Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
149/18.3T8EPS.G1
Relator: FERNANDO FERNANDES FREITAS
Descritores: MANIFESTA IMPROCEDÊNCIA
DIREITO DE PROPRIEDADE
EMISSÕES DE SÓLIDOS SOBRE PROPRIEDADE VIZINHA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/01/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- Para além de estar sujeito às restrições ou limitações que a lei lhe impõe (dever de abstenção), o proprietário tem a obrigação de adoptar as medidas adequadas (dever de conteúdo positivo) a evitar o perigo criado pela sua própria actuação, ou decorrente, por outros motivos, das coisas que lhe pertencem (dever de prevenção do perigo).
II- Ao poder de oposição que é conferido ao proprietário de um imóvel pelo art.º 1346.º do C.C., ele pode igualmente opor-se às emissões de outros corpos, sólidos ou líquidos, de acordo com o princípio segundo o qual “as emanações directas de corpos sólidos sobre prédio vizinho são proibidas”.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

A) RELATÓRIO

I.- S. J., intentou a presente ação contra M. F., enquanto Cabeça de Casal da “Herança Indivisa Aberta por Óbito de F. T.”, pedindo a condenação da Demandada a:
a) reconhecer o direito de propriedade dele, Autor, sobre o prédio inscrito na matriz predial urbana sob o artigo … da União das Freguesias de … e …, concelho de Esposende, cuja propriedade adquiriu por escritura pública de compra e venda celebrada em 16/01/2015;
b) proceder de imediato ao corte do pinheiro que se encontra junto e voltado para a propriedade dele, Autor, com o intuito de prevenir uma drástica tragédia e causar graves danos na habitação deste;
c) proceder à imediata limpeza e desinfeção da vegetação rasteira que se encontra na propriedade dela Ré, de modo a eliminar os animais nocivos que ali se desenvolvem e vêm infestando o seu prédio urbano;
d) no cumprimento de uma obrigação pecuniária compulsória de € 100,00 diários no caso de incumprimento de tal pedido após 10 dias a contar do trânsito em julgado;
e) pagar-lhe a importância de € 3.825,00 a título de indemnização por danos patrimoniais, acrescida de juros de mora legais desde a citação até integral pagamento; e
f) pagar-lhe a quantia de € 1.500,00 a título de indemnização por danos não patrimoniais.

