Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2398/23.3T8BRG.G1
Relator: JOAQUIM BOAVIDA
Descritores: REVELIA
ABUSO DO DIREITO
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1 – Não tendo o réu contestado e devendo considerar-se confessados os factos articulados pelo autor na petição inicial, restará apenas decidir a causa conforme for de direito, depois de cumprida a fase das alegações escritas, destinadas à valoração jurídica desses factos.
2 – São irrelevantes para decidir a causa os factos alegados pelo réu nas alegações escritas produzidas ao abrigo do disposto no artigo 567º, nº 2, do CPC, uma vez que estas são apenas sobre a matéria de direito, que é a única vertente ainda em aberto, pois a matéria de facto está assente.
3 – Como o decurso do prazo da contestação faz precludir o direito a contestar, qualquer facto já ocorrido e conhecido pelo réu, que possa alicerçar uma exceção, tem de ser invocado na contestação. Depois da contestação só podem ser deduzidas as exceções, incidentes e meios de defesa que sejam supervenientes, ou que a lei expressamente admita passado esse momento, ou de que se deva conhecer oficiosamente.
4 – Não tendo sido alegada a exceção perentória de pagamento até ao termo do prazo para contestar e não sendo os factos em que se alicerça supervenientes, ficou precludido o direito de a invocar.
5 – Tendo-se considerado confessados os factos alegados na petição inicial por a revelia ser operante, tanto o abuso do direito como o incidente de litigância de má-fé deduzido pelo réu nas alegações escritas, devem ser apreciados com base em tal quadro factual.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I – Relatório

