Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
556/22.7T8PRG-A.G1
Relator: GONÇALO OLIVEIRA MAGALHÃES
Descritores: DIREITO À PROVA
ALTERAÇÃO DA FORMA PROCESSUAL
JULGADOS DE PAZ
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/01/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I – A anulação de um ato processual, nos termos previstos no art. 195 do CPC, apenas implica a anulação dos atos processuais subsequentes que dele dependam absolutamente; não tem, portanto, qualquer repercussão nos atos processuais anteriores.
II – Quando, em consequência da alteração do valor processual, a ação passe a seguir forma que imponha às partes o ónus de apresentarem a prova com os articulados, o que até então não sucedia, o juiz deve, no exercício do poder funcional de gestão, providenciar pela adequação da sequência de atos a praticar de modo a conferir-lhes essa oportunidade, assim evitando uma limitação não justificada do direito à prova.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I.
1) AA e BB propuseram, no Julgado de Paz ..., através de requerimento por ambos subscrito, a presente ação, que classificaram como declarativa constitutiva, contra CC e DD, pedindo que seja declarado que: (i) o prédio rústico sito na União das Freguesias ... e ..., descrito na matriz ...9... e inscrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ...10, não se encontra em situação de compropriedade e “atualmente já foi alterada a sua natureza, confrontações e configurações, pelo que deverá ser eliminado e dar origem” (sic) aos dois prédios que descreveram; (ii) estes dois prédios são autónomos e distintos um do outro, tendo as áreas, as descrições e os sinais identificadores referidos no requerimento inicial.
Atribuíram à ação o valor de € 2 436,20 e apresentaram dois documentos.
Os requeridos, CC e DD, foram citados para, em dez dias, apresentarem contestação, nos termos do disposto no art. 45 da Lei n.º 78/2001, de 13.07, o que fizeram, arguindo, para além do mais, a incompetência dos Julgados de Paz em razão da matéria e em razão do valor e a nulidade de todo o processo decorrente da ineptidão da petição inicial.
Requereram a realização de perícia destinada a definir o valor do prédio identificado pelos Autores.
Os Autores pronunciaram-se sobre as exceções dilatórias arguidas pelos Réus, pugnando pela sua não verificação.
Por despacho de 18 de fevereiro de 2022, a Exma. Sra. Juíza de Paz: (i) julgou não verificada a exceção dilatória da incompetência em razão da matéria; (ii) determinou a realização da perícia requerida pelos Réus, para ficar habilitada a decidir a exceção dilatória da incompetência em razão do valor; e (iii) julgou não verificada a exceção dilatória da nulidade de todo o processo decorrente da ineptidão da petição inicial.
Os autos foram remetidos ao Juízo Local Cível ..., a título devolutivo, para a realização da perícia. Concluída esta, a Exma. Sra. Juíza de Paz proferiu despacho, datado de 13 de outubro de 2022, em que fixou o valor processual da ação em € 874 000,00 e, na sequência, julgou verificada a exceção dilatória da incompetência em razão do valor e determinou a remessa dos autos ao Juízo Local Cível ... para a subsequente tramitação da ação, com aproveitamento dos atos entretanto praticados.
Recebidos os autos no Juízo Local Cível ..., os Autores foram convidados a constituir mandatário judicial, o que fizeram, apresentando a respetiva procuração forense.
Por despacho de 15 de fevereiro de 2023, foi declarada a incompetência em razão do valor do Juízo Local Cível ... e determinada a remessa dos autos para o Juízo Central Cível ....
Recebidos os autos no Juízo Central Cível ..., por despacho de 15 de março de 2023, foi agendada uma audiência prévia com “as finalidades previstas no art. 591º, n º 1, a) a g), do C.P.C., e ainda para as partes poderem apresentar os respetivos requerimentos Probatórios.”
A audiência prévia foi realizada no dia 17 de maio de 2023, constando da respetiva ata o seguinte:
“Após, nos termos do art. 591º, n º 1, a), do C.P.C., o Mmº. Juiz tentou a conciliação das partes.
Não foi possível alcançar tal conciliação, uma vez que as partes mantêm a divergência expressa nos seus articulados.
De seguida, o Mmº. Juiz convidou os Autores a aperfeiçoarem a petição inicial, no sentido de, indicarem a composição e confrontações do seu prédio, assim como a traduzirem em factos, a invocada autonomização, individualização e demarcação dos prédios e ainda, a invocarem os atos de posse, traduzidos em factos, exercidos sobre o prédio e a apresentarem requerimento probatório, assim como o mandatário dos Réus, a apresentarem o seu requerimento probatório.
Pela mandatária dos Autores foi dito não estar em condições de fazer o aperfeiçoamento em causa de imediato, requerendo 10 dias para o efeito.
O Mmo. Juiz concedeu então aos Autores o prazo de 10 dias para aperfeiçoarem a p.i. e apresentarem o requerimento probatório e o prazo de 10 dias aos Réus para, uma vez notificados do aperfeiçoamento, poderem exercer o contraditório quanto ao objeto de aperfeiçoamento e poderem apresentar o seu requerimento probatório.”
Por requerimento apresentado no dia 29 de maio de 2023, os Autores apresentaram petição inicial aperfeiçoada e, no final desse articulado, sob a epígrafe “Prova”, requereram: (i) o depoimento dos Réus à matéria de facto alegada nos arts. 1.º e 4.º a 14.º da petição inicial; (ii) a inspeção ao prédio identificado; (iii) a inquirição das seis testemunhas que identificaram.
No dia 12 de junho de 2023, os Réus exerceram o contraditório relativamente à petição inicial aperfeiçoada.
No dia 20 de junho de 2023, depois de se consignar que “as partes manifestaram a vontade em que se dispensasse a audiência prévia”, foi proferido: (i) despacho saneador a afirmar, em termos tabulares, a verificação dos pressupostos processuais e a inexistência de nulidades ou questões prévias; (ii) despacho a identificar o objeto do litígio; (iii) despacho a enunciar os temas da prova; e (iv) despacho a admitir “o depoimento de parte dos R.R., à matéria dos temas da prova”, e o “rol de testemunha indicado pelos A.A.” No mesmo despacho, determinou-se a notificação das partes para, querendo, alterarem os respetivos requerimentos probatórios.
Notificados, os Réus apresentaram, no dia 6 de julho de 2023, dois requerimentos: um em que reclamaram do despacho de identificação do objeto do litígio e do enunciado dos temas da prova; outro em que arguiram as seguintes nulidades processuais: (i) a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento da petição inicial em audiência prévia e não através de despacho proferido em momento anterior; (ii) a prolação do despacho saneador por escrito e não em sede de audiência prévia.
No dia 21 de setembro de 2023, foi proferido despacho do seguinte teor:
“Da nulidade da audiência prévia:
Entendem os R.R. que, a audiência prévia é nula, por nela se haver feito um convite aos A.A. ao aperfeiçoamento da p.i. e a apresentarem requerimento probatório, porquanto, tal convite tinha que ser realizado em despacho pré-saneador.
Admitindo-se que o convite tivesse que ser formulado em despacho pré-saneador, importa dizer que foi o que aconteceu, ou seja, o convite ao aperfeiçoamento foi formulado em despacho anterior ao saneador, despacho este (saneador), previsto no art. 595º, do C.P.C., que só teve lugar depois do convite ao aperfeiçoamento.
E, portanto, entendemos não ter ocorrido, nesta parte, qualquer nulidade.
Mas se acaso assim não se entender, ou seja, se acaso se entender que o convite ao aperfeiçoamento não teve lugar em despacho pré-saneador e se haja assim violado o art. 590º, n º 2, b), do C.P.C., ainda assim, entendemos não consubstanciar tal, qualquer nulidade.
É que, não estando prevista a violação do referido preceito legal como configurando uma nulidade, só poderá configurar nulidade se a irregularidade cometida puder influir no exame ou na decisão da causa – art. 195º, n º 1, do C.P.C.
Ora, não foi invocado e também não vislumbramos, em que é que, o facto de o convite ao aperfeiçoamento não ter sido formulado num despacho antes de se marcar a audiência prévia e só ter sido formulado no início da mesma, possa influir no exame ou decisão da causa.
