Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
32/22.8T8BRG-A.G1
Relator: JOSÉ ALBERTO MOREIRA DIAS
Descritores: INVENTÁRIO SUBSEQUENTE A DIVÓRCIO
RELAÇÃO DE BENS
ELIMINAÇÃO DE VERBAS
AVALIAÇÃO DE BENFEITORIAS E RECHEIO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/30/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÕES
Decisão: PROCEDENTES
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1- A construção de uma moradia, mediante recurso a trabalho e meios financeiros de ambos os cônjuges, durante a constância do casamento no regime da comunhão de adquiridos, num prédio composto por terreno destinado à construção, que é propriedade exclusiva de apenas um deles, não consubstancia benfeitoria, dado que a construção de uma moradia não se traduz numa obra destinada a conservar ou melhorar a parcela de terreno destinada a construção, mas trata-se de uma obra que provoca uma alteração substancial e jurídica desse prédio ao nele incorporar a moradia, dando lugar a uma nova coisa, a um prédio urbano.
2- A construção da referida moradia também não se reconduz à acessão, na medida em que, o cônjuge não proprietário do terreno onde a moradia foi edificada, tem perfeito conhecimento que está a construir aquela num terreno que não é sua propriedade, claudicando o requisito da boa fé do n.º 1 do art. 1340º do CC, mas também, ou sobretudo, porque o terreno não é coisa alheia em relação ao cônjuge que for o seu dono.
3- Decretado o divórcio entre os cônjuges, no processo de inventário destinado a partilhar os bens comuns do extinto casal, a situação descrita terá de ser solucionada por recurso ao regime jurídico dos arts. 1724º e 1726º do CC, em função do qual, se o valor da construção da moradia for superior ao terreno em que aquela foi erigida, a nova realidade jurídica daí resultante (prédio urbano composto por moradia e terreno) é bem comum do casal e, como tal, tem de ser relacionado para efeitos de partilha, onde também terá de ser relacionado, a título de compensação - dívida - do património comum devida ao ex-cônjuge, anterior proprietário do terreno onde a moradia foi erigida, o valor desse terreno, devidamente atualizado.
4- Num processo de inventário para partilha dos bens comuns do casal, subsequente a divórcio, qualquer interessado pode requerer a avaliação dos bens relacionados pelo cabeça de casal, contanto que: a) requeira a avaliação até ao início das licitações, b) indique quais os concretos bens que pretende sejam avaliados; e c) indique as razões da sua discordância em relação ao valor que foi atribuído a esses bens pelo cabeça de casal.
5- Requerida e deferida a avaliação, suspende-se o início das licitações até à conclusão da avaliação dos bens, pelo que, se o pedido formulado (antes ou na própria conferência de interessados, mas antes do início das licitações) apenas for deferido na própria conferência de interessados, tem de se suspender essa conferência antes do início das licitações e até à conclusão da avaliação e consequente fixação do valor dos bens a avaliar.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães no seguinte:

RELATÓRIO

M. E., residente na Travessa …, n.º …, União de Freguesias de ... e ... (...), concelho de Braga, instaurou a presente ação especial de inventário para partilha de bens comuns, subsequente a divórcio, contra J. D., residente na mesma morada, indicando este para o cargo de cabeça de casal em virtude de ser o ex-cônjuge mais velho.
Nomeou-se o requerido J. D. para o cargo de cabeça-de casal e ordenou-se a sua citação nos termos e para os efeitos do disposto nos arts. 1100º, n.º 2, al. a) e 1102º do CPC.

Em 03/02022, o cabeça de casal apresentou compromisso de honra escrito e apresentou a relação de bens em que relaciona ativo e passivo e onde, em sede de ativo, relaciona, entre outros, o seguinte prédio urbano sob a verba n.º 1:

1 Prédio urbano destinado a habitação composto de cave, rés-do-chão e logradouro, situado na Travessa ... n.º .., união de freguesias de ... e ... (...), concelho de Braga, inscrito na atual matriz da referida união de freguesias sob o artigo …, correspondente ao anterior artigo … da freguesia de ... (...) e descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o número ..., com o valor patrimonial tributável (VPT) de 117.409,38 (cento e dezassete mil, quatrocentos e nove euros e trinta e oito cêntimos), conforme cópia de caderneta predial urbana e descrição predial, que se juntam como Doc. 1 e Doc. 2, respetivamente, e dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais”.

Notificada da relação de bens, a requerente, M. E., veio dela reclamar, alegando que o prédio relacionado sob a verba n.º 1 é um bem próprio dela, conforme teor da certidão do registo predial que junta como documento n.º 1.
Requer que esse prédio seja excluído da relação de bens apresentada, por se tratar de uma doação que lhe foi feita exclusivamente a si, tendo o cabeça de casal apenas direito a metade do valor das benfeitorias nele realizadas.
O cabeça de casal respondeu sustentando que, por escritura pública de doação realizada pelo pai da requerente, J. S., este doou à última uma parcela de terreno destinada à construção; o cabeça de casal e a requerente contraíram empréstimo bancário junto da Caixa … para construção, nesse terreno, de uma moradia; não pode aceitar que o prédio relacionado sob a verba n.º 1 seja classificado como bem próprio da requerente pelo facto “de que a moradia que consta da descrição da certidão do registo predial é uma benfeitoria comum dele e da sua ex-esposa”.

Conclui propondo que a verba n.º 1 do ativo da relação de bens que apresentou seja subdivida em duas descrições para efeitos de avaliação, nos termos do art. 1114º do CPC, nos seguintes termos:
“- Parcela de terreno destinada a construção (lote) doado a M. E.;
- Construção de moradia tipologia T3, benfeitoria comum do cabeça de casal e de M. E., sobre o terreno a esta doado”.

Alterou a verba n.º 1 do ativo da relação de bens que antes tinha apresentado, a qual passou a constar do seguinte teor:
1 Prédio urbano destinado a habitação composto de cave, rés-do-chão e logradouro, situado na Travessa ... n.º .., união de freguesias de ... e ... (...), concelho de Braga, inscrito na atual matriz da referida união de freguesias sob o artigo …, correspondente ao anterior artigo … da freguesia de ... (...) e descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o número ..., com o valor patrimonial tributável (VPT) de 117.409,38 (cento e dezassete mil, quatrocentos e nove euros e trinta e oito cêntimos), que deverá ser subdividido em duas descrições:
1.1- Parcela/lote de terreno destinada a construção doada a M. E. cujo valor real se fixa em 45.000,99 euros (quarenta e cinco mil euros);
1.2- Construção de moradia tipologia T3, casa de cave e rés-do-chão, benfeitoria do cabeça de casa J. D. e M. E., no valor de 229.000,00 euros (duzentos e vinte e nove mil euros)”.

