Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2162/19.4T8BRG.G1
Relator: ANA CRISTINA DUARTE
Descritores: DESERÇÃO DA INSTÂNCIA
DEVER DE GESTÃO PROCESSUAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/22/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1 - A deserção da instância não opera por mero decurso do período de seis meses de inércia processual das partes.
2 - É necessário despacho expresso do juiz a conhecer e declarar a deserção, a qual depende da verificação cumulativa dos seguintes pressupostos:
a) Omissão de impulso processual há mais de seis meses (elemento objetivo);
b) Negligência da parte a quem cabia esse impulso (elemento subjetivo).
3 - De harmonia com o disposto no artigo 6º do CPC, recai sobre o juiz o dever de gestão processual, nos seus aspetos técnicos e de estrutura interna, concedendo-lhe a lei poderes tendentes a assegurar a regularidade da instância e o normal andamento do processo.
4 – Na citação, ocorrendo dificuldades, a intervenção do juiz impõe-se por este se encontrar em melhores condições para apurar as causas da demora, detetar responsabilidades ou determinar novas diligências que levem à concretização da mesma.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

AA  deduziu ação declarativa contra BB e outros 28 réus e, ainda, contra CC (cabeça de casal), pedindo que se declare a autora legítima e exclusiva dona e proprietária do prédio descrito na petição inicial e que os réus sejam condenados a reconhecer e respeitar o direito de propriedade da autora e a absterem-se da prática de qualquer ato que colida ou afete esse direito e a repor a situação que anteriormente existia, legitimando-se o recurso à força policial.
Foi tentada a citação dos réus, o que foi conseguido, numa primeira fase, relativamente a 25 deles, tendo sido oferecidas várias contestações.
Posteriormente foram citados mais dois réus através de agente de execução e obteve-se informação de que a ré cabeça de casal havia falecido.
Em ../../2020 foi declarada suspensa a instância por falecimento da ré CC até à notificação da decisão que considere habilitados os sucessores da ré falecida.
A autora desistiu da instância relativamente à ré falecida., o que foi homologado por despacho de ../../2020.
Notificadas as partes para se pronunciarem sobre o valor atribuído à causa pela autora – € 6.405,02 – veio esta e alguns dos réus dizer que consideravam o mesmo correto.
Apesar disso, foi proferido despacho que fixou o valor da causa em € 59.710,00 e determinou a remessa dos autos para o Juízo Central Cível ..., por o Juízo Local Cível passar a ser incompetente em razão do valor.
A autora, alegando inexatidão devido a lapso de tal despacho, requereu que se mantivesse o valor atribuído à causa primitivamente, o que foi indeferido.
Vários contestantes procederam ao pagamento do complemento da taxa de justiça, em função do novo valor da ação, tendo, posteriormente, sido requerido por parte deles, a restituição da taxa de justiça paga em excesso, por se verificar uma situação de litisconsórcio passivo que determina o pagamento de apenas uma taxa de justiça e não uma por cada um dos réus contestantes, não tendo tais requerimentos sido objeto de qualquer despacho.
Também dois réus vieram informar que a autora teria vendido a sua fração, o que conduziria à sua ilegitimidade, pedindo que a mesma fosse notificada para informar e documentar a veracidade de tal alegação, o que também não foi objeto de qualquer despacho.
A autora veio requerer a retificação/aperfeiçoamento da redação do pedido formulado na petição inicial, de forma a que ficasse claro que apenas está em causa o lugar de garagem sua propriedade, parcela ...3, e não o apartamento de que é proprietária no mesmo prédio, o que, também, ficou sem despacho.
Foi requerida, pelos seus herdeiros (viúva e filhos) a habilitação de herdeiros do réu DD, falecido na pendência da causa.
A 21/06/2021 foi proferido despacho a determinar a suspensão da instância até à habilitação dos respetivos sucessores, ordenando-se a citação dos requeridos para contestarem a habilitação.
Foi efetuada a citação dos requeridos e notificados os restantes intervenientes já citados para a causa.
Verificou-se que a carta para notificação do réu EE veio devolvida por não reclamada.
Nessa sequência, por despacho de 28/09/2021, verificou-se que não tinha sido citado, nem sequer para a causa, o réu EE, pelo que se ordenou a notificação da autora e requerentes da habilitação para que requeressem o que tivessem por conveniente.
A autora solicitou que a agente de execução realizasse a citação, o que foi deferido, por despacho de 13/10/2021.
Face à informação da agente de execução, com certidão negativa e notificada a autora, veio esta dizer que, tendo a agente de execução identificado a residência efetiva do mesmo, devia terminar a diligência e proceder à sua citação o que foi deferido por despacho de 03/11/2021.
A agente de execução não procedeu à citação, o que originou novo requerimento da autora, datado de 31/01/2022, em que insiste com o requerimento anterior, pretendendo que “a agente de execução termine a diligência iniciada – o que já foi deferido – não se pretendendo uma nova diligência, que conduz ao pagamento de novo emolumento” (que havia sido solicitado pela AE).
Foi então proferido despacho, datado de 24/03/2022, que, considerando que “a citação em falta obedeceu às formalidades do artigo 232.º do CPC”, determinou que os autos aguardassem o impulso processual da autora, sem prejuízo do disposto no artigo 281.º, n.º 1 do CPC.
A autora, em 04/04/2022, insistiu pelo cumprimento dos seus requerimentos anteriores, mas caso se entendesse que era necessário uma nova diligência, então, requereu que fosse admitida a indicação de AE pela autora, o que foi deferido em 28/04/2022, tendo a autora indicado nova AE em 10/05/2022, AE essa que foi nomeada por despacho de 16/05/2022.
Em 30/11/2022 a nova AE informou o tribunal das suas tentativas frustradas para citação do réu e esclareceu que iria continuar a tentar, informação que reiterou em 29/12/2022. Em 10/01/2023 informou que não tinha conseguido proceder à citação por o réu já não viver na morada indicada, informação que lhe foi prestada pelo novo proprietário da mesma.
Em 14/02/2023 foi proferido o seguinte despacho: “Aguardem os autos que o autor requeira o que tiver por conveniente no que toca à citação do réu EE, sem prejuízo do decurso do prazo a que alude o artigo 281.º, n.º 1 do CPC”, despacho este que foi notificado a todas as partes.

