Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
86/21.4T9CHV-A.G1
Relator: ISABEL CRISTINA GAIO FERREIRA DE CASTRO
Descritores: SIGILO PROFISSIONAL
ADVOGADO
TESTEMUNHA
QUEBRA DE SIGILO PROFISSIONAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: LEVANTAMENTO/QUEBRA DE SIGILO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I- O segredo profissional do advogado assume um papel nevrálgico num estado de direito, revestindo uma dupla valência – por um lado, protege-se a relação fiduciária que necessariamente se estabelece entre o advogado e o seu cliente; por outro lado, é garante do interesse público fundado na função social da advocacia e, ainda, o interesse coletivo no exercício digno da profissão. Mas tal dever não se configura como absoluto, admitindo compressão em situações excecionais, em que outros valores se lhe devam sobrepor, nomeadamente, quando os elementos sob segredo se mostrem imprescindíveis para a proteção e efetivação de direitos ou interesses jurídicos mais relevantes e, por conseguinte, preponderantes.
É o que acontece quando o dever de segredo profissional conflitua com o dever de testemunhar, que para o caso releva, devendo o conflito ser resolvido, como impõe o n.º 3 do artigo 135º do Código de Processo Penal, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos.
II- A circunstância de o crime em averiguação ser punível, em abstrato, com pena de prisão ou multa, conjugada com os extensos antecedentes criminais do arguido permitem concluir pela gravidade do ilícito, tal como os bens jurídicos protegidos com a incriminação se identificam com um interesse social premente.
III- Tendo em conta que os acórdãos do tribunal da relação não são notificados pessoalmente aos arguidos [cfr. artigos 113º, n.º 10, e 425º, n.º 6, do Código de Processo Penal], só a Exma. Sra. Advogada estará, ao que tudo indica, em condições de esclarecer as circunstâncias relativas ao alegado (des)conhecimento do arguido do teor do acórdão que confirmou a sentença que impusera a obrigação de efetuar a entrega da carta de condução e da exequibilidade da mesma. Está assim demonstrada também a imprescindibilidade e essencialidade do depoimento da Ex.ma Advogada para a descoberta da verdade e, concretamente, para a defesa do arguido.
IV - Ante o exposto mostra-se justificada a prestação do depoimento da senhora advogada com quebra do segredo profissional.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. - RELATÓRIO

1. No âmbito do processo comum, com intervenção do tribunal singular, que, sob o n.º 86/21...., corre termos no Juízo Local Criminal ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., em que é arguido AA, em 04.01.2024 a Ex.ma Juíza proferiu o seguinte despacho [transcrição[1]]:

«Tomei conhecimento da posição assumida pela Ordem dos Advogados quanto à recusa de prestar depoimento apresentada pela testemunha BB, na audiência de julgamento em curso nos autos.
Tomei conhecimento que o Ministério Público e a defesa foram devidamente notificados da decisão, nada tendo requerido.
**
Nos presentes autos, o arguido encontra-se acusado da prática de um crime de desobediência, previsto e punido no artigo 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal.
Sustenta o Ministério Público, na acusação deduzida nestes autos, que o arguido foi condenado no processo sumário que corre os seus termos neste Juízo Local Criminal ... sob o n.º 92/19...., por Sentença transitada em julgado no dia 06.01.2021, pela prática de um crime de desobediência, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 152.º, n.ºs 1, alínea a), e 3, e 153.º do Código da Estrada e artigo 348.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, entre o mais, na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 2 (dois) meses e 2 (dois) meses, ao abrigo do disposto no artigo 69.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal. 
Mais se sustenta que, de tal Sentença, foi o arguido pessoalmente notificado em 05.02.2020, bem como para no prazo de 10 (dez) dias, a contar do trânsito em julgado da Sentença, proceder à entrega da sua carta de condução na secretaria do tribunal ou em qualquer entidade policial, com a expressa advertência de que, não o fazendo, incorreria na prática de um crime de desobediência. 
Por fim, mais se alega que, decorrido o prazo indicado, o arguido não procedeu à entrega da sua carta de condução, incorrendo, desse modo, no crime imputado.
Na primeira sessão de audiência de julgamento, o arguido sustentou, em suma, que não teve conhecimento do Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães que confirmou, em recurso, a Sentença proferida no referido processo, pelo que não teve conhecimento do início do prazo de 10 dias que lhe fora comunicado para entregar a sua carta de condução. Mais sustentou que a sua advogada no referido processo, não lhe deu conhecimento do teor do referido Acórdão.
Na última sessão da audiência de julgamento, foi inquirida a testemunha Dra. BB, advogada, o qual explicou que foi defensora oficiosa do arguido no processo n.º 92/19...., tendo-se escusado a prestar depoimento, invocando para o efeito que os factos sobre os quais se pretende o seu depoimento se encontram abrangidos pelo sigilo profissional.
Nos termos e para os efeitos previstos no artigo 135.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, em ordem a que fossem dissipadas quaisquer dúvidas quanto à legitimidade da escusa, foi determinado, junto da Ordem dos Advogados, que fosse emitido parecer.
No dia 11.01.2023 deu entrada nos autos decisão emitida pela Vogal do Conselho Regional da Ordem dos Advogados, a qual se mostrou favorável à legitimidade da escusa invocada pela referida testemunha.
Tendo em conta o disposto no artigo 92.º do Estatuto da ordem dos Advogados e o disposto no artigo 135.º do Código de Processo Penal, considera-se, de facto, legítima a recusa da testemunha em prestar depoimento nos autos.
Porém, tendo em conta os factos vertidos na acusação e, bem assim, a versão trazida aos autos pela defesa, afigura-se que o depoimento da referida testemunha é absolutamente imprescindível para a descoberta da verdade e para a boa decisão da causa, o que só se pode lograr suscitando o competente incidente de quebra do segredo profissional. De facto, só através da audição da testemunha referida será possível validar a versão do arguido quanto ao desconhecimento do teor do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães e, por inerência, validar a ausência de vontade em desobedecer à ordem que havia sido validamente comunicada pela autoridade judicial.
Atento o exposto, haverá, pois, que recorrer ao expediente previsto sob o artigo 135.º, n.º 3 do Código de Processo Penal acima citado, cabendo ao Tribunal Superior ordenar a necessária quebra de segredo profissional, no caso o Tribunal da Relação de Guimarães.
Essa quebra afigura-se no caso justificada pelo interesse preponderante da descoberta da verdade e realização da justiça, não se vislumbrando por que outro modo menos invasivo da privacidade pudesse ser obtida a pretendida informação.
Deste modo, e por tudo o exposto, suscita-se a intervenção do Venerando Tribunal da Relação de Guimarães, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 135.º, n.º 3 do Código de Processo Penal. 
*
Em conformidade, organize apenso processual (incidente de quebra de sigilo) de onde conste certidão do presente despacho, das actas de todas as sessões da audiência de julgamento (juntando-se CD com gravação de toda a audiência), da acusação pública deduzida, dos documentos indicados na acusação pública e, por fim, do e-mail entrado nos autos no dia 11-...23, abrindo, após, conclusão no referido apenso. D.N.
Notifique.»

2. Organizado o referido apenso, dando origem aos presentes autos de incidente de quebra de sigilo profissional, foram os mesmos remetidos a este Tribunal da Relação de Guimarães, onde a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de que, tendo a Ordem dos Advogados considerado que a situação em apreço está abrangida pelo sigilo profissional e porque se mostra certificada a imprescindibilidade do depoimento da Ex.ma Advogada para a descoberta da verdade e, concretamente, para a defesa do arguido, estarem reunidos os requisitos para que seja levantado o dever de sigilo por parte daquela, pelo que é de deferir o presente incidente.

3. Colhidos os vistos, o processo foi submetido à conferência.

II - SANEAMENTO

O tribunal é o competente e não se verificam nulidades, exceções ou questões prévias que obstem ao conhecimento de mérito.