Mas mesmo que assim não fosse, ou seja, ainda que houvesse nulidade, o tribunal só dela podia conhecer sobre reclamação dos interessados – art. 199º, do C.P.C.
E porque o mandatário dos R.R. estava presente quando fora cometida, só podia ser arguida enquanto o ato não terminasse – art. 199º, n º 1, do C.P.C.
Nada disto ocorreu, pelo que, a haver a nulidade invocada, ela mostrar-se-ia sanada.
Pelo exposto, julgo improcedente a exceção de nulidade invocada.
Da nulidade do despacho saneador:
Não nos parece que haja nulidade do despacho saneador por no mesmo não se haver apreciado as exceções dilatórias invocadas pelos R.R.
Isto porque, os R.R. invocaram a exceção de ineptidão da p.i., que já havia sido apreciada pelo julgado de paz, como improcedente, por decisão transitada em julgado.
Relativamente à nulidade decorrente de não ter havido lugar a audiência prévia, dir-se-á o seguinte: é um facto que “em nenhures dos autos se atesta que a audiência prévia tenha sido dispensada pelas partes”.
Mas é também um facto que, os srs. advogados e o juiz acordaram que, depois de realizado o aperfeiçoamento da p.i. e exercido o contraditório quanto a esse aperfeiçoamento, não havia necessidade de realização de audiência prévia, devendo ser proferido despacho saneador por escrito e notificado às partes.
E foi por essa razão que o juiz proferiu despacho saneador, sem marcar audiência prévia.
Mas como tal não ficou a constar da ata e o que “não está no processo não está no mundo”, tem que se assentar, para efeitos processuais, em que o referido no penúltimo parágrafo supra não ocorreu.
E assim sendo, cremos podermos assentar em ter sido violado o art. 591º, do C.P.C.
Podendo tal não realização da audiência prévia influir no exame e decisão da causa, haverá, então, uma nulidade.
E a mesma foi arguida tempestivamente.
Pelo exposto, julgo procedente a nulidade do despacho saneador e, em consequência, anulo-o.”
Na sequência, foi realizada audiência prévia, no dia 19 de outubro de 2023, na qual foram oralmente proferidos (i) despacho saneador, (ii) despacho a identificar o objeto do litígio, (iii) despacho a enunciar os temas da prova e (iv) despacho a admitir “o depoimento de parte dos R.R. à matéria dos temas da prova” e o “rol de testemunha indicado pelos A.A.”
Nesse despacho acrescentou-se:
“Em ordem a fundamentar-se a admissão dos meios de prova supra referidos, dir-se-á o seguinte:
Este processo iniciou-se no julgado de paz, onde foi apresentado o requerimento inicial.
À luz da Lei n º 78/2001, de 13-07, que regula a competência, organização e funcionamento dos julgados de paz e a tramitação dos processos da sua competência, os ali A.A. não estavam obrigados a apresentar requerimento probatório, no requerimento inicial.
Como diz o art. 59º, n º 1, do referido diploma legal, as provas são apresentadas até ao dia da audiência de julgamento.
Havendo um preceito especial que regulamenta a referida matéria e que era aplicável ao processo instaurado no julgado de paz, não compreendemos como possa considerar-se que ao mesmo era aplicável, a este propósito, o art. 552º, n º 2, do C.P.C., que exige que, no final da petição inicial, o autor deva apresentar o rol de testemunhas e requerer outros meios de prova.
Tendo instaurado o processo no julgado de paz, os A.A. não tinham que apresentar requerimento probatório com o requerimento inicial.
E nem sequer estavam onerados em apresentar tal requerimento probatório em qualquer momento processual anterior ao dia da audiência de julgamento, estivesse o processo pendente, o tempo que fosse, no julgado de paz, precisamente porque a lei só impunha que esse requerimento probatório fosse apresentado no dia da audiência de julgamento.
Não tendo o processo chegado à fase da audiência de julgamento, os A.A. não tinham que ter apresentado requerimento probatório e, consequentemente, não se precludiu o direito a apresentarem, no julgado de paz, tal requerimento.
Tendo o julgado de paz declarado a sua incompetência para conhecer da causa, não podiam os A.A. ver frustrada a sua expectativa legal, que lhes era conferida pelo art. 59º, n º 1, supra referido, de poderem vir a apresentar a prova ulteriormente.
Tendo o processo passado para o tribunal judicial, teria que se realizar uma adequação processual, permitindo às partes apresentarem os seus requerimentos probatórios, uma vez que, anteriormente, não estavam legalmente obrigadas a apresentá-los.
E foi o que se procurou fazer ao conceder-se às partes 10 dias para apresentarem os seus requerimentos probatórios.
Situação algo semelhante à dos autos foi apreciada no Ac. da RG de 28-09-2023, na dgsi, onde se decidiu que: “I - Na ação de processo comum em que se transmutou o requerimento de injunção a oportunidade de apresentação de prova ocorre quando é usada a faculdade conferida pelo art. 10º, nº 3, do DL nº 62/2013, e o juiz convida as partes a aperfeiçoar as peças processuais. Nesta situação, quando autor e réu apresentam a petição inicial e a contestação aperfeiçoadas devem, em cumprimento das disposições dos arts. 552º, nº 6 e 572º, al, d) do CPC, apresentar todos os meios de prova. Porém, não sendo usada esta faculdade, tem que ser dada possibilidade às partes de apresentarem os seus meios de prova, o que deve suceder em despacho autónomo proferido com essa finalidade, ao abrigo do disposto nos arts. 6.º e 547.º do CPC. II – Se na ação, após a distribuição e consequente transmutação em ação de processo comum, apenas foi proferido um despacho que concedeu à autora a possibilidade de se pronunciar sobre a exceção deduzida na oposição e um outro despacho que conferiu à ré a possibilidade de se pronunciar sobre a litigância de má fé invocada, nada obsta a que seja proferido despacho convidando ambas as partes a apresentarem os seus meios de prova, não tendo este último despacho sido proferido depois de já estar precludido o direito da autora, porquanto de nenhum daqueles dois primeiros despachos decorre a obrigação de a autora apresentar prova (salvo quanto à matéria da exceção)”.
Por outro lado, os A.A. até apresentaram requerimento probatório logo no requerimento inicial, pois que, juntaram com o mesmo 2 documentos.
Tanto bastava para que, ainda que se entenda que os A.A. só podiam alterar o seu requerimento probatório, o pudessem alterar na audiência prévia - art. 598º, n º 1, do C.P.C.
E se tal alteração podia ocorrer na audiência prévia, por maioria de razão haveria de poder ocorrer em momento anterior.
 E se dispensada a realização da audiência prévia, as partes hão-de poder alterar o requerimento probatório em momento posterior (pois não se pode frustrar o direito que tinham em fazê-lo em audiência prévia, quando contavam com a possibilidade legal de tal diligência vir a ter lugar).
E essa alteração do requerimento probatório pode traduzir-se, nomeadamente, na indicação de outros meios de prova, como seja, arrolar testemunhas ou requerer o depoimento de parte da contraparte ou inspeção judicial, quando antes apenas se juntara documentos.
No sentido exposto, parece-nos ir a jurisprudência e a doutrina, de que é exemplo o Ac. da RL de 30-03-2023, na dgsi, onde se sumariou o seguinte: “II - Resulta da letra da lei e da interpretação sistemática a fazer por contraponto com o n.º 2 do art.º 598º do Código de Processo Civil que a possibilidade de alteração do requerimento probatório efetuado não impede a parte de vir a indicar testemunhas em sede de audiência prévia ainda que na p.i. tenha efetuado requerimento probatório que não contemplasse este meio de prova.”
Assim, quer porque os A.A. não estavam obrigados a, anteriormente ao momento em que apresentaram requerimento probatório, terem-no apresentado e porque, tendo apresentado requerimento probatório no requerimento inicial, sempre o poderiam ter alterado, nos termos em que o alteraram e até ao momento processual em que o alteraram, não há fundamento para não admitir o requerimento probatório.”
