Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1856/12.0TJVNF-C.G1
Relator: ANTÓNIO BARROCA PENHA
Descritores: NULIDADE DA SENTENÇA
NULIDADE PROCESSUAL
NULIDADE DE ACTO NOTARIAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/05/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- Não enferma de nulidade por “excesso de pronúncia” a sentença que, para resolver questão posta pelas partes, se socorre de meios de prova de que não podia lançar mão.

II- A ausência de despacho sobre a admissibilidade de meios probatórios traduz-se numa “nulidade secundária” a ser arguida pelo interessado em momento próprio (arts. 195º, n.º 1 e 199º, n.º 1, do C. P. Civil), sob pena de se considerar sanada.

III- A sanação de nulidade por falta de assinatura em ato notarial (cfr. art. 70º, n.º 2, als. c), d) e e), do Código do Notariado) não possui qualquer limite temporal, disso devendo, pois, o tribunal tomar em consideração em sede de decisão final, uma vez respeitado o princípio do contraditório, com evidente prevalência dos princípios da justa composição do litígio e da verdade material, em contraposição com os vícios meramente formais, não coincidentes com aquela verdade real, e que entretanto foram sanados (cfr. arts. 5º, n.º 2, 413º, 415º, 607º, n.º 4 e 611º, todos do C. P. Civil).
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO

Manuel intentou a presente ação declarativa, com processo comum, contra X – Imobiliária, S.A. e José, peticionando que seja:

a) Declarado que os imóveis referidos no art. 5º da petição inicial nunca saíram da titularidade da falecida Maria e marido, o co-réu Manuel;
b) Ordenado o cancelamento do registo de propriedade sobre aqueles imóveis em favor da 1ª ré e quaisquer transmissários posteriores, por ilegitimidade substantiva da X para fazer a transmissão dos mesmos;
c) Declarado que os imóveis referidos devem integrar o acervo hereditário na sucessão aberta por óbito de Maria;
d) Condenado o 2º réu a fazer a entrega ao autor, enquanto herdeiro legitimário de Maria, e para integrar o acervo hereditário por óbito da mesma, dos imóveis referidos no art. 5º da petição inicial.

Regularmente citada, a ré X – Imobiliária SA. deduziu contestação, pedindo a correção do valor da ação e a procedência das exceções, tendo concluído pela improcedência da ação.

Entretanto, o autor foi declarado insolvente e a presente ação foi apensada aos autos de insolvência que constituem, agora, os autos principais deste apenso C, na sequência da prolação do despacho de fls. 132. Foi junta procuração por parte do administrador de insolvência para prosseguimento da presente ação pela massa insolvente do autor.

Realizou-se a audiência prévia, tendo-se concedido ao autor, ora massa insolvente, a possibilidade de se pronunciar quanto à matéria de exceção invocada na contestação.

Foi proferida decisão que fixou o valor da causa em € 127.193,46.

Determinou-se a notificação do autor para sanar a preterição do litisconsórcio ativo, fazendo intervir nos autos todos os herdeiros da herança aberta por óbito de sua mãe.

Foi deduzido incidente de intervenção de terceiros a fls. 170/171.

Admitiu-se o incidente e foi citado o outro herdeiro daquela herança, o qual manifestou nos autos a intenção de não aderir à posição do autor.

Procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento, que se iniciou a 17.03.2017.

Numa das suas interrupções, a ré “X” veio, por requerimento de fls. 342 e segs., datado de 01.09.2017, juntar três certidões notariais, que havia protestado juntar sob os arts. 46º e 47º da contestação que deduzira.

A autora foi ouvida, pugnando pela sua não admissão, por a sua apresentação ser extemporânea e injustificada (cfr. fls. 354 e 355).

A audiência de julgamento encerrou-se, com as alegações das partes, em 29.11.2017, sem que o tribunal a quo tivesse chegado a pronunciar-se expressamente sobre a admissão dos referidos documentos e/ou sobre o requerimento de não admissão dos documentos juntos suscitado pela autora e sem que esta igualmente tivesse arguido qualquer nulidade por tal omissão.