III. FUNDAMENTAÇÃO

1. - Incidências processuais relevantes
1.1- No processo comum, com intervenção do tribunal singular, que sob o n.º 86/21...., corre termos no Juízo Local Criminal ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., foi deduzida acusação contra o aí arguido, AA, imputando-lhe a prática de prática, como autor material e na forma consumada, nos termos do disposto nos artigos 14.º, n.º 1, e 26.º do Código Penal, de um crime de desobediência, previsto e punido no artigo 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, com fundamento, em resumo, nos seguintes factos:
- O arguido foi condenado no processo sumário que corre os seus termos no Juízo Local Criminal ... sob o n.º 92/19...., por sentença transitada em julgado no dia 06.01.2021, pela prática de um crime de desobediência, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 152.º, n.ºs 1, alínea a), e 3, e 153.º do Código da Estrada e artigo 348.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, entre o mais, na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 2 (dois) meses e 2 (dois) meses, ao abrigo do disposto no artigo 69.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal;
- O arguido foi pessoalmente notificado de tal sentença em 05.02.2020, bem como para no prazo de 10 (dez) dias, a contar do trânsito em julgado daquela, proceder à entrega da sua carta de condução na secretaria do tribunal ou em qualquer entidade policial, com a expressa advertência de que, não o fazendo, incorreria na prática de um crime de desobediência. 
- Decorrido o prazo indicado, o arguido não procedeu à entrega da sua carta de condução, incorrendo, desse modo, no crime imputado.
1.2- Iniciada a audiência de julgamento no sobredito processo n.º 86/21.... em 09 de setembro de 2022, o arguido, nas declarações que prestou, sustentou, em suma, que não teve conhecimento do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães que confirmou, em recurso, a sentença proferida no processo n.º 92/19...., pelo que não teve conhecimento do início do prazo de 10 dias que lhe fora comunicado para entregar a sua carta de condução, alegadamente porque a sua advogada no referido processo não lhe deu conhecimento do teor do mencionado acórdão e das consequências do mesmo.
1.3- O Magistrado do Ministério Público presente na audiência, considerando tal diligência importante para a descoberta da verdade, ao abrigo do disposto no artigo 340.º do Código de Processo Penal, requereu a inquirição da Dra. BB, defensora oficiosa do arguido no processo n.º 92/19...., o que foi deferido pela Ex.ma Juíza, designando a data de 15 de Setembro, às 09:15 horas, para tal inquirição, sem prejuízo da possibilidade da Ilustre Defensora se recusar a depor, invocando para o efeito o segredo profissional.
1.4- Reaberta a audiência naquela data, a Ex.ma Sra. Dra. BB explicou que foi defensora oficiosa do arguido no processo n.º 92/19.... e que os factos sobre os quais se pretende o seu depoimento se encontram abrangidos pelo sigilo profissional, informando ter efetuado, no Conselho Regional do ... da Ordem dos Advogados, o competente pedido de levantamento de sigilo profissional, aguardando essa decisão por escrito, tendo-se escusado a prestar depoimento.
1.5- Solicitada, então, informação sobre a decisão relativamente a tal pedido, o Conselho Regional do ... da Ordem dos Advogados veio informar, através do e-mail de 11 de janeiro de 2023, que decidira no sentido de ser legítima a recusa da Sra. Dra. BB em prestar declarações nos autos, remetendo cópia da decisão datada de 14.11.2022, cujo teor se dá aqui por reproduzido.
1.6- Nessa sequência, a Mmª Juiz titular do processo proferiu o despacho datado de 04 de janeiro de 2024 supra transcrito.

2. – Apreciação de direito
2.1- A questão colocada no presente incidente reside em saber se se mostra, ou não, justificada a quebra do segredo profissional invocado por advogada convocada como testemunha como motivo da sua escusa em prestar depoimento.
Com efeito, decorreu já a primeira fase do incidente de escusa de depor, na qualidade de testemunha, por parte de advogada, tendo a Ex.ma Sra. Juiz titular do processo decidido ser legítima a escusa[2] e, nessa sequência, suscitado a intervenção deste tribunal superior.   
Em processo penal, o dever de testemunhar decorre do disposto nos artigos 131º e 132º do Código de Processo Penal e apenas comporta as exceções previstas naquele diploma, designadamente a recusa com fundamento nas circunstâncias previstas no artigo 134º e a escusa com base no segredo profissional prevista no artigo 135º.

