Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3345/14.9T8GMR-D.G1
Relator: AFONSO CABRAL DE ANDRADE
Descritores: PENHORA
LIMITE DE IMPENHORABILIDADE
CRÉDITO LABORAL
PRIVILÉGIO CREDITÓRIO
PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/13/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário do relator :

1. O regime do art. 738º,1 CPC, que define as impenhorabilidades parciais, não contempla na sua letra a situação de um crédito privilegiado reconhecido no âmbito de processo especial de revitalização, relativo a créditos laborais (indemnização ou compensação pela cessação do contrato de trabalho).

2. Esse regime, no âmbito de um processo de insolvência, não pode ser aplicado analogicamente a tal situação porque a isso se opõe o art. 11º CC, o qual proíbe a aplicação analógica das normas excepcionais.

3. E igualmente não se justifica efectuar uma interpretação extensiva do dito normativo para abranger o referido crédito de indemnização laboral, porque o CIRE já regula, detalhada e cautelosamente, e de uma forma mais global, a forma de resolver o conflito permanente entre os interesses dos credores e o interesse do insolvente, salvaguardando sempre os interesses deste a uma existência condigna, mas sempre no contraponto com o objectivo central daquele processo especial, que é a satisfação dos direitos dos credores.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I- Relatório

Nos autos de insolvência dos quais foi extraído este recurso em separado, foi declarado insolvente LUÍS.

O Administrador da Insolvência veio pronunciar-se no sentido de que deve ser apreendido para os autos a totalidade do crédito reconhecido ao devedor no âmbito do processo nº 541/16.8T8GMR.
O insolvente pronunciou-se no sentido oposto.

Foi então proferido o seguinte despacho:

O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores (cfr. art.º 1.º do CIRE).

Estão sujeitos a apreensão no processo de insolvência todos os bens integrantes da massa insolvente, a qual abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo; quanto aos bens isentos de penhora só são integrados na massa insolvente se o devedor voluntariamente os apresentar e a impenhorabilidade não for absoluta (vide art.º 46.º, n.ºs 1 e 2, do CIRE).

Temos de entender que no processo de insolvência vigoram supletivamente, as regras constantes do art.º 824.º do CPC sobre a impenhorabilidade relativa de determinados bens, salvo se o insolvente voluntariamente os oferecer para apreensão.

Do salário auferido pelo insolvente são impenhoráveis dois terços do mesmo (cfr. art.º 824.º, n.º 1, a), do CPC). Esta regra sofre duas excepções, as quais são aplicáveis ao conjunto dos bens relativamente impenhoráveis constantes das alíneas a) e b) do n.º 1 do art.º 824.º do CPC.

Uma das excepções consiste em a impenhorabilidade relativa dos bens em causa ter como limite máximo o montante equivalente a três salários mínimos nacionais à data de cada apreensão.

No acórdão da Relação de Guimarães de 8.2.2018, disponível in www-dgsi.pt refere-se: “Na verdade, não obstante o processo em causa visar a satisfação dos interesses dos credores, não descura a salvaguarda dos meios de subsistência ao insolvente e seu agregado familiar. São reflexos dessa preocupação, por exemplo, o disposto nos arts. 84º, nº 1 e 239º, nº 3 b) -i do CIRE. Conforme se refere no Acórdão da Relação de Coimbra de 6/3/07 a propósito do disposto no art. 150º CPEREF que corresponde ao atual 84º, nº 1 do CIRE (in www.dgsi.pt) “subjacentes a tal normativo estão, por um lado, razões de humanidade ou dignidade humana, de forma a não privar o falido (e o seu agregado familiar) dos meios necessários ao seu sustento e, por outro, razões que visam estimulá-lo e encorajá-lo a “levantar a cabeça” e a providenciar, pelo menos, pela angariação, através do seu trabalho, do seu sustento (e quiçá do seu agregado familiar), e por forma a não prejudicar ainda mais os seus credores já que, no caso de tal não acontecer, os mesmos acabariam ainda por assistir à diminuição da massa falida (normalmente já de si insuficiente para dar cobertura total aos seus créditos), em virtude da retirada dela dos valores necessários para providenciar pelo sustento daquele (e porventura do seu agregado familiar)”.