Na sequência, por sentença de 12 de Janeiro de 2018, veio a julgar-se totalmente improcedente a ação, com a consequente absolvição dos réus do pedido.

Desta decisão, veio a massa insolvente de Manuel interpor recurso de apelação, nele formulando as seguintes

CONCLUSÕES

1. A sentença recorrida evidencia ostensivo desacerto.
2. A sentença é nula e viola claramente os artigos 607° nº 5, 482° nº 1, 423°, 443°, 615° nº 1 d) todos do CPC e artigos 268°, 362°, 1296°, 1292° e 323° todos do CC .
3. Não tendo sido a assinatura aposta na procuração sido feita pelo próprio punho da falecida Maria, deverá a escritura pública de compra e venda datada de 30-04-2001, realizada no 2° Cartório Notarial de M. R., em Santo Tirso, junta ao livro de notas para escrituras diversas, n.º 152-F, fls. 9/11, de onde consta que Maria declarou vender à 1 a Ré, representada por A. S., os imóveis descritos em b), pelo valor global de vinte e cinco milhões e quinhentos mil escudos, que recebeu, SER DECLARADA INEFICAZ QUANTO Á FALECIDA Maria.
4. Na audiência de julgamento só podem ser admitidos os documentos relativamente aos quais: a parte que os apresente alegue, e prove se necessário (art. 342/1 do CC e ac. do TRL de 22110/2014. 681/13.5TTL8B.L 1-4, invocado pelo réu nas alegações de recurso, bem como os acs. do TRC de 24/03/2015. 4398/11.7T20VR-A.P1.C1, de 16/12/2015. 1395/08.3TBLRA¬B.C1), que não os pôde apresentar antes ou que a sua apresentação só se tornou necessária em virtude de ocorrência posterior.
5. Não tendo o apresentante alegado factos e circunstâncias que justificavam a apresentação tardia e não tendo o tribunal a quo sequer admitido os documentos em causa, não poderiam os mesmos ser atendidos na decisão final.
6. Veja-se nesse sentido Ac. do Tribunal da Relação do Porto, 96/14.8TTVFR-A. P1, datado de 15-02-2016.
7. Neste sentido é a douta sentença nula, nos termos e para os efeitos da alínea d), nº 1 do Art. 615º do CPC segunda parte.
8. Conforme prescreve o artigo 1296º do CC: "Não havendo registo do título nem de mera posse, a usucapião só pode dar-se no termo de quinze anos, e a posse for de boa fé, e de vinte anos, se for de má fé.
9. Tendo a Ré X a posse dos imóveis em causa por meio de escritura pública celebrada com procuração falsa, e tendo a escritura sido celebrada em 30-04-2001, e tendo sido a presente acção sido interposta em 02-10-2013, não estão decorridos os quinze anos, porquanto prazo da usucapião suspende-se nos termos do n.º 1 do artigo 323° do CC que se aplica ex vi artigo 1292° do CC.

Finaliza, pugnando pela revogação da sentença recorrida, proferindo-se nova decisão, suprindo as nulidades invocadas, decidindo que foram dadas como provadas todas as matérias de prova, julgando a presente ação totalmente procedente.
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Os réus X – Imobiliária, S.A. e José apresentaram contra-alegações, concluindo pela improcedência do recurso interposto, mantendo-se a decisão recorrida.
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Após os vistos legais, cumpre decidir.
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II. DO OBJETO DO RECURSO:

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (arts. 635º, n.º 4, 637º, n.º 2 e 639º, nºs 1 e 2, do C. P. Civil), não podendo o Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (art. 608º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do art. 663º, n.º 2, in fine, ambos do C. P. Civil).

No seguimento desta orientação, cumpre fixar o objeto do presente recurso.