Em 18/09/2023 foi proferida a seguinte decisão:

“Considera-se deserta a instância, independentemente de qualquer decisão judicial, quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de 6 meses – art. 281.º, n.º 1, do CPC.
Ora, considerando que estes autos se mostram a aguardar impulso processual do A. há mais de 6 meses, tendo o A. sido expressamente advertido por despacho de 14.2.2023, que os autos aguardavam o seu impulso, sem prejuízo do artº 281º nº 1 do CPC, julgo a presente instância extinta, por deserção nos termos do art. 277.º, al c), do mesmo diploma.
Fixo o valor da ação em 59.710,00€.
Custas pela A.”
A 22/09/2023 a autora veio requerer a habilitação do novo proprietário da fração vendida pelo réu que não foi possível citar.
A 25/09/2023 a Sra. Juíza exarou nos autos que nada mais havia a ordenar, atento o despacho de deserção proferido a 18/09/2023.

A autora interpôs recurso da decisão que julgou deserta a instância, tendo finalizado a sua alegação com as seguintes
Conclusões:

I. Vem o presente recurso ser interposto da sentença proferido pelo Digno Tribunal a quo, que “Considera-se deserta a instância, independentemente de qualquer decisão judicial, quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de 6 meses – art. 281.º, n.º 1, do CPC. Ora, considerando que estes autos se mostram a aguardar impulso processual do A. há mais de 6 meses, tendo o A. sido expressamente advertido por despacho de 14.2.2023, que os autos aguardavam o seu impulso, sem prejuízo do artº 281º nº 1 do CPC, julgo a presente instância extinta, por deserção nos termos do art. 277.º, al c), do mesmo diploma. Fixo o valor da ação em 59.710,00 €. Custas pela A.”
II. Salvo melhor opinião, errou o Tribunal conquanto não se pronunciou sobre questões que se deveria ter apreciado, verificando-se nulidade por omissão de pronúncia nos termos do art.º 615.º, n.º 1, alínea d)
III. Errando, adicionalmente, na aplicação dos art.º 281.º, n.º 1 e 277.º, alínea c) do C.P.C..
IV. Diversos RR, apresentaram em 2021 requerimentos que visam, expressamente o reconhecimento de existência de litisconsórcio passivo – requerendo o reconhecimento que só é devida uma única taxa de justiça pela totalidade dos RR e consequente devolução dos montantes liquidados em excesso.
V. Adicionalmente, a A., em 28/05/2021, por requerimento ref.ª CITIUS ...07, requereu a rectificação/esclarecimento seu pedido nos termos do art.º 249.º do Código Civil, cuja decisão condicionaria a fixação do valor da acção.
VI. Ora, atendendo a que o Tribunal “a quo”, na sentença ora em crise, proferiu decisão considerando que as custas são devidas pela A., impunha-se a resposta a todos os requerimentos supra identificados.
VII. Não obstante terem sido submetidos em 2021, certo é que o Tribunal não se pronunciou sobre os mesmos em momento algum, inclusiva e expressamente na sentença proferida.
VIII. Pelo supra exposto, requer-se o reconhecimento da nulidade da sentença proferida por omissão de pronúncia nos termos da alínea d) do n.º 1 do art.º 615 do Código de Processo Civil.
IX. Como supra transcrito, o Tribunal “a quo” considerou deserta a instância, nos termos do art.º 277.º, al c) do C.C. na medida em que estes autos se mostram a aguardar impulso processual do A. há mais de 6 meses, tendo o A. sido expressamente advertido por despacho de 14.2.2023, que os autos aguardavam o seu impulso, sem prejuízo do art.º 281.º n.º 1 do CPC.
X. Efectivamente, o despacho singelo datado de 14-02-2023, verte:
“Aguardem os autos que o autor requeira o que tiver por conveniente no que toca à citação do réu EE, sem prejuízo do decurso do prazo a que alude o art.º 281, nº 1 do CPC”