Estatui este artigo 135.º, sob a epígrafe segredo profissional:
“1 - Os ministros de religião ou confissão religiosa e os advogados, médicos, jornalistas, membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos.
2 - Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento.
3 - O tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, ou, no caso de o incidente ter sido suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o pleno das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento.
4 - Nos casos previstos nos n.ºs 2 e 3, a decisão da autoridade judiciária ou do tribunal é tomada ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a esse organismo seja aplicável.
5 - O disposto nos n.ºs 3 e 4 não se aplica ao segredo religioso”.
No caso vertente, está em causa o sigilo profissional de advogados.
Estatui, desde logo, o artigo 208º da Constituição da República Portuguesa: “[a] lei assegura aos advogados as imunidades necessárias ao exercício do mandato e regula o patrocínio forense como elemento essencial à administração da justiça.”
 Em consonância com tal garantia constitucional, estabelece o artigo 13º da Lei da Organização do Sistema Judiciário [aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto], com a epígrafe “Imunidade do mandato conferido a advogados”, no seu n.º 1 – que, em essência reproduz o texto daquele normativo da lei fundamental –, que "[a] lei assegura aos advogados as imunidades necessárias ao exercício dos atos próprios de forma isenta, independente e responsável, regulando-os como elemento indispensável à administração da justiça".
E, com vista a garantir aos advogados o exercício livre e independente do mandato que lhes seja confiado, entre as imunidades necessárias a um desempenho eficaz, o n.º 2 inclui, além do mais, "o direito à proteção do segredo profissional" [al. a)] e "o direito à especial proteção das comunicações com o cliente e à preservação do sigilo da documentação relativa ao exercício da defesa" [al. c)].
O segredo profissional é indiscutivelmente reconhecido como um direito e dever fundamental e primordial do advogado, pelo que a obrigação de este guardar sigilo sobre todos os factos de que teve conhecimento no exercício das suas funções ou na prestação dos seus serviços visa garantir razões de interesse público, nomeadamente a administração da justiça, e a defesa dos interesses dos clientes, assim se justificando que tal obrigação beneficie de uma proteção especial por parte do Estado, que vai ao ponto de responsabilizar criminalmente "[q]uem, sem consentimento, revelar segredo alheio de que tenha tomado conhecimento em razão do seu estado, ofício, emprego, profissão ou arte" [cfr. artigo 195º do Código Penal].

Naturalmente, o Estatuto da Ordem dos Advogados (aprovado pela Lei n.º 145/2015, de 09 de setembro) disciplina esta matéria de forma minuciosa, dispondo o artigo 92º, sob a epígrafe "segredo profissional":
"1 - O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente:
a) A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste;
b) A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados;
c) A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração;
d) A factos comunicados por coautor, corréu ou cointeressado do seu constituinte ou pelo respetivo representante;
e) A factos de que a parte contrária do cliente ou respetivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio;
f) A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo.
2 - A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, direta ou indiretamente, tenham qualquer intervenção no serviço.
3 - O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo.
4 - O advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho regional respetivo, com recurso para o bastonário, nos termos previstos no respetivo regulamento.
5 - Os atos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo.
6 - Ainda que dispensado nos termos do disposto no n.º 4, o advogado pode manter o segredo profissional.
7 - O dever de guardar sigilo quanto aos factos descritos no n.º 1 é extensivo a todas as pessoas que colaborem com o advogado no exercício da sua atividade profissional, com a cominação prevista no n.º 5.
8 - O advogado deve exigir das pessoas referidas no número anterior, nos termos de declaração escrita lavrada para o efeito, o cumprimento do dever aí previsto em momento anterior ao início da colaboração, consistindo infração disciplinar a violação daquele dever."

Como deflui do que vimos referindo, o segredo profissional não é um dever do advogado apenas para com o cliente, mas também um dever recíproco para com os outros advogados e perante a própria Ordem, e, em última análise, para com a sociedade.
Com efeito, o segredo profissional do advogado assume um papel nevrálgico num estado de direito, revestindo uma dupla valência – por um lado, protege-se a relação fiduciária que necessariamente se estabelece entre o advogado e o seu cliente; por outro lado, é garante do interesse público fundado na função social da advocacia e, ainda, o interesse coletivo no exercício digno da profissão.
O fundamento ético-jurídico do sigilo profissional do advogado radica, assim, no princípio da confiança e na natureza social da função forense[3].