Neste âmbito, as questões decidendas traduzem-se nas seguintes:

- Saber se sentença deverá ser considerada nula por excesso de pronúncia.
- Saber se os documentos juntos pela ré “X”, pelo requerimento de fls. 342 e segs., poderiam ser valorados na decisão final.
- Saber se cumpre proceder à alteração da factualidade dada como provada e não provada pelo tribunal a quo.
- Na sequência, saber se deverá ser realizada outra nova interpretação e aplicação do Direito à (nova) factualidade apurada, devendo ser alterada a decisão de mérito proferida, nos termos defendidos pela recorrente.
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III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

FACTOS PROVADOS

O tribunal de 1ª instância julgou provados os seguintes factos:

a. Manuel é filho de Maria, falecida em 07/05/2011, e de José, o 2º Réu.
b. Maria e o marido foram casados sob o regime de comunhão geral de bens, tendo feito parte do património conjugal os seguintes bens:

I. Prédio urbano composto de casa de habitação e quintal, sito no …, freguesia de …, concelho de Vila Nova de Famalicão, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ... e inscrito na matriz sob o antigo artigo 36, atual artigo 32, com o valor patrimonial de € 9546,00;
II. Prédio urbano composto de casa de habitação e quintal, sito no lugar …, freguesia de …, concelho de Vila Nova de Famalicão, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ... e inscrito na matriz sob o antigo artigo 33, atual artigo 31, com o valor patrimonial de € 11620,00;
III. Prédio rústico, com a área de 1220 m2, sito no lugar …, freguesia de …, concelho de Vila Nova de Famalicão, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º … e inscrito na matriz sob o antigo artigo …, atual artigo …, com o valor patrimonial de € 28,43.
c. Em 30/04/2001, foi celebrada escritura pública de compra e venda, no 2º Cartório Notarial de M. R., em Santo Tirso, junta ao livro de notas para escrituras diversas, n.º …, fls. 9/11, de onde consta que Maria declarou vender à 1ª Ré, representada por A. S., os imóveis descritos em b), pelo valor global de vinte e cinco milhões e quinhentos mil escudos, que recebeu.
d. A assinatura aposta na escritura de b) como sendo a do representante da 1ª Ré não é a daquele A. S..
e. A assinatura ali aposta foi a da representante de outra sociedade, “B. – Investimentos Imobiliários, Lda.”, que, no mesmo dia e local, e com o segundo R., José, outorgou a escritura, no mesmo Livro e Cartório, nas folhas imediatamente a seguir às daquela referida em c).
f. A escritura de b) foi retificada por instrumento de sanação celebrado pelo então Administrador único da sociedade Ré, A. S., no Cartório Notarial da Notária M. R.s, sito na cidade de Santo Tirso, e ali registado sob o n.º PA 1594/2013 e arquivado no competente maço de documentos; lavrado e arquivado aos 12/12/2013 no mesmo Cartório Notarial.
g. Desde a data da celebração da escritura de b) que a R., à vista de toda a gente, tomou posse dos respetivos prédios, integrou os mesmos no seu património imobiliário, pagou e paga impostos e taxas, arrendou os mesmos, deles colhendo frutos, recebendo rendas e tratando como sendo coisa própria, que efetivamente são.
h. A R., há mais de 15 anos, que vem exercendo a posse e o direito de propriedade sobre os descritos prédios, usufruindo em pleno dos mesmos, colhendo os respetivos frutos e pagando as suas respetivas contribuições e impostos, sempre à vista de toda a gente, nomeadamente vizinhos e arrendatários, sem oposição ou embaraço de quem quer que seja e na convicção de exercer direito próprio, sem prejudicar ninguém e em tudo se comportando como dona e por todos como tal sendo considerada, sendo que a posse sempre foi, como é, pacífica, pública e de boa-fé.
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FACTOS NÃO PROVADOS

Não resultou provado que:

a) Quem assumiu a declaração a prestar em nome da 1ª Ré não tenha sido o legal representante da 1ª Ré, nem que este não tivesse poderes de representação desta.
b) As assinaturas apostas na procuração outorgada por Maria, junta a fls. 348/348 verso, datada de 6 de fevereiro de 2001 e no termo de autenticação, não tivessem sido feitas pelo seu próprio punho.
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A) Da nulidade da sentença por excesso de pronúncia

A primeira questão que importa dirimir diz respeito à invocada nulidade da sentença recorrida, porquanto entende a recorrente que o Tribunal a quo não podia ter atendido aos documentos tardia e injustificadamente juntos pelos réus pelo requerimento de fls. 342 e segs., os quais sequer foram admitidos pelo próprio tribunal a quo.