***
2) Inconformados com o despacho que antecede, os Réus interpuseram o presente recurso, no qual formularam as seguintes conclusões (transcrição):

“1.ª Por razões de economia processual e por se encontrar espelhada no processo pelos diferentes atos e peças processuais, dá-se aqui por reproduzida e integrada a factualidade elencada sob a epígrafe “I – Os Antecedentes processuais da decisão recorrida”.
2.ª A imparcialidade visa assegurar a equidistância do juiz em relação às partes e ao litígio; é uma garantia essencial das partes e da comunidade em geral no que respeita ao tribunal e, como tal, constitui uma exigência do processo equitativo.
3.ª A imparcialidade é um direito processual fundamental e manifestação do direito de acesso à justiça – cf., Jorge Miranda, Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, vol. III, 2007, pg. 43, e M. Teixeira de Sousa, Estudos sobre o novo processo civil, 2.ª ed., 1997, pg. 40 e Ac. TC n.º 86/88, de 13.4.1988.
4.ª A forma como o Tribunal a quo tem gerido o processo, nomeadamente, a declaração de ter apreciado as exceções quando efetivamente delas não conheceu, conjugada com a limitação dos efeitos da adequação formal aos AA., é, objetivamente considerada, suscetível de gerar fundadas dúvidas sobre a imparcialidade do julgador, evidenciando que, ainda na fase vestibular do processo, já formou a sua convicção decisória, de que é manifestação inequívoca o completo desprezo pelas exceções invocadas pelos RR. que lhe cumpria conhecer, e cujo conhecimento dispensaria, tão manifesta é a procedência dessa matéria excetiva, o prosseguimento dos autos, e, nomeadamente, a necessidade de interposição do presente recurso.
5.ª A realização de nova audiência prévia, ocorrida em 19.10.2023, significa, e só pode significar, que a anteriormente realizada em 17.5.2023 foi considerada írrita e sem efeito pelo Tribunal a quo;
6.ª Consequentemente, todas as decisões proferidas na audiência prévia de 17.5.2023 deixaram de produzir efeitos, nomeadamente o convite aos AA. para o aperfeiçoamento da petição inicial e apresentação de requerimento probatório;
7.ª Donde, era defeso ao Tribunal a quo admitir o requerimento probatório com base num despacho que deixou de ter eficácia por ter sido proferido em audiência prévia dada sem efeito no seguimento da procedência da nulidade processual arguida pelos RR (art. 195.º, n.º 2, do CPC;
8.ª O convite ao aperfeiçoamento e à apresentação de requerimento probatório, para ser eficaz (independentemente da questão da sua (in)admissibilidade) teria que ser (re)formulado na (nova) audiência prévia de 19.10.2023, o que não aconteceu, pelo que os meios de prova em causa não podiam ser admitidos.
9.ª As regras legais que disciplinam a apresentação dos meios de prova estabelecem verdadeiro ónus para as partes, constituindo normas preceptivas;
10.ª Não tendo os AA. arrolado prova testemunhal na petição inicial não podem vir depois indicar testemunhas a titulo de alteração ou aditamento a um rol inexistente – cf., Ac. RC de 5.12.2000, CJ, ano 25, t.5, pg. 36, Ac. RP de 8.5.2000, P. 0050427, Ac. RC de 14.7.2010, P. 973/09, Ac. RL de 11.1.2018, P. 2137/13, Ac. RE de 14.1.2021, P. 34153/19.
11.ª Por outro lado, os acórdãos invocados pelo Tribunal a quo em abono da sua tese não cobram aplicação ao caso dos autos por versarem sobre situações fáctico jurídicas distintas da sub juditio, conforme se deixou demonstrado no corpo das alegações;
12.ª Por força da declaração, com trânsito em julgado, da incompetência em razão do valor a instância no Julgado de Paz, extinguia-se, por via dessa extinção, precludiu o direito de os AA. apresentarem, ao abrigo do art. 59.º, n.º 1, da Lei n.º 1, da Lei n.º 78/2001, os meios de prova até à audiência final;
13.ª Precludido esse direito, não pode o mesmo ser renovado ou “ressuscitado” ao abrigo do princípio da adequação formal, pois, sendo um ónus da parte, a sua inobservância não pode gerar um convite para a apresentação serôdia do requerimento probatório – cf., Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao NCPC, vol. I, 2.ª ed., pg. 475;
14.ª Ou seja, a falta de apresentação de determinado meio de prova não pode ser suprida pelo Tribunal, sob pretexto do convite para o aperfeiçoamento de articulado.
15.ª Sustentar-se que a parte que não indicou tempestivamente determinados meios de prova o possa vir a fazer ulteriormente desvirtua totalmente o sentido das normas que, visando a disciplina da atividade probatória e o regular andamento da causa, estabelecem momentos próprios para a sua apresentação; tal interpretação leva à abrogação pura e simples dos arts. 552.º, n.º 1 e 2 e 572.º, n.º 2, al. d) do CPC e viola a garantia constitucional do processo equitativo;
16.ª O convite ao aperfeiçoamento deve destinar-se apenas a corrigir as deficiências puramente processuais do articulado (insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto, e tem de ser entendido nesses rigorosos limites) – cf., Ac. STJ de 21.11.2006, P.06A3687, Ac. RC de 2.5.2013, P. 9184/11, Ac. RC de 18.10.2016, P. 203848/14, e Ac. RG de 15.2.2018, P. 159;
17.ª Mesmo que se entendesse que o requerimento probatório podia ser alterado pelo facto de os AA. terem junto dois documentos com a petição inicial, o certo é que a alteração não teve lugar na audiência prévia nem partiu da iniciativa dos AA., pelo que não tem aplicação o disposto no art. 598.º, n.º 1 do CPC;
18.ª O princípio da adequação formal não pode servir de pretexto para a postergação de regimes imperativos fixados na lei, como é o caso dos prazos para requerimento dos meios de prova, ou a sua alteração;
19.ª A justa composição do litígio, visada pelo principio da adequação formal, tem que ser alcançada sempre com o respeito integral dos princípios estruturantes do processo civil, nomeadamente o da igualdade das partes – cf., Ac. RC de 29.10.2013, P. 2642/04, Ac. RC de 20.12.2011, P. 545/09, Ac. RG de 11.10.2018, P. 14/15;
20.ª Pelo facto de a ação ter sido intentada no Julgado de Paz, os RR. ficaram impedidos de deduzir reconvenção (cf., art. 48.º, n.º 1, da Lei n.º 78/2001), ao contrário do que sucederia se a causa tivesse sido ajuizada no Tribunal Judicial como deveria ter sido, e veio a ser decidido;
21.ª Para garantir a igualdade das partes, a admissão dos meios de prova teria de ser acompanhada do convite aos RR. para deduzirem reconvenção;
22.ª A admissão do tardio requerimento probatório apresentado pelos AA., conjugada com a não concessão aos RR. da faculdade de deduzir reconvenção, viola o princípio da igualdade das partes – consagrado constitucionalmente no art. 13.º, n.º 1, da CRP e na lei processual civil sob o art. 4.º do CPC –, representando uma restrição materialmente infundada e desproporcional das garantias de defesa dos RR..
23.ª A igualdade substancial deve ser prosseguida através de um critério que permita que se efetive a justa composição do conflito de interesses, assegurando a paridade no que respeita ao exercício de faculdades e uso de meios de defesa, assim se distanciando de uma mera identidade.
24.ª No plano substancial, a decisão recorrida trata de forma injustificadamente desigual as partes, porquanto, não tendo tido os RR. a possibilidade, por estratagema ardiloso dos AA., de deduzir reconvenção, vêm-se impedidos de produzir prova nesse âmbito reconvencional.
25.ª Nas circunstâncias específicas dos autos, a admissão dos meios de prova significa a atribuição aos AA. de meios de defesa que são negados aos RR.; se à conta das particularidades do regime de processo nos Julgados de Paz o Tribunal a quo admitiu o requerimento probatório dos RR., por identidade de razões devia ter permitido aos AA., em nome dessa mesmas especialidades, a dedução de reconvenção.
26.ª Em suma: a admissão dos meios de prova apresentados fora de tempo pelos AA. consubstancia uma violação do princípio da igualdade das partes.