XI. Considerando o supra exposto, as partes no ido ano de 2021 apresentaram inúmeros requerimentos aos autos – supra descritos e que aqui se dão por reproduzidos para os devidos e legais efeitos.
XII. Requerimentos, esses, sobre os quais o Tribunal “a quo” não se debruçou.
XIII. As partes deram impulso processual em 2021;
XIV. Em especial a A., que requereu a rectificação/esclarecimento do seu pedido, nos termos do art.º 249.º do Código Civil - em nada contendendo com a citação dos quaisquer RR., pelo contrário, a decisão sobre o requerido obstaria à prática de actos inúteis e dilatórios após citações.
XV. Não se verificando qualquer negligência das partes;
XVI. Não se mostrando preenchidos quaisquer dos pressupostos da deserção estatuídos no art.º 281.º do C.P.C.!
XVII. Pelo que se requer seja dada sem efeito a sentença proferida e prossigam os autos os seus termos, designadamente com despacho sobre tudo quanto requerido pelas partes.
Sem prescindir,
XVIII.    Entendemos que a decisão ora em crise, proferida pelo Tribunal “a quo”, se afigura contrária ao Direito e jurisprudência assente e inquestionável.
XIX. Atente-se o douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, em 06-03-2018, in www.dgsi.pt, que sumaria:
“(...)
IV - Temos para nós, na esteira do entendimento consagrado nos Acs. R.L. de 09.09.2014 (Pº 211/09.3TBLNH-J.L1-7) e R.G. de 02.02.2015 (Pº 4178/12.1TBGDM.P1), que o tribunal, antes de exarar o despacho a julgar extinta a instância por deserção, deverá, num juízo prudencial, ouvir as partes de forma a melhor avaliar se a falta de impulso processual é imputável ao comportamento negligente de alguma delas, ou de ambas.” (sublinhado e negrito nosso)
XX. No mesmo sentido, Ac. do TRL de 26-02-2015 (2254/10.5TBABF.L1-2) e Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, processo n.º 666/14.4TBALQ.L1-7 de 31.05.2016
XXI. Estes doutos Acórdãos defendem, sabiamente, na N/ opinião, que é o próprio Princípio da Cooperação e do cumprimento do contraditório, reforçado no C.P.C. vigente - (artºs 3º, nº 3 e 7º, nº 1, do n.C.P.C.) -, que justifica que as partes sejam alertadas para as consequências gravosas que possam advir da sua inércia em impulsionar o processo, decorrido que seja o prazo fixado na lei.
XXII. O Tribunal “a quo”, antes de proferir a sentença ora em crise, e na concretização do dever de cooperação e do cumprimento do contraditório, deveria ter dado às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre essa matéria (artºs 3.º, n.º 3 e 7.º, n.º 1, do n.C.P.C.).
XXIII. Adicionalmente, lançando mão Ac. do TRP de 02-02-2015 (4178/12.2TBGDM.P1), in www.dgsi,.pt: “[N]a atual lei adjetiva a deserção da instância não é automática pelo simples decurso do prazo, como acontecia na lei anterior, pois que, para além da falta de impulso processual há mais de seis meses é também necessário que essa falta se fique a dever à negligência das partes em promover o seu andamento”
XXIV. A doutrina, pelas mãos do Dr. Paulo Ramos de Faria, “O julgamento da deserção da instância declarativa”, in www.julgar.pt converge no mesmo sentido dos acórdãos supra citados.