Segundo o disposto no art. 615º, n.º 1 al. d) do CPC é nula a sentença quando “o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.

Esta previsão legal está em consonância com o comando do art. 608º, n.º 2 do C. P. Civil, em que se prescreve que “o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.”

Importa, no entanto, não confundir questões colocadas pelas partes, com os argumentos ou razões, que estas esgrimem em ordem à decisão dessas questões neste ou naquele sentido.

De facto, as questões submetidas à apreciação do tribunal identificam-se com os pedidos formulados, com a causa de pedir ou com as exceções deduzidas, desde que se apresentem, à luz das várias e plausíveis soluções de direito, como relevantes para a decisão do objeto do litígio e não se encontrem prejudicadas pela solução de mérito encontrada para o litígio.

Coisa diferente das questões a decidir são os argumentos, as razões jurídicas alegadas pelas partes em defesa dos seus pontos de vista, que não constituem “questões” no sentido pressuposto pelo citado art. 608.º, n.º 2 do C. P. Civil.

Neste sentido, colhendo a lição de J. Alberto dos Reis, refere este Ilustre Professor que este tipo de nulidade (por excesso de pronúncia ou pronúncia indevida) desenha-se da seguinte maneira: “[a] sentença conheceu de questão que nenhuma das partes submeteu a apreciação do juiz.
Mas não existe nulidade, se por lei o juiz tinha o poder ou o dever de conhecer ex officio da questão respectiva.(1)

Analisando um caso jurisprudencial, o mesmo Autor defende que não constitui a nulidade por pronúncia indevida o facto de a decisão se ter baseado em documento que não podia ter sido atendido (aludindo-se ao art. 367º, do C. P. Civil, entretanto revogado pelo D.L. n.º 180/96, de 25.09).

Para, em seguida, concluir que: “Quando o tribunal, para resolver questão posta pelas partes, se socorre de meios de prova de que não podia lançar mão (…); o que sucede em tal caso, é que a decisão assenta em fundamento ilegal. Quer dizer, o juiz decidiu mal a questão, mas podia e devia decidi-la.(2)

Partilhamos igualmente desta posição.

De facto uma coisa é o erro de julgamento ou “error in iudicando”, por a sentença se ter socorrido de elementos de que não podia socorrer-se; outra a nulidade de conhecer de questão de que o tribunal não podia tomar conhecimento.
Feitas estas considerações prévias, cremos que, in casu, o tribunal a quo cuidou de apreciar as questões que lhe competia conhecer, não ocorrendo pois qualquer vício (formal) na sentença recorrida, por pronúncia indevida.

Termos em que improcede, neste segmento, a apelação em presença.
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B) Da valoração do teor dos documentos juntos pela ré “X” pelo requerimento de fls. 342 e seguintes.

Como já descrevemos no Relatório, pelo requerimento de fls. 342 e segs., datado de 01.09.2017, a ré “X” veio juntar três certidões notariais, que já havia protestado juntar sob os arts. 46º e 47º da contestação que deduzira.
A autora foi ouvida, respeitando-se o princípio do contraditório, pugnando pela sua não admissão, por a sua apresentação ser extemporânea e injustificada (cfr. fls. 354 e 355).
Entretanto, a audiência de julgamento encerrou-se, com as alegações das partes, em 29.11.2017, sem que o tribunal a quo tivesse chegado a pronunciar-se expressamente sobre a admissão dos referidos documentos e/ou sobre o requerimento de não admissão dos documentos juntos suscitado pela autora e sem que esta tivesse arguido qualquer nulidade por tal omissão.

Ora, quanto às regras gerais sobre a nulidade dos atos, dispõe o art. 195º, n.º 1, do C. P. Civil, que: “fora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa”.

Neste caso, se a parte estiver presente, por si ou por mandatário, no momento em que tal nulidade for cometida, podem ser arguidas enquanto o ato não terminar, sendo que, se não estiver presente, o prazo para arguição conta-se do dia em que, depois de cometida a nulidade, a parte interveio em algum ato praticado no processo ou foi notificada para qualquer termo dele, mas neste último caso só quando deva presumir-se que então tomou conhecimento da nulidade ou quando dela pudesse conhecer, agindo com a devida diligência (cfr. art. 199º, n.º 1, do C. P. Civil).