A jurisprudência tem acolhido tal entendimento, como ressuma, a título exemplificativo, do seguinte excerto do sumário do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15.02.2018[4]:
«IV- Radicando no princípio da confiança, no dever de lealdade do advogado para com o constituinte, o dever de segredo profissional transcende a mera relação contratual, assumindo-se como princípio de ordem pública e representando uma obrigação para com o constituinte, para com a própria classe, a Ordem dos Advogados e a comunidade em geral.
V- Por isso, consideram-se abrangidas pelo segredo profissional todas as situações que sejam suscetíveis de significar a violação da relação de confiança entre o advogado e o seu patrocinado e também todas as situações que possam representar quebra da dignidade da função social que a advocacia prossegue.»
Mas tal dever não se configura como absoluto, admitindo compressão em situações excecionais, em que outros valores se lhe devam sobrepor, nomeadamente, quando os elementos sob segredo se mostrem imprescindíveis para a proteção e efetivação de direitos ou interesses jurídicos mais relevantes e, por conseguinte, preponderantes.
É o que acontece quando o dever de segredo profissional conflitua com o dever de testemunhar, que para o caso releva, devendo o conflito ser resolvido, como impõe o n.º 3 do artigo 135º do Código de Processo Penal supra transcrito,  segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos.
Ensina Costa Andrade[5] que essa fórmula do "interesse preponderante", legalmente adotada, projeta-se em quatro implicações: em primeiro lugar, na intencionalidade de vincular o julgador a padrões objetivos e controláveis, não cometendo a decisão à sua livre apreciação; em segundo lugar, no afastamento de qualquer uma das duas soluções extremadas: tanto a tese de que o dever de segredo prevalece invariavelmente sobre o dever de colaborar com a justiça penal, como a tese inversa de que a prestação de testemunho perante o tribunal (penal) configura só por si e sem mais, justificação bastante da violação do segredo profissional; em terceiro lugar, no entendimento de que a realização da justiça penal, só por si e sem mais (despida do peso específico dos crimes a perseguir), não figura como interesse legítimo bastante para justificar a imposição da quebra do segredo. Por último, no reconhecimento de idoneidade à dimensão repressiva da justiça penal para ser levada à balança da ponderação com a violação do segredo, tudo dependendo da gravidade dos crimes a perseguir, consagrando-se, assim, a solução mitigada que admite a justificação (ex vi ponderação) da violação do segredo desde que esteja em causa a perseguição dos crimes mais graves e que provocam maior alarme social.
Como refere Paulo Pinto de Albuquerque[6], «[a] gravidade deve ser aferida em abstrato e em concreto. Em abstrato, o conceito de "gravidade do crime" ou de "crime grave" deve ser condensado de acordo com a bitola fixada no artigo 187.º, n.º 1, al.ª a), isto é, considerando-se como "crime grave" o crime punível com pena de prisão superior, no seu máximo, a três anos, atenta a similitude material entre a tutela do direito à privacidade pelo artigo 187.º e a tutela do segredo profissional pelo artigo 135.º. (…) Isto não quer obviamente dizer que a revelação da informação sob segredo profissional deva sempre ter lugar quando estiver em causa a investigação de crimes puníveis com pena superior a três anos de prisão. A ponderação da gravidade dos crimes puníveis com pena superior a três anos de prisão não é indispensável, pois a gravidade do crime deve ser aferida não apenas em abstrato, mas também em concreto, em face das concretas circunstâncias que envolveram a prática do crime.».
Segundo o mesmo autor, «[a] imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade significa duas coisas: a descoberta da verdade é irreversivelmente prejudicada se a testemunha não depuser ou, depondo, o depoimento não incidir sobre os factos abrangidos pelo segredo profissional e, portanto, o esclarecimento da verdade não pode ser obtido de outro modo, isto é, não há meios alternativos à quebra do segredo profissional que permitam apurar a verdade».
Por seu turno, «[a] "necessidade" de proteção de bens jurídicos identifica-se com uma “necessidade social premente (pressing social need) de revelação da informação coberta pelo segredo profissional( …)», ou seja, «(…) a quebra do sigilo só é justificável se corresponder a um interesse social premente (…)», o que não se verifica, em princípio, «quando se indicie a prática de crimes particulares, salvo se o crime tiver um impacto social notório» ou «quando houver fundados motivos para crer na existência de causas de isenção da responsabilidade ou de extinção do procedimento criminal».
Em resumo, a conclusão sobre a (in)existência de um interesse preponderante está dependente da verificação, em concreto, em face da forma como o pedido de quebra do segredo profissional se encontra formulado, se o depoimento do advogado se reveste de absoluta necessidade, isto é, imprescindibilidade (o meio de prova sujeito a sigilo ser indispensável e não meramente útil), essencialidade (o mesmo ser de tal modo determinante que, a não ser concedida a dispensa, a parte interessada poderá ver a sua posição claudicar, total ou parcialmente) e exclusividade (inexistir qualquer outro meio de prova que não o depoimento do obrigado ao sigilo).