Deste modo, não podem ser apreendidos para a massa insolvente os rendimentos do insolvente que se destinem a suportar economicamente a existência do devedor e seu agregado familiar.
Com efeito, dispõe o art. 738º, nº 1 do C. P. Civil, aplicável ao processo de insolvência por virtude do preceituado no art. 17º, nº 1 do CIRE, que são impenhoráveis dois terços das partes líquidas dos vencimentos, salários, prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de quaisquer outra regalia social, indemnização por acidente, renda vitalícia ou prestações de qualquer natureza que assegurem a subsistência do executado.”

Ora, no caso, parte da indemnização laboral atribuída ao Insolvente destina-se a ressarci-lo pela perda de rendimentos do trabalho, ou seja, para substituir estes rendimentos.

Mas a mesma, ainda apenas se encontra graduada como crédito privilegiado, não tendo sido efectuado qualquer pagamento.

Efectivamente depois da declaração de insolvência, a referida indemnização poderia ter-se destinado a prover ao sustento do Insolvente e seu agregado familiar, sendo que, neste caso obviamente, tal quantia poderá ser integrada na massa insolvente, tanto mais que o valor é superior ao que foi fixado no incidente de exoneração do passivo restante.

Resultam dos factos provados do despacho liminar do incidente de exoneração do passivo restante que:

1) O requerido é casado com Paula, desde 05/11/1993, sob o regime de separação de bens;
2) Fruto de tal casamento, nasceram 3 filhos, sendo um já maior e os demais menores, mas todos ainda estudantes e dependentes economicamente,
3) O requerido exerce de forma regular e estável a profissão de Técnico Oficial de Contas ao serviço de sociedade unipessoal por quotas “X- Unipessoal, Lda, bem como de forma independente à sociedade comercial “Y – Escola de Formação Profissional, Lda.”, auferindo o rendimento mensal líquido global de € 913,39;
4) Por seu turno, a sua esposa aufere, como professora dos 2º e 3º ciclos do ensino secundário, um vencimento mensal líquido de cerca de € 1.229,18,
5) O agregado familiar do requerido na forma descrita, tem despesas mensais certas e regulares, relativas à casa de morada de família, água, luz, gás, telefone, condomínio, mercearia, despesas escolares e de saúde;
6) A tais despesas acrescem ainda outras de carácter já não tão regular, mas que igualmente o agregado do requerido tem de suportar, tais como outras despesas de alimentação, de saúde, vestuário, calçado, livros escolares dos seus filhos, e ainda despesas de deslocação.
7) As suas dívidas, decorrem apenas de prestação de avales a instituições bancárias por via da sua qualidade de administrador da sociedade comercial “A. G., Filho & Companhia, S. A.”,

Com base nestes factos provados o Tribunal fixou o montante nestes termos: “Enfim, encurtando razões, a exclusão imposta pelo art. 239.º, n.º 3, b), i) afigura-se-nos poder ser aproximadamente do montante do salário mínimo nacional acrescido de metade. Reconhece-se que se trata dum montante –€750– que obrigará o requerente, que tem filhos a cargo a viver, nos próximos cinco anos, com comedimento e modéstia; não é preciso sequer qualquer elemento factual explícito para sustentar tal afirmação, uma vez que pertencem ao domínio dos factos públicos e notórios os gastos/despesas que é imprescindível efectuar para obter o indispensável para o sustento, habitação e vestuário dum agregado familiar de 5 pessoas, numa fase da vida dispendiosa.

Mas também temos de contrabalançar com o salário da esposa e mãe das crianças de €1.200,00, pelo que o rendimento global do agregado familiar será na ordem dos €2.000,00, apenas cedendo o requerente €150 mensais (aproximadamente a sua conta da Telecomunicações).”

Desta decisão não foi interposto recurso, aceitando o insolvente o montante que lhe foi fixado e que tem vindo a cumprir. Assim, tendo em conta os critérios de fixação do rendimento excluído da cessão (v. art. 239º, nº 3 – b) i) do CIRE), tem de presumir-se que o valor fixado nesse incidente para o insolvente foi o que se entendeu adequado para prover ao sustento minimamente digno daquele e seu agregado familiar, ao que este anuiu e tem sido suficiente.

Desta forma se a referida indemnização houvesse sido fixada na forma de renda, dúvidas sequer se levantariam de que, por ultrapassar o montante fixado como rendimento disponível, teria de integrar a cedência da massa.
Também no caso concreto, cremos que o referido crédito laboral, como defende o senhor A.I, deverá ser apreendido para a massa, no montante que vier a ser efectivamente atribuído em rateio, pois os bens que compõem a referida massa, podem não garantir o cumprimento/pagamento dos créditos, ainda que privilegiados, na totalidade dos trabalhadores”.