Daqui decorre, desde logo, que este tipo de nulidade, também designada por “nulidade secundária”, tem de ser arguida pela parte através de reclamação (cfr. art. 196º, parte final do C. P. Civil), no momento em que ocorrer a nulidade, se a parte estiver presente, por si ou por mandatário.

Caso não esteja presente, o prazo geral de arguição de dez dias conta-se do dia em que, depois de cometida a nulidade, a parte interveio em algum ato praticado no processo ou foi notificada para qualquer termo dele, mas neste último caso só quando deva presumir-se que então tomou conhecimento da nulidade o quando dela pudesse conhecer, agindo com a devida diligência (cfr. arts. 199º, n.º 1 e 149º, n.º 1, do C. P. Civil).

Na verdade, mantém-se a atualidade e pertinência do brocardo segundo o qual “dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se”.

Conforme explicava Alberto dos Reis (3), “a arguição da nulidade só é admissível quando a infração processual não está ao abrigo de qualquer despacho judicial; se há um despacho a ordenar ou autorizar a prática ou a omissão do ato ou formalidade, o meio próprio para reagir, contra a ilegalidade que se tenha cometido, não é a arguição ou reclamação por nulidade, é a impugnação do respetivo despacho pela interposição do recurso competente.” (sublinhámos)

Assim, o que pode ser impugnado por via do recurso é a decisão que conhecer da reclamação por aquela nulidade – e não a nulidade ela mesma.

A perda do direito à impugnação por via da reclamação – caducidade, renúncia, etc. – importa, simultaneamente, a extinção do direito à impugnação através do recurso ordinário.
Isto só não será assim no tocante às nulidades cujo prazo de arguição só comece a correr depois da expedição do recurso para o tribunal ad quem e no tocante às nulidades – exceções – que sejam oficiosamente cognoscíveis.

Também Miguel Teixeira de Sousa (4) afirma que “ (…) quando a reclamação for admissível, não o pode ser o recurso ordinário, ou seja, esses meios de impugnação não podem ser concorrentes; – se a reclamação for admissível e a parte não impugnar a decisão através dela, em regra está precludida a possibilidade de recorrer dessa mesma decisão. Possível é, no entanto, a impugnação da decisão através de reclamação e, perante a sua rejeição pelo tribunal, a continuação da impugnação através de recurso ordinário”.
Ainda na doutrina, Abrantes Geraldes (5), entende que: “As nulidades que não se reconduzam a alguma das situações previstas no art. 615º, n.º 1, als. b) a e), estão sujeitas a um regime de arguição que é incompatível com a sua invocação apenas no recurso a interpor da decisão final. A impugnação que neste recurso eventualmente se possa enxertar deve restringir-se às decisões que tenham sido proferidas sobre arguições oportunamente deduzidas com base na omissão de certo ato, na prática de outro que a lei não admitia ou na prática irregular de ato que a lei previa”.

Assim, a decisão proferida sobre a arguição de nulidade é que é suscetível de recurso mas – ainda assim – com limitações: desde que contenda com os princípios matriciais da igualdade ou do contraditório, com a aquisição processual de factos ou com a admissibilidade de meios probatórios (cfr. art. 630º, n.º 2, do C. P. Civil).

Nesta medida, cabe ainda ao recorrente alegar que a nulidade relativa ocorrida – além de ser essencial por interferir no exame ou na decisão da causa – infringe pelo menos um dos referidos princípios ou contende com a admissibilidade de meios probatórios.
Dito de outra maneira, a sindicabilidade do despacho proferido sobre a arguição de uma “nulidade secundária” está condicionada à alegação da concreta violação de algum dos princípios ou regras enunciados no art. 630º, n.º 2 do C. P. Civil, sob cominação de indeferimento do requerimento de interposição de recurso por a decisão não admitir recurso (cfr. art. 641º, n.º 2, al. a), do C. P. Civil).

Daqui resulta que cabia à recorrente, no momento próprio (no nosso caso até ao encerramento da audiência de julgamento) arguir tal “nulidade secundária” (consubstanciada na admissão ou não dos referidos documentos) o que, porém, não fez, razão pela qual a mesma se sanou.