1.1. AA intentou ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra EMP01..., Lda., pedindo a condenação da Ré no «pagamento à Autora da quantia de 18.900,00€ (dezoito mil e novecentos euros), acrescidos de juros de mora desde o vencimento de cada uma das remunerações até efetivo e integral pagamento.»
Para o efeito, alegou que foi nomeada gerente da Ré em 29.07.2019 e que por deliberação de 16.09.2019 foi-lhe fixada renumeração de gerência no valor mensal de € 700,00 a partir de 20.09.2019, cargo que desempenhou até ../../2022, data em que renunciou à gerência.
Mais alegou que a Ré apenas pagou à Autora duas remunerações mensais decorrentes do exercício do cargo de gerente, uma no dia 31.10.2020, no valor de € 1.089,00, e outra no dia 31.01.2022, no valor de € 705,00, encontrando-se em dívida os seguintes valores:
▪ Vencimentos que deveria auferir em 2019 – de setembro a dezembro – 4 meses (4 x €700,00 = €2.800,00);
▪ Vencimentos que deveria auferir em 2020 – janeiro a dezembro, foi pago o mês de outubro, encontram-se por liquidar 11 meses (11 x €700,00 = €7.700,00);
▪ Vencimentos que deveria auferir em 2021 – janeiro a dezembro, encontram-se por liquidar 12 meses (12 x €700,00 = €8.400,00).
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1.2. Por despacho proferido a 04.07.2023, o Tribunal recorrido considerou a Ré «regularmente citada» e que «não deduziu qualquer oposição no prazo legal», pelo que «julgo[u] confessados os factos constantes da petição inicial nos termos do artigo 567º, 1 do CPC» e determinou a notificação «nos termos e para os efeitos do artigo 567º, 2 do CPC.».
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1.3. Em 12.07.2023 a Ré juntou aos autos procuração forense e em 20.07.2023 apresentou requerimento no qual terminou do seguinte modo:
«Termos em que deve ser considerada nula a citação da Ré, nos termos do artigo 188.º, n.º 1, al. e) do Código de Processo Civil e, em consequência, dado sem efeito o despacho de 04.07.2023, referência ...02, com as devidas consequência legais.»
Ainda nesse dia 20.07.2023, a Ré apresentou articulado de contestação.
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1.4. Por despacho de 25.09.2023 considerou-se que a citação foi validamente realizada e decidiu-se «julg[ar] não verificada a nulidade apontada», após o que se pronunciou sobre a «tempestividade da contestação» nos seguintes termos:
«Do que se vem de expor, não existindo qualquer nulidade da citação, há que concluir que a contestação apresentada é extemporânea.
Com efeito, a ré foi citada em 26/04/2023.
O prazo para contestar é de 30 dias (art. 569º do NCPC).
O prazo para apresentação da contestação findou no dia 26/05/2023.
O ato podia ainda ser praticado, mediante o pagamento de multa, nos dias 29, 30 e 31 de Maio de 2023 (art. 139º, n.º 5 do NCPC).
A contestação foi apresentada apena em 20/07/2023.
Pelo exposto, uma vez que a contestação apresentada pela ré é extemporânea, determino o seu desentranhamento e devolução à parte.
Nessa medida, mantém-se o despacho que julgou confessados os factos articulados pela autora, proferido em 04/07/2023.
Tendo a autora apresentado as suas alegações, determino seja cumprido o disposto no art. 567º, n.º 2 do NCPC quanto à ré, a qual deverá também ser notificada do despacho de 04/07/2023
Este despacho foi notificado às partes por comunicação eletrónica elaborada a 25.09.2023 (documento com a referência ...16 relativamente à Ré).
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1.5. Através do requerimento com a referência ...41, em 09.10.2023, a Ré veio «nos termos do n.º 2 do artigo 567.º do Código de Processo Civil apresentar as suas ALEGAÇÕES» e juntar seis documentos, concluindo:
«NESTES TERMOS, e nos demais de Direito que V. Exa. doutamente suprirá:
a) Deve a exceção de abuso do direito invocada nos termos supra ser julgada totalmente procedente, por provada e, em consequência, ser a R. absolvida do pedido formulado pela A.;
b) Caso assim não se entenda, deve a presente ação ser julgada totalmente improcedente, por não provada e, em consequência, deve a R. ser absolvida do pedido formulado pela A.;
(Em qualquer caso)
c) Deve a A. ser condenada como litigante de má-fé, em multa adequada e no pagamento de indemnização à R., de valor correspondente às despesas por esta suportadas em virtude dessa má-fé, designadamente os honorários de seus mandatários que esta teve e terá de suportar em virtude dessa má-fé e que, não sendo de momento definitivos, não serão inferiores a € 3.500,00 (três mil e quinhentos euros), serão posteriormente liquidados até ao final da ação.»
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1.6. Em 06.12.2023 foi proferida sentença, cujo dispositivo tem o seguinte teor:
«Atento tudo o exposto e nos termos das disposições legais supra citadas, julgo procedente por provada a presente ação e, em consequência condeno a ré a pagar à autora a quantia de 18.900,00€ (dezoito mil e novecentos euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados desde o vencimento de cada uma das remunerações até ao seu efetivo e integral pagamento.»
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1.7. Inconformada, a Ré interpôs recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:
«A. O presente recurso tem por objeto a sentença proferida pelo Tribunal a quo em 6.12.2023, com a referência eletrónica ...94 (“Decisão Recorrida”).
B. O recurso tem ainda por objeto o despacho proferido pelo Tribunal a quo, em 25.09.2023, com a referência eletrónica ...34 (adiante “Despacho Recorrido”), nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 3 do artigo 644.º do CPC.
C. As matérias a decidir no presente recurso são as seguintes:
a) Se o Despacho Recorrida, que indeferiu a nulidade da citação arguida pela Recorrente deve ser revogado;
b) Se – não obstante o desentranhamento da contestação apresentada pela Recorrente – tendo o Tribunal a quo sido confrontado com a prova documental ali junta que demonstrava, s.m.o, que todo o pedido e causa de pedir assenta em factos falsos alegados pela Recorrida e que esta pretendeu tirar vantagens da inverdade em processo, e face à gravidade do comportamento da Recorrida, o Tribunal a quo deveria considerar na Decisão Recorrida, ex officio, e ao abrigo do princípio do inquisitório, os factos que resultantes desses documentos;