A requerente M. E. opôs-se à divisão operada pelo cabeça de casal relativamente à verba n.º 1 do ativo, reafirmando que esse ativo “é um bem próprio da requerente, pelo que deve ser retirado da relação de bens. A construção pelos cônjuges em comunhão de adquiridos em um prédio de um só deles, deve ser considerado uma benfeitoria que deve ser relacionada como bem comum, por forma a que se opere a compensação devida ao património comum”.
Conclui pedindo que na verba n.º 1 sejam relacionadas as benfeitorias construídas no terreno da requerente.
Impugna o valor das benfeitorias indicado pelo cabeça de casal, no valor de 229.000,00 euros, sustentando que estas não têm um valor superior a 100.000,00 euros.
Requer que se proceda à avaliação de tais benfeitorias, por perito a designar pelo tribunal.
Impugna o valor dos bens móveis que compõem o recheio do prédio, relacionado sob a verba n.º 2, requerendo a respetiva avaliação por perito a designar pelo tribunal.
O cabeça de casal respondeu mantendo a sua posição anterior e citando vária doutrina e jurisprudência, sustentando que, “seria artificial e forçada a qualificação da construção de uma casa como benfeitoria”; que “com a construção da moradia o terreno deixou de ter existência jurídica autónoma, tendo ficado integrado no prédio urbano, entretanto constituído e registado como tal, passando o terreno e a edificação a formar uma unidade jurídica indivisível”.
Por decisão proferida em 06/04/2022, a 1ª Instância julgou parcialmente procedente a reclamação à relação da bens apresentada pela requerente M. E. e, em consequência, determinou a eliminação da relação de bens apresentada pelo cabeça de casal da verba n.º 1 e determinou que, nessa relação de bens, fosse relacionada como benfeitoria a construção edificada por requerente e cabeça de casal, durante a constância do respetivo casamento, e indeferiu o pedido de avaliação das benfeitorias realizadas pelo ex-casal nesse prédio relacionado sob a verba n.º 1 (edificação da casa que nele foi erigida por requerente e cabeça de casal durante a constância do matrimónio no lote de terreno doado à requerente M. E. pelo pai desta) e, bem assim, do recheio dessa casa relacionado sob a verba nº 2 da relação de bens apresentada pelo cabeça de casal, relegando “para a conferência de interessados as questões suscitadas quanto ao valor da benfeitoria e dos bens móveis que compõem o recheio da mencionada construção”, constando essa decisão do seguinte teor:
“Nos presentes autos de inventário para separação de meações nos bens comuns do casal constituído por J. D. e M. E., em que aquele desempenha as funções de cabeça-de-casal, apresentou a relação de bens.
A requerente, nos termos do disposto no art. 1104º, nº 1, al. d) do CPCivil, reclamou da relação de bens alegando que: a) o imóvel descrito na verba nº 1 é um bem próprio da interessada; b) o recheio da casa de morada de família deve ser discriminado.
O cabeça de casal, notificado nos termos do art. 1105º, nº 1 do CPCivil, confirmou terem procedido à construção de um imóvel numa parcela de terreno pertencente à interessada e discriminou os bens móveis que constituem o recheio da casa de morada de família.
A requerente impugnou o valor das benfeitorias e dos bens móveis.
Cumpre decidir.
No que respeita à parcela de terreno, uma vez que se trata de bem próprio da interessada deve a mesma ser eliminada da relação de bens.
Por outro lado, resulta demonstrado que existem construções e edificações pertença comum do casal dissolvido mas efetuadas no terreno de que é único proprietário a ex-cônjuge mulher.
Na esteira do entendimento unânime da doutrina e da jurisprudência, consideramos que tais construções constituem meras benfeitorias, nos termos do art. 216º do CCivil.
Ora, tratando-se de benfeitorias, o art. 1273º, nº 2 do CCivil apenas atribui ao seu autor um direito de crédito contra o dono da coisa benfeitorizada, na impossibilidade de separar a construção do terreno onde está implantada, e não um direito de propriedade sobre a coisa.
Assim sendo, o prédio urbano deverá ser relacionado como benfeitoria.
No que respeita ao alegado pela requerente quanto ao valor da benfeitoria e dos bens relacionados cumpre referir que qualquer discordância quanto ao respetivo valor deverá ser objeto de acordo ou deliberação em sede de conferência de interessados, nos termos do disposto no artº. 1111º, nº 1, al. b) do CPCivil, sendo certo que, mantendo-se o desacordo, eventuais licitações poderão contribuir para a correção do apontado valor.
Pelo que nada há a determinar a tal respeito, remetendo-se tal questão para a conferência de interessados tal como a questão relativa ao compressor e à máquina de lavar à pressão uma vez que a requerente não põe em causa a sua existência, apenas contesta o valor atribuído a tais bens.

Por tudo o exposto, julgo parcialmente procedente a reclamação apresentada e, em consequência, decido:
a) eliminar da relação de bens a parcela de terreno;
b) relacionar, como benfeitoria a construção existente no bem próprio da requerente;
c) relegar para a conferência de interessados as questões suscitadas quanto ao valor da benfeitoria e dos bens móveis que compõem o recheio da mencionada construção”.

Inconformado com o assim decidido o cabeça de casal, J. D., interpôs o presente recurso de apelação, em que formula as seguintes conclusões:

I. A decisão proferida pela Mma. Juiz a quo padece, salvo o devido respeito, de um erro quanto aos pressupostos de direito pelo que, em razão de tudo quanto exposto, o Requerente tem legitimidade para interpor recurso de apelação com efeitos suspensivos nos termos do artigo 639.º, n.º 1 e n.º 2 do Código de Processo Civil ex vi n.º 1 e da alínea b) do n.º 2 e do n.º 3 do artigo 1123.º do Código do Processo Civil e requerer a alteração da decisão.
II. A decisão recorrida fez uma errada interpretação dos pressupostos de direito ao aplicar o artigo 1273.º, n.º 2 do Código Civil e qualificar como benfeitoria a construção da moradia na parcela de terreno de um dos ex-cônjuges, violando deste modo o disposto nos artigos 204.º, n.º 2 do Código Civil, 1723.º, n. º2 do Código Civil e 1726.º, n.º 1 e n. º 2 do Código Civil.
III. A decisão ora recorrida deve ser alterada na medida em que o bem imóvel descrito na verba n.º 1 da Relação especificada de bens comuns do casal efetuada pelo ora Recorrente deve manter-se nos termos dela constantes pois, o valor da construção da moradia ao ser factualmente e objetivamente superior ao valor do terreno onde foi incorporada configura uma unidade jurídica indivisível, nos termos do artigo 204.º, n.º 2 do Código Civil, pela qual o cabeça de casal J. D. e a Requerente M. E. são anualmente tributados, configurando desse modo um bem comum nos termos do n.º 1 e n.º 2 do artigo 1726.º do Código Civil, devendo a parcela de terreno doada àquela ser relacionada como crédito compensatório com valor atualizado. (sublinhado nosso)
IV.A sustentar a nossa posição veja-se Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12.10.2020, Processo n.º 2124/15.0T8LRA.C1, Relator: Maria Teresa Albuquerque, disponível in http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/6ca368efd8765af6 8025867b003fb546?OpenDocument que nos ensina sustentada no Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 18.05.2017 (Relator José Cardoso Amaral) que o caso sub judice tratando-se de um processo de inventário e de partilhas na sequência de um divórcio tem de ser enquadrado, apreciado e respondido à luz do direito matrimonial e atento o regime de comunhão de adquiridos que foi adotado então pelos cônjuges onde duas pessoas foram casadas entre si e as relações obrigacionais e reais de que os cônjuges foram e são titulares, daí que resulte um regime diferente da aplicação isolada do direito comum.
V. Ou seja, o que se procura no regime jurídico específico cuja aplicação está em causa, e à luz da função que naquele regime jurídico aquela obra desempenha na coisa, é a solução mais justa para corresponder ao tratamento das pretensões que se mostram contrapostas - por um lado as do cônjuge proprietário do terreno, por outro as do outro cônjuge que em função dos interesses da sociedade familiar que com aquele forma acede a incorporar bens comuns naquele terreno.
VI. Assim sendo, tendo por base que o valor da construção da moradia com recurso ao capital mutuado da Caixa …, S.A. no valor de € 90.000,00 (noventa mil euros) é superior ao valor da parcela de terreno doada de € 20.000,00 (vinte mil euros), a segunda parte do n.º 2 do artigo 204.º do Código Civil “(…) e por prédio urbano qualquer edifício incorporado no solo, com os terrenos que lhe sirvam de logradouro” e o n.º 1 do artigo 1726.º do Código Civil “Os bens adquiridos em parte com dinheiro ou bens próprios de um dos cônjuges e noutra parte com dinheiro ou bens comuns revestem a natureza na mais valiosa das duas prestações”, é mister concluir que o prédio urbano relacionado como verba 1 do Ativo da Relação Especificada de Bens Comuns do Casal é um bem comum. (sublinhado nosso).
VII. Esta solução é aquela que é mais justa e tecnicamente a mais correta na medida que a compensação pelo valor atualizado da parcela de terreno doado à Requerente M. E. fica sempre salvaguardada no momento da dissolução e partilha da comunhão, conforme resulta do n.º 2 do artigo 1726.º do Código Civil, pelo que se pugna pela alteração da decisão recorrida e pela manutenção da relação especificada de bens comuns efetuada pelo cabeça de casal.