“Mesmo nos casos que aparentam ser mais evidentes, não representa qualquer esforço relevante para o juiz esclarecer os restantes sujeitos processuais sobre o estado dos autos, despachando no sentido de os informar que: a)o processo aguarda o impulso do demandante; b)a inércia deste determinará a extinção da instância (em data que indicar, ou decorridos seis meses sobre a data que indicar);c)não haverá novo convite à prática do ato, sendo declarada deserta a instância, logo que decorrer o prazo apontado (art.281.º,n.º1); d) qualquer circunstância que impeça o autor de praticar o ato deverá ser imediatamente comunicada ao tribunal. A advertência deve surgir logo que o juiz constate que os autos carecem do impulso da parte. Esta notificação deve ser dirigida a todas as partes, pois, ainda que não tenham o ónus de impulsionar os autos, podem elas ter o direito de o fazer. Tome-se o caso do processo especial de divisão de coisa comum, no qual será de admitir que o demandado promova os termos do processo–juntando uma certidão em falta, por exemplo–, evitando a deserção da instância.”
XXV. A Decisão ora em crise, foi proferida pelo Tribunal “a quo” sem que o Tribunal ouvisse, previamente, as partes e sem que previamente a Autora, aqui Recorrente, tivesse sido advertidos por parte daquele Colendo tribunal quanto ao decurso do prazo de deserção.
XXVI. Decorre da norma contida no n.º 1 do art. 6.º do C.P.C., que o Juiz deve gerir o processo – desde logo, promovendo o seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da acção – em colaboração com as partes (art.º 7.º C.P.C.) – o que, com o respeito devido, no caso concreto não se verificou - Tendo a Decisão ora em crise violado aqueles preceitos legais;
XXVII. sempre, com o devido respeito, que muito é, impunha-se, que o Tribunal “a quo”, ao abrigo do princípio da cooperação e dever de gestão processual, antes de proferir a decisão que conduzisse à deserção ouvisse previamente as partes – e no caso concreto, todas as partes -, e, bem assim que as alertasse das consequências gravosas do facto de nenhuma das partes requerer a promoção do incidente da habilitação - O que, reitere-se, no caso concreto não se verificou.
XXVIII. E devia o tribunal a quo, antes de proferir a decisão, ouvir as partes e igualmente adverti-las quanto ao decurso do prazo de deserção, fixando-lhes prazo para darem andamento aos autos - Cfr. neste sentido, a título exemplificativo, os seguintes Acórdãos, todos consultáveis em www.dgsi.pt; nomeadamente, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26-02-2015 (2254/10.5TBABF.L1-2), Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 09-07-2015, 886/06.5TBMFR.L1-2; Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 02-02-2015, RP201502024178/12.2TBGDM.P1; Acórdão da Relação de Lisboa de 9/9/2014; Acórdão da Relação de Coimbra de 07/01/2015 (Proc. nº 368/12.6TBVIS.C1), etc.
XXIX.   Pelo que precede, e fazendo apelo, designadamente, nos termos do disposto nos artigos 6º e 7º do C.P.C, e ao abrigo nomeadamente dos princípios da segurança jurídica, tutela da confiança, da cooperação da adequação formal, da intervenção oficiosa, da gestão processual, da economia processual justificar-se-ia, que o Tribunal “a quo”, previamente, à Decisão, notificasse as partes para, no prazo supletivo – de, pelo menos, 10 dias -, se pronunciarem sobre o interesse no prosseguimento dos autos, sob pena de se considerar deserta.
XXX. Pelo que se requer a revogação da Decisão que declarou extinta a instância por deserção, devendo ser substituída por outra que faça prosseguir o processo, sendo as partes notificadas para promoverem o andamento dos autos ou requererem o que tiverem por conveniente – com a expressa cominação - sob pena de a instância ser julgada extinta por deserção.
XXXI. A sentença proferida pelo Tribunal “a quo” violou assim, o disposto nos art.º 3.º, 6.º, 7.º, 281.º, n.º 1 e 277.º, alínea c), 615.º, n.º 1, alínea d), todos do C.P.C.
XXXII. TERMOS EM QUE, e no mais que V. Exa. Doutamente suprirá, deve a sentença ora em crise proferido pelo Tribunal “a quo” ser revogada, nos termos melhor supra expostos.
Mas V/ Excias. farão, como sempre, JUSTIÇA