E assim, teve lugar a apreensão do referido crédito, para a massa insolvente.

Inconformado com esta decisão, o insolvente dela interpôs recurso, que foi recebido como de apelação, com subida em separado, e com efeito meramente devolutivo, findando a respectiva motivação com as seguintes CONCLUSÕES:

1. Não pode o recorrente concordar com o sentido da decisão proferida pelo Tribunal a quo.
2. Todo o sentido do raciocínio e considerações aí expendidas inculcam a ideia que o Tribunal a quo aceita como válido o argumento que a indemnização pela cessação de contrato de trabalho assume a natureza de prestação destinada a assegurar a subsistência de quem a recebe, e do seu agregado familiar, enquadrando-se na previsão do art. 738º, nº 1, do C.P.C., aplicável ao processo de insolvência em virtude do art. 17º, nº 1, do CIRE.
3. No entanto, e no caso sub judice, respeitante ao recorrente, o Tribunal a quo segue um critério que se afigura indeterminável e sem suporte legal, tal como resulta do seguinte parágrafo já supra citado.
4. Não aponta o Tribunal recorrido como e em que circunstâncias uma indemnização de natureza laboral poderia ser fixada em forma de “renda” – o que ainda assim não se trata do caso em análise –, bem como não aponta que período considera para permitir a conclusão que ultrapassaria o montante fixado como rendimento disponível ao recorrente.
5. No âmbito do processo nº 3353/14.0TBGMR, mediante igual pedido e em circunstâncias em tudo semelhantes (pessoais, económicas, familiares e de rendimento disponível fixado), o Tribunal a quo decidiu no sentido que a indemnização laboral aí em causa deveria ser considerada “relativamente impenhorável nos termos do disposto no art. 738º do CPC, aplicável por força do previsto nos arts. 17º, nº 1 e 46º, nº 2 do CIRE, excluindo-se da apreensão para a massa insolvente o montante equivalente a 2/3 da quantia global apreendida.”, ou seja, nos precisos termos do aí requerido pela insolvente.
6. O Tribunal a quo seguindo idêntico critério (que se afigura indeterminável, reitere-se) decidiu de forma diferente em situações iguais, tratando-se de créditos apreendidos com a mesma natureza, e apenas porque têm valores distintos.
7. Tal, na opinião do recorrente, e sempre com o devido respeito, não encontra qualquer suporte legal, para além de configurar decisão injusta, que transmite a ideia que o recorrente obteria decisão favorável caso tivesse direito a indemnização laboral de menor montante, ignorando que estas reflectem, precisamente, maior sacrifício de salários ou outros direitos não recebidos ou visam compensar maior antiguidade.
8. Assim, não se pode deixar de concluir que o Tribunal a quo, através do douto Despacho recorrido, fez errada interpretação e aplicação do disposto no art. 738º do C.P.C., aplicável ao caso em apreço por força do previsto nos arts. 17º, nº 1 e 46º, nº 2 do CIRE.

Não houve contra-alegações

II
As conclusões das alegações de recurso, conforme o disposto nos artigos 635º,3 e 639º,1,3 do Código de Processo Civil, delimitam os poderes de cognição deste Tribunal, sem esquecer as questões que sejam de conhecimento oficioso. Assim, e, considerando a natureza jurídica da matéria versada, a única questão a decidir consiste em saber se o crédito que consiste numa indemnização laboral concedida ao insolvente pode ser apreendido para a massa.

III
No relatório a que se refere o art. 155º CIRE, o sr. Administrador da Insolvência veio indicar como crédito passível de ser apreendido para a massa insolvente, um crédito privilegiado reconhecido no âmbito do processo especial de revitalização nº 3245/14.2T8GMR, relativo a créditos laborais (indemnização ou compensação pela cessação do contrato de trabalho), no montante de € 43.680,82.
E, apesar da oposição do insolvente, o Tribunal recorrido concluiu pela apreensão de tal crédito para a massa insolvente.

Questão: poderia tal crédito ter sido apreendido para a massa insolvente ?

Vejamos. A massa insolvente destina-se à satisfação dos credores da insolvência, depois de pagas as suas próprias dívidas, e, salvo disposição em contrário, abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo (art. 46º,1 CIRE).

Esta é, pois a regra: a massa insolvente abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo.