Fundamenta alegando, em síntese, que é proprietário de um prédio urbano contíguo a um prédio da Ré, composto por um lote de terreno para construção, no qual existem vários pinheiros de grande porte e uma vasta vegetação rasteira, de cujo corte a Ré não cuida. Um dos pinheiros existentes no prédio da Ré é de grande porte e apresenta uma inclinação bastante acentuada para o sentido nascente, ou seja, voltado para o prédio dele, Autor. Sucede que além do perigo que a inclinação do referido pinheiro constitui, os ramos e pinhas provenientes do mesmo, para além de sujarem o chão, o telhado e as caleiras, constituem uma ameaça para a integridade física dele, Autor, e seus familiares, que correm perigo de serem atingidos na cabeça por alguma delas. Acresce que a caruma que se acumula no telhado e nos algerozes do seu prédio provoca frequentes entupimentos, originando infiltração de humidade e fissuras nos tetos e nas paredes da sua casa de habitação. Precisa de mandar limpar várias vezes o telhado e os algerozes, e as varandas encontram-se permanentemente “sujas”, “velhas” e com péssimo aspecto. Tem, por isso, suportado prejuízos patrimoniais, designadamente, com a contratação de serviços à empresa X, que procedeu à demolição de pavimento no terraço, refazendo o mesmo com argamassa de betonilha, posteriormente colocando isolamento com o intuito de não voltar a passar humidade e a repor novamente a tijoleira. Procedeu ainda aos trabalhos de limpeza do telhado da casa e anexo (para tirar toda a resina e não colar a sujidade dos pinheiros), gradeamento e pintura, no que despendeu € 3.525,00.
Mais alega, que a descrita situação lhe provocou prejuízos de natureza não patrimonial pelos quais pretende ser indemnizado pela Ré.
Contestou a Ré arguindo a sua ilegitimidade por violação do litisconsórcio necessário legal.
Com vista ao suprimento da arguida ilegitimidade, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2091.º, do Código Civil (C.C.), 33.º, n.º 1, e 316.º, n.º 1, do Código do Processo Civil (C.P.C.), foi requerida e admitida a intervenção principal provocada dos herdeiros de F. T., autor da herança, os quais foram citados.
Ainda no lado passivo, com fundamento na dúvida sobre o sujeito da relação material controvertida, foi requerido e admitido o pedido de intervenção principal provocada de V. S. e M. M., (ex-casal), que apresentaram contestações separadas.
O primeiro alegou que à data da sua citação, e desde Setembro de 2018, já não existia qualquer árvore no seu prédio, conforme registo fotográfico que juntou. Afirmou ainda que à data em que iniciou a posse sobre o seu prédio, por via de um contrato-promessa de compra e venda que, em 28.08.1987, celebrou com os então proprietários (os acima referidos F. T. e esposa M. F.), o seu lote de terreno estava “repleto de pinheiros, pois todos aqueles lotes eram uma zona florestal constituída maioritariamente por mato e pinheiros”, já existindo aí pinheiros há mais de 15, 20, e 30 anos. Contudo, em Agosto de 2016 foram cortados praticamente todos os pinheiros, ficando apenas três porque, pelas suas dimensões, era necessária maquinaria especial. Contudo, também estes três pinheiros foram cortados em Setembro de 2018. Afirma ainda que o pinheiro mais próximo do prédio do Autor distava dele pelo menos 5 metros.
A Interveniente M. M., no que ora interessa, aderiu à contestação do Interveniente V. S..
Face à afirmação produzida por este Interveniente Principal, de que desde Setembro de 2018 inexistia qualquer árvore no seu prédio, foi notificado o Autor da contestação e para esclarecer se mantinha interesse na ação, tendo este respondido afirmativamente.
Teve lugar uma audiência prévia, e as Partes foram convidadas a pronunciarem-se sobre a exceção peremptória da manifesta inviabilidade dos pedidos deduzidos pelo Autor, ao abrigo da al. b) do nº 1 do art. 591º do CPC.
O Réu e os Intervenientes Principais pronunciaram-se pela procedência da excepção, e Autor pela sua improcedência, fundamentando a sua posição alegando que a manutenção do pinheiro no prédio dos Réus lhe causa prejuízos e, ainda que lícita, é abusiva e, por conseguinte, geradora de responsabilidade civil.
Seguidamente foi proferido douto despacho decidindo julgar verificada a exceção peremptória inominada da manifesta improcedência dos pedidos deduzidos pelo Autor, deles absolvendo os Réus.

Inconformado, traz o Autor o presente recurso pedindo a revogação da supratranscrita decisão e a sua substituição por outra que determine o prosseguimento dos autos.
Contra-alegou a Interveniente Principal M. M., propugnando para que se mantenha o decidido.
O recurso foi recebido como de apelação, com efeito devolutivo.
Colhidos, que se mostram, os vistos legais, cumpre decidir.
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II.- O Apelante/Autor formulou as seguintes conclusões:

A. Com o devido respeito, não se nos afigura correcta a decisão ora posta em crise, no que respeita à apreciação da matéria de Direito.
B. O Tribunal a quo decidiu julgar procedente a excepção peremptória inominada – por manifesta improcedência dos pedidos deduzidos pelo Recorrente.
C. Salvo entendimento contrário, deveria o Tribunal a quo remeter para Audiência Final, os factos constantes nos articulados das partes.
D. O caso dos autos, coaduna-se com o Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães, proc. nº 640/07-2, relator Desembargador ANTÓNIO MAGAHÃES, de 12-06-2007, disponível em www.dgsi.pt: I- Age com abuso de direito quem planta e conserva no seu prédio, junto à linha divisória do mesmo com outro, dois pinheiros, cuja caruma (provinda em parte de galhas que não pendem sobre o prédio confinante) cai, por força do vento, no logradouro e no telhado do prédio vizinho, obrigando o proprietário deste a constantes limpezas, em ordem a evitar possíveis quedas e infiltrações de humidade no telhado e nas paredes da sua casa, por entupimento dos algerozes.
E. Foi dado como provado no Douto Acórdão em supra, que:
F. De resto, na sua petição inicial, o Recorrente alegou a seguinte causa de pedir (pontos 21º a 56º - na qual damos por integralmente reproduzido, por economia processual, – de forma sucinta – que):
- 10.º Destarte, o referido pinheiro possui uma inclinação bastante acentuada, para o sentido nascente, ou seja, voltado para o prédio urbano, propriedade do Autor, cfr. se pode alcançar através de fotografia id. sob o documento nº 5, que se junta e se dá por integralmente reproduzido.
- Sucede que, ao longo dos anos, a referida inclinação do tal pinheiro acentuou-se drasticamente.
- Sendo certo que, os ramos da referida árvore encontram-se direccionados para a casa de habitação do Autor, invadindo a mesma.
- Os ramos do pinheiro possuem bastantes pinhas e carumas.
- De facto um dos acessos ao prédio do Autor, tanto à casa de habitação como aos anexos e garagem, faz-se paralelamente com a linha divisória do lote de terreno propriedade da Ré, sendo dividido por um muro em blocos, existindo sobre esse muro, um gradeamento em ferro, cfr. se alcança através de fotografias id. sob o documento nº 6, que se junta e se dá por integralmente reproduzido.
- Porém, caiem pinhas e carumas provenientes dos pinheiros existentes no prédio da Ré, colocando o Autor e os seus familiares perante o risco iminente de serem atingidos por pinhas, cfr. se alcança através de fotografias id. sob o documento nº 7, que se junta e se dá por integralmente reproduzido.
- Sendo aquele constantemente atingido pelas pinhas que caiem do referido pinheiro.
- O Autor vê as pinhas, caruma e ganos a atingirem o logradouro da sua casa de habitação que dá acesso à casa de habitação.
- Porém, as pinhas, carumas e ganos não caiem apenas no acesso referido, mas também, com a força do vento, caiem no telhado da habitação do Autor, cfr. se alcança através de fotografia id. sob o documento nº 8, que se junta e se dá por integralmente reproduzido, atenta à forte inclinação da árvore de grande porte.
- Ademais, como se vislumbra através das fotografias ora juntas, as varandas da casa de habitação do Autor encontram-se permanentemente com bastante caruma, resina, ganos e pinhas, em virtude dos ramos do pinheiro se encontrarem bastante inclinados e direccionados para as referidas varandas, cfr. se alcança através de fotografia id. sob o documento nº 9, que se junta e se dá por integralmente reproduzido.
- Ademais, a caruma acumulada no telhado e nos algerozes do prédio urbano do Autor provocou e provoca frequentes entupimentos, originando infiltração de humidade e fissuras nos tectos e nas paredes da casa de habitação, cfr. se alcança através de fotografias id. sob o documento nº 10, que se junta e se dá por integralmente reproduzido.