c) Se o Tribunal a quo apreciou corretamente à factualidade controvertida – atenta a prova documental junta pela Recorrente com o requerimento de 9.10.2023 para prova do pedido de condenação da Recorrida como litigante de má-fé (documentos que, reitera-se, não foram desentranhados nem impugnados pela Recorrida e que demonstram a absoluta falta de fundamento da sua pretensão) – ao considerar que a Recorrida não abusou do direito (não absolvendo a Recorrente do pedido) nem litigou de má-fé (não condenando a Recorrida), julgando “procedente, por provada a presente ação” e, em consequência, conden[ando] a ré a pagar à autora a quantia de 18.900,00€”.
D. A Recorrente considera ainda que, face aos meios de prova apresentados com as suas alegações escritas para efeitos de condenação da Recorrida como litigante de má-fé, o facto dado como provado n.º 9 da Decisão Recorrida deve ser dado “não provado”.
E. Considera ainda a Recorrente que, face aos referidos meios de prova, i.e., aos Documentos n.ºs ... a ... juntos com as alegações escritas, deveriam ter sido dados como provados os factos não considerados elencados supra no ponto 19.
F. Sendo de concluir, atenta essa mesma prova, que a Recorrente procedeu ao oportuno e integral pagamento de todos os vencimentos auferidos pela Recorrida, nada lhe sendo devido.
G. Ao considerar a falta de citação imputável à Recorrente, o Tribunal a quo violou o disposto na alínea e) do n.º 1 do artigo 188.º do CPC.
H. Resultando, s.m.o., demonstrado que a falta de citação de Recorrente se deveu a motivos que não lhe são imputáveis, deverá o Tribunal ad quem determinar a revogação do Despacho Recorrido e a sua substituição por outro que considere verificada a nulidade arguida e, bem assim, declare nulo todo o processado, nos termos da alínea a) do artigo 187.º do CPC.
I. Ainda que assim não se considerasse, atenta a prova documental (que demonstrava a falsidade dos factos que sustentavam o pedido e causa de pedir invocados pela Recorrida) junta pela Recorrente com a sua contestação, e sem prejuízo desta ser ou não desentranhada, o Tribunal a quo deveria ter pugnado pela boa descoberta da verdade material e conhecer tais factos, independentemente da revelia da Recorrente.
J. Ao não proceder nos termos descritos, o Tribunal a quo privilegiou a forma sobre a substância e, salvo o devido respeito, a mentira sobre a descoberta da verdade material e da justa composição do litígio e, bem assim, violou o princípio do inquisitório, infringindo o disposto no artigo 411.º do CPC.
K. Acresce que a concreta apreciação da factualidade controvertida pelo Tribunal a quo se afigura, salvo o devido respeito, desajustada porquanto a Recorrida pautou toda a sua atuação na lide em manifestamente abuso do direito, conforme invocado pela Recorrente (o que, ainda que não tivesse sido alegado, sempre seria de conhecimento oficioso).
L. Resultando dos documentos juntos pela Recorrente com as suas alegações escritas para prova do pedido de condenação da Recorrida como litigante de má-fé que esta mentiu na sua petição inicial, invocando factos falsos, em nítida inobservância dos deveres de boa-fé e em claro abuso do direito, ao não considerar verificada a exceção de abuso do direito (e não absolver a Recorrente do pedido), o Tribunal a quo violou os deveres de averiguação para descoberta da verdade material, da justa composição do litígio e da prossecução da justiça, infringindo o disposto no artigo 334.º do Código Civil.
M. Porém, ainda que assim não se entendesse, atenta a factualidade descrita e a prova documental junta pela Recorrente aos autos, o Tribunal a quo sempre deveria ter absolvido a Recorrente do pedido
N. Em qualquer caso, e sem prejuízo do exposto, afigura-se-nos, s.m.o., que ao absolver a Recorrida do pedido de condenação como litigante de má-fé, o Tribunal a quo procedeu à errada aplicação do direito.
O. A Recorrente fez prova de que a Recorrida invocou factos notoriamente falsos, que bem sabia não corresponderem à realidade e, atenta a natureza pessoal de todos os factos em causa, é inequívoco que esta agiu com dolo, como resulta dos documentos juntos pela Recorrente como Docs. n.ºs ... a ... com as suas alegações escritas.
P. A Recorrida foi devidamente notificada da junção desses documentos, quer aquando da contestação da Recorrente, quer posteriormente com as alegações escritas, sendo que, em nenhum momento, se pronunciou sobre os mesmos e/ou sobre os factos que lhe foram expressamente imputados e que consubstanciam a sua litigância de má-fé.
Q. Perante o quadro factual descrito, o Tribunal a quo deveria ter condenado a Recorrida em multa adequada à gravidade da sua má-fé e no pagamento de uma indemnização à Recorrente em virtude dos danos patrimoniais sofridos, nos termos oportunamente peticionados,
R. Ao absolver a Recorrida desse pedido, o Tribunal a quo infringiu o disposto nas alíneas a), b) e d) do n.º 2 do artigo 542.º do CPC.
NESTES TERMOS, e nos demais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve o recurso ser julgado procedente, determinando-se, em consequência, a revogação da Decisão Recorrida e a sua substituição por outra que:
a) Julgue procedente a nulidade da citação da Recorrente, com as legais consequências;
Subsidiariamente,
b) Proceda à alteração da decisão sobre a matéria de facto no sentido descrito em III., a.;
c) Julgue procedente a exceção de abuso do direito e, em consequência, determine a absolvição da Recorrente do pedido; ou, quando assim não se entenda,
d) Absolva a Recorrente do pedido.
Em qualquer caso,
e) Condene a Recorrida como litigante de má-fé, em multa adequada e no pagamento de indemnização à Recorrente, de valor correspondente às despesas por esta suportadas em virtude dessa má-fé, designadamente os honorários de seus mandatários que esta teve de suportar e que, não sendo de momento definitivos, se protestam liquidar, em montante não inferior a € 5.000,00 (cinco mil euros).»
*
A Autora não apresentou contra-alegações.
O recurso foi admitido.
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1.8. Questões a decidir