A apelada contra-alegou pugnando pela improcedência da apelação e concluindo as suas contra-alegações nos termos que se seguem:

1. O apelante centra a sua censura no douto despacho de saneamento apelado, que ordenou que no âmbito da relação especificada de bens comuns do casal, o prédio urbano constante do ponto 1 do Ativo apresentado pelo cabeça de casal fosse classificado como benfeitoria a construção edificada na pendência do casamento em bem próprio da apelada;
2. No entender do apelante deverá ser aplicado o regime da acessão imobiliária e não o regime jurídico das benfeitorias e por conseguinte o prédio rústico e o prédio urbano devem ser relacionados como bens comuns e relacionar o crédito do cônjuge a quem pertencia o terreno rústico o valor atualizado deste, nos termos do n.º 2, do art.º 1726.º do CC;
3. Porém, não assiste qualquer razão ou fundamento ao recorrente na sua pretensão, não merecendo a decisão do Tribunal “a quo” a censura que o apelante lhe faz;
4. De acordo com a posição jurisprudencial maioritária, a edificação construída pelos cônjuges em terreno só de um deles, deve ser considerado uma benfeitoria e como tal deve se descrito no inventário, sob pena de violação do princípio da imutabilidade dos regimes de bens legalmente fixados.
5. Não estão preenchidos os pressupostos para a aplicação do regime da acessão, o regime a aplicar terá de ser o das benfeitorias (art.º 216.º, do CC), na medida em que são despesas efetuadas para melhorar a coisa.
6. Na verdade, um cônjuge deve ter a possibilidade de aceitar a aplicação de bens comuns paraconservação ou ampliação deum prédio bem próprio, sem com isso se expor ao risco de assim perder a propriedade exclusiva daquele bem.
7. A pretensão do apelante de pretender a manutenção da relação de bens apresentada no Requerimento com a referência Citius n.º 12758852 que pugna pela inscrição do prédio como bem comum do casal, não tem fundamento legal, designadamente, por força do disposto no art.º 8.º, n.º 3, do CC, segundo o qual “nas decisões a proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes ao direito.”
8. Pelo exposto, resulta que o Tribunal “a quo” apreciou e analisou corretamente a prova existente nos autos, e o direito aplicável, não merecendo o douto despacho o reparo que o apelante lhe faz.
Termos em que deve a apelação ser julgada improcedente, confirmando-se o douto despacho apelado, nos seus precisos termos, e com as legais consequências.

Também inconformada com a decisão recorrida, na parte em que indeferiu o pedido de avaliação das benfeitorias (construção da moradia pelos dois ex-cônjuges, na constância do matrimónio, celebrado sob o regime da comunhão de adquiridos, no lote de terreno, que é sua exclusiva propriedade) e dos bens móveis que compõem o recheio da casa, a requerente M. E. interpôs recurso de apelação dessa decisão, concluindo as suas alegações nos seguintes termos:

1. Ao abrigo dos art.ºs 644.º, n.º 2, al. b) e 645.º, n.º 2 do CPC, vem o presente recurso interpôs do douto despacho com a referência 178613051, que não admitiu o pedido de avaliação pericial das benfeitorias conforme requerido pela requerente.
2. O que a requerente não aceita, sob pena de verprecludido a possibilidade de ser efetuada a referida avaliação, meio de prova essencial para a determinação do valor das benfeitorias.
3. As benfeitorias reconduzem-se a um direito de crédito que integra o património comum do casal que respeita a beneficiações (benfeitorias) realizadas pelo mesmo num bem imóvel que é bem próprio da requerente e que passaram a integrá-lo.
4. Consequentemente, o direito de crédito respetivo, é insuscetível de ser adjudicado ao cabeça de casal, posto que respeita a património próprio da requerente.
5. Neste caso, essa licitação não é possível, pois o referido crédito é insuscetível de ser adjudicado ao cabeça de casal.
6. Assim, a verba referente ao direito de crédito relativo às benfeitorias não pode ser objeto de licitação ao contrário do referido no douto despacho recorrido, devendo ser adjudicado à requerente, pelo valor a determinar através de avaliação pericial, uma vez que as partes não estão de acordo quanto ao seu valor.
7. Pelo exposto, o Tribunal “a quo” não decidiu bem, quando não determinou a realização da perícia para a avaliação das benfeitorias, uma vez que, como suprarreferido, as mesmas não podem ser objeto de licitação, estando assim o douto despacho ferido de nulidade.
8. Assim, o douto despacho recorrido violou, por erro de interpretação e aplicação, entre outros, os artigos 1109.º, 1110.º e 1113.º, todos do CPC.
Nestes termos e nos melhores de direito, deve a presente apelação ser julgada procedente e em consequência, ser revogado o douto despacho recorrido com a referência 178613051, que não admitiu o pedido de avaliação pericial das benfeitorias substituído por douto acórdão que determine a realização da requerida avaliação pericial, com as legais consequências.

