a expressão da sua vontade ao redigir o documento, e depois ignorar essa fonte de interpretação. É que esta informação não estava ao dispor da Srª Conservadora, pelo que o seu despacho mantém fundamento -e é sobre a sua manutenção ou não que incide a decisão de 1ª instância e este recurso. E por outro lado, continua a subsistir a insuficiência ou a deficiência dos dizeres do documento de suporte ao distrate; daí que a Entidade Bancária se “ofereça” para emitir novo –e específico- documento.
Por tudo o exposto, entendemos ser de manter a decisão de 1ª instância que por sua vez confirma o despacho de recusa da Srª Conservadora emitido com base no artº. 69º, nº. 1, b), do C.R.P., julgando-se improcedente o recurso.
***
V DISPOSITIVO.

Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso improcedente e, em consequência, confirmando a douta decisão recorrida.
Custas do recurso pela recorrente (artº. 527º, nºs. 1 e 2, C.P.C.).
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Guimarães, 18 de março de 2021.
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Os Juízes Desembargadores

Relator: Lígia Paula Ferreira Sousa Santos Venade
1º Adjunto: Jorge dos Santos
2º Adjunto: Heitor Pereira Carvalho Gonçalves
(A presente peça processual tem assinaturas eletrónicas)