27.ª A decisão recorrida violou as disposições legais supra enunciadas.”
Os Recorridos não apresentaram resposta.”
O recurso foi admitido como apelação, com subida em separado e efeito meramente devolutivo, o que não foi alterado neste Tribunal ad quem.
Foram colhidos os vistos das Exmas. Sra. Juízas Desembargadoras Adjuntas.
***
II.
As conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo da ampliação deste a requerimento do recorrido (arts. 635/4, 636 e 639/1 e 2 do CPC). Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas, salvo se forem do conhecimento oficioso (art. 608/2, parte final, ex vi do art. 663/2, parte final, ambos do CPC).
Também não é possível conhecer de questões novas – isto é, de questões que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida –, uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação.

Deste modo, as questões que se colocam podem ser sintetizadas nos seguintes termos:

1.ª Saber se a anulação do despacho saneador, feita através do despacho de 21 de setembro de 2023, implicou também a anulação dos despachos proferidos na audiência prévia de 17 de maio de 2023, mais concretamente o que convidou as partes a apresentarem os respetivos requerimentos probatórios e do ato que na sequência deste foi praticado pelos Autores no dia 29 de maio de 2023, não podendo, assim, considerar-se como apresentado o requerimento de prova que foi admitido através do despacho recorrido (conclusões 5.ª a 8.ª);
2.ª Saber se, ao admitir o requerimento de prova apresentado pelos Autores, o despacho recorrido incorreu em erro na aplicação das normas jurídicas indicadas nas conclusões dos Recorrentes (conclusões 9.ª a 26.ª).

Como se percebe, as conclusões 1.ª a 4.ª, em que os Recorrentes colocam em causa a imparcialidade do Exmo. Sr. Juiz a quo, não têm qualquer interesse para a decisão do recurso: os recursos são um meio de reação a decisões judiciais e não um meio genérico de garantia da imparcialidade do julgador, função que é reservada ao incidente de suspeição previsto no art. 120 do CPC.
***
III.
1) Na resposta às questões enunciadas, há que considerar os factos elencados no Relatório que constitui a Parte I. deste Acórdão, os quais reproduzem o iter processual.
***
2).1. Na 1.ª questão está em causa o âmbito da anulação do despacho saneador que foi decretada pelo despacho proferido no dia 21 de setembro de 2023.
Na tese dos Recorrentes, ao anular o despacho saneador, convocar nova audiência prévia e realizar esta, o Tribunal a quo deu (implicitamente) sem efeito a anteriormente realizada e os atos que na mesma foram praticados, mais concretamente o convite para as partes apresentarem os respetivos requerimentos probatórios. Nessa medida, entendem os Recorrentes que o requerimento probatório apresentado pelos Recorridos em resposta ao convite deve considerar-se também abrangido pela anulação, carecendo o despacho recorrido de objeto.
Quid inde?
***
2).2. É usual definir-se o processo, em sentido jurídico, como um verdadeiro procedimento, traduzido num encadeado de atos, das partes, do tribunal, de terceiros intervenientes, destinados ao decretamento da providência jurisdicional requerida pela parte demandante. Assim, inter alia, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, reimpressão, Coimbra: Coimbra Editora, 1993, p. 34, Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil – Conceito e Princípios Gerais, Coimbra: Coimbra Editora, 1996, p. 12, João de Castro Mendes, Direito Processual Civil, I, Lisboa: AAFDL, 1980, p. 41; João de Castro Mendes / Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, I, Lisboa: AAFDL; 2022, pp. 24-25. Definição semelhante pode ver-se no Assento do STJ n.º 12/94, publicado no DR, n.º 167, de 21 de julho de 1994.
Esses atos, ordenados em fases sucessivas – tomando por referência a forma de processo declarativo comum: articulados, condensação, instrução e audiência final – estão em geral previstos da lei (art. 6.º/1 do CPC). Em certos casos, porém, a lei deixa ao prudente critério do juiz a definição, em cada situação concreta, do que lhe parecer mais adequado à prossecução da justiça, como sucede, por exemplo, na ação tutelar comum (art. 67 do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, aprovado pela Lei n.º 141/2015, de 8.09). Mesmo nos casos em que a sequência dos atos é rígida, o juiz tem a possibilidade, que é corolário do dever de gestão processual, de a adequar e adaptar à complexidade da causa (art. 547 do CPC).
A omissão de um ato previsto na sequência ou a prática de um ato por ela não admitido conforma, grosso modo, uma nulidade processual, espécie dentro do género invalidade processual, a par da nulidade do ato processual. Nesta última não está em causa um desvio em relação ao modelo legal de tramitação, mas um desvalor “em função do próprio ato”, ou seja, um desvio “em relação à factispecie legal do ato processual” (cf. João de Castro Mendes / Miguel Teixeira de Sousa, Manual cit., p. 41).
Na terminologia dos autores acabados de citar (idem), as nulidades processuais – que são aquelas que interessam – podem ser nominadas ou principais (arts. 188 e 194 do CPC) ou inominadas ou secundárias (art. 195/1).
As nulidades nominadas ou principais são: (i) a falta de citação do réu (arts. 187 a 190), que se verifica quando o ato tenha sido omitido, quando tenha havido erro de identidade do citado, quando se tenha empregado indevidamente a citação edital, quando se mostre que foi efetuada depois do falecimento ou da extinção do citando e ainda que o destinatário da citação pessoal não chegou a ter conhecimento do ato, por facto que não lhe seja imputável (art. 188/1); e (ii) a falta de vista ou exame ao Ministério Público (art. 194), que ocorre quando, devendo o Ministério Público intervir como parte acessória (art. 5.º/4 do respetivo Estatuto), não lhe seja facultada a vista ou o exame do processo (art. 194/1).
Quanto às nulidades inominadas ou secundárias, diz o art. 195/1 que “a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.” A norma apenas refere a lei como parâmetro de aferição da prática ou da omissão indevida de um ato processual. De acordo com João de Castro Mendes / Miguel Teixeira de Sousa (Manual cit., p. 43), “o mesmo vale, no entanto, no caso em que o juiz, através dos seus poderes de gestão processual e de adequação formal (art. 6.º/1 e 547), haja definido uma tramitação alternativa.”
Resulta daqui que, verificado o vício, há que apurar se ele pode ter influência no exame ou na decisão da causa – isto é, na sua instrução, discussão e julgamento (José Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, II, Coimbra: Coimbra Editora, 1945-1946, p. 486). Trata-se do elemento consequencial da nulidade inominada (Miguel Teixeira de Sousa, Código de Processo Civil Online, CPC: art. 130.º a 361.º, Versão de 2023/10, p. 79).
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2).3. O conhecimento da generalidade das invalidades processuais nominadas é oficioso (art. 196, 1.ª parte). Já as invalidades inominadas não são, em regra, do conhecimento oficioso, uma vez que só podem ser invocadas pelos interessados na observância da formalidade ou na repetição ou eliminação do ato (arts. 196, 2.ª parte e 197/1) e até ao termo ad quem previsto no art. 199, o que as aproxima mais do regime da anulabilidade próprio do direito civil
Estando em causa um ato do tribunal há, porém, que distinguir duas situações: (i) aquelas em que o tribunal simplesmente pratica um ato não admitido ou omite um ato devido; (ii) aquelas em que o tribunal decide que um ato deve ou não deve ser praticado. Só no primeiro caso é cometida uma nulidade processual. No segundo, o que há é uma decisão ilegal.
Nas situações do primeiro tipo, a arguição deve ter sido feita, por via incidental, ut art. 196, 2.ª parte, perante o tribunal onde o ato não consentido foi praticado ou o ato previsto foi omitido, sem prejuízo da subsequente interposição de recurso do despacho que dela conheça, recurso que terá sempre de passar pelo crivo do art. 630/2 do CPC.
A propósito disto, António Abrantes Geraldes (Recursos em Processo Civil, 7.ª ed., Coimbra: Almedina, 2022 pp. 24-25) escreve que “[a] ocorrência de nulidades processuais pode derivar da omissão de ato que a lei prescreva ou da prática de ato que a lei não admita, ou admita sob uma forma diversa daquela que foi executada. Sem embargo dos casos em que são do conhecimento oficioso, tais nulidades devem ser arguidas perante o juiz (arts. 196 e 197) e é a decisão que for proferida que poderá ser impugnada pela via recursória, agora com a séria limitação constante do n.º 2 do art. 630 (…).”