A excepção surge logo no número seguinte: “os bens isentos de penhora só são integrados na massa insolvente se o devedor voluntariamente os apresentar e a impenhorabilidade não for absoluta”.

Comentando este artigo, escrevem Carvalho Fernandes e João Labareda o seguinte: “Da conjugação do nº 1 com o nº 2 resulta que, em rigor, a massa não abrange a totalidade dos bens do devedor susceptíveis de avaliação pecuniária, mas tão só os que forem penhoráveis, e não excluídos por disposição especial em contrário, acrescidos dos que, não sendo embora penhoráveis, sejam voluntariamente oferecidos pelo devedor, conquanto a impenhorabilidade não seja absoluta”.

E acrescentam os mesmos autores: “o Código esclareceu que os bens advenientes ao devedor, seja a que título for, no decurso do processo, integrarão por regra a massa insolvente. Mas uma vez mais importa verificar se se trata ou não de bens em geral penhoráveis, pois nesta última hipótese a integração depende da oferta voluntária pelo insolvente. Irrelevante é a fonte da aquisição. Pode ser um acto gratuito -à cabeça dos quais figurará, em termos de probabilidade, a aquisição por morte-, como pode ser também um acto oneroso, (ainda que aleatório), praticado pelo devedor dentro dos apertados limites em que mantém legitimidade, como será, por exemplo, o caso de um prémio de lotaria. E tanto pode resultar de um acto voluntário do insolvente, como decorrer de algo que é alheio à sua vontade, o que sucederá, vg, em situações de acessão natural (cfr. art. 1327º CC)”.

Assentes estes conceitos básicos, importa agora apurar se o crédito em causa é penhorável. O CIRE não contém normas específicas sobre a matéria, mas remete para o Código de Processo Civil (art. 17º,1), em tudo o que não contrarie as suas próprias disposições.
E no CPC a matéria da impenhorabilidade consta actualmente dos arts. 735º e seguintes CPC.

De acordo com o art. 738º,1 CPC, são impenhoráveis dois terços da parte líquida dos vencimentos, salários, prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de qualquer outra regalia social, seguro, indemnização por acidente, renda vitalícia, ou prestações de qualquer natureza que assegurem a subsistência do executado.
E acrescenta o nº 3 que “a impenhorabilidade prescrita no nº 1 tem como limite máximo o montante equivalente a três salários mínimos nacionais à data de cada apreensão e como limite mínimo, quando o executado não tenha outro rendimento, o montante equivalente a um salário mínimo nacional.

Ou seja, o texto desta norma não prescreve a impenhorabilidade de indemnizações decorrentes da cessação do contrato de trabalho, como a que agora está em causa. O regime que se retira da norma jurídica citada é todo ele construído a pensar em prestações periódicas, como a comparação do nº 1 com o nº 3 facilmente revela.

Não está expressis verbis prevista neste artigo a impenhorabilidade de um crédito de indemnização por cessação do contrato de trabalho.

E é justamente essa a questão que se discute nestes autos. Deve ser feita uma aplicação analógica da norma em causa, de forma a estender o seu regime de impenhorabilidade a situações como a destes autos ?

A resposta tem de ser negativa; as normas jurídicas que estabelecem a existência de bens impenhoráveis são normas excepcionais, face à norma geral do art. 735º,1 CPC, que dispõe que “estão sujeitos à execução todos os bens do devedor susceptíveis de penhora que, nos termos da lei substantiva, respondem pela dívida exequenda”, e também face ao art. 601º CC, segundo o qual “pelo cumprimento da obrigação respondem todos os bens do devedor susceptíveis de penhora, sem prejuízo dos regimes especialmente estabelecidos em consequência da separação de patrimónios”.

E por imposição directa do art. 11º CC, as normas excepcionais não comportam aplicação analógica.
Apenas admitem interpretação extensiva.

A diferença entre uma e outra pode ser colhida com a habitual clareza dos Clássicos, no Código Civil anotado de Pires de Lima e Antunes Varela: “o recurso à analogia pressupõe a existência de uma lacuna da lei, isto é, pressupõe que determinada situação não está compreendida nem na letra nem no espírito da lei. Esgotou-se todo o processo interpretativo dos textos sem se ter encontrado nenhum que contemplasse o caso cuja regulamentação se pretende, ao passo que na interpretação extensiva, encontra-se um texto, embora para tanto, haja necessidade de estender as palavras da lei, reconhecendo que elas atraiçoaram o pensamento do legislador que, ao formular a norma, disse menos do que efectivamente pretendia dizer. Mas o caso está contemplado. Não há omissão”.