G. Salvo entendimento contrário, o Recorrente entende que a situação apreciada no Ac. supra, é transponível para os presentes autos, porquanto foi alegado por aquele que os Recorridos possuem na sua propriedade, pinheiro de elevado porte, a cinco metros da propriedade do Recorrente, e que o mesmo [pinheiro] se encontrava com uma inclinação bastante acentuada para o prédio urbano do Recorrente. Ademais, com a actuação (omissão) por parte dos Recorridos ocorreram prejuízos para o Recorrente.
H. Segundo o art. 1346° do Código Civil "o proprietário de um imóvel pode opor-se à emissão de fumo, fuligem, vapores, cheiros, calor ou ruídos, bem como à produção de trepidações e a outros quaisquer factos semelhantes, provenientes do prédio vizinho, sempre que tais factos importem um prejuízo substâncial para o uso do imóvel ou não resultem da utilização normal do prédio de que emanam".
I. Ora, o facto dos pinheiros implantados na propriedade da Recorrida largarem caruma que se dissipa para o prédio do Recorrente, terá, necessariamente, de ter enquadramento no referido normativo.
J. Tanto mais que, está clamorosamente provado (por acordo das partes) que caiu caruma e pinhas para o prédio do Recorrente, e provoca um prejuízo substancial para o uso do imóvel.
K. Sendo certo que, não obstante a faculdade consagrada na segunda parte do n° 1 do art. 1366° do Código Civil -"arrancar e cortar as raízes que se introduzirem no seu terreno e o tronco ou ramos que sobre ela propendem, se o dono da árvore, sendo rogado judicialmente ou extrajudicialmente, o não fizer dentro de três dias - a verdade é que, o Recorrente não poderia, nem podem, evitar os danos em causa nos autos.
L. O direito dos réus, aqui Recorridos, de plantar o pinheiro junto à linha divisória e de aí os conservar com as consequências apuradas é abusivo.
M. Estabelece o art. 334 do CC que "é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito".
N. Ora, o direito dos recorridos de plantar pinheiros junto à linha divisória (e de aí os conservar a cinco metros da propriedade do Recorrente) tem as consequências previstas nos artigos 1º a 58º da Petição Inicial.
O. Estão assim sob ameaça permanente o direito do autor ao sossego, tranquilidade e bem-estar, à sua integridade física (direito com tutela legal e até constitucional, nos termos do art. 70 do CC e art. 25 da CRP, respectivamente, com dignidade superior ao do réu) e até o seu direito de propriedade.
P. É manifesto que, in casu, o corte das galhas dos pinheiros que impendem sobre o logradouro do prédio do Recorrente não obstaria a que o telhado continuasse a ser pejado de caruma e, consequentemente, provocasse danos.
Q. Neste segmento, basta vislumbrar o Ac. do Tribunal da Relação do Porto, proc. nº 2899/05.5TBOAZ.P2, Desembargadora SILVIA PIRES, de 09.03.2010, disponível em www.dgsi.pt: “III - Contudo, quando é solicitado ao dono das árvores que proceda ao corte dos ramos e raízes que invadem a propriedade vizinha e este não corresponde ao solicitado, daqui decorre um incumprimento de uma obrigação que o fará incorrer na reparação de todos os danos a que deu causa com o seu incumprimento — art.° 798°, 562° e 566°, todos do C. Civil (…)”.
R. Assim, no modesto entendimento do recorrente, a douta decisão recorrida violou por errada interpretação e aplicação o disposto nos artigos 334°, 335°, 483°, 483º, e ss., 1346° e 1366° todos do Cód. Civil.
S. Face ao expendido, pede-se que se julgue procedente a apelação e se determine o prosseguimento dos presentes autos, sendo discutidos todos os factos articulados pelas partes, em Audiência Final.
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III.- Como resulta do disposto nos art.os 608.º, n.º 2, ex vi do art.º 663.º, n.º 2; 635.º, n.º 4; 639.º, n.os 1 a 3; 641.º, n.º 2, alínea b), todos do C.P.C., sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objecto do recurso.
Consideradas as conclusões acima transcritas a (única) questão a apreciar é a de saber se os autos oferecem elementos suficientemente sólidos que fundamentem a decisão de improcedência dos pedidos formulados pelo Apelante/Autor.
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B) FUNDAMENTAÇÃO