Desenvolvendo esta ideia, Luís Correia de Mendonça / Henrique Antunes (Dos Recursos, Lisboa: Quid Juris, 2009, p. 52), escrevem que “[a] reclamação por nulidade e o recurso articulam-se (…) de harmonia com o princípio da subsidiariedade: a admissibilidade do recurso está na dependência da dedução prévia da reclamação. Assim, o que pode ser impugnado por via do recurso é a decisão que conhecer da reclamação por nulidade – e não a nulidade ela mesma. A perda do direito à impugnação por via da reclamação – caducidade, renúncia, etc. – importa, simultaneamente, a extinção do direito à impugnação através do recurso ordinário. Isto só não será assim no tocante às nulidades cujo prazo de arguição comece a correr depois da expedição do recurso para o tribunal ad quem e no tocante às nulidades – exceções – que sejam oficiosamente cognoscíveis.”
De igual modo, Miguel Teixeira de Sousa (Estudos sobre o Novo Processo Civil, 2.ª ed., Lisboa: Lex, 1997, pp. 372-373), escreve que “[a] caraterização da reclamação como meio de impugnação especial perante o recurso ordinário implica duas consequências importantes: - quando a reclamação for admissível, não o pode ser o recurso ordinário, ou seja, esses meios de impugnação não podem ser concorrentes; - se a reclamação for admissível e a parte não impugnar a decisão através dela, em regra está precludida a possibilidade de recorrer dessa mesma decisão. Possível é, no entanto, a impugnação da decisão através de reclamação e, perante a sua rejeição pelo tribunal, a continuação da impugnação através de recurso ordinário.  A especialidade da reclamação como forma de impugnação das decisões judiciais impede, segundo as regras que orientam as relações entre o regime especial e o geral, que ela seja concorrente com qualquer recurso, ou seja, obsta a que a mesma decisão possa ser impugnada simultaneamente por reclamação e por recurso (…), porque de outra forma criar-se-iam situações de litispendência (…)” O mesmo autor (idem) acrescenta que “[n]em sempre, contudo, a reclamação prevalece, como previsão especial, perante o recurso ordinário. Por vezes, o concurso de meios de impugnação é evitado através da prevalência desse recurso sobre a reclamação, ou seja, através da subsidiariedade da reclamação perante o recurso. É o que sucede quanto à reclamação baseada na nulidade da sentença, que só é admissível se não for possível interpor recurso ordinário dessa decisão (…)”
Nas situações do segundo tipo é ainda possível distinguir entre aquelas em que (i) a decisão incide apenas sobre a omissão do ato legalmente devido e aquelas em que (ii) a decisão incide sobre a omissão do ato legalmente devido e sobre outras questões (como, por exemplo, o conhecimento do mérito da ação).
A resposta é a mesma para ambas as situações: em qualquer delas há uma decisão ilegal sobre a omissão do ato devido e em nenhuma delas tem sentido falar de nulidade processual. O tribunal comete uma nulidade processual quando omite um ato devido ou pratica um ato indevido, não quando entende incorretamente que o ato deve ser omitido ou praticado.
A este propósito convém recordar uma das mais conhecidas passagens de Alberto dos Reis (Comentário ao Código de Processo Civil, II, Coimbra: Coimbra Editora, 1945, p. 507): "A arguição da nulidade só é admissível quando a infração processual não está ao abrigo de qualquer despacho judicial; se há um despacho a ordenar ou autorizar a prática ou a omissão do ato ou da formalidade, o meio processual para reagir contra a ilegalidade que se tenha cometido, não é a arguição ou a reclamação por nulidade, é a impugnação do respetivo despacho pela interposição do recurso competente. Eis o que a jurisprudência consagrou nos postulados; dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se."
Repare-se que Alberto dos Reis fala de “reagir contra a ilegalidade” (não contra a nulidade) quando “há um despacho a ordenar ou autorizar a prática ou a omissão do ato ou da formalidade” e nunca relaciona a nulidade processual com uma decisão.
Miguel Teixeira de Sousa (“Dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se", disponível no Blog do IPCC), ilustra a distinção da seguinte forma: “basta verificar que não se pode dizer que, se o tribunal decidir dispensar o juramento da testemunha, isso é a mesma coisa que o tribunal, pura e simplesmente, omitir esse juramento. A decisão errada sobre a dispensa do juramento e a omissão pura e simples desse juramento são coisas distintas: no primeiro caso, há uma decisão ilegal; no segundo, há um nullum e, por isso, uma nulidade processual. Generalizando: a decisão ilegal sobre a omissão de um ato não pode ser confundida com a omissão ilegal do ato.”
Assim, como sintetiza Alberto dos Reis, "[d]esde que um despacho tenha mandado praticar determinado ato, por exemplo, se porventura a lei não admite a prática desse ato[,] é fora de dúvida que a infração cometida foi efeito do despacho; por outras palavras, estamos em presença dum despacho ilegal, dum despacho que ofendeu a lei de processo. Portanto, a reação contra a ilegalidade traduz-se num ataque ao despacho que a autorizou ou ordenou; ora o meio idóneo para atacar ou impugnar despachos ilegais é a interposição do respetivo recurso.”
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2).5. Nas situações do 1.º tipo a que fizemos menção no ponto anterior, constatado que o vício pode ter influência na decisão da causa – se assim não suceder, será irrelevante (João de Castro Mendes / Miguel Teixeira de Sousa, Manual cit., p. 44) –, o ato é anulado, o que se repercute nos atos subsequentes que dele forem absolutamente dependentes (art. 195/2 e 3).  Assim, sempre que a prática de um ato da sequência pressuponha a prática de um ato anterior, a anulação deste tem como efeito, indireto mas necessário (Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, 4.ª ed., Coimbra: Almedina, 2019, p. 401), a anulação daquele, caso entretanto tenha sido praticado.
Como se pode ver, o que está em causa é a repercussão do vício na sequência processual ulterior. Apenas esta pode ser afetada e “nos estritos limites do que dependa do ato viciado” (João de Castro Mendes / Miguel Teixeira de Sousa, Manual cit., p. 44). A sequência anterior ao ato não é afetada. Tal seria uma impossibilidade ontológica, transformando o processo num retrocesso.
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2).6. A singela consideração que antecede permite-nos dar a resposta à primeira das questões enunciadas: a anulação do despacho saneador proferido no dia 20 de junho de 2023 nunca poderia ter como consequência a anulação da audiência prévia realizada no dia 17 de maio de 2023, nem dos despachos que nesta foram proferidos, em especial aquele através do qual o Tribunal a quo convidou as partes a apresentarem os seus requerimentos probatórios.
Ainda que assim não fosse, sempre diríamos que estando em causa, na tese dos Recorrentes, a anulação de um ato processual da sequência, nos termos previstos no art. 195/1, a questão teria de ser previamente colocada à apreciação do Tribunal de 1.ª instância. Tendo assim sucedido, sobre ela recaiu uma decisão expressa, plasmada no despacho de 21 de setembro de 2023, que a indeferiu. Esta decisão, proferido em sede de reclamação, não foi impugnada através do presente recurso.
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3).1. A resposta à primeira questão serve de mote para conhecermos da segunda: se o requerimento de prova dos Recorridos foi apresentado na sequência de um despacho judicial, dentro do prazo neste definido, estranho seria que, incorrendo num autêntico venire contra factum proprium, o juiz depois o recusasse com fundamento na sua inadmissibilidade. Trata-se, para além do mais, como vamos ver, de um despacho proferido no exercício dos poderes de gestão processual previsto no art. 6.º/1 do CPC que, por contender com a admissibilidade de meios de prova, era suscetível de recurso (art. 630/2, parte final), a interpor de imediato (art. 644/2, d)). Não tendo esse recurso sido interposto, o despacho transitou em julgado. Desse trânsito em julgado, resulta que o adrede decidido (a possibilidade dada às partes de apresentarem requerimentos probatórios) não podia ser contrariado pelo despacho recorrido, como também não o pode ser agora por esta Relação (arts. 620/1 e 625/1 e 2 do CPC).