Dito isto, resta então uma última via a trilhar: saber se o regime de impenhorabilidade parcial do art. 738º,1 CC se deve estender à situação destes autos, o que só poderá suceder se, analisando o regime da insolvência constante do CIRE e o da impenhorabilidade constante do Código Civil, se concluir que o legislador ao gizar o regime da impenhorabilidade disse menos do que pretendia dizer, e por imperícia, deixou de fora do texto da norma a referência ao tipo de rendimentos agora em causa nestes autos.

Seguindo por este caminho, a primeira coisa que nos surge como óbvia é a profunda diferença entre o regime jurídico de um processo executivo, por definição singular, e o regime jurídico da insolvência, por natureza universal. No primeiro caso estamos perante a cobrança de uma determinada dívida ou dívidas, por um determinado credor, que irá agredir o património do devedor apenas para se cobrar de uma dívida que aquele não honrou voluntariamente. A vida económica do devedor, independentemente daquela intrusão concreta, segue o seu caminho como até aí, sem outras condicionantes que não sejam as decorrentes da penhora dos bens necessários para solver a obrigação exequenda.

Já no processo de insolvência, o que temos perante nós é algo de bem diferente.
É considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas (art. 3º,1).

Sobrevoando o CIRE a uma altitude média, que nos permita ter uma visão de conjunto do mesmo, começamos por vislumbrar logo de início a finalidade do mesmo: “o processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores (art. 1º,1).

Fica assim assente sem qualquer dúvida que o processo de insolvência tem uma única finalidade, que é a satisfação do interesse dos credores, na medida do possível (cfr. Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE anotado, 3ª edição, anotações ao art. 1º).

E vejam-se os efeitos da declaração de insolvência sobre toda a vida económica e financeira do insolvente: nos termos do art. 81º,1, a declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência. Ao devedor fica logo interdita a cessão de rendimentos ou a alienação de bens futuros susceptíveis de penhora, qualquer que seja a sua natureza, mesmo tratando-se de rendimentos que obtenha ou de bens que adquira posteriormente ao encerramento do processo (nº 2). O devedor passa a ser representado pelo administrador da insolvência para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência (nº 4).

E o art. 84º,1 prevê sobre os alimentos ao insolvente, aos trabalhadores e a outros credores de alimentos do insolvente. Dispõe o nº 1 que “se o devedor carecer absolutamente de meios de subsistência e os não puder angariar pelo seu trabalho, pode o administrador da insolvência, com o acordo da comissão de credores, ou da assembleia de credores, se aquela não existir, arbitrar-lhe um subsídio à custa dos rendimentos da massa insolvente, a título de alimentos.

Os efeitos da declaração de insolvência fazem-se sentir também nos contratos bilaterais celebrados pelo insolvente, como pode ver-se do art. 102º.

Importa ainda reter que, por força do art. 17º-E,1 CIRE, a decisão de nomear o Administrador Judicial provisório determina a suspensão das acções em curso para cobrança da dívida, extinguindo-se aquelas logo que seja aprovado e homologado plano de recuperação, salvo quando este preveja a sua continuação. E ainda mais: a decisão de homologar o plano de recuperação ou recusar a sua homologação vincula a empresa e os credores, mesmo que não hajam reclamado os seus créditos ou participado nas negociações, relativamente aos créditos constituídos à data em que foi proferida a decisão prevista no nº 4 do artigo 17º-C (art. 17º-F,10).

Supomos que aqui chegados já é possível começar a perceber como todo o regime do processo de insolvência anda à volta da satisfação do interesse dos credores, como objectivo central, e à volta deste gravitam o interesse do devedor, e até o próprio interesse público subjacente à tentativa de salvar empresas em situação económica difícil (daí o regime do processo especial de revitalização).

A nossa próxima paragem vai ser no artigo 239º CIRE, na redacção do Decreto-Lei n.º 79/2017, de 30 de Junho, com início de vigência a 1 de Julho de 2017. Que rege sobre a cessão do rendimento disponível. Conjugado com o artigo 241º, sobre as funções do fiduciário.

Pensamos ser meridianamente evidente que o que está na base deste regime jurídico é a tentativa de conciliar dois interesses contraditórios: por um lado o interesse do insolvente em conservar para si e para o seu agregado familiar a totalidade ou a maior parte possível dos seus rendimentos; por outro, o interesse dos credores, em haver para si a maior parte dos rendimentos do insolvente, para procurar recuperar as quantias de que ficaram desapropriados.