O sumário do acórdão deste Tribunal da Relação de Guimarães de 11.05.2020[7] efetua uma impressiva síntese da problemática que vimos tratando nos seguintes termos:

«I- Quando esteja em causa a escusa legítima de depor de testemunha com fundamento em segredo profissional, verifica-se um verdadeiro conflito entre dois deveres jurídicos: o dever de testemunhar e o dever de guardar segredo.
II- A resolução deste conflito passa por estabelecer a concordância prática entre os deveres em confronto, de acordo com o princípio da prevalência do interesse preponderante, por forma a que prevaleça aquele que, numa análise casuística, em função dos interesses ou valores em presença, se apresente com maior dignidade, justificando o sacrífico de outros interesses ou valores de menor valia.
III- Com o propósito de concretizar o interesse ou valor mais valioso, ou, segundo os dizeres da lei, densificar “o princípio da prevalência do interesse preponderante” e assim resolver o conflito, o legislador forneceu pistas ao interprete e aplicador da lei, indicando, por forma exemplificativa, “a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade”, “a gravidade do crime” e a “necessidade de proteção de bens jurídicos”.
IV- Na doutrina e jurisprudência tem-se entendido que a obrigação do advogado de guardar segredo transcende, a mera relação contratual, assumindo-se como princípio de ordem pública e representando uma obrigação do advogado não apenas para com o seu constituinte, mas também para com a própria classe, a Ordem dos Advogados e a comunidade em geral.
(…)».

2.2- No caso em apreço, verifica-se que, perante a alegação do arguido, nas declarações que prestou em audiência de julgamento, de que não teve conhecimento do início do prazo de 10 dias que lhe fora comunicado para entregar a sua carta de condução no âmbito do processo n.º 92/19.... porquanto a senhora advogada que interveio nesse processo como defensora oficiosa não lhe deu conhecimento do teor do acórdão que confirmou, em recurso, a sentença da qual dimanava tal obrigação, o Ministério Público pretende o depoimento da citada senhora advogada relativamente a tal alegação, relevante para a averiguação da prática pelo arguido do crime que lhe é imputado – crime de desobediência, previsto e punido no artigo 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal.
Quer o Ministério Público, quer a Ex.ma Sra. Juíza que preside ao julgamento, entendem que tal depoimento se mostra essencial para a boa decisão da causa.
Contudo, convocada a Ex.ma Dra. BB, explicou que, tendo sido defensora oficiosa do arguido no processo n.º 92/19...., os factos sobre os quais se pretende o seu depoimento se encontram abrangidos pelo sigilo profissional, informando ter efetuado, no Conselho Regional do ... da Ordem dos Advogados, o competente pedido de levantamento de sigilo profissional. Por decisão datada de 14.11.2022, aquela entidade, entendendo que os factos expostos pela dita senhora advogada estão sujeitos a segredo profissional porque vieram ao seu conhecimento no exercício da sua profissão e por causa dela e que a sua revelação não se mostra essencial, nem necessária, à defesa da dignidade, dos direitos e interesses legítimos do seu cliente, considerou legítima a escusa apresentada por aquela.
Tendo a escusa a prestar depoimento sido – e bem, refira-se – considerada legítima pela Ex.ma Juíza titular do processo e que preside à audiência de julgamento, importa apreciar se se mostra justificada a quebra do sigilo profissional.
A circunstância de o crime em averiguação ser punível, em abstrato, com pena de prisão ou multa, conjugada com os extensos antecedentes criminais do arguido permitem concluir pela gravidade do ilícito, tal como os bens jurídicos protegidos com a incriminação se identificam com um interesse social premente.
Ao contrário do entendido pela Ordem dos Advogados, tendo em conta que os acórdãos do tribunal da relação não são notificados pessoalmente aos arguidos [cfr. artigos 113º, n.º 10, e 425º, n.º 6, do Código de Processo Penal], afigura-se-nos que só a Exma. Sra. Advogada BB estará, ao que tudo indica, em condições de esclarecer as circunstâncias relativas ao alegado (des)conhecimento do arguido do teor do acórdão que confirmou a sentença que impusera a obrigação de efetuar a entrega da carta de condução e da exequibilidade da mesma.
Por conseguinte, cremos estar demonstrada também a imprescindibilidade e essencialidade do depoimento da Ex.ma Advogada para a descoberta da verdade e, concretamente, para a defesa do arguido.
Ante o exposto, afigura-se-nos que se mostra justificada a prestação do depoimento da senhora advogada com quebra do segredo profissional.