Não foram oferecidas contra-alegações.
O recurso foi admitido como de apelação, com subida nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.

A questão a resolver traduz-se em saber se estão reunidos os pressupostos da deserção da instância.

II. FUNDAMENTAÇÃO

Os factos com interesse para a decisão são os que constam do relatório supra.

Vejamos.
A deserção da instância é uma das causas de extinção da instância - artigo 277º, al. c), do CPC.
O artigo 281º, nº 1, do CPC postula que se «considera deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses». Nos termos do nº 4 do dito preceito, «a deserção é julgada no tribunal onde se verifique a falta, por simples despacho do juiz ou do relator».
Segundo Miguel Teixeira de Sousa - CPC online, versão de 10/2023, em anotação ao artigo 281º do CPC, «a inatividade divide-se em dois sub-requisitos: (i) a falta de impulso processual da parte onerada com esse mesmo impulso; (ii) a negligência dessa parte. Isto significa que a deserção da instância pressupõe um elemento objetivo (falta de impulso do processo pela parte) e um elemento subjetivo (negligência da parte na falta do impulso do processo)».
Ou seja, a deserção da instância não opera por mero decurso do período de seis meses de inércia processual das partes. É necessário despacho expresso do juiz a conhecer e declarar a deserção, a qual depende da verificação cumulativa dos seguintes pressupostos:
a) Omissão de impulso processual há mais de seis meses (elemento objetivo);
b) Negligência da parte a quem cabia esse impulso (elemento subjetivo).
Além de verificar o decurso do prazo de seis meses de paragem do processo, o tribunal tem de avaliar a negligência da parte. “Sendo a paragem do processo durante um período superior a seis meses uma mera constatação objetiva, o aspeto essencial reside na qualificação da conduta omissiva da parte como negligente” – cfr. Acórdão deste Tribunal da Relação de Guimarães de 11/01/2024, processo n.º 1707/21.4T8VCT-A.G1 (Joaquim Boavida), in www.dgsi.pt.
Tal como vem salientado nas alegações da apelante, importa fazer notar que, de harmonia com o disposto no artigo 6º do CPC, recai sobre o juiz o dever de gestão processual, nos seus aspetos técnicos e de estrutura interna, concedendo-lhe a lei poderes tendentes a assegurar a regularidade da instância e o normal andamento do processo. Só no caso de «ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes» é que cabe a estas promover o prosseguimento subsequente da instância.
Deve dizer-se que o desenvolvimento processual destes autos não foi o mais correto, sobretudo porque, em devido tempo, não se apercebeu o tribunal de que um dos réus não havia sido citado e, ultrapassando a fase de citação dos réus e contra o entendimento de todos os sujeitos processuais, foi tomada a decisão de alterar o valor da causa e, assim, remeter o processo para outro tribunal (um Juízo Central em vez de um Juízo Local).
Ora, não só, aí, não se deu resposta aos sucessivos requerimentos dos réus, relativos à devolução de taxas de justiça pagas, como não se deu resposta aos requerimentos dos mesmos réus que, pretendendo apurar da legitimidade da autora, pretendiam que esta fosse notificada para vir dizer se ainda era proprietária da fração em discussão nos autos, como, mais importante, ainda, não foi proferido despacho sobre a pretensão da autora de ver retificado/aperfeiçoado a redação do seu pedido formulado na petição inicial.
Julgamos que, sem pronúncia sobre este requerimento, a ação não poderia ter seguido os seus termos, pois, no deferimento do mesmo, haveria que notificar todos os réus da alteração introduzida na petição inicial.