Como sempre acontece neste tipo de conflitos, importa atentar qual a directiva orientadora que emerge, umas vezes de forma directa e explícita, outras de forma implícita, da lei.

E, passe a redundância, devemos começar pelo princípio, o que implica repisar o que já dissemos, sobre o objectivo último do processo de insolvência, o qual foi exposto de forma clara pelo legislador, no preâmbulo deste diploma: o objectivo precípuo de qualquer processo de insolvência é a satisfação, pela forma mais eficiente possível, dos direitos dos credores”.

É esta a preocupação que subjaz a todos as regras e incidentes do processo de insolvência.

E o legislador cumpriu a sua missão. Depois de eleger este objectivo como central, delineou, traçou e executou um regime jurídico destinado a prossegui-lo. Quem analise atentamente esse regime jurídico vai encontrar não só afloramentos do que supra referimos como o conflito sempre presente entre o interesse do insolvente / devedor e o interesse dos credores, como sobretudo a forma de o resolver em cada caso concreto.

A referida preocupação central do Regime da Insolvência -a satisfação, pela forma mais eficiente possível, dos direitos dos credores- pode ser detectada a olho nú nos excertos dos dois artigos supra referidos.

Repare-se: o despacho inicial determina que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado período da cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, neste capítulo designada fiduciário, escolhida pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência, nos termos e para os efeitos do artigo seguinte (afloramento do interesse dos credores).

Integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor (afloramento do interesse dos credores).

E, com grande, enorme relevância para o caso que nos ocupa, “com exclusão do que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional” (afloramento do interesse do insolvente).

Durante o período da cessão, o devedor fica ainda obrigado a não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado (afloramento do interesse dos credores). Fica obrigado a exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregado, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja apto (afloramento do interesse dos credores). Fica obrigado a entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão (afloramento do interesse dos credores).

O fiduciário afecta os montantes recebidos, no final de cada ano em que dure a cessão ao pagamento das custas do processo de insolvência ainda em dívida (interesse do Estado); ao reembolso ao organismo responsável pela gestão financeira e patrimonial do Ministério da Justiça das remunerações e despesas do administrador da insolvência e do próprio fiduciário que por aquele tenham sido suportadas (interesse do Estado); ao pagamento da sua própria remuneração já vencida e despesas efectuadas; (interesse do Estado); à distribuição do remanescente pelos credores da insolvência, nos termos prescritos para o pagamento aos credores no processo de insolvência (afloramento do interesse dos credores).

E, finalmente, a assembleia de credores pode conferir ao fiduciário a tarefa de fiscalizar o cumprimento pelo devedor das obrigações que sobre este impendem, com o dever de a informar em caso de conhecimento de qualquer violação (afloramento do interesse dos credores).

Diz-nos ainda o art. 239º,4,c CIRE que durante o período da cessão, o devedor fica ainda obrigado a entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão.

Dentro da filosofia deste regime da insolvência, cuja luz orientadora já identificámos, o uso pelo legislador da expressão “imediatamente”, neste contexto, torna-se óbvio. Assenta ele numa mais que compreensível desconfiança por parte do legislador, e, logo, do intérprete, quanto à capacidade do insolvente em proteger o interesse dos seus credores e orientar as suas decisões nesse sentido.

Depois, temos ainda outros institutos que se mostram úteis para a ponderação a fazer aqui.
Referimo-nos à qualificação da insolvência como culposa ou fortuita, e a exoneração do passivo restante.

Dispõe o art. 186º,1 CIRE que “a insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência”.

Por outro lado, nos termos do art. 238º,1, o pedido de exoneração do passivo restante é liminarmente indeferido se (…); e seguem-se as várias circunstâncias que segundo o legislador tornam o devedor imerecedor desse benefício.

Da comparação entre estes dois regimes jurídicos, resulta uma grande proximidade teleológica, podendo os dois serem explicados com a necessidade sentida pelo legislador de “punir” aqueles devedores que com dolo ou culpa grave, tenham prejudicado os seus credores, e, ao invés, de “premiar” de alguma forma aqueles devedores que o não tenham feito.

E agora já estamos em condições de detectar a solução para este litígio.