Atentas as conclusões do recurso, as quais delimitam o seu objeto (artigos 608º, nº 2, 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do CPC), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, suscitam-se as seguintes questões:
i) Nulidade da citação da Ré (conclusões G e H);
ii) Repercussões processuais da falta de contestação;
iii) Revelia inoperante e erro no julgamento da matéria de facto;
iv) Extinção da obrigação de pagamento da remuneração de gerência à Autora;
v) Abuso do direito;
vi) Litigância de má-fé.
***
II – Fundamentos

2.1. Fundamentação de facto
2.1.1. Na decisão recorrida julgaram-se provados os seguintes factos:

«A Autora é técnica especializada em terapia da fala, titular da cédula profissional C-...73, dedicando-se à atividade de prestação de serviços relacionados com a prevenção de perturbações de comunicação humana, decorrentes de várias patologias relacionadas com a linguagem, deglutição, mastigação, fala, voz e fluência.
A Ré é uma sociedade comercial por quotas, tendo por escopo lucrativo o apoio a crianças portadoras de deficiência nomeadamente através da intervenção clínica e especializada em psicologia, terapia da fala, ocupacional e outras terapias.
A sociedade Ré, foi constituída em 29 de julho de 2019, com o capital social de 5.000,00€ (cinco mil euros) distribuído pelas seguintes quotas:
▪ Uma quota no valor nominal de 2.500,00€ (dois mil e quinhentos euros) pertencente a BB;
▪ Uma quota de valor nominal de 1.250,00€ (mil duzentos e cinquenta euros), pertencente à Autora AA;
▪ Uma quota no valor nominal de 1.250,00€ (mil duzentos e cinquenta euros) pertencente a CC.
Nesse mesmo ato foi designada a gerência da sociedade, tendo sido nomeados como gerentes os sócios BB, CC e a Autora AA, obrigando-se a sociedade com a intervenção de dois gerentes, sendo obrigatória a assinatura do gerente BB.
Em 16 de setembro de 2019 foi realizada Assembleia Geral Extraordinária da Sociedade Ré, estando presentes ao ato os sócios BB, CC e a autora AA.
A Assembleia Geral Extraordinária teve como ponto único da ordem de trabalhos a discussão sobre a renumeração da gerência, tendo o sócio BB proposto “Que a sócia gerente AA, passe a auferir vencimento no valor de setecentos euros a partir de 20-09-2019”
Essa deliberação foi aprovada por unanimidade, conforme doc. ..., - Ata número ... de dois mil e dezanove, que se junta para os devidos efeitos legais.
A partir de 20-09-2019, a Autora passaria a auferir a título de remuneração pelo cargo de gerente o valor de 700,00€ (setecentos euros) mensais.
A Ré apenas pagou à Autora dois vencimentos, um no dia 31-10-2020, no valor de 1.089,00€ (mil e oitenta e nove euros) e outro no dia 31-01-2022, no valor de 705,00€ (setecentos e cinco euros).
Em 24 de outubro de 2020, a sócia CC renunciou ao cargo de gerente que exercia, bem como procedeu à divisão e cessão da quota que detinha, no valor de 1.250,00€ da seguinte forma:
▪ Transmitiu uma quota de 500,00€ (quinhentos euros) a BB;
▪ Transmitiu uma quota de 750,00€ (setecentos e cinquenta euros) à Autora AA.
A Autora desempenhou o cargo de gerente desde a data de constituição da sociedade até ../../2022.»
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2.2. Do objeto do recurso
2.2.1. Falta/nulidade da citação

Alega a Recorrente que «[a]o considerar a falta de citação imputável à Recorrente, o Tribunal a quo violou o disposto na alínea e) do n.º 1 do artigo 188.º do CPC» (conclusão G). Por isso, entende que se deve «declarar nulo todo o processado» (H).
Sucede que esta concreta questão foi suscitada pela Ré no requerimento que apresentou em 12.07.2023 e mostra-se decidida no despacho proferido pelo Tribunal recorrido em 25.09.2023: considerou-se então que a citação foi validamente realizada e decidiu-se julgar não verificada a nulidade arguida pela Ré.
Esse despacho não foi impugnado pela Ré no prazo de que dispunha para o efeito.
Por isso, em conformidade com o disposto no artigo 620º, nº 1, do CPC, tal despacho tem força obrigatória dentro do processo. Adquiriu o valor de caso julgado.
Essa decisão, por transitada em julgada, não pode ser impugnada perante o tribunal de recurso: as partes e o Tribunal estão vinculados à decisão proferida no processo e este, enquanto tribunal ad quem, está impedido de se pronunciar sobre a questão decidida, que assim se mostra definitivamente adquirida no processo.
Termos em que improcedem as conclusões formuladas sobre esta questão.
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2.2.2. Assente que a Ré foi devidamente citada, verifica-se que não apresentou contestação no prazo de 30 dias a contar da citação (art. 569º, nº 1, do CPC). A citação ocorreu em 26.04.2023 e o aludido prazo para apresentação da contestação findou no dia 26.05.2023.
A Ré só apresentou a contestação em 20.07.2023 e o Tribunal recorrido, no despacho de 25.09.2023, considerou-a extemporânea e determinou o seu desentranhamento do processo.
Esse despacho não foi por qualquer forma impugnado, pelo que transitou em julgado, com a consequência já referida em 2.2.1.
Note-se que no despacho de 25.09.2023 também se decidiu manter «o despacho que julgou confessados os factos articulados pela autora, proferido em 04/07/2023.»