IV.- O Tribunal a quo considerou provado que:

1 - O lote de terreno dos Réus é confinante com o prédio urbano do Autor;
2 - Os Réus detêm a posse sobre o lote de terreno desde 1987, no qual existiam pinheiros plantados em data anterior à sua posse, que parte foram cortados em 2016 e os remanescentes três em setembro de 2018;
3 - O Autor adquiriu o direito de propriedade sobre o seu prédio por escritura publica datada de 16.01.2015;
4 - No prédio dos Réus existiu um pinheiro de grande porte localizado a cinco metros da estrema com o prédio do Autor, do qual caia caruma e pinhas para o prédio do Autor.
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V.- Face a estes factos, e enquadrando a situação sub judicio no Dec.- Lei n.º 124/2006, de 28 de Junho (arrimando-se ao Acórdão desta Relação de 15/09/2011 – Proc.º 3061/08.0TBGMR.G1), concluiu o Tribunal a quo que “Atendendo à causa de pedir fundamentadora da pretensão do Autor afigura-se-nos existir uma manifesta inviabilidade dos pedidos, desde o inicio da ação, sem prejuízo de, em relação aos identificados em b) e c) d), se ter entretanto verificado fundamento para a inutilidade superveniente da lide e, do pedido e reconhecimento do direito de propriedade peticionado em sob a al. a), assumir natureza manifestamente instrumental (não tendo sido sequer objeto de impugnação por parte dos Réus)”, decidindo que “face aos fundamentos de facto e direito invocados” os pedidos formulados são manifestamente improcedentes.
Em primeiro lugar cremos dever observar-se que, na fase em que o processo se encontra - a fase dos articulados já foi ultrapassada, mesmo relativamente aos que foram chamados a intervir no processo - o despacho a proferir já não poderá ser o da apreciação liminar da petição, previsto no art.º 590.º, n.º 1 do C.P.C., que o Tribunal a quo invoca (apesar de lançar mão de factos alegados na contestação de um dos Intervenientes Principais e extrair as consequências da sua não impugnação pelo Apelante/Autor), e sim o despacho saneador, no qual o tribunal, antes de conhecer do mérito da causa, nos termos da alínea b) do n.º 1 do art.º 595.º tem de conhecer das excepções dilatórias e das nulidades processuais, de acordo com a ordem estabelecida no art.º 278.º do mesmo Código.
Sem embargo, e ressalvado o respeito devido, não sufragamos os juízos conclusivos acima transcritos.
Com efeito, a situação que resulta dos autos, tal como o Apelante/Autor facticamente a configura, e mesmo como é configurada pelas demais partes processuais, não se enquadra no Diploma Legal citado, que estabelece as medidas e acções a desenvolver no âmbito do Sistema Nacional de Defesa da Floresta contra Incêndios.
O referido Dec.-Lei n.º 124/2006 conheceu nove alterações (a última das quais introduzida pelo Dec.-Lei n.º 14/2019, de 21/01), importando ter em consideração a que foi introduzida ao art.º 15.º pela Lei n.º 76/2017, de 17 de Agosto, entrada em vigor no dia seguinte ao da publicação.