O art. 17º CIRE remete para o Código de Processo Civil, mas com uma importantíssima ressalva: em tudo o que não contrarie as disposições do presente Código.

Ora, o CIRE já contém, como no breve resumo que fizemos procurámos demonstrar, um complexo emaranhado de normas destinadas a gerir os vários interesses em conflito ao longo de todo o processo, ou seja, o interesse dos credores, o interesse do insolvente, e ainda o interesse público.

Concretamente, e dentro da sua filosofia principal de protecção do interesse dos credores, o CIRE já contém um detalhadíssimo conjunto de normas destinadas a, temperando esse objectivo fundamental, salvaguardar o interesse do insolvente, fazendo caso a caso um equilíbrio fino entre os interesses em conflito.

Donde, e em conclusão, somos do entendimento que a norma do art. 738º,1 CC, aplicável ao processo de insolvência por força e nos termos do art. 17º CIRE, não carece de, nem deve, ser interpretada extensivamente. E isto porque, tendo em vista este processo específico, o legislador não disse menos do que pretendia dizer. A norma em causa, ao ser importada para o processo de insolvência, tem de ser interpretada e aplicada à luz da filosofia que o enforma, e aí, como vimos, o legislador estabeleceu um detalhado regime de salvaguarda do interesse dos credores e de protecção do interesse do insolvente, sempre com prevalência do primeiro sobre o segundo.

E assim, chegamos finalmente à solução, que passa por reconhecer que o art. 738º,1 CPC, aplicado ao processo de insolvência por força do art. 17º CIRE, não impede a apreensão para a massa insolvente da indemnização laboral atribuída ao Insolvente.

Procurando ser mais claro, a preocupação com o limiar mínimo de subsistência para o devedor, que se manifestou no processo executivo mediante a fixação da impenhorabilidade parcial das prestações periódicas como os salários e vencimentos, no processo de insolvência, justamente devido às particularidades deste como processo universal, manifestou-se e manifesta-se de forma diferente, através das regras que supra analisámos, da qualificação da insolvência como culposa ou fortuita, da exoneração do passivo restante, e da cessão do rendimento disponível nos termos regulados no art. 239º, entre outras.

Daí que a decisão recorrida faça, e bem, a ponderação global da situação do recorrente, elencando os seguintes factos: 1) O requerido é casado com Paula, desde 05/11/1993, sob o regime de separação de bens; 2) Fruto de tal casamento, nasceram 3 filhos, sendo um já maior e os demais menores, mas todos ainda estudantes e dependentes economicamente; 3) O requerido exerce de forma regular e estável a profissão de Técnico Oficial de Contas ao serviço de sociedade unipessoal por quotas “X- Unipessoal, Lda, bem como de forma independente à sociedade comercial “Y – Escola de Formação Profissional, Lda.”, auferindo o rendimento mensal líquido global de € 913,39; 4) Por seu turno, a sua esposa aufere, como professora dos 2º e 3º ciclos do ensino secundário, um vencimento mensal líquido de cerca de € 1.229,18; 5) O agregado familiar do requerido na forma descrita, tem despesas mensais certas e regulares, relativas à casa de morada de família, água, luz, gás, telefone, condomínio, mercearia, despesas escolares e de saúde; 6) A tais despesas acrescem ainda outras de carácter já não tão regular, mas que igualmente o agregado do requerido tem de suportar, tais como outras despesas de alimentação, de saúde, vestuário, calçado, livros escolares dos seus filhos, e ainda despesas de deslocação; 7) As suas dívidas, decorrem apenas de prestação de avales a instituições bancárias por via da sua qualidade de administrador da sociedade comercial “A. G., Filho & Companhia, S. A.”.