Não tendo, assim, arguido a nulidade apontada, não pode a recorrente vir agora erigi-la em fundamento específico de recurso de apelação.

Por último, cumpre voltar a sublinhar que os referidos documentos já haviam sido aludidos no âmbito da contestação apresentada pela sociedade ré, e traduzem-se em documentos autênticos, de especial relevância para a decisão da causa, sem que a sua falsidade tivesse sido arguida pela recorrente (cfr. arts. 371º, n.º 1 e 372º, do C. Civil).

Pelo exposto, improcede igualmente as conclusões de recurso apresentadas pela recorrente no que se referem à não valoração do teor dos referidos documentos por não ter sido justificada a sua apresentação tardia e por não terem sido expressamente admitidos pelo tribunal a quo.
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C) Da impugnação da decisão sobre a matéria de facto

A questão que importa dirimir refere-se à impugnação da decisão sobre a matéria de facto constante da decisão recorrida.

Ora, a possibilidade de reapreciação da prova produzida em 1ª instância, enquanto garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, está, como é consabido, subordinada à observância de determinados ónus que a lei adjetiva impõe ao recorrente.

Na verdade, a apontada garantia nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida na audiência final, impondo-se, por isso, ao recorrente, no respeito dos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade e boa-fé processuais, que proceda à delimitação com, toda a precisão, dos concretos pontos da decisão que pretende questionar, os meios de prova, disponibilizados pelo processo ou pelo registo ou gravação nele realizada, que imponham, sobre aqueles pontos, distinta decisão, e a decisão que, no ver do recorrente, deve ser encontrada para os pontos de facto objeto da impugnação.

Neste sentido, preceitua, sob a epígrafe «Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto», dispõe o n.º 1 do art. 640º do C. P. Civil, que “Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

Por seu turno, ainda, em conformidade com o n.º 2 do mesmo normativo, sempre que “ (…) os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.” (sublinhado nosso).

Deve, assim, o recorrente, sob cominação de rejeição do recurso, para além de delimitar com precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar, motivar ainda o seu recurso através da indicação das passagens da gravação que reproduzam os meios de prova que, no seu entendimento, determinam decisão diversa da que foi proferida sobre a matéria de facto.
Os aspetos fundamentais que o recorrente deve assegurar neste particular prendem-se com a definição clara do objeto da impugnação (clara enunciação dos pontos de facto em causa); com a seriedade da impugnação (meios de prova indicados ou meios de prova oralmente produzidos que são explicitados) e com a assunção clara do resultado pretendido (indicação da decisão da matéria de facto diversa da decisão recorrida).

Porém, importa que não se sobrevalorizem os requisitos formais a um ponto que seja violado o princípio da proporcionalidade e seja denegada a reapreciação da decisão da matéria de facto com a invocação de fundamentos que não encontram sustentação clara na letra ou no espírito do legislador.

Assim, como salienta Abrantes Geraldes (6), o Supremo Tribunal de Justiça “vem batalhando precisamente no sentido de evitar os efeitos de um excessivo formalismo que ainda marca alguns acórdãos das Relações, promovendo que o esforço que é aplicável na justificação de soluções que exponenciam aspectos de natureza meramente formal sem suficiente tradução na letra da lei, nem no espírito do sistema, seja canalizado para a efectiva apreciação das impugnações de matéria de facto”. (7)

Por outro lado, na fase da admissão formal do recurso de apelação em que é impugnada a decisão da matéria de facto, importa que se estabeleça uma clara separação entre os requisitos formais e os ligados ao mérito ou demérito da pretensão que será avaliado em momento posterior.
Deste modo, havendo “sérios motivos para a rejeição do recurso sobre a matéria de facto (maxime quando o recorrente se insurja genericamente contra a decisão, sem indicação dos pontos de facto, quando não indique de forma clara nem os pontos de facto impugnados, nem os meios de prova em que criticamente se baseia ou quando nem sequer tome posição clara sobre a resposta alternativa pretendida) tal efeito apenas se repercutirá nos segmentos afectados, não colidindo com a admissibilidade do recurso quanto aos demais aspectos. (8)

Tendo, assim, presente este enquadramento legal, cumpre decidir.