IV. DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em considerar justificada a prestação de depoimento pela Ex.ma Senhora Dr.ª BB com quebra do segredo profissional, no âmbito do processo n.º 86/21...., que corre termos no Juízo Local Criminal ..., do Tribunal Judicial da Comarca ....
Sem tributação em custas.
*
*
(Elaborado e revisto pela relatora, sendo assinado eletronicamente pelos signatários – artigo 94º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo Penal)

*
Guimarães, 20 de fevereiro de 2024

 Isabel Gaio Ferreira de Castro[Relatora]
Carlos Gama da Cunha Coutinho[1.º Adjunto]
Pedro Freitas Pinto[2.º Adjunto]



[1] Todas as transcrições efetuadas respeitam o respetivo original, salvo a correção de manifestos lapsos de escrita, a formatação e a ortografia utilizada, que são da responsabilidade da relatora.
[2] A este respeito, atente-se na fundamentação do Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 2, de 2008, in DR, 1ª Série a, de 31.03.2008, segundo a qual “(…) quando invocado o sigilo bancário, a autoridade judiciária perante a qual tiver sido suscitada deverá decidir se essa escusa é legítima ou ilegítima. Quando conclua, após as diligências que considerar necessárias e cumprido o formalismo do n.º 5 do mesmo artigo, que a escusa é ilegítima, a autoridade judiciária ordena ou requer ao tribunal que ordene a prestação do depoimento, não podendo então a instituição bancária deixar de cumprir o ordenado. Se concluir que a escusa é legítima, dois caminhos estão abertos à autoridade judiciária: ou se conforma com a invocação do segredo, não podendo insistir na obtenção do depoimento, ou então suscita o incidente de quebra de segredo junto do tribunal imediatamente superior. A quebra do segredo, pelo juízo que envolve, é, por opção legislativa, necessariamente da competência de um tribunal superior (Relação ou Supremo Tribunal de Justiça, conforme os casos). Este último não funciona, pois, como uma instância residual, quando se suscitem dúvidas sobre a legitimidade da escusa, mas sim como instância de decisão do incidente da quebra do segredo, nas situações em que a escusa é legítima”.
[3] Vide Iniciação à Advocacia, Coimbra 2000, página 66.
[4] Proferido no processo 1130/14.7TVLSB.L1.S1, acessível no sitio da internet www.dgsi.pt.
[5] In Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, págs. 795 a 796.
[6] In Comentário do Código de Processo Penal, 3ª edição atualizada, Universidade Católica Editora, pág. 364/5.
[7] Proferido no processo 207/17.1T9BCL-A.G1, disponível para consulta em http://www.dgsi.pt