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3).2. Independentemente do que antecede, sempre seria de sufragar o entendimento do Tribunal a quo.
Expliquemos, começando por lembrar que a presente ação foi intentada no Julgado de Paz ... e subordinada à forma (única) prevista nos arts. 41 a 66 da Lei n.º 78/2011, de 13.07, diploma que regula a competência, organização e funcionamento dos julgados de paz e a tramitação dos processos da sua competência. Transitou para os Tribunais Judiciais, já depois da fase dos articulados, em consequência da alteração do valor da causa, passando a seguir a forma comum da ação declarativa.
A diferença entre as duas formas processuais, no que releva para a decisão do recurso, reside no momento em que as partes devem formular os respetivos requerimentos probatórios. Na forma (única) prevista nos arts. 41 a 66 da Lei n.º 78/2011, de 13.07, como corolário dos cinco princípios orientadores dos Julgados de Paz – simplicidade, adequação, informalidade, oralidade e absoluta economia processual (Cardona Ferreira, Julgados de Paz. Organização, Competência e Funcionamento, o que foram, o que são os Julgados de Paz e o que podem vir a ser, 3ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2014, p. 47) – as partes podem apresentar as provas que reputem necessárias ou úteis até ao dia da audiência de julgamento (art. 59/1 da Lei n.º 78/2011, de 13.07). Na forma comum da ação declarativa, as partes devem apresentar os requerimentos probatórios com os articulados respetivos – o autor, com a petição inicial (art. 552/6, 1.ª parte); o réu com a contestação (art. 572, d), 1.ª parte). Nesta última, preveem-se, porém, possibilidades para as partes adequarem os seus requerimentos face ao rumo que, em cada fase, a ação tome. Mais concretamente: o autor pode alterar o requerimento probatório na réplica, caso haja lugar a esta, ou no prazo de dez dias a contar da notificação da contestação (art. 552/6, 2.ª parte); o réu pode exercer igual faculdade quando, tendo havido reconvenção, o autor tenha replicado, no prazo de dez dias a contar da notificação da réplica (art. 572, d), 2.ª parte); as partes podem alterar os seus requerimentos probatórios na audiência prévia quando a esta haja lugar (art. 598/1); as partes podem aditar ou alterar os róis de testemunhas até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final (art. 598/2). De acordo com Lebre de Freitas / Isabel Alexandre (Código de Processo Civil cit., p. 645), não havendo audiência prévia, às partes deve ser consentida a alteração do requerimento probatório no prazo geral (10 dias) contado da notificação do despacho previsto no art. 596/1, ainda que tal conduza à retificação do despacho de programação da audiência final.
Esta diferença entre as duas formas processuais explica o dissenso processual que é objeto deste recurso: os Recorridos, não indicaram, na petição inicial, outra prova que não a documental. O mesmo sucedeu com os Recorrentes na contestação. Nem uns nem outros tinham, no momento em que apresentaram aqueles articulados, o ónus de formular os respetivos requerimentos probatórios, atenta a forma processual dada à ação. Quando esta passou a seguir a forma comum, já tinha passado o momento em que, segundo esta, podiam observar tal ónus. Pretender que daqui resultou uma preclusão é algo que, intuitivamente, se afigura dever ser negado, sob pena de se colocar em causa o direito à prova.
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3).2.1. É indiscutível a importância do direito que a parte tem à produção das provas necessárias à demonstração dos factos em que se funda a sua pretensão concreta de tutela jurisdicional. De entre as normas que a Constituição da República dedica ao direito processual civil, em relação ao qual se confirma, também, a máxima segundo a qual o “direito processual é direito constitucional aplicado” (Miguel Teixeira de Sousa, Introdução ao Processo Civil, 2.ª ed., Lisboa: Lex, 2000, pp. 24 e ss), conta-se a do art. 20/4, saída da Revisão de 1997, que prevê o direito a um processo equitativo. Este direito está também consagrado no art. 10.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, no art. 14/1 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e no art. 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. De acordo com Adrian Zuckerman (“L’influenza della Convenzione europea dei diritti dell’uomo sul processo civile inglese”, AAVV, Michele Taruffo e Vincenzo Varano (coord.), Diritti Fondamentali e Giustizia Civile in Europa, Torino, 2002, pp. 123-124), o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem considerado implícitos no direito a um processo equitativo (i) o direito de acesso aos tribunais, (ii) o direito ao contraditório, (iii) o direito à igualdade de armas, (iii) o direito a uma correta apresentação das provas, (iv) o direito ao contrainterrogatório das testemunhas e (v) o direito a uma sentença fundamentada. Entre nós, o direito à prova, foi reconhecido enquanto corolário do direito a um processo equitativo no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 359/2011, de 12.07.2011, relatado pelo Conselheiro Cura Mariano. Gomes Canotilho (“O ónus da prova na jurisdição das liberdades”, Estudos sobre Direitos Fundamentais, 2.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2008, p. 169), propõe mesmo a deslocação do direito à prova do estrito campo jusprocessualístico para o localizar no terreno constitucional. Desdobra o direito constitucional à prova em “direito à prova em sentido lato (poder de demonstrar em juízo o fundamento da própria pretensão) e o direito à prova em sentido restrito (alegando matéria de facto e procedendo à demonstração da sua existência).”
Em matéria civil, o direito à prova permite a cada uma das partes submeter ao tribunal as provas de que dispõe, bem como solicitar medidas de instrução destinadas à obtenção das provas de que ainda não dispõe. Sobre aquela primeira dimensão, Michele Taruffo (“Il diritto alla prova nel processo civile”, Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile XXXIX, n.º 1, pp. 74 e ss.) refere que o direito de apresentar provas seria inútil e ilusório se a ele não se ligasse o direito à aquisição das mesmas, uma vez consideradas admissíveis e relevantes.
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3).2.2. A prova tem como referência a verdade de um facto. Neste sentido, o art. 2404 do Código Civil de 1867 definia prova como “a demonstração da verdade dos factos alegados em juízo”, fórmula que não difere substancialmente da que consta do art. 341 do Código Civil atual: “As provas têm por função a demonstração da realidade dos factos.”
Habitualmente, está em causa um facto real, sendo que “factos são não só os acontecimentos externos, mas também os estados emocionais e os eventos do foro interno, psíquico” (STJ de 17.12.2019, 756/13.0TVPRT.P2.S1), como o conhecimento e a intenção. O que sucede é que a apreensão destes não pode ser feita de forma direta, como explica Michele Taruffo, La Prueva des los Hechos, 2.ª ed., Madrid: Trotta, 2005, p. 166, quando escreve que “[q]uando o facto juridicamente relevante é verdadeiramente um facto psíquico (não redutível ou reconduzível a uma declaração), quase nunca é determinado diretamente. O verdadeiro objeto do conhecimento do juiz, pelo contrário, são indícios que tendem a ser recolhidos em esquemas tipificados, sob a premissa de que esses indícios típicos produzem com razoável segurança a determinação do facto psíquico em questão, ao qual a norma atribui consequências normativas. No entanto, é muito discutível a ideia de que, realmente, nestas situações, o juiz determina a verdade ou a existência de um facto psíquico interno da mesma forma que determina presuntivamente um facto material do qual não tem prova direta. Em vez disso, o que acontece é que o juiz conhece apenas indícios que se encaixam num esquema típico e, com base nesse conhecimento, considera subjacente o pressuposto de facto que se está a tentar determinar. Dizer que, neste caso, estamos perante uma determinação indireta, mas tipificada do facto psíquico é talvez uma complicação formal inútil. É provavelmente mais realista pensar que esse facto psíquico não é realmente determinado; é antes substituído por uma constelação de indícios que são tipicamente considerados equivalentes a ele e que representam o verdadeiro objeto da determinação probatória. Em resumo, o facto psíquico interno não existe como objeto de prova e a sua definição normativa é apenas uma formulação elíptica cujo significado se reduz às circunstâncias específicas do caso concreto.”