No caso em apreço, a massa insolvente recorrente vem pôr em causa a decisão tomada pelo tribunal a quo no que se refere a al. b) dos factos não provados.

A recorrente, porém, não chega a tomar qualquer posição clara sobre a resposta alternativa pretendida, ou seja qual a decisão da matéria de facto que deverá ser tomada pela Relação em sentido diverso da decisão recorrida.
Muito menos indica com exatidão as passagens da gravação do depoimento da referida testemunha L. P. em que se funda o seu recurso.

Por conseguinte, em primeira linha, por falta de cumprimento do ónus de impugnação especificada previsto no art. 640º, n.º 1, als. b) e c), do C. P. Civil, cumpre rejeitar o recurso de impugnação da decisão da matéria de facto, com a consequente manutenção da decisão de mérito recorrida.

No entanto, sempre se dirá que, ouvida a gravação do depoimento da referida testemunha L. P., consideramos que o tribunal a quo decidiu corretamente, valorando o seu depoimento, que igualmente se nos afigurou objetivo e isento, no sentido de comprovar a assinatura presencial da dita Maria nos referidos documentos (cfr. fls. 348 verso e 349).
Do mesmo modo, não vislumbra este tribunal ad quem em que medida é que o teor do documento n.º 8 junto pelo autor a fls. 35 a 38 verso (intitulado Exame da Escrita de Maria) possa pôr em causa a decisão tomada pelo tribunal a quo, quando é certo designadamente que os únicos documentos referidos como sendo assinados pelo punho da referida Maria (cfr. fls. 38 verso) contém a assinatura desta em tudo semelhante à constante da assinatura imputada à mesma assinante referida nos documentos de fls. 348 verso e 349; sendo certo que o tribunal a quo cuidou de analisar criticamente esta mesma “perícia”, que constitui documento n.º 8 junto pela autora, concluindo, de forma consistente e estruturada, que “ … não foi feita prova suficiente, que tinha que ser forte, da falsidade daquela assinatura.

Por outro lado, ainda, no que se refere à reapreciação da prova, em particular quando se trata de reapreciar a força probatória dos depoimentos/declarações prestados pelas partes ou por testemunhas ou, ainda, a reapreciação da prova documental e pericial, é de recordar que no nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da livre apreciação da prova (9), princípio que expressamente se consagra no art. 607º, n.º 5, do C. P. Civil. (10)
Nesta perspetiva, se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis, segundo as regras da lógica, da ciência ou da experiência, à partida, ela será inatacável, visto ser proferida em obediência à lei que impõe o julgamento segundo a livre convicção.
Todavia, face aos atuais poderes da Relação ao nível da reapreciação da decisão de facto, daí não decorre que não possa e não deva o tribunal ad quem analisar, também ele, criticamente, e sujeito às mesmas regras da experiência, da lógica e da ciência, a prova produzida, formando ele próprio, uma nova e autónoma convicção, caso em que, constatando, que ela não é coincidente com a convicção formada pelo Sr. Juiz de 1ª instância, deverá efetuar as correções na matéria de facto que aquela sua convicção lhe imponha.

Deste modo, quando o Tribunal da Relação é chamado a pronunciar-se sobre a reapreciação da prova, no caso de se mostrarem gravados os depoimentos ou estando em causa a análise de meios prova reduzidos a escrito e constantes do processo, deve o mesmo considerar os meios de prova indicados pela partes e confrontá-los com outros meios de prova que se mostrem acessíveis, a fim de verificar se foi cometido ou não erro de apreciação que deva ser corrigido, seja no sentido de decidir em sentido oposto ou, num plano intermédio, alterar a decisão no sentido restritivo ou explicativo. (11)

Importa, porém, não esquecer que se mantêm-se em vigor os princípios de imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, pelo que o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.

No caso em apreço, mesmo atendendo à prova testemunhal, documental e/ou pericial produzida, este tribunal ad quem não possui qualquer elemento idóneo que possa abalar a livre convicção do tribunal recorrido quanto aos fundamentos da decisão sobre a matéria de facto, que se mostra assim inalterável, face à prova produzida.