Importa agora determinar as repercussões da falta de contestação da ação, isto é, os efeitos que produz.
O réu, mais do que o direito, tem o ónus de contestar a ação, na medida em que a revelia, quando operante, produz efeitos que lhe são desfavoráveis.
Com efeito, segundo o artigo 567º, nº 1, do CPC, «se o réu não contestar, tendo sido ou devendo considerar-se citado na sua própria pessoa ou tendo juntado procuração a mandatário judicial no prazo da contestação, consideram-se confessados os factos articulados pelo autor».
O apontado comportamento omissivo do réu provoca, assim, a denominada confissão tácita, ficta (ficta confessio) ou presumida, a qual fica adquirida definitivamente no processo, isto é, com eficácia juris et de jure. Significa isto que o réu não pode vir posteriormente negar os factos relativamente aos quais se manteve em total silêncio ou inércia.
O silêncio do réu sobre a realidade dos factos articulados pelo autor tem um especial efeito probatório: tais factos consideram-se confessados e, como tal, provados naquele concreto processo.
Havendo uma confissão ficta resultante de uma revelia operante, o processo passa a ter uma tramitação específica: «se a revelia for operante, salta-se imediatamente para a fase da sentença (art. 567º, nº 2, CPC). Disto só pode resultar que a revelia operante do réu não pode deixar de considerar adquirido para o processo tudo o que o autor tenha alegado e seja relevante, como facto jurídico, para o preenchimento de uma previsão legal.»[1]
Por conseguinte, não tendo o réu contestado e considerando-se confessados os factos alegados pelo autor, restará apenas decidir a causa «conforme for de direito» (art. 567º, nº 2, in fine, do CPC), depois de cumprida a fase das alegações escritas, «que não incidirá sobre a matéria de facto»[2]. Dito de outro modo, confessados que passam a ter-se os factos articulados na petição, deixa de haver controvérsia nessa sede, limitando-se a questão à valoração jurídica desses mesmos factos, mas tal julgamento tanto pode conduzir à procedência da ação como não. Em consequência da revelia operante, apenas se assume como verificado nos autos o quadro fatual alegado na petição inicial e não o seu enquadramento jurídico.
No entanto, o aludido efeito da revelia não se produz quando se verificar alguma das exceções previstas no artigo 568º do CPC. Como primeira exceção (al. a)), prevê-se que o réu não contestante beneficia da contestação apresentada pelo seu corréu, relativamente aos factos que o contestante impugnar. A segunda exceção (al. b)) verifica-se quando o réu ou um dos réus seja incapaz, situando-se a causa no âmbito da incapacidade, ou tenha sido citado editalmente e permaneça na situação de revelia absoluta. Preenche-se a previsão da terceira exceção (al. c)) quando a pretensão do autor respeita a situações jurídicas ou interesses indisponíveis. Finalmente, a quarta exceção (al. d) e 574º, nº 2, do CPC) verifica-se quando se trata de factos para cuja prova se exija documento escrito e isso pode resultar de uma estipulação legal (art. 364º do CCiv) ou do acordo das partes (art. 223º do CCiv), tanto no que respeita à forma como para a prova de um facto jurídico.