A prova pode, no entanto, ter também como objeto uma realidade conjetural. Assim, escrevem João de Castro Mendes / Miguel Teixeira de Sousa (Manual de Processo Civil, I, Lisboa: AAFDL, 2022, p. 468) que “a prova pode ter como referência quer a prognose (como sucede, por exemplo, quando se trata de fixar o montante da pensão de alimentos devida ao alimentando), quer a hipótese (como acontece, por exemplo, quando se procura determinar o que teria sucedido se algo não tivesse sido omitido).”
Mais concretamente, o objeto da prova são os factos pertinente para a decisão do pleito que permanecem controvertidos e, por isso, necessitados de prova (art. 410 do CPC). Seguindo a sistematização de João de Castro Mendes / Miguel Teixeira de Sousa (Manual cit., p. 471), são necessitados de prova os factos alegados por uma parte e impugnados pela outra (art. 574/2 do CPC); os factos que, não tendo sido impugnados, não possam ser confessados ou que só possam ser provados por documento escrito (art. 574/2), os factos não impugnados pelo Ministério Público ou por advogado oficioso que represente incapazes, ausentes e incertos (art. 574/4) e ainda os factos que não foram impugnados numa situação de revelia inoperante (arts. 567/1 e 568, b) e d) do CPC). Deste modo, a contrario, não carecem de prova os factos admitidos por acordo por falta de impugnação (art. 574/2) e os que tenham sido confessados por uma das partes (art. 352 do Código Civil). De entre os factos articulados pertinentes, os que falta provar são incluídos nos temas da prova (arts. 591/1, f), e 596/1 do CPC), o que vale por dizer que “o objeto da prova são os factos que constam dos temas da prova (art. 410 do CPC)” (João de Castro Mendes / Miguel Teixeira de Sousa, idem). Neste particular importa realçar que, como escreve Lebre de Freitas (A ação Declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2013, p. 207), o art. 410 do CPC padece de uma incorreção terminológica ao dizer que “a instrução tem por objeto os temas da prova enunciados e, pleonasticamente, que, só na falta dessa enunciação o seu objeto são os factos necessitados de prova.” E prossegue: “Provam-se factos; não se provam temas.” Os temas da prova constituem apenas quadros de referência, dentro dos quais há que recorrer (…) aos factos alegados pelas partes. Estes factos são, em primeira linha, os factos principais da causa. Mas, com os factos instrumentais se constituindo a via a seguir, de acordo com as regras da experiência para atingir a prova dos factos principais, também eles são objeto de prova (…) Ponto é que os factos instrumentais se situem na cadeia dos factos probatórios que permitem chegar aos factos principais que as partes tenham alegado, ou constituam factos acessórios relativamente a esses.” No mesmo sentido, Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, I, Coimbra: Almedina, 2018, p. 622. Na jurisprudência, RG 17.12.2014 (2777/12.1TBBRG.G1).
Neste âmbito, diz o art. 342 do Código Civil que àquele “que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado”, acrescentando que “a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita.” Estas regras são sintetizadas no brocardo judex debet judicare secundum allegata et probata, nom secundum constientiam suam, encontrando as seguintes exceções, também de acordo com a síntese de João de Castro Mendes / Miguel Teixeira de Sousa (Manual cit., p. 472): factos complementares ou concretizadores que decorram da instrução da causa (art. 5.º/2, b), do CPC); factos probatórios (ou instrumentais) que resultem da instrução da causa (art. 5.º/2, a), do CPC), factos notórios (art. 5.º/2, c), do CPC) e factos de que o tribunal tenha conhecimento em virtude do exercício das suas funções (idem).
Por outro lado, não são objeto de prova razões, argumentos, pontos ou questões de direito. Não se provam, designadamente, regras jurídicas, em relação às quais vale o princípio irua novit curia, que apenas é ressalvado nas situações de invocação de direito consuetudinário, local ao estrangeiro, que a parte que o invocar tem o ónus de provar, sem prejuízo dos poderes oficiosos do tribunal (art. 348/1 do Código Civil).
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3).2.3. É, porém, precipitado afirmar-se, sem mais, que a recusa de um meio de prova constitui uma violação do direito à prova. Por um lado, o procedimento probatório requer um certo formalismo, designadamente a observância de prazos; por outro, o direito é necessariamente limitado pelo respetivo objeto: a prova de factos relevantes que permanecem controvertidos. Neste sentido, são de recusar os requerimentos probatórios que se apresentem como meramente dilatórios, versem sobre factos irrelevantes para a decisão da causa ou que, sendo-o, estejam já provados. A propósito, Michele Taruffo (“Il diritto alla prova cit., p. 73) escreve que “a relevância da prova define e circunscreve exatamente o objeto do direito à prova, que se configura assim como um direito à prova relevante. No mesmo sentido, Isabel Alexandre (Prova Ilícitas em Processo Civil, Coimbra: Almedina, 1998, p. 73) refere que é de “aceitar a existência de elementos intrínsecos do direito à prova que, como qualquer direito, não pode ser concebido como absoluto.”
Para além dos apontados limites intrínsecos, reconhecem-se outros, impostos pela necessidade de tutelar outros direitos, especialmente direitos fundamentais. Estes têm, portanto, de apresentar-se como justificados à luz do princípio da proporcionalidade, consagrado no art. 18/2 da Constituição da República, o que sucederá quando se mostrem preenchidos os seguintes requisitos (Isabel Alexandre, Provas Ilícitas cit., p. 75): “a) a necessidade de salvaguardar um interesse público preponderante; b) o respeito pelo princípio da proporcionalidade; c) a manutenção do núcleo intangível do direito à prova.” A propósito, vide TC n.º 681/2006, de 12.12.2006, relatado pelo Conselheiro Paulo Mota Pinto.
Perante isto, compreende-se que se afirme, como em STJ 17.12.2009, 159/07.6TVPRT-D.P1.S1, que, sendo o direito à prova um direito necessariamente instrumental da realização de um outro, substantivo, “uma restrição incomportável da faculdade de apresentação de prova em juízo pode impossibilitar a parte de fazer valer o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efetiva.” Deste modo, no dizer de Jorge Miranda / Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra Editora, p.190, “os regimes adjetivos devem revelar-se funcionalmente adequados aos fins do processo e conformar-se com o princípio da proporcionalidade, não estando, portanto, o legislador autorizado, nos termos dos artigos 13.º e 18.º, n.ºs 2 e 3, a criar obstáculos que dificultem ou prejudiquem, arbitrariamente ou de forma desproporcionada, o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efetiva.”
Em razão deste imperativo constitucional, “a própria interpretação das normas legais infraconstitucionais deverá ser feita por forma a salvaguardar a máxima e efetiva atividade probatória”, conforme se enfatiza no Acórdão desta Relação de 12.10.2023 (100/22.6T8MDR-C.G1), relatado pela Desembargadora Maria João Matos.
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3).3. É partindo destas considerações que temos de testar, em termos dedutivos e à luz da lei adjetiva, a solidez da afirmação com que terminámos o ponto 3).1.
Assim, poderíamos pensar, numa primeira leitura, que o n.º 1 do art. 193 dá a resposta à questão ao dizer que “[o] erro na forma do processo importa unicamente a anulação dos atos que não possam ser aproveitados, devendo praticar-se os que forem estritamente necessários para que o processo se aproxime, tanto quanto possível, da forma estabelecida pela lei.”
A norma orienta-se por um critério de convolação do erro na forma do processo na forma adequada, com efeitos ex tunc e estabelece, numa perspetiva de economia processual, duas regras: (i) a anulação incide apenas sobre os atos que não possam ser aproveitados, nomeadamente porque eles implicam uma diminuição das garantias do réu (n.º 2); (ii) devem ser praticados apenas os atos necessários para que o processo se aproxime, tanto quanto possível, da forma estabelecida pela lei. (…) Qualquer ato praticado por qualquer das partes – incluindo, p. ex., a pi – pode ser aproveitado ou não aproveitado. O ato que não pode ser aproveitado deve ser repetido (Miguel Teixeira de Sousa, Código de Processo Civil Online, CPC: art. 130.º a 361.º, Versão de 2023/10, p. 76).