E depois pondera: “enfim, encurtando razões, a exclusão imposta pelo art. 239.º, n.º 3, b), i) afigura-se-nos poder ser aproximadamente do montante do salário mínimo nacional acrescido de metade. Reconhece-se que se trata dum montante –€750– que obrigará o requerente, que tem filhos a cargo a viver, nos próximos cinco anos, com comedimento e modéstia; não é preciso sequer qualquer elemento factual explícito para sustentar tal afirmação, uma vez que pertencem ao domínio dos factos públicos e notórios os gastos/despesas que é imprescindível efectuar para obter o indispensável para o sustento, habitação e vestuário dum agregado familiar de 5 pessoas, numa fase da vida dispendiosa. Mas também temos de contrabalançar com o salário da esposa e mãe das crianças de €1.200,00, pelo que o rendimento global do agregado familiar será na ordem dos €2.000,00, apenas cedendo o requerente €150 mensais (aproximadamente a sua conta da Telecomunicações).” E desta decisão não foi interposto recurso, aceitando o insolvente o montante que lhe foi fixado e que tem vindo a cumprir. Assim, tendo em conta os critérios de fixação do rendimento excluído da cessão (v. art. 239º, nº 3 – b) i) do CIRE), tem de presumir-se que o valor fixado nesse incidente para o insolvente foi o que se entendeu adequado para prover ao sustento minimamente digno daquele e seu agregado familiar, ao que este anuiu e tem sido suficiente.
Desta forma se a referida indemnização houvesse sido fixada na forma de renda, dúvidas sequer se levantariam de que, por ultrapassar o montante fixado como rendimento disponível, teria de integrar a cedência da massa.

Finalmente, se formos pesquisar Jurisprudência sobre esta questão, a decisão mais recente que localizámos é o Acórdão do STJ de Março de 2018, que surge assim sumariado:

I Resulta do disposto no artigo 735º, nº1 do CPCivil que «Estão sujeitos à execução todos os bens do devedor susceptíveis de penhora que, nos termos da lei substantiva, respondem pela dívida exequenda.».
II Não obstante em abstracto, o património do devedor na sua totalidade esteja afecto ao ressarcimento das suas obrigações, a Lei estabelece limitações a tal princípio, vg, decorrentes de interesses vitais do executado, que o sistema entende deverem sobrepor-se aos do credor exequente, sendo que as mesmas podem resultar numa impenhorabilidade absoluta e total, numa impenhorabilidade relativa, ou numa impenhorabilidade parcial.
III O artigo 738º, nº1 do CPCivil, ressalva da possibilidade de serem penhorados «dois terços da parte líquida dos vencimentos, salários, prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de qualquer outra regalia social, seguro, indemnização por acidente, renda vitalícia, ou prestações de qualquer natureza que assegurem a subsistência do executado.».
IV Quando a Lei fala da impenhorabilidade parcial de prestações periódicas provenientes, além do mais, do exercício da actividade laboral quis apenas referir-se a estas e não já a quaisquer outros créditos, vg, indemnizações e/ou compensações devidas pela cessação das funções exercidas a esse titulo, pois aqui entramos na penhora de direitos de crédito, tout court, a que alude o artigo 773º do CPCivil.
V As normas processuais referentes à impenhorabilidade de bens, são normas excepcionais relativamente à regra geral da afectação do património do devedor à satisfação dos direitos do credor, apanágio da garantia geral das obrigações aludida no artigo 601º do CCivil, normas essas que são insusceptíveis de aplicação analógica, artigo 11º do CCivil.
VI Uma indemnização proveniente da cessação do exercício da actividade profissional do Executado, não obstante o respectivo cálculo tenha tido apoio no vencimento mensal então auferido, não poderá ser considerada como um lugar paralelo equivalente a «prestação periódica» e por isso não está o seu montante sujeito às limitações do nº1 do artigo 738º do CPCivil, podendo ser penhorado na sua totalidade.

E a argumentação que se retira deste Acórdão do Supremo, para a qual remetemos, parece-nos cristalina e esgota a questão.

Uma última nota, para dizer que a referência feita pelo recorrente na sua conclusão 5ª, a de no âmbito de um outro processo, mediante igual pedido e em circunstâncias em tudo semelhantes (pessoais, económicas, familiares e de rendimento disponível fixado), o Tribunal a quo ter decidido no sentido oposto, não serve como argumento para este recurso. A existir alguma contradição no pensamento do Julgador -o que apenas se admite a benefício da discussão- ela não tem qualquer papel no julgamento do presente recurso, o qual só tem por objecto a decisão proferida nestes autos. A decisão proferida pelo mesmo Tribunal noutro processo, ainda que sobre situação de facto semelhante, é de todo irrelevante para nós.

E assim, falecem todos os argumentos do recorrente, restando confirmar a decisão recorrida.

IV - DECISÃO

Por todo o exposto, este Tribunal da Relação de Guimarães decide julgar o recurso totalmente improcedente, confirmando na íntegra a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente (art. 527º,1,2 CPC).
Data: 13/9/2018

Relator
­(Afonso Cabral de Andrade)

1º Adjunto
(Alcides Rodrigues)

2º Adjunto
(Joaquim Boavida)