No caso dos autos, não se verifica qualquer das exceções previstas no artigo 568º do CPC. Por isso, a revelia é operante: os factos alegados pela Autora na petição inicial consideram-se confessados, como bem decidiu o Tribunal a quo.
Por isso, são irrelevantes os factos alegados pela Ré nas alegações escritas (art. 567º, nº 2, 1ª parte, do CPC) que produziu em 09.10.2023, bem como, não sendo supervenientes (art. 588º, nº 2, do CPC), os documentos que com aquelas apresentou. Os factos não foram alegados nem os documentos foram juntos nos 30 dias subsequentes à citação (cfr. artigo 569º do CPC).
As alegações escritas são apenas sobre a matéria de direito, que é a «única vertente ainda em aberto, pois a matéria de facto está assente»[3].
Nesta conformidade, os factos da causa são os articulados na petição inicial e que foram objeto de confissão por parte da Ré.
Como foram esses os factos que o Tribunal recorrido considerou na sentença e estes têm eficácia juris et de jure – a prova resultante da confissão ficta tem tratamento de uma presunção inilidível –, é inviável a impugnação da matéria de facto produzida na apelação, em que a Recorrente entende que existem «factos “provados” que devem ser dados como não provados» e que há «factos não considerados que devem ser dados como provados». Ao contrário da equivocada alegação da Recorrente (conclusão K), não existia, como não existe agora, «factualidade controvertida», pois toda a factualidade alegada na petição inicial está assente. E, como referem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre[4], não pode «o réu vir posteriormente negar os factos sobre os quais se manteve silencioso». Caso estivessem em causa factos supervenientes, sempre podia apresentar articulado superveniente (art. 588º, nº 2, do CPC), destinado a alegar tais factos supervenientes, entendidos como «tanto os factos ocorridos posteriormente aos termos dos prazos marcados nos artigos precedentes como os factos anteriores de que a parte só tenha conhecimento de findarem esses prazos», situação que manifestamente não é a dos autos. 
A impugnação da decisão recorrida, na parte respeitante à matéria de facto, carece manifestamente de fundamento e contraria os preceitos atrás citados e a interpretação pacífica que deles é feita, quanto aos efeitos da revelia operante. Por isso, não há que proceder à reapreciação da matéria de facto provada e das alegadas provas oferecidas pela Ré depois de operada a confissão de factos que a admitiam, sem que se verifique qualquer uma das exceções previstas no artigo 568º do CPC.
Trata-se de questão uniformemente decidida na jurisprudência. Neste sentido, refere-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.01.2021 (Pinto de Almeida), proferido no processo 930/18.3T8BJA.E1.S1[5], que «considerados confessados os factos articulados na petição inicial numa situação de revelia operante, deixa de haver controvérsia sobre esses factos, havendo tão só de proceder à sua valoração jurídica». Aí se explicita que, «conforme dispõe o art. 567º, nºs 1 e 2, do CPC, em caso de revelia operante, consideram-se confessados os factos articulados pelo autor e, após alegações escritas, o juiz decide julgando a causa conforme for de direito. Trata-se aqui de uma confissão tácita ou ficta, a qual, apesar de se distinguir da confissão judicial expressa, não deixa de ter o efeito previsto na referida norma: a prova resultante desta confissão "fica definitivamente adquirida no processo", tendo o "tratamento de uma presunção inilidível" (Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, 3ª ed., 534). Assim, confessados os factos articulados na petição inicial, "deixa de haver controvérsia" sobre os mesmos, havendo tão só de proceder à sua valoração jurídica (Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 630).»
Mais, como se refere no acórdão da Relação de Évora de 30.06.2021 (Francisco Xavier), proferido no processo 2856/18.1T8PTM.E1, «a revelia operante, não arreda o réu da lide, o qual, nos termos do n.º 2, do artigo 567º do Código de Processo Civil, pode apresentar alegações escritas, que se destinam a permitir que a parte, face à circunstância de se registar assente a matéria de facto invocada pelo A., possa apresentar a sua argumentação de direito, ou melhor, expor a sua posição quanto ao direito que poderá ser aplicado quanto àquela factualidade. O que não pode é a parte revel transmutar as alegações de direito na contestação que não apresentou.»
Sendo assim, a Ré não pode pretender incorporar no processo factos novos que não curou de alegar no momento apropriado, que era a contestação, a apresentar no prazo de 30 dias a contar da citação, eximindo-se aos inerentes efeitos preclusivos. Sendo a revelia operante e não se verificando qualquer uma das exceções previstas no artigo 568º do CPC, o quadro factual alegado na petição inicial mostra-se adquirido para o processo. Tendo sido esses factos sedimentados no processo que o Tribunal a quo considerou na sentença, não se verifica qualquer erro no julgamento da matéria de facto.

Termos em que improcedem as conclusões formuladas sobre estas questões.
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2.2.3. Nas conclusões F e M das suas alegações, a Recorrente sustenta que «procedeu ao oportuno e integral pagamento de todos os vencimentos auferidos pela Recorrida, nada lhe sendo devido» e que «o Tribunal a quo sempre deveria ter absolvido a Recorrente do pedido».

Este fundamento do recurso é manifestamente improcedente.
Primeiro, o alegado pela Recorrente não tem qualquer suporte na matéria de facto adquirida nos autos. O que resulta dos factos provados é a falta de pagamento dos valores das remunerações pelo exercício do cargo de gerente reclamados pela Autora.
Segundo, nos termos do artigo 571º, nº 1, do CPC, na contestação cabe tanto a defesa por impugnação como por exceção.
O pagamento é uma exceção perentória extintiva do direito invocado pelo autor e determina a improcedência total ou parcial do pedido (v. arts. 571º, nº 2, e 576º, nº 3, do CPC e 762º, nº 1, do CCiv), competindo o ónus da sua prova àquele contra quem a invocação é feita (art. 342º, nº 2, do CCiv).
Em conformidade com o disposto no artigo 572º, al. c), do CPC, os factos essenciais em que se alicerçam as exceções deduzidas devem ser expostos na contestação.
No processo civil vigora o princípio da concentração da defesa: toda a defesa deve ser deduzida na contestação, excetuados os incidentes que a lei mande deduzir em separado – art. 573º, nº 1, do CPC. Significa isto que o réu deve incluir na contestação a defesa direta (impugnação) e a defesa indireta (exceções dilatórias e perentórias), não as podendo reservar para um momento posterior. Depois da contestação só podem ser deduzidas as exceções, incidentes e meios de defesa que sejam supervenientes, ou que a lei expressamente admita passado esse momento, ou de que se deva conhecer oficiosamente.
Face ao seu caráter perentório, o decurso do prazo da contestação faz precludir o direito a contestar (art. 139º, nº 3, do CPC). Por isso, qualquer facto já ocorrido e conhecido pelo réu, que possa alicerçar uma exceção, como é o caso do pagamento, tem de ser invocado na contestação. Não sendo invocados até ao termo do prazo para contestar, «todos os meios de defesa não invocados nesse momento ficam prejudicados, não podendo voltar mais tarde a ser alegados»[6]. Apenas podem ser alegados depois do términus do prazo para contestar os factos supervenientes que sirvam de base a qualquer exceção dilatória ou perentória.
Por isso, no caso vertente, não tendo sido alegada a exceção perentória de pagamento até ao termo do prazo para contestar e não sendo os factos em que se alicerça supervenientes, ficou precludido o direito de a invocar. Nem a Ré a pode invocar nem o tribunal pode conhecer da mesma e dar-lhe qualquer relevância.