Não foram apresentadas contra-alegações em relação a este recurso.
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Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação dos apelantes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam do conhecimento oficioso - cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC.
Acontece que, quanto ao recurso de apelação interposto pela apelante M. E., suscita-se a questão prévia que se passa a enunciar:
No despacho de admissão dos recursos, a 1ª Instância escreveu o seguinte: “Esclarece- se ainda que, conforme resulta do despacho recorrido, não foi indeferida a avaliação, antes foi tal questão remetida para a conferência de interessados nos termos do art. 1114º, nº 1 do CPCivil (sendo a referência às licitações decorrente de também estarem em causa os valores de outros bens), ou seja, segundo a 1ª Instância, esta não teria indeferido o pedido da apelante M. E. para que as benfeitorias relacionadas pelo cabeça de casal na relação de bens que apresentou a fls. 28 a 30 do presente apenso (traduzidas na “construção de moradia tipologia T3, casa de cave e rés-do-chão”, que o então casal formado pelo cabeça de casal e pela apelante M. E. construiu no lote de terreno que foi doado pelo pai desta M. E., a última, formando, assim, o prédio urbano relacionado pelo cabeça de casal sob a verba n.º 1 daquela relação de bens), benfeitorias essas às quais o cabeça de casal atribuiu o valor de 229.000,00 euros, fossem avaliadas, assim como não indeferiu o pedido da apelante para que também se procedesse à avaliação dos móveis relacionados pelo cabeça de casal sob a verba n.º 2 da relação de fls. 28 a 30, mas teria relegado a decisão quanto a esses pedidos para a conferência de interessados.
Acontece que não foi essa a interpretação que a apelante M. E. fez da decisão proferida pela 1ª Instância sobre que versa o presente recurso, interpretando o teor dessa decisão como de indeferimento dessas suas pretensões, e a nosso ver, antecipe-se desde já, com inteira razão.
Na verdade, é pacífico o entendimento segundo o qual a sentença, o acórdão ou o despacho proferidos num processo judicial constituem verdadeiros atos jurídicos, a que se aplicam as regras regulamentadoras dos negócios jurídicos (art. 295º do CC), de modo que as normas que disciplinam a interpretação da declaração negocial são igualmente válidas para a interpretação das decisões judiciais (1), e daí que estas fiquem sujeitas às regras interpretativas fixadas para os negócios jurídicos nos arts. 236º a 238º do CC.
De acordo com essas regras, em sede interpretativa da declaração negocial vigora, como regra geral, o art. 236º, n.º 1 do CC., segundo o qual a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele.
Ao assim estatuir, é pacífico que o legislador consagrou a denominada doutrina da impressão do destinatário, de cariz objetivista, da qual decorre que, em homenagem aos princípios da proteção da confiança e da segurança do tráfico jurídico, se dá prioridade, em tese geral, ao ponto de vista do declaratário; não ao seu ponto de vista subjetivo, isto é, aquilo que o concreto declaratário realmente compreendeu em face do teor da declaração negocial de que foi destinatário, mas na sua dimensão objetiva, ou seja, aquilo que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, depreenderia ou poderia depreender do teor dessa declaração negocial.
Dito por outras palavras, o princípio regra vigente em sede de “interpretação das declarações de vontade é este: o sentido decisivo da declaração negocial é aquele que será apreendido por um declaratário normal, ou seja, medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratório, em face do comportamento do declarante” (2), ou, conforme pondera Mota Pinto, (3) ”(…) a declaração deve valer com o sentido que um destinatário razoável, colocado na posição concreta do real declaratário lhe atribuiria; considera-se o real declaratário nas condições concretas em que se encontra e tomam-se em conta os elementos que ele conhece efetivamente mais os que uma pessoa razoável, quer dizer, normalmente esclarecida, zelosa e sagaz, teria conhecido e figura-se que ele racionou sobre essas circunstâncias como o teria feito um declaratário razoável”.
Na mesma linha, Vaz Serra pondera que “… o declaratário não pode interpretar sem mais, a declaração pelo seu elemento literal, devendo ter em atenção as circunstâncias por ele conhecidas ou reconhecíveis por um declaratário normal, colocado na sua posição que possam esclarecê-lo sobre o que o declarante pretendeu significar. O declaratário deve procurar determinar o que o declarante quis significar com ela; nessa indagação não é obrigado a toda e qualquer diligência, mas à que teria um declaratório normal, colocado na posição concreta em que ele real declaratário se encontra, devendo ter, assim, em atenção as circunstâncias por ele conhecidas ou cognoscíveis por um declaratário normal (4).
Também João Calvão da Silva escreve que, “o alcance decisivo da declaração negocial será aquele que em abstrato lhe atribuiria um declaratário razoável, medianamente inteligente, diligente e sagaz, colocado na posição concreta do declaratário real, em face das circunstâncias que este efetivamente conheceu e das outras que podia ter conhecido, máxime dos termos da declaração, dos interesses em jogo e seu mais razoável tratamento, da finalidade prosseguida pelo declarante, das circunstâncias concomitantes, dos usos da prática e da lei” (5).
Deste modo, impondo-se que a declaração negocial valha de acordo com um critério objetivo, ou seja, com o sentido que lhe é dado por um declaratário medianamente inteligente, diligente e sagaz, quando colocado na posição do declaratário real, em face das circunstâncias que este efetivamente conhecia e das outras que lhe eram cognoscíveis, conforme é bom de ver, na busca do sentido interpretativo a dar à declaração negocial podem surgir como elementos essenciais a que o intérprete se deve socorrer para fixar o sentido interpretativo a dar à declaração negocial uma multiplicidade de circunstâncias, anteriores, contemporâneas e posteriores a essa declaração, nomeadamente, "a letra do negócio, as circunstâncias de tempo, lugar e outras que precederam a sua celebração ou são contemporâneas desta, bem como as negociações respetivas, a finalidade prática visada pelas partes, o próprio tipo negocial, a lei e os usos e os costumes por ela recebidos" (6) ou, dito de outra maneira, “… os termos do negócio, os interesses que nele estão em jogo (e a consideração de qual seja o seu mais razoável tratamento), a finalidade prosseguida, etc…” (7) e, em particular, tratando-se de uma decisão judicial, os termos que corporizam o litígio espelhado nos articulados que as partes delinearam e submeteram à apreciação e à decisão do tribunal e, inclusivamente, as circunstâncias posteriores à prolação dessa decisão (8).
Acresce que, nos negócios formais, a declaração negocial não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respetivo documento, ainda que imperfeitamente expresso (art. 238º, nº 1 do CC).
Acresce ainda que, uma vez aplicada a regra interpretativa geral da chamada doutrina da impressão do destinatário, caso persista a dúvida sobre o sentido interpretativo a dar à declaração negocial, nos negócios gratuitos, deve prevalecer o sentido interpretativo menos gravoso para o disponente e, nos onerosos, o que conduzir ao maior equilíbrio das prestações (art. 237º do CC).
Acontece que a decisão judicial não consubstancia um verdadeiro negócio jurídico, na medida em que não traduz uma declaração pessoal de vontade do julgador, mas antes exprime uma injunção aplicativa do direito à vontade da lei ao caso concreto. Porque assim é, importa ter presente que, na interpretação da decisão judicial, o declarante, isto é, o juiz, se situa numa específica área técnico jurídica, investido na função de aplicador da lei, que, por sua vez, está obrigado a interpretar, em conformidade com as regras estabelecidas no art. 9º do CC, dirigindo-se a outros técnicos de direito (9) e, bem assim, que sendo as decisões judiciais, por natureza, atos formais, amplamente regulamentados pela lei processual e implicando uma objetivação da composição de interesses nelas contidas, assume particular importância na respetiva interpretação o comando legal segundo o qual não pode valer um sentido que não tenha no documento ou escrito que corporiza a decisão judicial um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (10).
Além disso, importa ter presente que, na interpretação da decisão judicial, não pode o intérprete cingir-se exclusivamente à respetiva parte dispositiva, mas a fim de aferir o sentido interpretativo dessa parte dispositiva, há-de necessariamente atender aos fundamentos fácticos e jurídicos que serviram de fundamento ou de sustentação a essa decisão expressa na parte dispositiva da sentença, acórdão ou despacho (11).
Na verdade, já Alberto dos Reis, que era defensor da tese restritiva do caso julgado, de acordo com a qual o caso julgado apenas se formava sobre a parte dispositiva da sentença, isto é, sobre a parte final desta, em que o juiz ditava a injunção legal aplicável ao caso, isto é, o seu dictat para o litígio que as partes submeteram à sua apreciação e decisão, e não também aos fundamentos de facto e de direito em que assentou esse dictat (tese essa que, cremos, ser atualmente minoritária ao nível da doutrina e da jurisprudência nacionais), sustentava que a parte dispositiva da sentença carece de ser sempre interpretada por referência aos fundamentos fácticos e jurídicos em que assentou, ao ponderar que, “há casos em que a sentença foi favorável à parte que recorre e contudo não pode considerar-se o recorrente parte ilegítima para impugnar a decisão. Suponhamos que a sentença absolve o réu da instância (…), que o autor tem legitimidade para recorrer da sentença de absolvição da instância, não pode oferecer dúvida séria; mas já não pode afirmar-se com segurança que ao réu esteja vedado o recurso. É que a absolvição da instância pode representar menos do que aquilo a que o réu aspirava, pode exprimir benefício inferior àquele que o réu se propunha obter” (12). E a propósito da admissibilidade legal dos denominados julgamentos implícitos, escreve que, “não se esqueça que a decisão é uma declaração como todas as outras, na qual há que subentender, por força lógica, muitas coisas que não foram ditas explicitamente. Se a solução duma questão supõe, como prius lógico, a solução de outra, esta está contida, implicitamente, na decisão (caso julgado implícito). Devem, pois, considerar-se implicitamente resolvidas todas as questões, cuja solução é logicamente necessária para chegar à solução expressa na decisão. Se, por exemplo, o juiz se pronuncia sobre a resolução dum contrato, implicitamente afirma a validade dele; não será admissível, por isso, que, declarada a resolução, se proponha depois ação a pedir que o contrato seja anulado” (13).
Assentes nas premissas que se acabam de enunciar, revertendo ao caso dos autos, a apelante M. E. reclamou da relação de bens corrigida, apresentada pelo cabeça de casal a fls. 27 a 30 do presente apenso, impugnando o valor das benfeitorias (a moradia edificada pelo então casal, formado pela apelante e pelo cabeça de casal no terreno que lhe foi doado pelo pai) nela relacionadas pelo cabeça de casal sob a verba n.º 1, às quais este atribuiu o valor de 229.000,00 euros, sustentando que o valor dessas benfeitorias não ascende a quantia superior a 100.00,00, e requereu que essas benfeitorias fossem avaliadas por perito a designar pelo tribunal (cfr. fls. 33 a 34).
A mesma apelante também impugnou o valor do recheio daquela moradia, relacionado na relação de bens de fls. 27 a 30 sob a verba n.º 1, ao qual o cabeça de casal atribuiu um valor global de 20.000,00 euros, sustentando que esse valor não ascende a quantia superior a 10.000,00 euros, requerendo que esse recheio também fosse avaliado por perito a designar pelo tribunal (cfr. fls. 33 a 34).
Debruçando-se sobre estes pedidos, a 1ª Instância decidiu: “relegar para a conferência de interessados as questões suscitadas quanto ao valor da benfeitoria e dos bens móveis que compõem o recheio da mencionada construção” e suportou essa sua decisão nos seguintes argumentos: qualquer discordância quanto ao respetivo valor deverá ser objeto de acordo ou deliberação em sede de conferência de interessados, nos termos do disposto no artº. 1111º, nº 1, al. b) do CPCivil, sendo certo que, mantendo-se o desacordo, eventuais licitações poderão contribuir para a correção do apontado valor”.
Dir-se-á que, pela simples leitura do assim decidido, sem grande esforço interpretativo, a 1ª Instância relegou para a conferência de interessados as questões suscitadas pela apelante quanto ao valor das benfeitorias e do recheio por, na sua perspetiva, esse valor ter de ser fixado por acordo entre os interessados (apelante M. E. e seu ex-marido, o cabeça de casal J. D.), ou na ausência desse acordo, por licitações, isto é, caso não se chegasse a acordo entre os interessados sobre o valor a atribuir às benfeitorias e ao recheio, seguir-se-iam licitações, as quais, conforme escreve na decisão recorrida, contribuiriam para a correção do valor atribuído àquelas e ao recheio pelo cabeça de casal na relação de bens que apresentou, ou seja, em suma, na perspetiva do tribunal a quo, não existe fundamento legal para se proceder à requerida avaliação daquelas benfeitorias e do recheio por perito, conforme pretendido pela apelante, pretensão essa que, consequentemente, indeferiu.
É neste sentido que qualquer declaratário médio teria interpretado o teor da decisão recorrida, ou seja, a 1ª Instância indeferiu os pedidos formulados pela apelante M. E. para que as benfeitorias e o recheio da casa fossem avaliados por um perito a nomear pelo tribunal, e o alcance interpretativo a dar à parte dispositiva daquela decisão, em que o tribunal a quo remete para a conferência de interessados “as questões suscitas quanto ao valor da benfeitoria e dos bens móveis que compõem o recheio da mencionada construção”, é no sentido de que esse valor seria aí fixado, por acordo dos interessados, ou na ausência deste, por licitações, e não, no sentido de que aquele tribunal teria remetido a decisão a proferir quanto às pretensões deduzidas pela apelante para a conferência de interessados, conforme agora postula a 1ª Instância no despacho de admissão do recurso acontecer.
Assim, é apodítico que, tal como sustenta a apelante M. E. acontecer, em sede de decisão recorrida, a 1ª Instância indeferiu a pretensão daquela em ver realizada a avaliação das benfeitorias e do recheio.
Destarte, tendo presente o que se acaba de dizer e o que antes ficou dito sobre o âmbito de cognição do tribunal ad quem, as questões que se encontram submetidas à apreciação do tribunal ad quem resumem-se ao seguinte:

Recurso interposto pelo cabeça de casal, J. D.:
a- se o despacho recorrido, que determinou a eliminação da relação de bens apresentada pelo cabeça de casal da verba n.º 1, em que este relaciona um “prédio urbano constituído por casa de habitação e logradouro, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º … e inscrito na matriz sob o art. …º da União de Freguesias de ... e ... (...)” e, bem assim, que determinou que as benfeitorias (consistentes na edificação da casa erigida por apelante e apelada, durante a constância do casamento de ambos, no regime da comunhão de adquiridos, na parcela de terreno que o pai da apelada M. E. doou à última, formando, assim, o prédio urbano nos moldes em que foi relacionado pelo cabeça de casal - terreno com a moradia incorporada), fossem relacionadas naquela relação de bens apresentada, padece de erro de direito e, se em consequência, se impõe revogar essa decisão e manter aquele prédio urbano relacionado nos termos em que o apelante o relacionou, sob a verba n.º 1, da relação de bens corrigida de fls. 28 a 30 do presente apenso;

Recurso interposto pela apelante M. E.:
b- se o despacho recorrido, na parte em que indeferiu a avaliação da dita benfeitoria (moradia edificada por esta e pelo cabeça de casal, na constância do matrimónio de ambos, no lote de terreno que foi doado à apelante M. E. pelo pai desta) e do recheio dessa moradia, este relacionado sob a verba n.º 2 da relação de fls. 28 a 30 do presente apenso, padece de erro de direito e se, em consequência, se impõe revogar essa decisão e determinar a realização da avaliação dessas benfeitorias e recheio.
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A- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Com relevância para a decisão a proferir no âmbito da presente apelação, encontram-se apurados os seguintes factos:

A- Encontra-se descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial sob o n.º …/20061107, da freguesia de ... (…), o prédio urbano composto de casa de cave e rés-do-chão, tipo T3, com logradouro, inscrito provisoriamente a matriz sob o art. … e no atual artigo matricial … - cfr. docs. de fls. 12 verso a 14.
B- Esse prédio encontra-se com propriedade inscrita em nome de M. E., por doação feita por J. S., pela ap. 29 de 2006/12/18 – cfr. doc. de fls. 13 verso a 14.
C- A parcela/lote de terreno que compõe o prédio urbano referido em A) foi doado pelo pai de M. E., J. S., à última, então casada com J. D., sob o regime da comunhão de adquiridos, por escritura pública outorgada em 21 de novembro de 2006 – cfr. doc. de fls. 30 verso a 32.
D- M. E. e J. D., durante a constância do casamento, construíram a casa de cave e rés-do-chão, tipo T3, que se encontra edificada no prédio urbano identificado em A), mediante recurso a um empréstimo bancário, no montante de 90.000,00 euros (por admissão).
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B- FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA

B.1 - Recurso interposto pelo cabeça de casal, J. D..