O n.º 2 do referido preceito legal passou a dispor que:

“2 - Os proprietários, arrendatários, usufrutuários ou entidades que, a qualquer título, detenham terrenos confinantes a edifícios inseridos em espaços rurais, são obrigados a proceder à gestão de combustível, de acordo com as normas constantes no anexo do presente decreto-lei e que dele faz parte integrante, numa faixa com as seguintes dimensões:
a) Largura não inferior a 50 m, medida a partir da alvenaria exterior do edifício, sempre que esta faixa abranja terrenos ocupados com floresta, matos ou pastagens naturais;
b) Largura definida no PMDFCI, com o mínimo de 10 m e o máximo de 50 m, medida a partir da alvenaria exterior do edifício, quando a faixa abranja exclusivamente terrenos ocupados com outras ocupações.”.

Como se alcança do que vem alegado pelas Partes, o prédio urbano do Apelante/Autor não se situa num espaço rural, e (por comodidade de raciocínio posto que o Tribunal a quo não tomou posição sobre a questão) o possuído pelos Intervenientes Principais V. S. e M. M. tem também natureza urbana (trata-se, com efeito, de um lote de terreno destinado a construção, integrado no mesmo loteamento daquele), não se lhe aplicando, pois, o regime consagrado no supracitado art.º 15.º, com a redacção que lhe deu a referida Lei, que alterou ainda o processo de actuação da Câmara Municipal e dos proprietários confinantes em substituição dos proprietários, possuidores ou detentores dos terrenos obrigados a proceder à “gestão de combustível”, nos termos que aí vêm regulados nos n.os 3 a 21.
O art.º 1305.º do Código Civil (C.C.) atribui ao proprietário o gozo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, impondo-lhe, porém, os limites derivados da lei e as restrições por ela impostas.
As restrições podem ser de direito público ou de direito privado, resultando estas últimas das relações de vizinhança, e “têm em vista regular os conflitos de interesses que surgem entre vizinhos, em consequência da solidariedade dos seus direitos, ou seja, em virtude da impossibilidade de os direitos do proprietário serem exercidos plenamente sem afectação dos direitos dos vizinhos”, como referem PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA (in “Código Civil Anotado”, 2.ª ed., vol. II, pág. 95), que acrescentam dever entender-se que “além de estar sujeito às restrições ou limitações que a lei lhe impõe (dever de abstenção), o proprietário tem a obrigação de adoptar as medidas adequadas (dever de conteúdo positivo) a evitar o perigo criado pela sua própria actuação, ou decorrente, por outros motivos, das coisas que lhe pertencem (dever de prevenção do perigo)” (ob. e loc. cit.).
Podendo o proprietário de um imóvel opor-se à emissão de fumo, fuligem, vapor, cheiros, calor ou ruídos, como, a título de mero exemplo, vem mencionado no art.º 1346.º do C.C., é inegável que se poderá igualmente opor “às emissões de outros corpos sólidos” ou líquidos, de acordo com o princípio segundo o qual “as emanações directas de corpos sólidos sobre prédio vizinho são proibidas” – cfr., v.g., o Acórdão do S.T.J. de 6/07/2004 (in Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do S.T.J., ano XII, Tomo II, págs. 130-131) e na doutrina, v.g. PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, que citam Enneccerus-Wolff (in “Código Civil Anotado”, vol. III, 2.ª ed. revista e actualizada, pág. 177), e RUI PINTO e CLÁUDIA TRINDADE que afirmam que às “emissões imateriais”, à emissão de corpos sólidos ou líquidos “o proprietário do imóvel pode opor-se sem mais” (in “Código Civil Anotado”, coordenado por Ana Prata, Almedina, 2017, pág. 167).
Ora, o Apelante/Autor alega factos a sustentar cada um dos pedidos que formulou: a existência, no prédio (ao que foi alegado) possuído pelos Intervenientes Principais V. S. e M. M. de um pinheiro de grande porte, o qual apresenta uma inclinação bastante acentuada para o sentido do seu prédio urbano, cujos ramos “possuem bastantes pinhas e carumas”, que caem “num dos acessos … tanto à casa de habitação como aos anexos e garagem”, colocando-o, a ele Autor, e aos seus familiares “perante o risco iminente de serem atingidos por pinhas”, sendo ainda “manifestamente visível – com o passar do tempo – que o pinheiro se encontra na iminência de tombar, e provocar fortes e graves danos” no seu prédio urbano (ficou assente que o mencionado pinheiro se situa a cerca de cinco metros deste prédio, podendo ainda extrair-se do alegado por aquele Interveniente que a referida árvore não foi deixada com fins ornamentais nem, sequer, com a finalidade do aproveitamento da madeira para venda).
No que se refere aos danos alega o Apelante que: “as pinhas, carumas e ganos”, “com a força do vento, caem no telhado” da sua habitação, e que “a caruma acumulada no telhado e nos algerozes … provocou e provoca frequentes entupimentos, originando infiltração de humidade e fissuras nos tectos e nas paredes”, o que o obrigou a “mandar limpar várias vezes o telhado e os algerozes”, no que “despendeu a quantia não inferior a € 300” (cfr. artigo 46.º da P.I.), e contratou ainda “os serviços da empresa … para proceder à reparação dos danos causados pelo referido pinheiro” (descrevendo os trabalhos a executar (ou executados?) nos artigos 48.º a 50.º) “tendo esta apresentado um orçamento no valor de € 3.525,00” acrescido do IVA.
Funda o pedido indemnizatório pelos danos não patrimoniais alegando que “anda aborrecido e transtornado, pois não pode desfrutar do logradouro da casa despreocupadamente”, obrigando-se “a fechar permanentemente as portas das respectivas varandas, sob pena de entrar as carumas, pinhas e ganas para o interior dos quartos”, alegando ainda que “receia que a todo o momento, pinhas se desprendam e ganos, e caiam sobre ele e a sua família ou sobre os seus veículos automóveis” (cfr. artigos 52.º a 54.º).
Muito embora se saiba que a queda das pinhas, da caruma, e dos galhos, normalmente, é sazonal, o certo é que a facticidade acima referida, consubstanciadora da causa de pedir dos pedidos indemnizatórios formulados sob as alíneas e) e f), pelo menos numa avaliação perfunctória, revela-se objectivamente idónea para justificar os referidos pedidos.
Não há qualquer dispositivo legal a excluir a responsabilidade civil do dono, ou possuidor, do prédio emissor dos corpos sólidos, nas circunstâncias configuradas nos autos.
Sem embargo de os autos já conterem elementos suficientes para o tribunal se poder pronunciar sobre os pedidos formulados sob as alíneas b); c); e d) – posto se mostrarem assentes factos que demonstram ter ocorrido inutilidade superveniente da lide (tendo a acção dado entrada em 23/02/2018, os Intervenientes Principais V. S. e M. M. ou, pelo menos, aquele, terá procedido ao abate dos três pinheiros que restavam no lote de terreno, e à limpeza do solo, em Setembro do mesmo ano), os factos acima transcritos, que vêm impugnados, terão de passar ainda pelo crivo da prova.
Impõe-se, por isso, conceder provimento à pretensão do Apelante, determinando-se que os autos prossigam os seus termos.
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C) DECISÃO

Considerando quanto vem de ser exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente o presente recurso de apelação, consequentemente revogando o despacho impugnado, e determinando o prosseguimento dos autos com vista à apreciação dos pedidos formulados pelo Apelante.
Custas da apelação pela Apelada/Interveniente Principal (que contra-alegou e saiu vencida).
Guimarães, 01/10/2020

Fernando Fernandes Freitas
Alexandra Rolim Mendes
Maria Purificação Carvalho