Pelo exposto, improcedem as conclusões formuladas sobre esta questão.
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2.2.4. Abuso do direito

Nos termos do artigo 334º do Código Civil, é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
A referência aos bons costumes constitui uma cláusula geral de direito privado que remete para princípios morais sociais que devem regular o comportamento das pessoas.
Para Manuel de Andrade[7] o abuso do direito verifica-se quando os direitos são «exercidos em termos clamorosamente ofensivos da justiça» e nas «hipóteses em que a invocação e aplicação de um preceito de lei resultaria, no caso concreto, intoleravelmente ofensiva do nosso sentido ético-jurídico, embora lealmente se aceitando como boa e valiosa para o comum dos casos a sua estatuição».
Numa formulação mais atual, como aquela que consta do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 18.12.2008 (proc. 08B2688 – Santos Bernardino)[8], «a figura do abuso do direito surge como um modo de adaptar o direito à evolução da vida, servindo como válvula de escape a situações que os limites apertados da lei não contemplam por forma considerada justa pela consciência social, em determinado momento histórico, ou obstando a que, observada a estrutura formal do poder conferido por lei, se excedam manifestamente os limites que devem ser observados, tendo em conta a boa fé e o sentimento de justiça em si mesmo».
No que respeita ao fim social ou económico do direito, a sua aferição é feita com base nos juízos de valor positivamente consagrados na lei. Se a lei consagra o direito para realizar um concreto interesse, o direito não pode ser exercido para satisfazer um interesse diferente pelo seu titular.
Já para determinar os limites impostos pela boa fé há que atender de modo especial às conceções ético-jurídicas dominantes na coletividade.
A este propósito, impõe o artigo 762º, nº 2, do CCiv que «no cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente devem as partes proceder de boa fé».
Por conseguinte, a conduta das partes tem de ser conforme com a boa fé. Pautar a conduta pela boa fé é agir com lisura, correção e lealdade, não defraudando a legítima confiança ou expectativa dos outros, atento o sentido ético-objetivo que lhe é conferido pelo Código Civil.

Alega a Recorrente que «a Recorrida pautou toda a sua atuação na lide em manifestamente abuso do direito» (K) e que «[r]esultando dos documentos juntos pela Recorrente com as suas alegações escritas para prova do pedido de condenação da Recorrida como litigante de má-fé que esta mentiu na sua petição inicial, invocando factos falsos, em nítida inobservância dos deveres de boa-fé e em claro abuso do direito, ao não considerar verificada a exceção de abuso do direito (e não absolver a Recorrente do pedido), o Tribunal a quo violou os deveres de averiguação para descoberta da verdade material, da justa composição do litígio e da prossecução da justiça, infringindo o disposto no artigo 334.º do Código Civil. conforme invocado pela Recorrente (o que, ainda que não tivesse sido alegado, sempre seria de conhecimento oficioso)
Ao contrário do preconizado pela Recorrente, que assenta toda a sua argumentação na desconsideração da relevância da falta de contestação da ação e do efeito preclusivo que lhe subjaz, designadamente quanto à possibilidade de invocação da exceção perentória de pagamento com base em factos anteriores à própria propositura da ação, o quadro factual assente nos autos, que é o único que licitamente se pode considerar, não revela qualquer atuação da Autora em abuso do direito.
Sendo a matéria dos autos estranha a qualquer consideração sobre os bons costumes, ao pedir o pagamento de remunerações pelo exercício da gerência, que lhe eram devidas por terem sido atribuídas através de deliberação social válida, a Autora não ultrapassa os limites impostos pelo fim social ou económico do direito. Ao demandar a Ré para lhe exigir um valor que, segundo deliberação interna da própria Ré, lhe era devido, está a agir em conformidade com o fim social ou económico do direito. Está a realizar o interesse que a lei visa tutelar.
Face aos factos provados, nenhum elemento permite afirmar que a Autora ultrapassou os limites impostos pela boa fé, sendo certo que, para que seja desaplicada uma norma com base em abuso do direito, é necessário que estejam rigorosamente provados os seus elementos constitutivos.
Termos em que improcede este fundamento do recurso.
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2.2.5. Litigância de má-fé