Tendo o ex-casal formado pelo cabeça de casal, J. D., e pela requerente, M. E., sido casados entre si no regime da comunhão de adquiridos, e tendo o mesmo, durante a constância do casamento, construído uma moradia num lote de terreno que tinha sido doado pelo pai da então cônjuge mulher à última e que, portanto, é bem próprio desta, a questão que se suscita no presente recurso é a de saber se esse prédio urbano, ora formado pelo lote de terreno e pela moradia nele incorporada, contruída pelo ex-casal e durante a constância daquele matrimónio, é bem próprio da ex-cônjuge mulher, impondo-se, por isso, a sua exclusão do presente processo de inventário destinado a partilhar os bens comuns do extinto casal, onde apenas deverá ser relacionado, a título de benfeitorias, o valor da casa edificada naquele prédio urbano/lote de terreno – tese esta que foi a sufragada pela 1ª Instância e que é a que é sustentada pela ex-cônjuge (a apelada M. E.) -, ou se, pelo contrário, aquele prédio urbano, formado pelo lote de terreno e pela moradia que nele foi incorporada pelo ex-casal, deve ser relacionado no presente processo de inventário, por se tratar de bem comum do casal, e relacionar-se o valor do lote de terreno, como compensação do património comum do extinto casal a ser prestada à ex cônjuge-mulher (M. E.), conforme o apelante pretende impor-se acontecer.
A questão suscitada pelo apelante não é nova e conforme resulta dos autos, em particular das alegações e contra-alegações de recurso, não tem sido solucionada de forma uniforme pela doutrina e pela jurisprudência nacionais, havendo soluções em ambos os sentidos propugnados pelas partes.
A tese que vem sufragada pela apelada M. E. e que foi a adotada pela 1ª Instância, partindo da distinção entre benfeitorias e acessão e que esse traço distintivo passa pela consideração que a benfeitoria consiste num melhoramento que está ligado à coisa em consequência de uma relação ou vínculo jurídico, ao passo que a acessão é um fenómeno que vem do exterior, de um estranho, de uma pessoa que não tem contacto jurídico com ela, sustenta que, nos casos em que os cônjuges, na constância do casamento, contraído no regime da comunhão de adquiridos, edificam uma moradia em terreno que é exclusivamente propriedade de um deles, porque, entre o cônjuge não proprietário e o terreno em que a moradia é edificada não existe qualquer relação jurídica, a edificação desta não se reconduz ao instituto da acessão imobiliária, mas consubstancia uma benfeitoria.
Mais aduz que, tendo o cônjuge não proprietário do terreno perfeito conhecimento que a moradia está a ser edificada sobre um terreno que não é seu, mas exclusivamente do seu cônjuge, nunca se poderia aplicar ao caso o regime da acessão imobiliária por claudicar o requisito da boa fé do art. 1340º, n.º 1 do CC.
Como tal, os defensores desta tese sustentam que formando o prédio constituído por um terreno para construção, que é propriedade de um dos cônjuges, e a construção que ambos os cônjuges nele erigiram durante a constância do casamento, celebrado no regime da comunhão de adquiridos, um todo indivisível, isto é, um prédio urbano, e sendo este prédio urbano propriedade exclusiva do proprietário do terreno, em caso de inventário para partilha dos bens comuns daqueles, subsequente a divórcio, não há que se relacionar esse prédio, dado que este não é bem comum do extinto casal, mas seguindo o regime das benfeitorias impõe-se relacionar, como bem comum (crédito do património comum), o valor da construção edificada enquanto benfeitoria” (14).
Esta orientação jurisprudencial parte da corrente largamente maioritária sufragada pela doutrina nacional de que o critério diferenciador entre benfeitoria e acessão imobiliária reside na existência ou não do tal vínculo jurídico entre a pessoa que faz o benefício material ou melhoramento à coisa e essa coisa.
Esta é a tese tradicional, reafirma-se, largamente maioritária na jurisprudência nacional, e que é a defendida por Pires de Lima e Antunes Varela, os quais sustentam que, “a benfeitoria e a acessão, embora objetivamente se apresentem com caracteres idênticos, pois há sempre um benefício material para a coisa, constituem realidades jurídicas distintas. A benfeitoria consiste num melhoramento feito por quem está ligado à coisa em consequência de uma relação ou vínculo jurídico, ao passo que a acessão é um fenómeno que vem do exterior, de um estranho, de uma pessoa que não tem contacto com ela. A aquisição por acessão é sempre subordinada (…) a um título que dê, de per si, a origem e a disciplina da situação criada. São assim benfeitorias os melhoramentos feitos na coisa pelo proprietário, pelo antigo enfiteuta, pelo possuidor (arts. 1273º a 1275º), pelo locatário (arts. 1046, 1074º e 1082º), pelo comodatário (art. 1138º) e pelo usufrutuário (art. 1450º); são acessões os melhoramentos feitos por qualquer terceiro, não relacionado juridicamente com a coisa, podendo esse terceiro ser um simples detentor ocasional” e concluem que, “as benfeitorias e a acessão constituem fenómenos paralelos que se distinguem pela existência ou inexistência de uma relação jurídica que vincule à pessoa a coisa beneficiada” (15).
Acontece que essa distinção vem desde há muito a ser colocada em crise por largos setores da doutrina, os quais defendem que a distinção entre acessões e benfeitorias se funda na finalidade e no regime jurídico de ambas as figuras, isto é, pondo o acento tónico no resultado da incorporação.
Assim, Vaz Serra propugna que as benfeitorias destinam-se a conservar e a melhorar a coisa, não a criar um direito sobre a coisa, e a sua realização confere ao respetivo autor um direito ao levantamento ou um direito de crédito; a acessão implica a construção de uma coisa nova (não conservar ou melhorar a coisa de outrem) mediante a alteração da substância daquela em que a obra é feita, atribuindo a lei ao autor da obra a propriedade da coisa (16).
Também Manuel Rodrigues sustenta que os atos de acessão se distinguem no essencial das benfeitorias “porque alteram a substância da posse, porque inovam” (17).
Na mesma linha entende Menezes Leitão que “a alteração substancial do bem” constitui o critério primacial distintivo entre benfeitoria e acessão – as benfeitorias são meras despesas destinadas à conservação ou melhoramento da coisa (não gerando conflitos de direitos), enquanto a acessão implica a incorporação de um valor novo naqueles bens graças à união com outra coisa ou à sua transformação por aplicação de trabalho, gerando “um direito novo sobre a coisa que entra em conflito com o do proprietário primitivo” (18).
Ainda Lopes Cardoso postula que, “a noção de benfeitorias formula-a o art. 216º, n.º 1 do CC: são todas as despesas feitas para conservar ou melhorar a coisa. (…) não se confundem com a acessão industrial (arts. 1333º e ss. do CC), pois os atos desta importam inovação, alteração substancial do objeto” (19)
Sendo esta a tese distintiva entre benfeitoria e acessão que se nos prefigura ser a de adotar, dir-se-á que se estará perante uma benfeitoria quando alguém realize trabalhos em determinada coisa com vista a conservá-la ou melhorá-la e já se está perante o fenómeno da acessão imobiliária quando alguém realiza trabalhos sobre uma determinada coisa e, por via desses trabalhos, transforma-a, produzindo uma alteração substancial da mesma, gerando uma coisa nova.
Assentes nestas premissas, diremos que a construção de uma moradia sobre um prédio composto por lote de terreno destinado à construção, como é o caso dos autos, não se traduz em trabalhos de simples melhoramento ou de conservação desse lote, mas antes transforma esse prédio rústico (art. 204º, n.º 2, 1º parte do CC), provocando uma alteração substancial e jurídica deste, mediante a incorporação nele da moradia que nele foi edificada, que passa a constituir (lote de terreno e moradia) um todo uno e indivisível, dando origem a uma coisa nova, a uma nova realidade material e jurídica, passando a constituir um prédio urbano (art. 204º, n.º 2, parte final do CC).
Ora, porque assim é, se a construção de uma moradia por ambos os cônjuges, na constância do matrimónio celebrado no regime da comunhão de adquiridos, num prédio composto por terreno destinado à construção, que é propriedade exclusiva de apenas um deles, não se subsume ao regime da acessão imobiliária por, conforme salienta a tese jurisprudencial acima enunciada, claudicar o requisito da boa fé do n.º 1 do art. 1340º do CC, mas também, ou sobretudo, porque o terreno não é coisa alheia em relação ao cônjuge que for o seu dono, essa construção também não se subsume a uma simples benfeitoria, na medida em que a edificação de uma moradia sobre um prédio composto por lote de terreno, propriedade de apenas um deles, não se traduz numa simples obra de conservação ou melhoramento desse lote, mas leva à alteração da substância deste, ao nele ser incorporada a moradia, dando lugar a uma coisa nova, a uma nova realidade jurídica (20).
Destarte, a situação sobre que versam os presentes autos não se reconduz à acessão imobiliária, nem é uma benfeitoria, mas antes deve ser solucionado à luz do regime matrimonial do casamento do extinto casal, “não convindo esquecer que estamos perante duas pessoas que foram casadas entre si e que, nessa medida, a relação matrimonial influencia a generalidade das relações obrigacionais ou reais de que os cônjuges são ou foram titulares, daí resultando, pois, um regime diferente daquele que decorrerá da aplicação isolada do direito comum” (21).
Estatui o art. 1724º do CC que, no regime da comunhão de adquiridos, fazem parte da comunhão o produto do trabalho dos cônjuges e os bens adquiridos por estes na constância do matrimónio, que não sejam excetuados por lei.
Por sua vez, estabelece o art. 1726º do mesmo Código que, “os bens adquiridos em parte com dinheiro ou bens próprios de um dos cônjuges e outra parte com dinheiro ou bens comuns revestem a natureza da mais valiosa das duas prestações” (n.º 1), mas “fica, porém, sempre salva a compensação devida pelo património comum aos patrimónios próprios dos cônjuges, ou por estes àquele, no momento da dissolução e partilha da comunhão” (n.º 2).
Debruçando-se sobre estes preceitos, defende Rita Xavier que, “o espírito do sistema da comunhão de adquiridos é o de que ingressam no património comum todos os ganhos alcançados pelos cônjuges durante o casamento que não sejam excetuados por lei” e que, dentro dessa filosofia, sempre que os cônjuges, na constância do matrimónio, contraído no regime da comunhão de adquiridos, construam uma casa sobre um terreno que apenas é propriedade de um deles, momento em que o terreno deixou de ter individualidade própria, passando a ser um prédio urbano, por aplicação do disposto no n.º 1 do art. 1726º, se a moradia erigida pelos cônjuges for a parte mais valiosa comparativamente com o valor do terreno, esse prédio é bem comum de ambos os cônjuges, ficando sempre salvaguarda a compensação devida pelo património comum ao cônjuge proprietário do terreno, no momento da dissolução e partilha da comunhão.
A propósito do art. 1726º, n.º 1, acrescenta aquela autora que, “pode objetar-se que a norma se refere «a bens adquiridos em parte com dinheiro ou bens próprios e noutra parte com dinheiro ou bens comuns». E, no nosso caso, os cônjuges não “adquiriram” a casa construíram-na. Mas isso é indiferente porque o que interessa é que a casa “adveio” aos cônjuges em virtude de uma conjugação de esforços: foram empregues na sua construção um bem próprio e bens comuns. Imaginemos que os cônjuges tinham adquirido uma vivenda e que o respetivo preço tinha sido pago, em parte, por meio da entrega do terreno da mulher (avaliado em 1.100 contos) e, em parte, através de dinheiro comum (4.800 contos). A resposta para a questão da qualificação da casa assim adquirida seria encontrada pela aplicação da regra estabelecida na norma do n.º 1 do art. 1726º, e eventualmente combinada com a que se refere à sub-rogação real dos bens próprios nos regimes comuns (art. 1723º, al. c)). Aplicando a referida regra, a casa deveria ser considerada bem comum – porque o valor dos bens comuns próprios empregues na aquisição era superior ao valor dos bens próprios empregues. No momento da dissolução do casamento, haveria lugar a uma compensação do património próprio correspondente ao enriquecimento do património comum (art. 1726º, n.º 2)”. E acrescenta: “não vejo motivo para que a solução seja outra no caso de que me ocupa. Na verdade, a situação em que os cônjuges constroem uma casa em terreno que é propriedade exclusiva de um deles, utilizando valores comuns na sua construção, não me parece ser substancialmente diferente daquela em que os cônjuges pagam o preço de uma casa por meio de entrega de valores comuns e de um terreno incluído num dos patrimónios próprios” (22).
Analisados os diversos argumentos em confronto, somos em concluir que esta última posição é aquela que se mostra mais conforme ao direito aplicável, posto que, salvo o devido respeito por opinião contrária, não se nos prefigura fazer sentido pretender-se que a construção de uma moradia pelos cônjuges, na constância do matrimónio, celebrado no regime da comunhão de adquiridos, mediante recurso a trabalho e meios financeiros de ambos, num lote de terreno destinado à construção, propriedade exclusiva de um deles, consubstancie uma mera benfeitoria.
E não faz qualquer sentido tratar-se um prédio urbano que, antes da edificação da moradia, era composto exclusivamente por terreno destinado a construção, isto é, um prédio rústico, como se, após a construção e incorporação nele da dita moradia, fosse a mesma realidade substancial e jurídica, que manifestamente não é, e desvalorizando-se, ou quiçá, ignorando-se que ao edificarem a moradia, mediante recursos financeiros de ambos, no terreno que apenas era de um deles, ao comportamento dos cônjuges esteve necessariamente subjacente o vínculo matrimonial que então os unia, ignorando-se, pois, as realidades da vida.
Finalmente, conforme realça Rita Xavier, a solução jurídica que se propugna é a que melhor se enquadra nas expectativas dos cônjuges que “têm o dever de conjugar esforços de ordem patrimonial para ocorrer às necessidades da família e existem expectativas fundadas, sobretudo quando o regime é comunitário, de que irão participar de forma igual nos resultados dessa colaboração. É aliás tais expectativas que o regime da comunhão de adquiridos protege e, por isso, um regime deste tipo corresponderá à natural e espontânea interpenetração de patrimónios que ocorre durante a vida conjugal” (23).
Assentes nas premissas que se acabam de enunciar, revertendo ao caso dos autos, verifica-se que o prédio composto por parcela de terreno, propriedade da apelada M. E., em que foi construída a moradia por esta e pelo seu então marido (o apelante J. D.), foi doado àquela pelo seu pai, J. S., por escritura de doação de 21 de novembro de 2006, tendo, nessa escritura, sido atribuído a esse prédio o valor de 20.000,00 euros (cfr. escritura de doação de fls. 31 a 32).
Por sua vez, nessa parcela de terreno destinada a construção, apelante e apelado, durante a constância do seu casamento, contraído no regime da comunhão de adquiridos, construíram uma casa de cave e rés-do-chão, tipologia T3, mediante recurso a empréstimo bancário, no montante de 90.000,00 euros (cfr. als. C e D da facticidade apurada).
Deste modo, a parte mais valiosa é a despendida por ambos os ex-cônjuges (apelante e apelada) na construção da moradia, durante a constância do casamento celebrado no regime da comunhão de adquiridos, mediante a utilização de meios financeiros de ambos, pelo que, nos termos do disposto no art. 1726º, n.º 1 do CC, o prédio urbano composto por casa de cave, rés-do-chão, tipo T3, com logradouro, descrito na 2º Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º …/20061107, da freguesia de ... (...), inscrito na matriz sob o art. … (conforme certidões matricial e predial de fls. 11 verso a 14) é bem comum do extinto casal formado por apelante e apelado e, como tal, impõe-se o respetivo relacionamento pelo cabeça de casal a fim de ser partilhado.
No entanto, o património conjugal a partilhar terá de, nos termos do disposto no n.º 2 do art. 1726º, compensar a apelada M. E., pelo valor do prédio composto por parcela de terreno, que lhe foi doado, onde foi implantada a dita casa, valor esse que naturalmente será sujeito a atualização, pelo que, deverá ser relacionado o valor do terreno no qual foi implanta a moradia como compensação devida pelo património conjugal ao património do ex-cônjuge M. E..