Ora, verifica-se que o tribunal apenas se apercebeu da falta de citação de um dos réus aquando da introdução em juízo de um requerimento de habilitação de herdeiros de um réu falecido, requerimento esse formulado por pessoas terceiras (viúva e filhos do falecido), motivo pelo qual, no despacho subsequente, ordena que a autora e os requerentes da habilitação sejam notificados para requererem o que tiverem por conveniente.
Ou seja, o ónus do impulso processual fica a pertencer à autora mas também aos requerentes da habilitação de herdeiros, que não poderia prosseguir sem aquela citação.
A autora tudo fez para que o tribunal conseguisse levar a cabo a citação faltosa – requerendo por duas vezes a citação pela AE e quando esta se recusou, por falta de complemento de pagamento de honorários, solicitando a nomeação de outra AE, o que tudo foi deferido pelo tribunal.
Quando a AE informa o tribunal que o réu já não reside na morada indicada e que não conseguiu apurar a nova morada deste, salvo o devido respeito, o tribunal deveria ter diligenciado pelo cumprimento do disposto no artigo 236.º, n.º 1 do CPC, uma vez que não foi possível a realização da citação por o citando estar ausente em parte incerta.
Sabendo-se, como se sabe, que a citação é por vezes um dos “pontos negros” da tramitação processual – ainda mais num processo como este com 30 réus – impõe-se a intervenção do juiz “por ser de supor que este se encontra em melhores condições para apurar as causas da demora, detetar responsabilidades ou determinar novas diligências que levem à concretização da citação” – Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís de Sousa, CPC Anotado, vol. I, pág. 260.
No caso dos autos, como vimos, o juiz não providenciou pelo andamento do processo, quando tal lhe foi requerido pelas partes e onerou a autora com o impulso subsequente, quando a lei ainda reservava ao tribunal o ónus de tentar a realização da citação, conforme já supra referimos.
Acresce que o despacho proferido a 14/02/2023, a partir do qual se contaram os 6 meses para a deserção da instância, apenas se refere à autora, e não, também, aos terceiros requerentes da habilitação de herdeiros, que tinham a mesma obrigação relativa à citação do réu.
Aliás, veja-se que a 21/06/2021, havia sido declarada a suspensão da instância até que estivessem habilitados os sucessores do réu DD, entretanto falecido, e que tal suspensão nunca foi levantada, porque nunca chegou a ser proferida a sentença de habilitação de herdeiros.
Nem se pode falar aqui de inércia das partes, nem de omissão da diligência normal em face das circunstâncias do caso concreto, face ao comportamento da autora que já descrevemos. Veja-se que, desde o momento em que foi proferido o despacho de suspensão da instância, foram proferidos, a requerimento da autora, inúmeros despachos, até ao momento em que o tribunal considerou que teria que ser a autora a dar impulso aos autos, sem prejuízo do decurso do prazo do artigo 281.º, n.º 1 do CPC.
Ora, não só tal impulso estava adstrito à autora e aos requerentes da habilitação de herdeiros, como, salvo o devido respeito, cabia ao tribunal desenvolver as diligências previstas no artigo 236.º do CPC em ordem a tentar localizar o réu.