Para tanto, o legislador giza uma solução que, já antes da revisão do CPC de 1961, levada a cabo pelo DL n.º 329-A/95, de 12.12, era vista como uma manifestação do princípio da adequação formal. Neste sentido, Pedro Madeira de Brito (“O novo princípio da adequação formal”, AAVV, Aspetos do Novo Processo Civil, Lisboa: Lex, 1997, p. 48), escreve que o “preceito vem permitir uma espécie de adequação, na medida em que determina o aproveitamento de atos e a prática de outros para ajustar o processo à forma prescrita na lei.”
À luz desta solução, impunha-se que, para salvaguardar do direito à prova, o juiz permitisse que as partes formulassem os seus requerimentos probatórios ou, simplesmente, alterassem, sem quaisquer limitações que não fossem as previstas para cada um dos meios de prova, os porventura já apresentados.
Simplesmente, o erro na forma do processo ocorre quando o autor utilizou uma forma de processo errada tendo em conta o pedido por si formulado. Neste sentido, RG 14.10.2010, 140/10.8TCGMR.G1. Na doutrina, Lebre de Freitas / Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado, I, 4.ª ed., Coimbra: Almedina, 2019, p. 397). Não foi o que sucedeu na situação que estamos a apreciar: tendo em conta o valor que os Recorridos atribuíram ao prédio na petição inicial, a ação cabia na esfera de competência do Julgado de Paz .... A forma processual que adotaram era, por isso, a adequada. A desadequação apenas surgiu depois e em consequência da interposição de um elemento externo ao objeto gizado na petição inicial: a alteração do valor processual, em consequência da procedência do incidente que com esse escopo foi suscitado pelos Recorrentes.

Não estamos, portanto, perante uma situação de erro na forma do processo que convoque a aplicação do disposto no art. 193/1. O referido elemento externo remete-nos antes para o disposto no art. 310/1 e 2, onde se diz que:

“1. Quando se apure, pela decisão definitiva do incidente de verificação do valor da causa, que o tribunal é incompetente, são os autos oficiosamente remetidos ao tribunal competente (…)
2. Se da fixação definitiva do valor resultar ser outra a forma de processo correspondente à ação, mantendo-se a competência do tribunal, é mandada seguir a forma apropriada, sem se anular o processado anterior e corrigindo-se, se for caso disso, a distribuição efetuada.”

Foi este o entendimento seguido em RP 5.01.2010 (1298/07.9TBVRL.P1) perante uma situação em que também estava em causa a alteração do valor processual de uma ação inicialmente proposta no Julgado de Paz ... e que, por força dessa alteração, foi remetida para o Tribunal Judicial da Comarca ....
Das normas transcritas resulta que a alteração da forma do processo pode implicar uma nova distribuição (arts. 203 ss), mas aproveita-se tudo o que tiver sido processado (n.º 2). Isto é: aproveita-se o que foi praticado e acrescenta-se o que for determinado pela nova forma processual. Cabe então ao juiz, ao abrigo do princípio da adequação processual (art. 547) determinar as adaptações à nova forma que entenda adequadas. Tal passa, necessariamente, em situações como a dos autos, pela regularização da instância quanto aos meios de prova em momento prévio ao da prolação do despacho de identificação do objeto do litígio e da enunciação dos temas da prova, sob pena de haver uma injustificada restrição ao direito (de matriz constitucional) à produção da prova. Neste sentido, aponta claramente a lição de Lebre de Freitas / Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado cit., p. 619), que admitem mesmo a possibilidade de, ao abrigo do referido princípio, as partes apresentarem articulados que não eram admissíveis ab initio, mas que o passaram a ser de acordo com a nova forma processual. De igual modo, António Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Luís Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, I, Coimbra: Almedina, 2018, p. 361), quando escrevem que “[t]rata-se de uma solução na linha da regra geral do art. 193, apesar de a formulação ser algo diferente: pelo art. 310/2 isso será feito sem se anular o processado anterior; pelo art. 193/1, a anulação de atos anteriores não é excluída. De todo o modo, afigura-se evidente que a aplicação do art. 310/2 não poderá pôr em causa as garantias das partes quanto aos trâmites aplicáveis. Além disso, o juiz não deverá deixar de fazer uso da possibilidade que o art. 547 lhe confere em sede de adequação formal, sempre assegurando um processo equitativo.”
É aqui que temos – à semelhança do que entendeu o Tribunal a quo, quando emitiu o despacho de 17 de maio de 2023, que subsiste – a válvula de escape que permite, com total isonomia, assegurar que, numa situação como a dos autos, não resulta um prejuízo para o direito das partes produzirem a prova sobre os factos, permitindo assim que o conflito que as opõe seja resolvido em termos substanciais e não meramente formais, resultado de uma preclusão que sempre seria desadequada dado não corresponder à inobservância de um ónus existente no momento processual relevante. A solução aproxima-se, assim, da que foi defendida em RG 28.09.2023 (18774/22.6YIPRT-B.G1), desta Secção, relatado pela Juíza Desembargadora Rosália Cunha, para as hipóteses em que o procedimento de injunção se transmuta, por força da oposição do requerido, em ação comum. Nesse mesmo enquadramento, escrevem Paulo Ramos de Faria / Ana Luísa Loureiro (Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, I, Coimbra: Almedina, 2013, p. 475), que “a parte deve requerer a produção de todos os meios de prova com os articulados. (...) Estamos perante um ónus da parte cuja não observância é insuscetível de gerar um convite do tribunal ao aperfeiçoamento do articulado (para apresentação serôdia do requerimento probatório), sob pena de violação do dever de imparcialidade. Todavia, importa ter presente que este ónus é imposto à parte que apresente ou possa apresentar um articulado na ação de processo comum, e não ao requerente ou ao requerido no procedimento de injunção, pelo que, nestes casos, distribuído o requerimento injuntivo, deverá ser dada a oportunidade às partes de apresentarem os respetivos requerimentos probatórios (artº 6º nº 1).”
Com isto fica claro que o despacho recorrido, que surgiu na sequência lógica do despacho de 17 de maio de 2023, tem arrimo legal bastante que, a um tempo, justifica o desvio ao disposto nos arts. 552/6 e 572, d), e, a outro, se situa a montante da norma consagrada no referido art. 598/1 do CPC, cuja aplicação fica excluída.
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3).4. Sobra a questão do alegado tratamento desigual dado às partes.
Sobre esta não há muito a dizer: tanto os Recorridos como os Recorrentes tiveram a mesma possibilidade de apresentar requerimentos probatórios. Essa possibilidade, em que se cristalizou a adequação levada a cabo pelo despacho de 17 de maio de 2023, teve ambos como destinatários. Resulta, assim, evidente que neste particular – o único que está em causa no recurso – o tratamento foi absolutamente igual.
Não ignoramos que o despacho recorrido nada disse sobre a possibilidade de os Recorrentes apresentarem nova contestação, com a formulação de pedidos reconvencionais, possibilidade que antes da alteração da forma processual estava condicionada pelo disposto no art. 48/1 do DL n.º 78/2011, de 13.07. Afigura-se-nos, no entanto, que, por um lado, a igualdade de tratamento pressupõe que as situações subjetivas sejam idênticas e, por outro, que a existência de qualquer desequilíbrio não poderia ser resolvida pela restrição do direito dos Recorridos apresentarem prova, mas pelo reconhecimento do direito dos Recorrentes deduzirem reconvenção.
A resposta à segunda questão é, portanto, negativa, com a consequente improcedência in totum do recurso.
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4) Vencidos, os Recorrentes devem suportar as custas do recurso: art. 527/1 e 2 do CPC.
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V.
Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores que compõem o presente coletivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em:
Julgar do presente recurso de apelação improcedente, confirmando o despacho recorrido;
Condenar os Recorrentes no pagamento das custas do recurso.
Notifique.
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Guimarães, 1 de fevereiro de 2024

Os Juízes Desembargadores,
Gonçalo Oliveira Magalhães (Relator)
Alexandra Maria Viana Parente Lopes (1.ª Adjunta)
Maria João Marques Pinto de Matos (2.ª Adjunta)