Do exposto, impõe-se concluir pela total procedência da apelação interposta por J. D. e, em consequência, impõe-se revogar o despacho recorrido e ordenar que se proceda:

a- ao relacionamento do prédio urbano composto por casa de cave, rés-do-chão, tipo T3, com logradouro, descrito na 2º Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º …/20061107, da freguesia de ... (...), inscrito na matriz sob o art. … (conforme certidões matricial e predial de fls. 11 verso a 14) à relação de bens apresentada pelo cabeça de casal, a fim deste ser partilhado, por ser bem comum do extinto casal;
b- ao relacionamento como dívida do património comum ao património próprio do cônjuge mulher, a compensação devida por aquele património conjugal ao ex-cônjuge M. E., correspondente ao valor (devidamente atualizado) da parcela de terreno que lhe foi doada pelo seu pai, por escritura pública de 21/11/2006, junta ao presente apenso a fls. 31 e 32, na qual a moradia foi implantada. gerando o prédio referido em a) supra.

B.2- Recurso interposto pela apelante M. E.:

Conforme acima se deixou demonstrado, a 1ª Instância indeferiu o pedido da apelante M. E. em que esta requer que a benfeitoria (casa edificada pelo então casal, constituído pela própria e pelo seu ex-marido, o apelado J. D., no prédio urbano composto por parcela de terreno destinado a habitação) e o recheio dessa casa (verba n.º 2 da relação de bens apresentada pelo cabeça de casal), fossem avaliados, por perito a designar pelo tribunal, em virtude de não se conformar com o valor que lhes foi atribuído pelo cabeça de casal, com o argumento de que o valor desses bens tinha de ser fixado, por acordo dos interessados, na conferência e, na ausência desse acordo, mediante licitações, argumentos estes com os quais não se conforma a apelante, imputando erro de direito ao decidido.
Acontece que a apreciação do recurso interposto pela apelante, no que tange ao decidido quanto à avaliação da benfeitoria, encontra-se indiscutivelmente prejudicado face ao antes decidido no âmbito do recurso de apelação interposto por J. D., impondo-se, nesta parte, julgar extinta a presente instância recursiva, por inutilidade superveniente da lide, o que se decide.
Resta analisar os erros de direito que a apelante imputa à decisão recorrida em que a 1ª Instância indeferiu o pedido daquela para que fosse avaliado o recheio, relacionado sob a verba n.º 2 da relação de bens apresentada pelo cabeça de casal.
Dispõe o art. 1114º do CPC que, “Até à abertura das licitações, qualquer interessado pode requerer a avaliação de bens, devendo indicar aqueles sobre os quais pretende que recaia a avaliação e as razões da não aceitação do valor que lhes é atribuído” (n.º 1); “O deferimento do requerimento de avaliação suspende as licitações até à fixação do valor dos bens (n.º 2); e “A avaliação dos bens é, em regra, realizada por um único perito, nomeado pelo tribunal, salvo se: (…) – n.º 3.
Estabelece-se assim, neste normativo, numa clara exceção à regra da preclusão e concentração dos meios de defesa logo a seguir à citação para o processo de inventário (art. 1104º do CPC), a faculdade de qualquer interessado (direto ou secundário) na partilha requerer a avaliação dos bens relacionados pelo cabeça de casal, ficando o exercício dessa faculdade condicionada à satisfação pelo requerente dos seguintes requisitos legais: a) tem de requerer a avaliação dos bens até à abertura das licitações; b) tem de indicar quais os concretos bens que pretende que sejam avaliados; e c) tem de especificar as razões da sua discordância em relação ao valor indicado pelo cabeça de casal na relação de bens que apresentou em relação ao bem ou bens em relação aos quais requer a avaliação.
Note-se que nada obsta a que a avaliação dos bens seja requerida antes da realização da conferência de interessados uma vez que a abertura das licitações referida no n.º 1 do art. 1114º do CPC, representa apenas o termo final para requerer a avaliação (24).
Aliás, “a escolha do termo a quo que consta do nº 1 tem subjacente a justificação de que o pedido de avaliação não deve ficar precludido antes do momento em que, eventualmente, se mostra frustrada a possibilidade de realização de uma partilha consensual (cfr. art. 1111º, n.º 1). Além disso, a escolha desse momento reforça o entendimento segundo o qual, no momento da abertura das licitações, já deve estar estabilizado o valor real dos bens, de modo a possibilitar que os lanços oferecidos pelos interessados partam desse valor efetivo, e não de um valor desajustado ou ficcionado. Daí que o deferimento do pedido de avaliação implique a suspensão do início das licitações até à fixação definitiva do valor dos bens” (n.º2 do art. 114º do CPC) (25).
Destarte, tendo no caso dos autos, a apelante requerido a avaliação da benfeitoria (avaliação esta prejudicada) e do recheio da casa (verba n.º 2 da relação de bens) e tendo indicado as razões da sua discordância em relação ao valor que lhes foi atribuído pelo cabeça de casal e estando observado o termo final previsto no n.º 1 do art. 1114º do CPC para a formulação desse pedido, se assistia à 1ª Instância a possibilidade de relegar a tomada de decisão quanto a esse pedido para a conferência de interessados (salvaguardando a possibilidade de aqueles chegarem, na conferência, a acordo quanto à partilha, e assim evitando-se atos e custos eventualmente inúteis com a realização da referida avaliação e o empolamento dos custos fiscais e judiciais que daí podiam decorrer para os bens avaliados), já não podia ter indeferido essa pretensão da apelante, como fez, com fundamento de que o valor desses bens seria fixado, na conferência de interessados, por acordo, ou, na ausência desse acordo, através das licitações, tanto mais que, a avaliação dos bens requerida e deferida já tem de estar realizada e o valor desses bens já tem de estar determinado por essa via, quando se iniciam as licitações, e daí que, nos termos do n.º 2 do art. 1114º, “o deferimento do requerimento de avaliação suspende as licitações até à fixação definitiva do valor dos bens”, o que se bem compreende.
Na verdade, “a realização da avaliação, a requerimento de algum interessado, constitui o mecanismo que, em face da falta de consenso, permite obter uma primeira aproximação relativamente ao valor que será considerado para efeito de partilha. Ao mesmo tempo, atenua os efeitos negativos de um modelo (como o que esteve consagrado no CPC de 1961) baseado na prevalência das licitações e que acabava por beneficiar os interessados dotados de maior poderio financeiro” (26).
Dito por outras palavras, em suma, requerida a avaliação dos bens e deferida esta, nunca se poderá passar à fase de licitações sem que a avaliação desses bens já esteja concluída e o valor dos bens avaliados determinado.
Destarte, ao indeferir a avaliação requerida pela apelante, na decisão recorrida, a 1ª Instância incorreu em erro de direito, impondo-se a respetiva revogação e substituição por outra em que se determine a avaliação do recheio da casa de morada de família do extinto casal (verba n.º 2 da relação de bens apresentada pelo cabeça de casal).
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Decisão:

Nesta conformidade, os Juízes Desembargadores da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, acordam em julgar o recurso de apelação interposto por J. D. totalmente procedente e, em consequência, revogam o despacho recorrido e ordenam:

a- o relacionamento do prédio urbano composto por casa de cave, rés-do-chão, tipo T3, com logradouro, descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º …/20061107, da freguesia de ... (...), inscrito na matriz sob o art. … (conforme certidões matricial e predial de fls. 11 verso a 14), a fim deste ser partilhado, por ser bem comum do extinto casal;
b- o relacionamento como dívida do património comum conjugal, o valor, devidamente atualizado, da compensação devida por aquele património comum do extinto casal ao ex-cônjuge M. E., da parcela de terreno destinada a construção, que lhe foi doada pelo seu pai, por escritura pública de 21/11/2006, junta ao presente apenso a fls. 31 e 32.
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Custas da apelação interposta por J. D., pela apelada M. E. (art. 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
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Mais acordam, quanto ao recurso de apelação interposto por M. E., em:

1- julgar extinta a presente instância recursiva, por inutilidade superveniente da lide, na parte relativa ao pedido de avaliação da benfeitoria (casa edificada pelo então casal constituído pela própria apelante e pelo seu ex-marido, o apelado J. D., no prédio composto por parcela de terreno destinado a construção);
2- no mais, julgam a presente apelação procedente e, em consequência, revogam a decisão recorrida, na parte em que indeferiu a avaliação do recheio (verba n.º 2 da relação de bens apresentada pelo cabeça de casal), e ordenam que se proceda a essa avaliação.
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Custas da apelação interposta pela apelante M. E., a cargo desta, atento o critério do proveito, uma vez que o apelado J. D., não se opôs à avaliação por ela requerida, nem sequer contra-alegou, não sendo, portanto, vencido (art. 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
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Notifique.
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Guimarães, 30 de junho de 2022
Assinado eletronicamente pelos Juízes Desembargadores:

José Alberto Moreira Dias - relator
Alexandra Maria Viana Parente Lopes - 1ª Adjunta
Rosália Cunha - 2ª Adjunta



1. Ac. STJ. de 06/12/1984, BMJ. 342º, pág. 375; de 13/10/2011, Proc. 97/2002; Sumários, outubro de 2011.
2. Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, vol. I, 3ª ed., Coimbra Editora, pág. 223.
3. Carlos Mota Pinto, in “Teoria Geral Do Direito Civil”, 3ª ed., Coimbra Editora, pág. 447.
4. Vaz Serra. RLJ, ano 110º, pág. 351.
5. João Calvão da Silva, in “Estudos de Direito Comercial”, 1992, págs. 102 e segs. e 217.
6. Luís Carvalho Fernandes, in “Teoria Geral do Direito Civil, II, Fontes, Conteúdo e Garantia da Relação Jurídica, pág. 416/417.
7. Prof. Manuel de Andrade, in “Teoria Geral da Relação Jurídica”, vol. II, pág. 213.
8. Ac. STJ. de 5/12/2002, Ver. nº 3349/02-2ª, Sumários, 12/2002;
9. Ac. STJ. de 22/03/2007, Proc. 06A449, in base de dados da DGSI, onde constam todos os acórdão infra indicados sem menção em contrário.
10. Ac. RL. de 29/03/2011, Proc. 521-A/1999.L1-1.
11. Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, “Manuel de Processo Civil”, 2ª ed., Coimbra Editora, 1985, pág. 715, que sendo defensores da tese restritiva, ou seja, tradicional do caso julgado, sustentam que, “embora se aceite que a eficácia do caso julgado não se estende aos motivos da decisão, é ponto assente na doutrina que os fundamentos da sentença podem e devem ser utilizados para fixar o sentido e alcance da decisão contida na parte final da sentença, coberta pelo caso julgado”.
12. Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. V, Coimbra Editora, 1984, pág. 267.
13. Alberto dos Reis, ob. cit., pág. 64.
14. Ac. STJ de 30/04/2019, Proc. 5967/17.7T8CBR.S1; de 01/06/2010, Proc. 133/19994.L1.S2; de 14/11/2006, Proc. 06A357; RG. de 15/03/2006, Proc. 308/06-2; RP de 20/04/2009, Proc. 173.0TBSJP-A.P1
15. Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, Vol. III, 2ª ed., Coimbra Editora, 1987, pág. 163.
16. Vaz Serra, RLJ n.º 108º, pág. 153.
17. Manuel Rodrigues, “A posse: Estudos de Direito Civil Português”, Almedina, 4ª ed., 1981, pág. 312.
18. Menezes Leitão, “Direitos Reais”, Almedina, 8ª ed., 2019, pág. 220.
19. Lopes Cardoso, “Partilhas judiciais”, vol. I, Almedina, 1990, pág. 432, nota 1246.
20. RG. de 18/05/2017, Proc. 387/15.0T8FAFA.G1, em que se escreve que “tendo na vigência do casamento celebrado no regime de comunhão de adquiridos, sido doado ao cônjuge uma parcela de terreno, o valor de 5.000,00 euros, e tendo o casal, com recurso a empréstimo bancário, contraído por ambos, no valor de 65.000,00 euros, nela edificado uma casa de habitação de rés-do-chão e andar, no valor de 117.100,00 euros, que, enquanto perdurou o consórcio, foi utilizada como morada de família, o bem assim modificado – prédio urbano – passou a ser comum, nos termos do art. 1727º do CC e, como tal deve ser partilhado. Não ocorre, em tais circunstâncias, os pressupostos da aquisição da obra, pelo donatário do terreno, por via da acessão industrial imobiliária. Os membros do casal também não podem ser considerados como benfeitores, nem a obra como simples benfeitoria ou coisa benfeitorizada e o resultado (o novo prédio urbano) como coisa benfeitorizada”.
21. Ac. RC. de 12/10/2020, Proc. 2124/15.0T8LRA.C1
22. Rita Lobo Xavier, “Das relações entre o Direito Comum e o Direito Matrimonial”, nas “Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977”, vol. I, Coimbra Editora, págs. 488 e 500.
23. Rita Lobo Xavier, ob. cit., págs. 488 a 500. Neste sentido RG de 18/05/2017, Proc. 387/15.0T8FAF.G1; Acs. RC de 12/10/2020, Proc. 2144/15.0T8LRA.C1; RE de 25/03/2010, Proc. 454/05.9TBFAR.E1; RP de 18/05/2013, Proc. 3255/08.9TJVNF-B.P1, de 11/07/2012, Proc. 1579/10.4TMCN.P1; de 25/05/2006, Proc. 0631411; RC de 24/04/2007, CJ., t. 2º, 2007, págs. 29 a 32.
24. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe de Sousa, “Código de Processo Civil”, vol. II, Almedina, 2020, pág.595, nota 2.
25. Teixeira de Sousa, Lopes do Rego, Abrantes Geraldes e Pinheiro Torres, “O Novo Regime de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil”, Almedina, 2020, pág. 115; em igual sentido, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe de Sousa, ob. cit., págs. 595 a 596.
26. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe de Sousa, ob. cit., págs. 595 e 596, nota 3.