Deverá pois, soçobrar, também neste segmento, a pretensão da recorrente, mantendo-se totalmente inalterada a decisão sobre a matéria de facto fixada na sentença recorrida.
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D) Da nova fundamentação de direito (conhecimento prejudicado)

Dependendo o pedido de alteração do decidido na sentença proferida nos autos, por parte da recorrente, no que à interpretação e aplicação do Direito respeita, do prévio sucesso da impugnação da decisão sobre a matéria de facto ali consubstanciada, a qual, porém, se mantém inalterada, fica necessariamente prejudicado o seu conhecimento, o que aqui se declara, nos termos do art. 608º, n.º 2, aplicável ex vi do art. 663º, n.º 2, in fine, ambos do C. P. Civil.

De todo modo, sempre se dirá que a sentença recorrida cuidou de efetuar uma correta subsunção jurídica à factualidade dada como assente.

Desde logo, resulta evidente, face à factualidade apurada, que o réu José detinha poderes para representar a sua esposa Maria, na dita escritura pública de “compra e venda”, por procuração, válida e eficaz, por esta emitida conferindo àquele poderes de representação para o ato (cfr. docs. fls. 348 e 349).

De igual modo, está claramente comprovada a existência de declaração aquisitiva por parte do legal representante da ré “X”, aquando da celebração da dita escritura de “compra e venda” dos identificados imóveis (cfr. docs. de fls. 345 a 347 e 350); sendo ainda importante salientar que a sanação de nulidade por falta de assinatura em ato notarial (cfr. art. 70º, n.º 2, als. c), d) e e), do Código do Notariado) não possui qualquer limite temporal, disso devendo, pois, o tribunal tomar em consideração em sede de decisão final, uma vez respeitado o princípio do contraditório, com evidente prevalência dos princípios da justa composição do litígio e da verdade material, em contraposição com os vícios meramente formais, não coincidentes com aquela verdade real, e que entretanto foram sanados (cfr. arts. 5º, n.º 2, 413º, 415º, 607º, n.º 4 e 611º, todos do C. P. Civil).

No que se refere à aquisição pela ré “X” do direito de propriedade sobre os identificados imóveis, por usucapião, a sua apreciação torna-se desnecessária, porque prejudicada.

Termos em que, improcede, na sua totalidade, a apelação em presença.
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V- DECISÃO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar totalmente improcedente o recurso de apelação apresentado pela autora, confirmando-se, pois, a sentença recorrida.

Custas pela apelante (art. 527º, n.º 1, do C. P. Civil).
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Guimarães, 05.04.2018

António José Saúde Barroca Penha
Eugénia Marinho da Cunha
José Manuel Alves Flores



1. Código de Processo Civil Anotado, Volume V, 3ª edição, Coimbra Editora, pág. 143-144.
2. Ob. cit., pág. 144.
3. Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. 2º, Coimbra Editora, 1945, pág. 507.
4. Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, pág. 372.
5. Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 4ª edição, pág. 206.
6. Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 4ª Edição, pág. 164.
7. Cfr. ainda diversos Acs. do STJ, aludidos na ob. citada, págs. 161 a 165.
8. Abrantes Geraldes, ob. citada, págs. 165-166.
9. Segundo Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. IV, pág. 569, prova livre “quer dizer prova apreciada pelo julgador segundo a sua experiência e a sua prudência, sem subordinação a regras ou critérios formais pré-estabelecidos, isto é, ditados pela lei.”
10. O princípio da livre apreciação dos meios probatórios resulta, ainda, em sede de direito probatório material, no que se refere à prova por declarações de parte (não confessórias), à prova testemunhal, à prova por inspeção e à prova pericial, do estipulado nos arts. 361º, 389º, 391º e 396º, todos do C. Civil.
11. Vide, neste sentido, por todos, Acs. do STJ de 03.11.2009, proc. n.º 3931/03.2TVPRT.S1, relator Moreira Alves; e Ac. do STJ de 01.07.2010, proc. n.º 4740/04.7TBVFX-A.L1.S1, relator Bettencourt de Faria, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.