Estando alegada a litigância de má-fé, importa conhecer deste fundamento de recurso.
O artigo 20º da Constituição da República Portuguesa garante a todos o acesso ao direito e à tutela judicial efetiva. Em contraposição, tem de haver limites à forma como se exercem os direitos de ação e de defesa no âmbito do processo civil ou nos outros ramos de direito adjetivo. Nem tudo pode ser tolerado no processo, pois o exercício de um direito deve ser compatibilizado com os direitos dos outros.
No que respeita ao processo civil, toda e qualquer intervenção das partes no processo deve obedecer ao ditame imposto no artigo 8º do CPC: «as partes devem agir de boa-fé e observar os deveres de cooperação» previstos no artigo 7º daquele código, tendo em vista a obtenção, com brevidade e eficácia, da justa composição do litígio.
Para assegurar o aludido desiderato e um correto uso dos direitos processuais surge, a par de outros[9], o instituto da litigância de má-fé.
Partindo de um fundamento ético que deve presidir à exercitação dos direitos, a litigância de má-fé tem subjacente o interesse público na correta administração da justiça, pois a atuação abusiva dos direitos de ação e de defesa, bem como dos inerentes direitos processuais, traduzida na instrumentalização do direito processual, é suscetível de ocupar a máquina judiciária com ações que não têm um fundamento sério e razoável, de retardar a realização da justiça, de afetar a eficácia da intervenção judicial ou, em casos mais graves, de prejudicar a justa composição do litígio.
 Portanto, estamos perante um instituto processual, de tipo público e que visa o imediato policiamento do processo[10].
É possível descortinar no seu recorte normativo uma vertente sancionatória (v. o artigo 542º, nº 1, do CPC e o artigo 27º, nº 3, do Regulamento das Custas Processuais) e outra tendencialmente indemnizatória ou reparadora (v. artigo 543º do CPC).
Nos termos do nº 2 do artigo 542º do CPC, litiga de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:
«a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão».

A Recorrente sustenta que «fez prova de que a Recorrida invocou factos notoriamente falsos, que bem sabia não corresponderem à realidade e, atenta a natureza pessoal de todos os factos em causa, é inequívoco que esta agiu com dolo».
Para alicerçar a alegada litigância de má-fé da Autora, invoca novamente a Recorrente factos que não correspondem àqueles que se mostram provados nos autos.
A realidade factual a considerar é a que resulta da eficácia da revelia operante da Ré e não um quadro factual paralelo, estabelecido com base numa alegação inadmissível na fase em que se realizou, cuja dedução se mostrava inequivocamente precludida. A possibilidade de alegação facultada ao réu, nos termos e para os efeitos do nº 2 do artigo 567º do CPC, não se destina a conferir-lhe a possibilidade de alegar outros factos, quaisquer outros factos, mas apenas a oferecer a possibilidade ao réu de dar conformação jurídica a tal factualidade já considerada confessada e assente. E a dedução do incidente de litigância de má-fé não se destina a “fazer entrar pela janela o que não pode entrar pela porta”, isto é, a alegar factos que deviam ter sido alegados em contestação e que, por isso, estão submetidos à regra da preclusão.
Como já referimos e aqui reafirmamos, não tendo sido alegada a exceção perentória de pagamento até ao termo do prazo para contestar e não sendo os factos em que se alicerça supervenientes, ficou precludido o direito de a invocar. Nem a Ré a pode invocar nem o tribunal pode dela conhecer e dar-lhe qualquer relevância.
Com base no quadro factual apurado nos autos, nenhuma censura pode ser dirigida à sentença, na parte em que nela se conclui que «não se vislumbra a prática de qualquer ato suscetível de integrar o conceito de má-fé. A autora alegou factos que foram julgados provados por via da confissão. Nesse sentido, não decorre dos autos qualquer ato passível de ser qualificado como má-fé.»

Nesta conformidade, improcede totalmente a apelação.
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III – DECISÃO

Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas a suportar pela Recorrente.
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Guimarães, 11.04.2024
(Acórdão assinado digitalmente)

Joaquim Boavida
Carla Maria da Silva Sousa Oliveira
José Carlos Dias Cravo



[1] Miguel Teixeira de Sousa, in Blog do IPPC, entrada de 26.02.2019, em comentário ao acórdão da Relação do Porto de 22.10.2018 (processo 528/11.7TVPRT.P1).
[2] Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil, vol. 2º, 3ª edição, Almedina, pág. 536.
[3] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Pires de Sousa, Código Civil Anotado, vol. I, Almedina, pág. 567, nota 7.
[4] Ob. cit., pág. 534.
[5] Disponível em www.dgsi.pt.
[6] Francisco Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, vol. II, 2015, Almedina, pág. 143.
[7] Teoria Geral das Obrigações, pág. 63, e RLJ, nº 85, pág. 253.
[8] Disponível, tal como todos os demais que se citam, em www.dgsi.pt.
[9] V.g., o abuso do direito de ação.
[10] António Menezes Cordeiro, Litigância de Má-Fé, Abuso do direito de acção e Culpa “In Agendo”, Almedina, pág. 28.