Não tendo sido esse o entendimento do tribunal, mas considerando todos os requerimentos anteriores que ficaram sem resposta – e cujo conhecimento era indispensável antes da extinção da instância, designadamente os que se prendiam com a devolução das taxas de justiça e com a legitimidade da autora, já para não falar do requerimento da autora de retificação do pedido constante da petição inicial, com clara repercussão na fixação do valor da causa e com a necessidade que o mesmo impunha de ser dado conhecimento aos réus – e considerando, ainda, que não foi dada aos terceiros requerentes da habilitação de herdeiros, a mesma oportunidade que foi dada à autora para diligenciar pela citação do réu, entendemos que o tribunal, antes de exarar o despacho a julgar extinta a instância por deserção, deveria, num juízo prudencial, ouvir as partes de forma a melhor avaliar se a falta de impulso processual poderia ser imputável ao comportamento negligente de alguma delas.
E não desconhecemos o entendimento atual prevalente no STJ, de que “a aferição da negligência da parte, enquanto pressuposto da deserção da instância, deve ser feita em face dos elementos que constam do processo, pelo que inexiste fundamento para a respetiva decisão ser precedida de audiência prévia das partes” (ac. do STJ de 05/07/2018, proc. 5314/05.0TVLSB.L1.S2, a que adere o ac. do STJ de 18/09/2018, proc. 2096/14.9T8LOU-D.P1.S1; no mesmo sentido, o ac. do STJ de 08/03/2018, proc. 225/15.4T8VNG.P1-A.S1 – cfr. Ac. Relação de Lisboa de 10/01/2019, processo n.º 385/09.3TBVPV-A.L1-2), sendo certo que são exatamente os elementos constantes dos autos, neste caso, num juízo prudencial, como já se disse, que aconselhavam a ouvir as partes.
Tal se justifica, também, pelo princípio da cooperação e cumprimento do contraditório – artigos 3.º, n.º 3 e 7.º, n.º 1 do CPC – devendo dar-se às partes a oportunidade de se pronunciarem, num processo que contava já com perto de cinco anos, e em que tantos requerimentos ficaram sem despacho, tendo o processo evoluído sem que se desse conta da falta de citação de um dos réus. Não se compagina com tais princípios que, no momento em que tal se verifica, o tribunal imponha à autora um ónus de impulso processual, conducente à deserção da instância.
Na ação declarativa, a decisão judicial tem que apreciar e aquilatar a conduta da parte, já que a deserção é condicionada pela negligência da parte em promover os termos do processo, questão, esta, naturalmente, sujeita ao contraditório, nos termos do disposto no artigo 3º, n.º 3 do CPC, devendo a decisão judicial ser precedida da averiguação do motivo/causa da falta do impulso processual, designadamente, se este se ficou a dever a negligência da parte – cfr. neste sentido, entre vários outros, Acórdão desta Relação de Guimarães de 18/12/2017, processo n.º 3401/12.8TBGMR.G2 (José Cravo), in www.dgsi.pt.
Finalmente, diga-se que o ónus das partes, de impulsionar o processo, só existe quando estiver especialmente previsto na lei e, quando assim não seja, é ao juiz que cumpre dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, resolvendo, de acordo com as normas de direito processual e substantivo aplicáveis, as situações que se forem deparando – neste sentido, Acórdão desta Relação de Guimarães de 14/09/2023, processo n.º 120/16.0T8MGD.G2 2 (José Carlos Duarte), in www.dgsi.pt.
Procede, assim, a apelação, sendo de revogar a decisão recorrida e determinando-se que o processo siga os seus regulares termos.

III. DECISÃO

Em face do exposto, decide-se julgar procedente a apelação, revogando-se a decisão recorrida e determinando-se que o processo siga os seus regulares termos.
Sem custas.
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Guimarães, 22 de fevereiro de 2024

Ana Cristina Duarte
Afonso Cabral de Andrade
Carla Oliveira